Cultura da violência ou culto à ordem?

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Cultura da violência ou culto à ordem?
by Waldísio Araújo - Crônicas do Chaos (http://www.waldisio.com)
De joelhos, o mocinho experimenta a dor e a humilhação. Porém, no
catch o Bem acaba triunfando contra um Mal que só momentaneamente ameaça a ordem universal.
Fotografia por dansky, via Wikimedia.
Os ideais burgueses de nossa sociedade costumam expressar o anseio por mecanismos preventivos de
controle que permitiriam fundar, regular e restabelecer a ordem social diante de quaisquer irrupções de
ameaças, sobretudo as de caráter violento. Daí a parafernália de leis, regulamentações, normatizações,
princípios explícitos ou tácitos, juridicos ou folclóricos de ação e contenção que tendem a estabelecer a
ordem mediante a imposição paradoxal de um caos de regras. Mais surpreendente, contudo, é
rencontrarmos numa certa cultura da violência essa ânsia por um mundo ordenado.
No artigo que abre sua obra Mitologias, Roland Barthes desvenda o chamado catch, espetáculo de luta
que o público brasileiro conhece sobretudo em sua forma televisiva, o telecatch ou, mais foneticamente,
telequete, que teve teu auge nas décadas de 60 e 70 e no ítalo-argentino-brasileiro Ted Boy Marino sua
maior estrela. Trata-se de um espetáculo cênico antes que uma luta esportiva, e seu objetivo último não é
o de demonstrar pela vitória a superioridade de um lutador sobre outro (como no boxe, no judô ou no valetudo) mas o de que desempenhem estes plenamente o papel que o público deles espera.
Os aficcionados do catch veem subirem ao ringue lutadores já conhecidos por seus hábitos, vestimentas,
gestos, frases ou grunhidos que, coerentemente com seus corpos (atléticos ou disformes, sadios ou
macilentos), desempenham os papéis recorrentes do "mocinho" ou do "vilão". As regras do pretenso jogo
são claras e à primeira vista tão rigorosas quanto as de qualquer luta marcial que proteja a integridade dos
participantes ou a proibição de atos baixos ou covardes; contudo, o vilão acaba geralmente por infringilas arbitrariamente ou à menor distração do juiz. Mas o interessante é que essa "distração" é fingida,
embora vista como sincera, e a infração desencadeia uma "justa" reação por parte do mocinho, que
castiga o vilão de forma exemplar, violenta e humilhante, sob os apupos de um público insuflado por todo
um contexto de sons, gestos, palavras e indumentária, signos perceptíveis de um ritual aparentemente
cruel.
Contudo não se trata de um público sanguinário e transgressor das normas burguesas do pacifismo e da
ordenação cósmica, social ou psicológica. O que se exige tacitamente dos participantes não é uma justiça
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materializada na vitória do melhor lutador, nem mesmo que haja um vencedor, mas que se torne visível a
Justiça que não se vê no mundo cotidiano mas apenas ali, momentaneamente, um fulgor da Eternidade no
breve instante: o castigo infligido ao vilão por infringir as regras não significa uma valorização
desportivista das próprias regras do catch (que na verdade parecem existir apenas para serem violadas),
mas uma afirmação intensa, ainda que inconsciente, de um regramento universal pelo qual toda
transgressão gera mais cedo ou mais tarde, por uma lei de justiça, a devida punição, a compensação que
restaura a harmonia do todo.
Vimos, em nosso artigo intitulado Voando como Dédalo, que essa noção de uma justiça imanente
aparecera por toda parte na civilização greco-romana, a começar por sua mitologia, mas o que Barthes
deixa claro é que temos nossa mitologia própria, cujos signos se apresentam no dia-a-dia de nossas mais
corriqueiras manifestações culturais – como o futebol, a telenovela, a parada gay, o descarrego de igreja,
a exibição sadomasoquista ou o telequete. Para além dessa interpretação bartheana, contudo, nos interessa
aqui o fato de que por trás de muito de nossa cultura aparentemente violenta (catch, gangues de rua,
videogames, facções neonazistas etc.) há um comportamento muitas vezes conservador e mesmo
moralista, ligado ao anseio de manutenção de um mundo tomado no fundo como justo, previsível,
razoavelmente estável ou, como diria mais apropriadamente Barthes, inteligível.
Sob o aparente caos e balbúrdia de uma sala de catch encontramos talvez o sentido do pensamento
nietzscheano de que a sombra de Deus permancerá, após sua morte, enquanto houver gramática, ou seja,
enquanto os signos de nossas praticas culturais estiverem submetidos a regras de uma sintaxe mais ou
menos implícita, inconsciente, invisível pela qual atribuímos ao mundo e a nós mesmos uma ordem de
origem transcendente e (ao menos potencialmente) divina.
Contra os que, de forma mui fácil, lamentam uma guinada da cultura contemporânea para uma
valorização da violência, perguntamo-nos se o que estamos vivendo na atualidade não seria, pelo
contrário, uma escalada surda das forças reativas que ameaçam a civilização ao insinuarem que a
desordem que a envolve seria ilusória ou meramente provisória, facilmente conjurável por ritos públicos
apenas aparentemente profanos, como o scatch.
Por Waldísio Araújo
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