CRITIFICAÇÃO

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38º. Encontro Anual da Anpocs
GT02: Arte e cultura nas sociedades contemporâneas
É POSSÍVEL UMA “CRITIFICAÇÃO” DA CRÍTICA?
Eliska Altmann
(UFRRJ/PPGCS)
Caxambu, 2014
Em artigo intitulado Quando há artificação? (2013), as sociólogas Nathalie
Heinich e Roberta Shapiro descrevem não somente o conceito de artificação, mas
quando e em quais circunstâncias ocorre o processo artístico e seu engajamento com o
mundo social, em que expressões e objetos se tornam arte. Ao investigarem laços
simbólicos, materiais e contextuais, definem a artificação como “um processo dinâmico
de mudança social, por meio do qual surgem novos objetos e novas práticas e por meio
do qual relações e instituições são transformadas” (2003: 15). Embora distanciem tal
conceito da ideia de legitimação artística (que seria tanto consequência da artificação
quanto instância causadora da mesma), compreendem que “a artificação coincide com a
elevação social, a sofisticação e a maioridade, tanto dos produtores quanto dos
consumidores, a individualização da produção e o advento do autor” 1 . Tomando
emprestado não a episteme do conceito, mas determinadas perspectivas metodológicas
que o compreendem (a saber, a observação de contextos, discursos, campos e
interações), tento neste trabalho verificar a existência de processo semelhante na crítica
cinematográfica. Para isso, desconsidero na análise qualquer instância artística do
cinema como linguagem, para enfatizar um possível (e suposto) processo da crítica
como arte, do texto crítico como gênero literário e de sua própria legitimação (ou não)
por meio de (discursos dos) atores envolvidos. Para tanto, utilizarei como fonte primária
entrevistas, frutos de pesquisa realizada ao longo de sete anos, em quatro países:
Argentina, Brasil, Cuba e México 2.
Por meio de uma sociologia dos discursos, utilizarei como eixo analítico
entendimentos sobre: a crítica como instituição, como uma das esferas a participar do
processo de artificação de certos tipos e autores cinematográficos, e também como ela
própria participa (e se insere) num discurso, gênero ou “quadro” artístico. Como críticos
reivindicam seu ofício, e de quais formas configuram sua prática escritural como
linguagem literária são algumas questões norteadoras do argumento.
Atento ao prevalecimento de noções de autoria e autoridade como requisitos de
status e estatuto artístico da crítica. Ressalto, portanto, “tipos” formadores de gerações
constitutivas do campo, no caso os cineclubistas das décadas de 1960 e 1970,
influenciados pela política dos autores, instituída pela revista francesa Cahiers du
“As obras são avaliadas em termos de critérios objetivos de ‘beleza’, e não somente em termos do
prazer subjetivo que proporcionam, e isso forma uma base para uma nova experiência nessas
esferas: a apreciação estética” (HEINICH e SHAPIRO, 2003: 21).
2 Ver também ALTMANN, 2013, e www.cinecríticos.com.br
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Cinéma. Nesse momento, o cineasta como um “autor” referia-se à ideia de escritura
cinematográfica, cuja expressão máxima seria a de quem “assina a obra”. Um dos
termos usados por tal “política” é “câmera-caneta” (caméra-stylo) que, cunhado pelo
crítico francês Alexandre Astruc, em 1948, remete literalmente ao cineasta como autor
que, por intermédio de sua câmera, comunicaria seus discursos e sentimentos pessoais.
Com base nessa concepção, a experiência que molda a ideia do autor cinematográfico
passa a ser a do escritor e seu livro. 3 Pode-se afirmar que a noção de autor deriva
precisamente da crítica literária, configurando uma “alta” camada do campo
cinematográfico.
Desde então, o trabalho do crítico passou a contribuir para a formação de um
espectador reflexivo e analítico, que deveria tomar atitude ativa frente ao que assistisse
na tela, contando com novos e específicos conhecimentos para opinar sobre uma obra
fílmica. Sintetizando, a noção de autor refere-se à contribuição individual e subjetiva
dada à obra cinematográfica, ao personalismo e à individuação do estilo. O autor
institui-se como um sujeito que se expressa por meio de regularidades, e a política,
como método que o qualifica dentro da coerência de sua expressão subjetiva (Bernardet,
1994). O crítico alça à categoria de autor aquele que compreende uma obra a partir de
similitudes temáticas. Ao interpretar a obra do autor como um sistema de repetições, a
crítica fundamenta tal política, baseando-se não em um filme isolado, mas em um “fazer
parte”, num conjunto específico de narrativas. Assim, o sistema de obras criado por um
único autor seria a base do método crítico.
Com isso, pode-se concluir que o cultivo à individualidade serviria à
intelligentsia e que a internalização de normas para tal fim passou a constituir tanto uma
exigência social quanto uma resposta à vontade de diferenciação. Nesse sentido, seria
importante pensar a crítica cinematográfica legitimada como um tipo de autoridade
cultural – instância que, por meio de uma imposição simbólica, faz circular discursos
oficiais que se tornam referências, estabelecendo “julgamentos para a posteridade”,
ainda que instituídos por lutas de poder (Bourdieu, 2002).
Formada a partir de um consenso relativo ao cultivo da individualidade, a
política dos autores permitia (e ainda permite) que a cinefilia e, por extensão, a crítica se
convertessem socialmente numa forma de distinção, à medida que tratam não somente
De acordo com Bernardet, “os escritores são considerados como valores seguros no firmamento da
cultura, de forma que reencontrar aspectos de seus temas em filmes é maneira de valorizá-los e de
consolidar o status do cineasta [...] Há uma nobreza literária que contamina o cinema” (1994: 1617).
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de uma especificidade cinematográfica, mas de questões relativas ao gosto. Digo crítica
como extensão da cinefilia pela razão de, sobretudo nos anos 1960 e 1970, a primeira
não dispor de uma concepção “profissionalizante”, ou seja, de não constituir-se em
meios formadores, como cursos e disciplinas universitárias formais.
Um dos entendimentos da critificação ou do processo de afirmação da crítica
como linguagem literária e autônoma pode ser verificado no pensamento de Roland
Barthes, para quem “a crítica é metalinguagem, linguagem sobre a linguagem, e está
portanto submetida às mesmas exigências da linguagem literária. Assim como a
linguagem literária não pode dizer o mundo, a linguagem crítica não pode dizer a obra.
O crítico é aquele que, mais do que a obra de que fala, deseja sua própria linguagem. E
o sentido dessa é tão suspenso quanto o da literatura (2007: 10)4. No presente trabalho,
tratarei de verificar tantos outros exemplos a fundamentarem tal hipótese.
Ao mesmo tempo “prática escritural” e exercício de interpretação, pode-se dizer
que a crítica cinematográfica, ao longo de décadas, foi construída em suporte distinto do
de seu objeto. Assim, se o discurso cinematográfico é montado a partir da colagem de
fotogramas impressos em uma película, o texto crítico é escrito no papel5. Ambos são
narrativas ficcionais e discursos construídos, e tanto o filme quanto a crítica possuem
regras próprias, sendo que esta última acaba por reinventar seu objeto com base na
interpretação de seus significados implícitos. Em uma adaptação das palavras de Roland
Barthes: o mundo existe, o cineasta fala, eis o cinema. O objeto da crítica não é o
“mundo”, mas um discurso, “o discurso de um outro: a crítica é discurso sobre um
discurso; é uma linguagem segunda ou metalinguagem, que se exerce sobre uma
linguagem primeira (ou linguagem-objeto)” (Barthes, 2007: 160). O objeto filme, desse
modo, não é algo isolado, mas reinventado a partir de uma prática a ele relacionada. A
reinvenção, que implica circulação de ideias, é feita em contextos particulares de
relações sociais, constituindo campos autônomos com seus habitus e ideais específicos.
Tais campos, por sua vez, acabam por estabelecer cânones de recepção.
Ainda: “Isso é para dizer que, mesmo se o crítico, por função, fala da linguagem dos outros a ponto
de querer aparentemente concluí-la, assim como o escritor, o crítico nunca tem a última palavra.
Ainda mais, é esse mutismo final, que forma sua condição comum, que desvenda a identidade
verdadeira do crítico: o crítico é um escritor. Essa é uma pretensão de ser, não de valor; o crítico não
pede que lhe concedam uma ‘visão’ ou um ‘estilo’ , mas somente que lhe reconheçam o direito a uma
certa fala, que é a fala indireta” (2007: 16).
5 Noto que artifícios tecnológicos e virtuais contemporâneos, por intermédio dos quais a crítica se
veicula, possibilitam uma variação desse entendimento, uma vez que, nos novos meios, a crítica
também pode ser “escrita” através de imagens em movimento.
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Na construção de cânones, a escritura crítica não deveria estar pautada por meros
julgamentos do que seria “bom” ou “ruim”, “erudito” ou “vulgar”. A recepção ou a
interpretação crítica deveria ser construída, isto sim, a partir de formas mais complexas
que não se proponham a descobrir “verdades”, mas “validades” em um sistema de
signos específico. A elaboração de uma segunda linguagem coerente pautada nesse
sistema de signos se dá por meio do reconhecimento do que se vê na tela. Isto indica
que tanto a criação artística quanto sua recepção estão envolvidas em modos de
pertencimento históricos e sociais.
Refletir sobre a crítica por meio de suas práticas e condições de circulação
requer um exame dos fundamentos do trabalho sociológico no campo da arte. Pensar as
condições sociais da crítica demanda não somente uma apreciação dela própria como
linguagem, mas também de seus modos de produção, e, sobretudo, de uma investigação
que compreenda o campo como forma artística. Nesse sentido, buscarei enfatizar efeitos
sociais da crítica como arte por meio de concepções propostas pela sociologia, de modo
a unir dimensões das ciências sociais e das manifestações culturais e artísticas.
Referências bibliográficas
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