A relevância do conhecimento comum: uma investigação sobre possíveis aproximações dos pensamentos de John Dewey e Gilbert Ryle _______________________________________________ Fernando Cesar Pilan1 PIBIC/CNPq Resumo: O objetivo do presente trabalho é discutir a relevância do saber prático dentro do processo de produção do conhecimento, conforme defendem as filosofias de John Dewey (1859-1952) e Gilbert Ryle (1949-1970). Tentaremos mostrar que a proposta pragmatista de Dewey e a noção de saber como sugerida por Ryle partilham de um mesmo modo de fazer filosofia, apresentando-se como alternativas às tradicionais teorias do conhecimento. As aproximações dos autores citados são possíveis na medida em que ambos valorizam o plano da ação como fundamental para e anterior à constituição do conhecimento intelectualista/formal. Neste sentido, procuraremos mostrar que a investigação sobre a natureza do conhecimento já não precisa mais limitar-se a seus aspectos proposicionais, mas pode também considerar o conhecimento intrínseco à ação comum. Palavras-chave: Conhecimento Comum. Ação. Pragmatismo. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo apontar as possíveis aproximações dos pensamentos de John Dewey e Gilbert Ryle. Nas críticas de John Dewey à filosofia tradicional encontramos o questionamento à utilização de métodos não-empíricos2 de fazer filosofia que, em geral, não dão o devido reconhecimento à experiência, à ação e ao conhecimento comum. Por sua vez, Gilbert Ryle, assinala vários problemas próprios a abordagens dualistas da mente as quais dão sustentação teórica para a clássica divisão entre conhecimento teórico e conhecimento prático. Com isso, entendemos que ambos autores partilham de uma mesma concepção filosófica de conhecimento voltado à ação. 1 Graduando em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. [email protected]. Orientadora: Profª. Dra. Mariana Cláudia Broens. 2 A expressão “método não-empírico”, no entendimento de Dewey, se refere a doutrinas filosóficas que não consideram relevantes os dados da experiência, defendendo uma abordagem introspectiva cujo resultado proclama a existência de uma instância da subjetividade como auto-evidente. O pragmatismo propõe a utilização de um certo método empírico na filosofia, cujas principais características apresentaremos posteriormente. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 251 CRÍTICA DE DEWEY E RYLE À TRADIÇÃO CARTESIANA A ontologia que supõe uma dicotomia entre aparência e realidade vem de longa data, mas se manifesta com muita força no pensamento cartesiano. Nas Meditações Metafísicas, vemos claramente a ação do método da dúvida universal que leva Descartes a considerar falsos os dados da experiência. No argumento conhecido como o “do erro dos sentidos”, Descartes começa por explanar que o conhecimento via experiência não é digno de confiança, porque, apesar de apresentar dados que podem ser relevantes no dia-a-dia, não é fonte absoluta de certeza, razão pela qual Descartes aplica em relação a esses dados o método da dúvida hiperbólica. Quando a dúvida universal cartesiana leva o corpo a ser entendido como estranho à mente, o sujeito torna-se o fundamento último do conhecimento. Esta noção de sujeito é uma herança da tradição que há muito predomina na filosofia. A crítica ao cartesianismo é uma das concordâncias entre Dewey e Ryle. Neste sentido, ambos entendem que a doutrina cartesiana não dá conta de explicar adequadamente o conhecimento, por isso elaboraram duras críticas ao dualismo presente nesta filosofia. Para Dewey, a concepção cartesiana de uma experiência oposta à natureza, faz com que a experiência se torne uma barreira entre o homem e seu em torno. Essa filosofia remanescente do racionalismo utiliza, segundo ressalta Dewey, um método não-empírico limitando-se a explicações meramente proposicionais e estabelecendo conseqüentemente o desprezo pela ação comum. O método não-empírico constitui-se, portanto, de análises unicamente proposicionais que se supõem completas em si mesmas. Dewey aponta três possíveis problemas desse método: 1- Não há confrontação das teses com os fatos na experiência real. 2- Os objetos da experiência ordinária não adquirem amplitude e enriquecimento suficiente. 3- O objeto se torna afastado e arbitrário. Neste sentido, Dewey aponta que a filosofia cartesiana se equivoca, pois, aquilo que é simples pela experiência, a razão abstrata complica divagando num universo que se presume estar para além da experiência. Esta forma de fazer filosofia separa o objeto Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 252 da experiência tornando-a uma experiência somente de estados de consciência, o que acaba por gerar um menosprezo epistêmico em relação às coisas da natureza. Ryle também critica esse aspecto da filosofia cartesiana quando denuncia que, com a emergência dessa instância subjetiva, o dualismo cartesiano comete o chamado erro categorial. Segundo Ryle, o erro categorial consiste em considerar como pertencendo a uma categoria algo que efetivamente pertence a outra. O erro categorial cartesiano consiste em entender a mente e o corpo como pertencendo à mesma categoria substância. Ora, nada permite justificar que a mente seja uma substância distinta do corpo e no mesmo sentido em que o corpo pode ser considerado uma substância. Ao contrário, temos muitos indícios de que a relação mente/corpo é muito mais íntima de que a doutrina cartesiana permite supor (basta que consideremos, por exemplo, as seqüelas nas capacidades cognitivas de lesões em nosso corpo). Para ilustrar em que consiste o erro categorial, em sua obra The Concept of Mind, Ryle dá o exemplo de um visitante que quer conhecer uma universidade. Um guia familiarizado com aquela universidade o acompanha e lhe mostra os alunos, os professores, a biblioteca, as salas de aula, os laboratórios e as demais dependências. Após esse percurso, o visitante pergunta ao guia onde afinal está a universidade, pois até aquele momento só havia encontrado pessoas, faculdades, livros, jardins etc. O guia, espantado com a pergunta, responde que a universidade é a instituição composta justamente pelos prédios, alunos, bibliotecas, jardins etc, e não pertence à mesma categoria dos demais elementos. Para Ryle, a doutrina cartesiana postula que há no ser humano duas histórias concomitantes, a saber: a história corporal e a história mental. A história do corpo é espacial e está sujeita às leis mecânicas, sendo considerada a vida pública do ser humano. A história da mente por sua vez, não é espacial e não está sujeita às leis mecânicas, sendo. por isso, considerada a vida privada não pública do ser humano. Nesta vida introspectiva, está assegurada a certeza indubitável do “eu sou, eu existo” tão pretendida pela tradição filosófica, enquanto que ao corpo cabe descrença, dúvida e incerteza. Mesmo que a dúvida radical seja aplicada apenas por razões metodológicas, os argumentos cartesianos acabam gerando fortes teses ontológicas. A afirmação da existência de dois mundos diferentes em uma só natureza separa o ser humano em uma instância física, existindo no espaço e no tempo, e em uma Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 253 instância mental, existindo somente no tempo. Por não existir espacialmente, a mente não se comunica com mais nada, pois para haver comunicação é preciso de existência física. Os acontecimentos mentais, segundo a Doutrina Oficial cartesiana, são isolados e somente através do corpo é possível a comunicação das mentes. Com isso, a Doutrina Oficial estabelece o que Ryle chama de “o fantasma da máquina”, entendendo que o corpo é uma máquina dirigida por uma instância imaterial. Ainda na crítica ryleana, o autor afirma que a doutrina oficial cartesiana entende os estados mentais como tidos integralmente pela consciência, de forma que não há ilusão ou engano no mundo mental. Por isso, tem uma noção de conhecimento que possui o “fantasma da máquina” como núcleo. Ryle afirma que a prova do sucesso da doutrina cartesiana é que mesmo após as evidentes provas de Freud a respeito do inconsciente e seus estímulos, ela foi fortemente influente na filosofia mantendo a qualquer custo sua hipótese de que o mental é totalmente cognoscível a si mesmo. Como vemos, em suas criticas à filosofia cartesiana, Dewey e Ryle partilham do mesmo ponto de vista. No entender de nossos autores, na filosofia cartesiana há a propagação do dualismo tradicional que insiste na distinção entre aparência e realidade. Desse dualismo original entre aparência e realidade, surge o dualismo moderno entre mente e corpo como salienta Ryle. Essa dualista forma de fazer filosofia levou a investigação filosófica sobre o conhecimento a se embrenhar numa tentativa de resolução de um quebra cabeça que no fim das contas é insolúvel. Apontadas aqui algumas das criticas de Ryle e Dewey ao cartesianismo, apresentaremos a seguir as propostas dos autores e suas contribuições para a Teoria do Conhecimento. A RELEVÂNCIA DO CONHECIMENTO COMUM. A crítica de Dewey à filosofia cartesiana não se refere ao teorizar em si, mas sim ao uso equivocado do teorizar. A teoria é um produto muito mais refinado do que o conhecimento comum, mas Dewey alerta que é do conhecimento comum (experiência primária) que surgem os materiais dos quais se formam os conhecimentos refinados. A reflexão apurada é somente o segundo passo que vem após a experiência primária no plano da ação. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 254 No mesmo viés, Ryle entende que o “saber como” diz respeito à capacidade inteligente de realizar uma ação. Em geral, os teóricos têm investigado o conhecimento somente a partir de pressupostos proposicionais, ficando somente no plano do “saber que”, o que leva à afirmação de que a reflexão vem antes da ação, tratando-se de duas coisas distintas. Segundo Ryle é uma inverdade afirmar que a ação inteligente necessita de conhecimento intelectual, pois não há divisão entre pensar e agir. A habilidade inteligente em desempenhar uma atividade muitas vezes se desenvolve sem recorrer ao auxílio proposicional de teorias e de reflexão refinada. Nos servem de exemplo os tão comuns casos de violonistas populares que tocam muito bem, mas que nunca viram uma partitura ou tiveram contato com a teoria musical. Como vemos, tanto Dewey como Ryle defendem uma valorização do plano da ação. Neste sentido não há superioridade do saber intelectual/racional sobre o conhecimento comum. Ambos defendem que há uma intima conexão entre o plano do pensamento e o plano da plano da ação, de forma que não existe a dissociação suposta pelo cartesianismo. A distinção entre o desempenho inteligente ou não inteligente de uma ação, não se restringe aos antecedentes lógico-proposicionais, mas se dá no próprio processo da ação na prática. Saber como em termos de saber que [...] Quando faço qualquer coisa inteligentemente, isto é, a pensar no que estou a fazer, estou a fazer uma coisa e não duas. A minha ação tem um processo ou modo especial, e não antecedentes especiais. (RYLE, 1970, p. 31). Como vemos, Ryle defende uma continuidade, uma conexão e uma inseparabilidade entre pensar e agir. Citamos Dewey: Permanência, essência real, totalidade, ordem, unidade, racionalidade, o unum, verum et bonum da tradição clássica, são predicados laudatórios. Quando encontramos tais termos sendo utilizados para descrever os fundamentos e as conclusões próprias de algum sistema filosófico, há motivos para suspeitar que se efetuou alguma simplificação artificial da existência. (DEWEY, 1980, p. 180). Para Dewey, a experiência não é primariamente cognitiva, ela adquire essa feição na medida em que seja acumulativa, conduza a alguma coisa ou adquira Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 255 significação. O autor observa que “a medida de valor de uma experiência reside na percepção das relações ou continuidades a que ela nos conduz” (DEWEY, 1959, p. 153). Aprendemos graças ao fluxo contínuo de experiências indissociáveis entre si nessa dinâmica de interação ativo-passiva com e do ambiente. O conhecimento implica mudanças, especialmente refletidas na modificação de hábitos diante das condições novas que se apresentam por meio desse fluxo e refluxo da experiência. Assim sendo, a noção de continuidade da experiência pressupõe um constante processo de aperfeiçoamento participativo e interativo entre o organismo e sua ambiência e essa mesma capacidade de aperfeiçoamento tem, por sua vez, uma longa história biológica que não pode ser dela dissociada. Para Dewey, o hábito de um ser vivo quando desvinculado do conhecimento é apenas habilidade feito às cegas e não produz conhecimento. O hábito por si só implica a repetição semelhante de situações e, por isso, mesmo diante de uma nova condição que se apresente, o organismo não modificará sua ação. No entanto, o hábito de um organismo quando vinculado ao conhecimento se torna uma ação inteligente e atenta que, através da experiência, buscará adaptações às novas condições que lhe são apresentadas pelo ambiente. Essa mesma noção de hábito Ryle também propõe em sua tese e afirma que na habilidade atenta reside o saber como que produz conhecimento. O hábito cego é feito automaticamente e implica sempre repetição através de imposições e nessa atividade não conhecimento. A habilidade por sua vez implica sempre mudança crítica e desenvolvimento. Ryle cita o exemplo do alpinista que ao andar sobre as rochas cobertas de gelo, numa noite fria, não mexe os membros por hábito, mas por habilidade. Está atento ao contexto e a cada acontecimento. Assim, se erra tende a não cometer mais tal erro. Vai se adaptando e aprendendo como caminhar nesta determinada situação. Ryle também defende que a ação inteligente não é uma ordenação de uma mente interna. O processo de produção do conhecimento no plano da ação se dá através do aperfeiçoamento da ação e não depende de um núcleo racional que dite as regras. O “aprender na prática” é o que Ryle chama de saber como, e é através dele que as capacidades inteligentes se incorporam na pessoa. Ryle da o exemplo do jogo de xadrez: Quando alguém está aprendendo a jogar xadrez pode até fazer algumas jogadas Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 256 de acordo com as regras, mas sem saber de fato as regras. Num segundo momento a pessoa compreende as regras, mas tem que ficar mentalmente repetindo para fazer as jogadas certas. Num terceiro momento já começa a aplicar as regras sem pensar. Neste sentido, as regras são incorporadas pela pessoa de tal forma que se torna uma segunda natureza fazer o que é permitido e evitar o que é proibido. Não adianta saber as regras, pois é no como, ou seja, nas ações dentro do jogo que se distingue se ele sabe ou não sabe jogar. CONCLUSÃO Apontar para a relevância do plano da ação na investigação da natureza e do processo de produção do conhecimento são teses presentes nos pensamentos de Dewey e de Ryle. A preocupação com o reducionismo e com o dualismo estabelecido pela tradição filosófica certamente impulsiona estes autores a apresentarem suas críticas sobre as concepções de conhecimento que decorrem de tal tradição. Apesar de Ryle não ser associado à tradição pragmatista, entendemos que, ao menos nos pontos aqui mencionados, Dewey e Ryle partilham inúmeras teses que ressaltam o valor filosófico do conhecimento prático. Certamente suas propostas de repensar e entender o processo de produção do conhecimento, tomando como ponto de partida o plano da ação comum, trazem uma contribuição importantíssima para a Teoria do Conhecimento que até recentemente encontrava-se travada pela infecundidade do dualista e reducionista pensamento tradicional. Referências DESCARTES, R. Meditações. São Paulo: Nova Cultural, 1999. DEWEY, J. Experiência e natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1980. ______. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3. ed. Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. ______. Reconstrução em Filosofia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores). MURPHY, J. O pragmatismo: de Peirce a Davidson. Portugal: Edições Asa, 1993. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 257 RYLE, Gilbert. The concept of Mind. London: Penguin, 1949. ______. O Conceito de Espírito. Moraes Editora: Lisboa, 1970. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 258