INFORMAÇÕES No AGU/RA- 03/2005 PROCESSO No 00400.000418/2005-27 MANDADO DE SEGURANÇA No 25.295/DF IMPETRANTE : MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO IMPETRADO : PRESIDENTE DA REPÚBLICA ASSUNTO : Postula-se a nulidade do art. 2o, incisos V e VI, §§ 1o e 2o, do Decreto no 5.392, de 10 de março de 2005, que declarou estado de calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro. Excelentíssimo Senhor Consultor-Geral da União, Nos autos do Mandado de Segurança em epígrafe, impetrado pelo Município do Rio de Janeiro, em face do Decreto no 5.392, de 10 de março de 2005, o Senhor Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, solicita, por meio do Ofício no 1014/R, de 18 de março de 2005, as informações necessárias ao julgamento do feito. A postulação implica na declaração de nulidade do art. 2o, incisos V e VI, §§ 1o e 2o, do Decreto no 5.392, de 10 de março de 2005, que declarou estado de calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro. II Várias razões determinam a imediata extinção do feito, sem julgamento do mérito. Observe-se: Ab initio, deve-se destacar que o direito de Ação se subordina a certas condições, em falta das quais, de qualquer delas, quem o exercita será declarado carente dele, dispensando o órgão jurisdicional de decidir o mérito de sua pretensão. De fato, para exercer o direito de ação, a parte deve atender a determinados pressupostos processuais: a) legitimidade para a causa, isto é, o autor e o réu devem ser os sujeitos do direito discutido na ação; b) interesse de agir, ou seja, a necessidade do uso da via judicial; e c) possibilidade jurídica do pedido. Assim, a primeira razão que autoriza a extinção do feito sem o julgamento do mérito se deve ao fato de que o pedido deverá consistir numa pretensão que, em abstrato, seja tutelada pelo direito objetivo, isto é, admitida como provimento jurisdicional. A possibilidade jurídica do pedido vem a ser a admissão em tese, pela ordem jurídica, de uma pretensão. Se a ordem jurídica permitir explícita ou implicitamente que se faça ou se deixe de fazer algo, estará admitindo, conseqüentemente, a possibilidade de acatar as pretensões correspondentes. A essência, pois, do Mandado de Segurança está no direito líquido e certo. 2 Conceituar direito líquido e certo, assim, deve ser o primeiro passo para o bom entendimento do instituto. O art. 5o da Constituição Federal prescreve expressamente, et litteris: “LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público.” Na esteira do preceito constitucional, não se verificou, em qualquer parte da exordial, o direito “líquido” e “certo” do Impetrante, posto que o mesmo pretende usar o presente writ para obter a anulação de um ato presidencial praticado com observância dos preceitos constitucionais e legais, objetivo este que nunca redundará num direito líquido e certo. Não tem como prosperar Mandado de Segurança baseado em “suposto” direito subjetivo que vise a desconstituir um ato administrativo praticado com amplo amparo fático, constitucional e legal. O festejado Jurista José Cretela Júnior, em iluminada defesa do objeto do Mandado de Segurança, assim se pronunciou, verbis: “O objeto do mandado de segurança é a proteção de direito subjetivo próprio, público ou privado, do Impetrante, ameaçado ou ferido por ato do poder público, causador do dano material ou moral. Não é ‘qualquer pessoa’ que tem legitimação ativa para suscitar o controle jurisdicional de ato administrativo lesivo. 3 Tal faculdade cabe apenas ao titular do direito líquido e certo e incontestável, ferido por ato arbitrário do poder público. O dano individual, causado ou iminente, decorrente do ato administrativo, é, pois, pressuposto indispensável, para o controle jurisdicional. Não tem cabimento, portanto, o pedido, cujo objetivo é o desfazimento de ato que beneficiou outrem cujo direito se pretendeu que não fosse reconhecido já que a nulidade do ato não aproveita ao Requerente. Seria no caso, tão só, de ‘interesse’ pessoal do Impetrante, jamais ‘direito.’ ‘...Todavia, no mandado de segurança, a palavra não é empregada com essa significação. Líquido não quer dizer o quantum debeatur da obrigação. Quer dizer, ao contrário, um direito estremado de dúvida isento de controvérsia. O ato administrativo ilegal praticado pelo poder público não basta, por si só, para tornar duvidoso um direito líquido e certo. A violação não tem a virtude de desnaturar a essência do direito. Por isso mesmo, deve exigir-se dobrado rigor na concessão da segurança. Se ela pressupõe direito líquido e certo por parte do sujeito ativo, ilegalidade ou abuso de poder por parte do sujeito passivo, claro é que a medida só deve ser concedida mediante a verificação da concorrência desses elementos. Se houver ausência de um deles, o Judiciário deve denegar a medida, ficando ressalvado ao Impetrante o exercício da via ordinária.’ (Alfredo Buzaid, Do Mandado de Segurança, RF 164:13). ‘Direito líquido é o que se apresenta devidamente individuado e caracterizado, para que não haja dúvida alguma quanto aos exatos limites do que se pede.’ (Arnoldo Wald, Do Mandado de Segurança na prática judiciária, p. 119). ‘O que não se admite, no mandado de segurança, é a alta indagação de fatos intricados, complexos ou duvidosos.’ (Orozimbo Nonato).”1 (grifamos) Com efeito, é de se aplicar a inteligência da norma expressada no art. 295, inciso V, CPC, que prevê, litteris: 1 in Controle Jurisdicional do Ato Administrativo – Forense, 1a ed., p. 359 e ss. 4 “Art. 295. A petição inicial será indeferida: (omissis) V – quando o tipo de procedimento escolhido pelo autor, não corresponder à natureza da causa, ou ao valor da ação: caso em que só não será indeferida, se puder adaptar-se ao tipo de procedimento legal.” Corroborando esse entendimento, busca-se a inteligência do art. 8o, da Lei no 1.533, de 1951, que assim prevê, verbis: “Art. 8o A inicial será desde logo indeferida quando não for caso de mandado de segurança ou lhe faltar algum dos requisitos desta lei.” Como ensina Celso Barbi, verbis: “A expressão direito líquido e certo não foi criada pelo legislador constituinte nem pelo legislador ordinário. Limitaram-se eles a buscá-la na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, onde a introduzira Pedro Lessa, ao tempo da formulação da doutrina brasileira do habeas corpus, e para aplicação a este.”2 Efetivamente, Pedro Lessa, no HC no 3.539, impetrado por Ruy Barbosa no egrégio Supremo Tribunal Federal, esboça a idéia de que o direito líquido e incontestável estava ligado à prova pré-constituída e à rapidez da solução do conflito de interesses. Ninguém melhor do que o Ministro Costa Manso, do Supremo Tribunal Federal, conceituou o direito certo e incontestável. Trata-se de voto célebre, hoje repetido por todos aqueles que abordam o tema, proferido no MS no 333/1936, onde foi lido o voto já preparado para o RMS no 324: 2 In Do Mandado de Segurança, Forense, 6a ed., p. 56. 5 “Eu, porém, entendo que o art. 113, no 33, da Constituição empregou o vocábulo direito como sinônimo de poder ou faculdade decorrente da lei ou norma (direito subjetivo). Não aludiu à própria lei ou norma (direito objetivo). O remédio judiciário não foi criado para a defesa da lei em tese. Quem requer o mandado, defende o seu direito, isto é, o direito subjetivo, reconhecido ou protegido pela lei. O direito subjetivo, o direito da parte é constituído por uma relação entre a lei e o facto. A lei, porém, é sempre certa e incontestável. A ninguém é lícito ignorá-la, e com o silêncio, a obscuridade, a indecisão dela não se exime o juiz de sentenciar ou despachar (Código Civil, art. 5o da Introdução). Só se exige prova do direito estrangeiro ou de outra localidade, e isso mesmo se não for notoriamente conhecido. O facto é que o peticionário deve tornar certo e incontestável, para obter mandado de segurança. O direito será declarado e aplicado pelo juiz, que lançará mão dos processos de interpretação estabelecidos pela ciência, para esclarecer os textos obscuros ou harmonizar os contraditórios. Seria absurdo admitir se declare o juiz incapaz de resolver de plano um litígio, sob o pretexto de haver preceitos legaes esparsos, complexos ou de inteligência difícil ou duvidosa. Desde, pois, que o facto seja certo e incontestável, resolverá o juiz a questão de direito, por mais intrincada e difícil que se apresente, para conceder ou denegar o Mandado de Segurança.”3 (grifamos) O Ministro Castro Nunes, já em 1937, quando, então, vigia a Lei no 191, de 1936, é muito claro a respeito do tema: “Direito certo e incontestável, para os efeitos do mandado de segurança, se define por uma condição processual e pelo teor da obrigação que incumba à autoridade. Condição processual é a possibilidade de provar de plano, documentalmente, os pressupostos da situação jurídica a preservar do ato lesivo e a violação ou ameaça de que se queixa o Impetrante, suscetível, em regra, de prova oficial. A segunda indagação é o mérito da questão, o exame da legalidade do 3 in Archivo Judiciário, vol. XLI, em sua redação original. 6 procedimento da autoridade, o direito de exigir da autoridade o cumprimento de um dever funcional.”4 (grifamos) O direito líquido e certo é, portanto, uma condição especial da ação de Mandado de Segurança. Em outras palavras, o Impetrante, para que possa utilizar-se desta ação expedita, prevista na própria Constituição, deve provar com a inicial, por meio de documentos, o que afirma. Se não tiver documento, se não tiver prova pré-constituída, não tem direito líquido e certo. Essa é a condição legal imposta para que o autor (Impetrante) se utilize desse instrumento processual constitucional. O parágrafo único do art. 6o da Lei no 1.533, de 1951, por outro lado, reforça a tese processual do direito líquido e certo como condição da ação. Tecnicamente, então, se o Impetrante não juntar a documentação, comprovando o fato deduzido na inicial, ou se a apuração dos fatos exigir a produção de outras provas, deverá ser considerado, dentro de nossa sistemática processual, carecedor da segurança. Em outras palavras, o julgador não entrará no mérito, e extinguirá o processo com base no art. 267, VI, do CPC. Esse também é o entendimento da Professora Lúcia Valle Figueiredo, verbis: 4 in Do Mandado de Segurança e outros meios de defesa do direito contra actos do poder público, Acadêmica, 1937, ps. 61 e segs. 7 “Impende, pois, que os juízes, quando entenderem não haver direito líquido e certo, por necessidade de dilação probatória, não deneguem a segurança, porém extingam-na por carência dessa via processual.”5 (grifamos) Hely Lopes Meirelles acrescenta que “em última análise, direito líquido e certo é direito comprovado de plano. Se depender de comprovação posterior, não é líquido nem certo, para fins de mandado de segurança. Evidentemente, o conceito de liquidez e certeza adotado pelo legislador do mandado de segurança não é o mesmo do legislador civil (CC, art. 1.533). É um conceito impróprio – e mal-expresso – alusivo à precisão e comprovação do direito quando deveria aludir à precisão e comprovação dos fatos e situações que ensejam o exercício desse direito.”6 As alegações na exordial de que o Decreto “submeteu os dois mais importantes Hospitais de propriedade do Município Impetrante a verdadeira INTERVENÇÃO FEDERAL, os passando espúria e ditatorialmente ao controle do Governo Federal”7, bem como de que “não há e nunca houve situação de calamidade pública no sistema de saúde do Município do Rio de Janeiro”8 não merecem acolhimento em sede de Mandado de Segurança. Neste sentido, mutatis mutandis, colhem-se inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal, dentre as quais destaca-se: “Reforma agrária. Alegação de produtividade do imóvel rural, insuscetível de exame, em mandado de segurança. Argüição de inconstitucionalidade do art. 6o, e seus parágrafos, da Lei no 8.629-93, já afastada pelo Supremo Tribunal (MS 22.193). Atuação de entidades 5 in Do Mandado de Segurança, Malheiros, 1996, p. 176. in Mandado de segurança, ação popular e ação civil pública, mandado de injunção, e habeas data. 19a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 7 Fls. 3 da petição inicial. Destaques no original. 8 Fls. 10 da petição inicial. 6 8 representativas (Decreto no 2.250-97) restrita à hipótese, não ocorrente, de indicação, pelas próprias, de áreas passíveis de desapropriação.”9 (grifamos) “Mandado de Segurança. Desapropriação de Imóvel Rural para fim de Reforma Agrária. 1. O mandado de segurança não é meio idôneo para dirimir questões que envolvem pontos controvertidos. 2. Exige-se comunicação da vistoria à entidade de classe apenas nos casos em que ela indica a área a ser desapropriada (Decreto no 2.250/97, artigo 2o). 3. Medida cautelar de antecipação de provas ajuizada contra o INCRA não cria óbice a que o Presidente da República desaproprie o imóvel sem necessidade de suspender os procedimentos administrativos. 4. Esta Corte já decidiu que o artigo 6o da Lei no 8.629/93, ao definir o imóvel produtivo, a pequena e a média propriedade rural e a função social da propriedade, não extrapola os critérios estabelecidos no artigo 186 da Constituição Federal; antes, confere-lhe eficácia total (MS no 22.478/PR, Maurício Corrêa, DJ de 26.09.97). Segurança que se denega, ressalvadas as vias ordinárias.”10 (grifamos) “Mandado de segurança. Desapropriação. Reforma agrária. 2. Ato do Exmo Sr. Presidente da República, consubstanciado no Decreto de 20.01.94, que declarou de interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis denominados Fazenda Piracanjuba e Fazenda Boa Esperança. 3. Alegação de serem os imóveis insuscetíveis de desapropriação, posto que economicamente explorados; de que a autoridade impetrada restou induzida em engano pelo fato de o INCRA ter noticiado presença de arrendatários, parceiros e posseiros, nos aludidos imóveis; vício formal na edição do decreto impugnado e ausência de dotação orçamentária específica para a justa e prévia indenização, segundo o previsto no art. 184, da CF. 4. Informações solicitadas. Prestou-as o Chefe do Poder Executivo. 5. Medida liminar indeferida por não configurada hipótese de sua concessão. 6. Parecer da Procuradoria-Geral da República pelo não acolhimento do mandado de segurança, por ausência de direito líquido e certo. 7. Não é o mandado de segurança a via adequada para discutir os 9 10 MS 23107/SP, Relator Min. Octavio Gallotti, DJ 10/08/00, p.5. MS 23312/PR, Relator Min. Maurício Corrêa, DJ 25/02/00, p.54. 9 fatos, que se apresentam ilíquidos, concernentes aos requisitos à desapropriação cogitada. Liquidez e certeza dos fatos não caracterizadas. Alegação de certeza e liquidez do direito não acolhida. Mandado de segurança indeferido.”11 (grifamos) Colhe-se, também, no mesmo sentido, trecho do voto vencedor proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, na relatoria do MS no 23.827, et litteris: “... é inviável o exame, pela via de mandado de segurança de questão que demanda produção de prova, pois o direito líquido e certo, pressuposto constitucional de admissibilidade do mandado de segurança, é requisito de ordem processual, atinente à existência de prova inequívoca dos fatos em que se baseia a pretensão do impetrante e não à procedência desta, matéria de fato. Neste sentido cito, como exemplo, o MS 21188, Pleno, Carlos Velloso, DJ 19.04.1991.”12 (grifamos) Evidente que os fatos invocados pelo Impetrante reclamam a construção de provas no curso do processo de conhecimento, inviabilizando a via mandamental. Ora, questões relacionadas com a não existência de estado de calamidade no Sistema Único de Saúde instalam controvérsia sobre matéria fática, descaracterizando, ab initio, o direito líquido e certo a autorizar a utilização do writ constitucional. Ademais, todos os noticiários pátrios vão em sentido contrário ao das infundadas alegações efetuadas pelo Impetrante, ou seja, dão conta do real estado de abandono e de efetiva calamidade que se encontra a rede hospitalar pública carioca. 11 12 MS 22024/GO, Relator Min. Néri da Silveira, DJ 24/08/01, p. 45. MS 23872/DF, Relator Min. Sepúlveda Pertence, DJ 18/02/05, p. 6. 10 Nessa linha de raciocínio se posicionou o eminente Ministro Celso de Mello, in verbis: “A simples existência de matéria de fato controvertida revela-se bastante para tornar inviável a utilização do mandado de segurança, que pressupõe, sempre, direito líquido e certo resultante de fato incontestável, passível de comprovação de plano pelo Impetrante.”13 (grifamos) Assim, dentro da melhor corrente doutrinária e jurisprudencial, o direito líquido e certo é condição da ação do Mandado de Segurança. Nada tem com o mérito. Quem não prova com a inicial o que diz, não tem direito líquido e certo. Deve ser, então, julgado carecedor da Ação de Segurança. Do exposto, verifica-se que o Impetrante não demonstrou com a exordial a imperfeição dos atos praticados. É de se frisar que a imperfeição desses atos há de ser comprovada, até mesmo em face das expressões de Hely Lopes Meirelles, verbis: “Os atos administrativos, qualquer que seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente de norma legal que a estabeleça. Essa presunção decorre do princípio da legalidade da Administração, que, nos Estados de Direito, informa toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde a exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não poderiam ficar na dependência da solução de 13 MS 22.164/SP, Relator Min. Celso de Mello. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJ 17/11/95, p. 39206. 11 impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para só após dar-lhes execução. (...) Outra conseqüência da presunção de legitimidade é a transferência do ônus da prova de invalidade do ato administrativo para quem a invoca. Cuide-se de argüição de nulidade do ato, por vício formal ou ideológico, a prova do defeito apontado ficará sempre a cargo do impugnante, e até sua anulação o ato terá plena eficácia.”14 (grifamos) Nesta linha, conclui-se que, segundo juízos de conveniência e oportunidade próprios, a solicitação de edição de decreto presidencial declaratório de estado de calamidade pública vai de encontro com os preceitos constitucionais que asseguram aos cidadãos os direitos de segunda geração, que não estavam encontrando respaldo na atuação do Impetrante na condução do Sistema Único de Saúde. Deve-se atentar que, como dito anteriormente, as medidas adotadas visam salvaguardar o direito à saúde da população do município do Rio de Janeiro. Vale a pena colacionar as palavras do Professor José Afonso da Silva atinentes aos direitos de segunda geração, mais especificamente ao direito à saúde: “É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem. E há de informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. O tema não era de todo estranho ao nosso Direito Constitucional anterior, que dava competência à União para legislar sobre 14 in Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 1993, 18a ed., p. 141. 12 defesa e proteção da saúde, mas isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Agora é diferente, trata-se de um direito do homem. (...) A evolução conduziu à concepção da nossa Constituição de 1988 que declara ser a saúde direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, serviços e ações que são de relevância pública (arts. 196 e 197). A Constituição o submete a conceito de seguridade social, cujas ações e meios se destinam, também, a assegurá-lo e torná-lo eficaz. Como ocorre com os direitos sociais em geral, o direito à saúde comporta duas vertentes, conforme anotam Gomes Canotilho e Vital Moreira: ‘uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer acto que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas.’ Como se viu do enunciado do art. 196 e se confirmará com a leitura dos arts. 198 a 200, trata-se de um direito positivo ‘que exige prestações de Estado e que impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas [...], de cujo cumprimento depende a própria realização do direito’, e do qual decorre um especial direito subjetivo de conteúdo duplo: por um lado, pelo não cumprimento das tarefas estatais para sua satisfação, dá cabimento à ação de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a, e 103, § 2o) e, por outro lado, o seu não atendimento, in concreto, por falta de regulamentação, pode abrir pressupostos para a impetração do mandado de injunção (art. 5o, LXXI),...”15 (grifamos) No presente caso, o decreto que declara a requisição, por parte da Administração Pública Federal, de determinado hospital não opera qualquer 15 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional. Editora Malheiros, 22a ed., 2003, p. 307/309. Destaques no original. 13 efeito concreto gerador de eventual violação a direito líquido e certo do Impetrante. Além de todo o exposto, como é cediço, o interesse de agir se desdobra em duas vertentes, quais sejam, a necessidade da tutela jurisdicional e a adequação da via eleita para obtê-la. É certo que pelas peculiaridades intrínsecas do mandado de segurança nunca poderá haver qualquer tipo de adaptação com outro remédio processual, motivo este que levará a extinção do presente writ, com fulcro no art. 267, da Lei Adjetiva Processual. III Antes de quaisquer considerações a respeito do mérito no presente writ torna-se necessário trazer a lume a situação fática do Sistema Único de Saúde no município do Rio de Janeiro. O município do rio de Janeiro, com 6.051.399 habitantes16, foi habilitado na Gestão Plena do Sistema Único de Saúde, na esfera municipal, pela NOB17 01/96 por meio da PT no 3 de 5 de janeiro de 1999, com vigência a partir desta data. Nessa condição, o gestor municipal assumiu a responsabilidade de gerir todo o sistema de saúde (atenção básica, especializada e hospitalar). 16 17 Estimativa do IBGE no ano de 2004. Norma Operacional Básica. 14 Quando o município do Rio de Janeiro, ora Impetrante, se habilitou na Gestão Plena do Sistema Municipal, assumiu, dentre outras, as seguintes responsabilidades: a) gerência de unidades assistenciais transferidas pelo Estado e pela União; b) gestão de todo o Sistema municipal, incluindo a gestão sobre os prestadores de serviços de saúde vinculados ao SUS; c) garantia do atendimento em seu território para a sua população e para a população referenciada (PPI); d) integração dos serviços existentes no município aos mecanismos de regulação ambulatoriais e hospitalares; e) desenvolver atividades de realização do cadastro, contratação, controle, avaliação, auditoria e pagamento de todos os prestadores de serviços; f) avaliação permanente do impacto das ações do sistema sob as condições de saúde. Tais responsabilidades deixam claro que o gestor do SUS tem a prerrogativa de contratar, controlar e analisar o desempenho – entre outras ações – das unidades hospitalares sob sua gestão. Aliás, mais do que prerrogativa, o gestor tem, na verdade, a responsabilidade de fazê-lo, uma vez que as distorções no acesso e na qualidade da assistência prestada, quando não há, por parte do gestor ,o devido zelo no desenvolvimento de suas responsabilidades, tendem a ser dramáticas para o sistema e, principalmente, para a população envolvida. 15 Outro ponto importante de ser esclarecido é que, embora existam unidades hospitalares com naturezas diferentes (municipais, estaduais, federais e, até mesmo, privadas), a gestão de todas está sob o comando único do município. Deve-se aduzir que “a Prefeitura do Rio de Janeiro não tem demonstrado vontade política e competência para gerir os recursos financeiros e materiais que passou a dispor crescentemente a partir de 1999, quando adquiriu a Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde. A análise da evolução do perfil da rede municipal desde que o município assumiu a Gestão Plena do Sistema, mostra pouca mudança no perfil de oferta de serviços, com a continuidade da concentração na rede hospitalar. A precária implementação da estratégia de saúde da família e de outras ações voltadas para a prevenção e a atenção precoce ambulatorial leva a sobrecarga das unidades hospitalares com custos elevados de manutenção e de custeio dos serviços com ações que poderiam estar sendo realizadas com menos custo e com melhor qualidade para a população. As filas nas unidades hospitalares evidenciam a precariedade do sistema de atendimento municipal e as dificuldades no gerenciamento pela Prefeitura dos serviços necessários para o melhor atendimento à saúde da população. O município não implementou alguns mecanismos gerenciais que permitem, por meio do acompanhamento de informações sobre saúde da população e a produção de serviços, à melhoria do processo de tomada de decisão e, logo, da qualidade dos serviços. Há ainda atrasos na implementação de ações com a regulação da urgência no âmbito do município, já implantada em muitos municípios e principalmente nas capitais. 16 O Sistema Municipal de Saúde possui atualmente uma necessidade mínima de 15.027 leitos hospitalares e tem à sua disposição 20.967 leitos, um número 28% acima da necessidade. O Sistema Municipal de Saúde possui uma necessidade mínima de 601 leitos de Unidade de Tratamento Intensivo, no entanto o município possui sob sua gestão 666 leitos para utilização pelo SUS. Grave é constatar que apenas 69.402 diárias de UTI foram utilizadas no ano de 2004, enquanto a disponibilidade de diárias para o Sistema Municipal do Rio de Janeiro foi de 191.808. O gestor daquele município aponta o atendimento aos usuários do SUS de outros municípios como uma das causas da desorganização do sistema. Porém, de junho a novembro de 2004, apenas 18,2% das internações foram de residentes em outros municípios do Estado do Rio de Janeiro, percentual significativamente menor do que o de muitas capitais de Estado. O Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da Família – PROESF – é uma iniciativa do Ministério da Saúde, apoiada pelo Banco Mundial – BIRD –,voltada para a organização e o fortalecimento da Atenção Básica à Saúde no País, visando a implantação e a consolidação da Estratégia de Saúde da Família em municípios com população acima de 100 mil habitantes. (...) A comparação entre as ações e serviços primários de saúde executados pelos municípios do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre demonstra que, entre as grandes metrópoles brasileiras, o Rio de Janeiro é a que apresenta as menores coberturas de atenção básica (equipes de Agentes Comunitários de Saúde, Equipes de Saúde da Família e de Saúde Bucal), ... 17 Este fato reveste-se da maior importância para o estado de calamidade pública em que se encontra a rede hospitalar de urgência do município, uma vez que a organização da rede básica permitiria ampliar a resolutividade em cerca de 80% dos motivos que levam as pessoas a procurarem serviços de saúde, desafogando consideravelmente a procura de serviços hospitalares de urgência. (...) Dos 20.967 leitos hospitalares cadastrados no município, 14.887 (71%) leitos são disponibilizados para o SUS. Em relação aos 1.827 leitos de UTI (1.243 leitos adultos, 184 leitos pediátricos e 400 leito neonatais), 666 leitos (36,5%) são disponibilizados para o SUS. A cobertura atual de leitos de UTI no município do Rio de Janeiro alcança o percentual de 4,47. (...) Considerando a capacidade instalada de leitos de UTI (666 leitos SUS) e a taxa de ocupação preconizada (80%) estimamos que a disponibilidade de diárias de UTI no município do Rio de Janeiro no ano de 2004 era de 191.808 e, no entanto, apenas 69.402 diárias foram utilizadas. Estes dados apontam uma grave crise do acesso aos leitos de UTI ou, minimamente, na gestão dos recursos financeiros alocados para este fim. Desta forma, se admitirmos uma crise na rede hospitalar do rio de Janeiro principalmente no que se relaciona ao acesso a leitos hospitalares e complementares, como no caso dos leitos de UTI, podemos inferir baseado nos 18 dados cadastrais que ela pode não estar relacionada a disponibilidade (capacidade instalada) de leitos e sim a forma de gestão da mesma. (...) Assim sendo, toda a situação de ineficiência, inoperância e fragilidade da gestão tem relação direta com a situação caótica no sistema de saúde do município do Rio de Janeiro. A face mais dramática desse quadro tem repercussão direta no atendimento à população, culminando com a absoluta desassistência em algumas áreas, como é o caso da saúde bucal, bem como a má qualidade em outros campos, como é o caso da atenção básica e da rede hospitalar. Essa desassistência é percebida, principalmente, em algumas situações: 1) Fechamento de unidades de urgência (Pronto Socorro do Hospital Cardoso Fontes, com utilização de menos de 10% do total de leitos); 2) Situação de greve no Hospital Andaraí (Pronto Socorro e metade do centro cirúrgico fechados, inclusive em descumprimento à ordem judicial de reabertura) e no Hospital da Lagoa; 3) Falta de insumos, especialmente medicamentos, conforme apontado em denúncias e na própria auditoria do Ministério da Saúde; 4) Contratos de manutenção e registro de preços suspensos desde junho de 2004; 5) Não pagamento das cooperativas médicas, resultando na ausência ou redução de médicos nas 19 emergências dos hospitais Miguel Couto, Souza Aguiar, Salgado Filho e Lourenço Jorge. A deterioração do sistema de saúde municipal, naquela capital, significa claramente, um retrocesso na conquista histórica vivenciada pelo Sistema Único de Saúde no País, representando um risco de destruição do próprio Sistema em nível nacional, a partir da quebra dos princípios constitucionalmente assegurados, e com um reflexo direto na relação com os demais entes federados, quais sejam, Estados e Municípios. (...) Desde o início da atual crise vivida pelo Sistema Municipal de Saúde do rio de Janeiro, o Ministério da Saúde constituiu uma equipe para acompanhar, negociar e buscar uma solução, tendo como referência a defesa da saúde da população daquele município. Nesse sentido o Ministério apresentou diversas propostas, destacando-se as seguintes: a) aumento de R$ 46 milhões de reais no teto financeiro do município para cobrir despesas com pessoal nas 6 unidades municipalizadas em 1999 e que contam com cláusula contratual de reposição de recursos humanos; b) investimentos de R$ 89 milhões em equipamentos e reformas em unidades de saúde municipalizadas para serem aplicados em 2006 e 2007, dentro de um plano de recuperação da rede transferida ao município (destaque-se que este valor foi calculado a partir da apuração dos valores correspondente 20 aos gastos que a Prefeitura efetuou de 1999 a 2003 para substituição de servidores federais nas seis unidades hospitalares municipalizadas que constam com cláusula específica no Termo de Cessão); c) ainda em 2005, investimentos da ordem de R$ 93 milhões, sendo R$ 38 milhões já repassados pelo Programa QUALISUS e R$ 55 milhões para equipamentos e reformas em unidades de saúde municipalizadas; d) retorno à gestão do Ministério da Saúde de dois hospitais municipalizados – Hospital da Lagoa e Hospital de Ipanema -, como forma de reorganizar os serviços de alta complexidade de abrangência estadual/regional e aliviar o impacto dos gastos com custeio da Prefeitura com serviços municipalizados. (...) Além dos recursos adicionais propostos pelo Ministério da Saúde, a Prefeitura Municipal passou a exigir a ampliação do teto em mais R$ 17 milhões de reais, outros R$ 114 milhões para corrigir despesas com custeio de serviços de saúde que desde 1995 são de responsabilidade do município, além de querer aplicar R$ 144 milhões para investimento livremente, sem assumir a garantia de utilizá-los na recuperação da rede de Pronto Atendimento Médico e nos hospitais federais municipalizados e que estão sob gestão da Prefeitura. Enquanto o Ministério da Saúde buscava saídas para a situação emergencial da rede hospitalar do Rio de Janeiro, a Prefeitura alterou sua 21 proposta inicial acrescentando novas exigências, sempre procurando inviabilizar qualquer alternativa proposta pelo Ministério da Saúde. (...) À proporção que o Ministério da Saúde se preocupou com o restabelecimento do acesso da população aos serviços de saúde, a Prefeitura Municipal demonstrou verdadeiro descaso com a situação, criando dificuldades e fazendo da saúde um mecanismo de utilização e barganha política. O que se constata é uma verdadeira falta de perspectiva e de vontade política do Gestor Municipal em implementar ações concretas de curto, médio e longo prazos, ... Não havia mais condições de continuidade de aguardar uma solução pactuada entre as duas esferas de governo, fazendo-se mister a imediata adoção de medidas enérgicas no sentido de restabelecer e garantir um dos principais direitos constitucionais de cidadania, representado pelo acesso à saúde com qualidade. ”18 Todas as assertivas acima expostas podem ser corroboradas pela mídia nacional. Trazem-se, a título meramente ilustrativo, algumas reportagens: “Saúde apresenta balanço das ações em hospitais no Rio da Folha Online 18 Trecho extraído da Nota Técnica no 001/2005, da lavra da Dra Elaine Machado Lopez e do Dr. Ademar Arthur Chioro dos Reis, respectivamente Coordenadora-Geral de Atenção Hospitalar e Diretor do Departamento de Atenção Especializada da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, integrante do OFÍCIO/GAB/CJ/MS no 668/2005, datado de 22 de março de 2005, encaminhado à Consultoria-Geral da União, para subsidiar a elaboração das informações presidenciais. Fls. 17/ 22 O Comitê Executivo de Gestão dos hospitais sob intervenção no município do Rio de Janeiro providenciou uma série de ações para melhorar o atendimento à população. De acordo com o Ministério da Saúde, no hospital da Lagoa a administração realizou a abertura de leitos, o conserto de equipamentos, refrigeração das salas, o suprimento da rouparia, medicamentos e material médico-hospitalar. A obra para reforma no sétimo e oitavo andares do prédio já está na fase inicial de execução. A expectativa da administração do hospital é reabrir, dentro dos próximos 15 dias, salas no centro cirúrgico e o CTI (Centro de Terapia Intensiva) para adultos. Com a reabertura das salas de cirurgia, a capacidade de ocupação será ampliada dos atuais 90 para 150 leitos, apenas para pacientes clínicos. O hospital já está entrando em contato com pacientes que aguardam na fila para refazer exames e marcar nova data para a cirurgia. O comitê de gestão também está providenciando a adequação da refrigeração do hospital, o que também permitirá a ampliação dos leitos no CTI infantil. Atualmente, essa unidade funciona com apenas um leito. No Hospital Souza Aguiar, no centro da cidade, considerado o maior hospital de pronto socorro da América Latina, já foram reativados 18 leitos da enfermaria e implantado o serviço de regulação interna, com a finalidade de melhorar o fluxo de pacientes para o setor de internação. Desta forma, a média de internações diárias subiu de cinco pacientes/dia para entre 15 e 20 pacientes/dia. O Souza Aguiar implantou também uma equipe de acolhimento, que das 8h às 10h identifica os casos de pacientes mais graves. Foi criado ainda o serviço de Ouvidoria, ao lado da emergência, funcionando das 8h às 16h, e implantado o Conselho Gestor de Administração, com 25 membros, entre eles representantes dos profissionais e da comunidade. A administração do hospital também está contratando médicos para completar as equipes desfalcadas de médicos, como as de nefrologia, clínica médica, cirurgia, ortopedia e cirurgia geral, além de estar equipando a sala de reanimação da emergência. O Souza Aguiar recebeu cinco 23 respiradores (com quatro monitores cardíacos e quatro oxímetros de pulso) alugados pelo comitê gestor. Já o hospital de Ipanema teve os aparelhos de ar condicionado consertados e o suprimento da farmácia regularizado, com os medicamentos adquiridos de forma emergencial. O hospital também abriu novos leitos e novos profissionais estão sendo encaminhados para completar as equipes médicas e providenciando o conserto de equipamentos. O hospital Cardoso Fontes quase triplicou o número de pacientes internados, passando de 48 para 132 vagas. O setor de pronto atendimento resolutivo foi aberto ao público e hoje faz, em média, 375 atendimentos por dia útil. O elevador do hospital está funcionando e outros dois estão em manutenção. Com a ajuda de outras unidades, foram realizadas 28 tomografias. No hospital Miguel Couto, foram consertados dez respiradores básicos na emergência e um volumétrico da UTI, além de outros equipamentos essenciais alugados pelo comitê gestor. Essa unidade também já conseguiu completar as cinco equipes de cirurgiões plantonistas, que estavam desfalcadas. As equipes de pediatria, anestesia, radiologia e clínica médica estão sendo compostas a partir da entrada de novos médicos que estão sendo contratados. O hospital do Andaraí teve o setor de emergência reaberto, além do conserto do sistema de ar condicionado. Também foram consertados a centrífuga, o aspirador cirúrgico e aparelhos de pressão. Outra medida tomada pelo comitê gestor foi mandar fazer a revisão em respiradores de emergência.”19 (grifamos) “Comitê de Intervenção recolhe kits laboratoriais no Rio da Folha Online Funcionários do Comitê Gestor da Intervenção Federal recolhem nesta segunda-feira, no almoxarifado da Prefeitura do Rio, os 19 Fonte: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u107291.shtml> Capturado em 28 de março de 2005. 24 kits laboratoriais e insumos médicos para os hospitais que estão sob intervenção. A apreensão, determinada pela Justiça Federal, foi necessária porque a prefeitura suspendeu a distribuição dos kits para os hospitais. Um oficial da Justiça Federal, um representante da Advocacia Geral da União e um assessor jurídico do Ministério da Saúde acompanham o grupo. O almoxarifado fica no bairro do Rocha, na zona norte da cidade. Crise Para tentar amenizar a crise que atinge os hospitais do Rio, começou a funcionar nesta segunda-feira um hospital de campana da Aeronáutica, na sede campestre do Clube da Aeronáutica, na barra da Tijuca (zona oeste). Com capacidade para atender cerca de 400 pessoas por dia, o hospital foi adaptado e recebeu barracas adicionais, onde funcionarão os serviços ambulatoriais nas áreas de ginecologia, clínica médica, ortopedia, pediatria e odontologia. Em meio à batalha entre o prefeito César Maia (PFL) e o Ministério da Saúde, outro hospital de campana poderá ser montado na cidade. A área, no Campo de Santana (região central), pertence à prefeitura, e a instalação ainda depende de decisão judicial. O governo federal decretou estado de calamidade pública na área da saúde do Rio -- o decreto foi publicado no "Diário Oficial" da União do último dia 11. O Ministério da Saúde acusa a prefeitura de má gestão dos recursos. Os hospitais atingidos pela intervenção são Lagoa, Andaraí, Jacarepaguá, Ipanema, Souza Aguiar e Miguel Couto.”20 (grifamos) “Auditoria da Saúde no Rio encontra R$ 30 milhões em aplicações financeiras da Folha Online O secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Jorge Solla, disse neste domingo que R$ 30 milhões do Fundo Municipal de Saúde 20 Fonte: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u107030.shtml> Capturado em 28 de março de 2005. 25 da Prefeitura do Rio de Janeiro, que reúne verbas federais e do município, eram mantidos em aplicação financeira. Solla explicou que o problema, levantado por uma auditoria realizada no fundo, não é o fato da aplicação financeira existir, mas sim, existirem tantas dívidas, sendo que havia dinheiro para pagá-las. ‘O problema é que nós estamos evidenciando diversos contratos que estão sem ser pagos há vários meses. Se o município estivesse em dia com seus compromissos, com recursos sobrando em aplicações financeiras, seria adequado ninguém deixar esse dinheiro parado na conta’, afirmou. De acordo com ele, a auditoria apontou várias irregularidades. Entre elas, serviço de vigilantes que não estão sendo pagos há seis meses e clínicas privadas que não recebem há três meses. ‘No Hospital Souza Aguiar, de 50 contratos, 46 estão com vigência estourada. Não estavam mais em vigor’, disse. Solla afirmou ainda que a equipe vai continuar se debruçando, em cada hospital para analisar cada um dos contratos. Ele disse que os contratos que estiverem adequados, sem estarem superfaturados e com os serviços aprovados pelas equipes dos hospitais, serão reativados plenamente e com o Ministério da Saúde passando a ser o contratante. ‘Mas os contratos que tiverem problemas de preços superiores aos de mercado e de superfaturamento não serão assumidos pelo Ministério. Vamos buscar outros fornecedores’, completou. (...)”21 (grifamos) “Os remédios a longo prazo para os hospitais Estado vai criar central de regulação de vagas e ministério fará unidades sob intervenção funcionarem em rede Depois das ações de emergência, como a compra de toneladas de medicamentos, conserto de equipamentos e contratação de pessoal, o Ministério da Saúde vai apostar em outros remédios para tentar recuperar a saúde dos seis hospitais administrados pela prefeitura e que estão sob intervenção há 17 dias. A primeira medida foi a criação de uma equipe de oito pessoas que vai diagnosticar o perfil de cada uma das unidades (Souza Aguiar, 21 Fonte: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u106742.shtml> Capturado em 28 de março de 2005. 26 Miguel Couto, Andaraí, Ipanema, Lagoa e Cardoso Fontes) e integrá-las, ressuscitando a idéia de que elas funcionem em rede. Se o grupo perceber a falta de leitos de oncologia, por exemplo, poderá transformar um dos hospitais em extensão do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Outra intervenção caberá à Secretaria estadual de Saúde, que organizará uma central de regulação de vagas para hospitais do Rio. Medida vai evitar peregrinação atrás de vaga. Com a criação da central de regulação, os médicos de cada hospital, quando receberem um paciente e estiverem sem vaga ou com qualquer outro problema que impeça o atendimento, vão poder acionar a equipe, que terá informações sobre os leitos disponíveis no município. — Vai ser o fim daqueles casos em que a ambulância vai de hospital em hospital procurando vaga — diz o coordenador da intervenção, Sérgio Côrtes. Atualmente, a prefeitura tem uma central que só funciona para duas especialidades: cirurgia cardíaca e leitos psiquiátricos. O estado já mantém dez centrais, com 274 profissionais, atendendo várias especialidades. Na Baixada Fluminense, por exemplo, a central regula os leitos de obstetrícia, ginecologia, pediatria e clínica. Em todos os casos, o estado fornece pessoal e computadores e as prefeituras, a infra-estrutura predial (o imóvel, contas de água, luz). A idéia do secretário estadual de Saúde, Gilson Cantarino, é convidar a Prefeitura do Rio para a co-gestão da central de regulação. Se não der certo, o estado assumirá o papel sozinho. — Com a central de regulação e a definição do perfil de cada hospital, vamos melhorar o atendimento. Se percebermos que um hospital tem serviço de oftalmologia às terças e quinta-feiras e outro às segundas e quartas, podemos juntar tudo num só, otimizando resultados. A idéia é fazer com que funcionem em rede — diz Côrtes. Especialistas da área de saúde elogiam as medidas, mas dizem que elas são inócuas se não forem tomadas outras providências. Segundo Antônio Ivo de Carvalho, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz, o Rio precisa investir na rede básica, uma atribuição da prefeitura: 27 — O Rio tem uma desproporção entre o número de hospitais, que é alto, e o de postos de saúde, que, além de não serem suficientes, resolvem poucos casos. O paciente, quando consegue ser atendido, não tem o problema resolvido. É claro que vai então procurar uma emergência de hospital, que vai continuar sobrecarregada se não houver investimento na atenção básica. Casos ambulatoriais lotam as emergências Na última quinta-feira, no Hospital Souza Aguiar, era grande o número de pacientes que aguardavam atendimento após passarem por postos de saúde. Segundo Luís Antônio Santini, coordenador de Ações Estratégicas do Inca, 80% dos casos que chegam às emergências são ambulatoriais. Cantarino concorda que é preciso investir na atenção básica, mas diz que — apesar de ter sido habilitado como gestor pleno, recebendo mensalmente R$51 milhões do ministério para repassar ao município do Rio — não tem poder para obrigar a prefeitura a aumentar a rede. A Secretaria municipal de Saúde mantém 103 postos de saúde e 57 equipes do Saúde em Família (que abrange 3,3% da população), um projeto apontado como outra solução para desafogar os hospitais. Na contramão do ministério, de Cantarino e de especialistas, o secretário municipal de Saúde, Ronaldo Cezar Coelho, diz que o atendimento nos postos de saúde não é precário nem o vilão da crise. Segundo ele, os postos são referência no Brasil e seus programas atendem, por exemplo, 300 mil diabéticos. — O que falta é implantar o atendimento a pequenas emergências. Um posto de saúde não consegue atender da torção no pé à crise de asma — diz. A prefeitura pretende desengavetar um projeto de dois anos atrás e criar 12 postos de atendimento pré-hospitalar. Funcionando 24 horas, eles terão laboratório de análise clínica, sala de imobilização e de pequenas suturas. Na primeira etapa, seriam implantadas sete unidades, ao custo de R$11 milhões, fora despesas de custeio: — Não implantei antes porque o Ministério da Saúde me quebrou. Eu investi recursos nos hospitais federais — diz Ronaldo Cezar. 28 Em 20 dias será feita nova compra de medicamentos Sérgio Côrtes visitou ontem o Miguel Couto para uma avaliação após duas semanas de intervenção. O hospital recebeu ontem 26 mil medicamentos, sendo 15 mil para tratamento de doenças hepáticas, seis mil antibióticos e cinco mil frascos de penicilina, que deverão ser suficientes por pelo menos um mês. Na última semana, foram recuperados dez respiradores e alugados mais quatro, de última geração, para serem usados na UTI e na emergência. Nos próximos 20 dias, segundo Cortes, será feita uma nova compra de medicamentos, que deverão durar de cinco a seis meses. Desde segunda-feira o Miguel Couto funciona com 51 novos funcionários (28 médicos, 17 auxiliares de enfermagem e um fisioterapeuta), contratados temporariamente pelo Ministério da Saúde. Esta semana sairá um edital para novas contratações.”22 (grifamos) Uma vez entendida a situação fática envolvendo o Sistema Único de Saúde na cidade do Rio de Janeiro, passemos a analisar as questões de mérito do presente feito. IV No mérito, melhor sorte não assiste ao Impetrante. Em que pese a argumentação fornecida na exordial não pode prosperar o intento desejado, eis que o Decreto no 5.392, de 10 de março de 2005, não está maculado por qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade. A despeito de o Impetrante alegar que “a requisição autorizada pela Constituição Federal só pode ser feita em face de bens privados, não cabendo manejá-la em relação aos bens e aos servidores públicos de outra 22 Fonte: Jornal O Globo. Editoria Rio. p. 16. 29 esfera governamental e de poder, aos serviços desempenhados pelos demais Entes Federados”23 e de utilizar tal assertiva como elemento impeditivo para a efetivação da requisição, tal fundamento não merece acolhida. Primeiramente deve-se aduzir que, como ato de império que é, a expedição do decreto somente está a depender do juízo de conveniência e oportunidade da Administração, com vistas na necessidade ou utilidade pública, ou, como no caso, no interesse público de tutelar os direitos fundamentais de segunda geração da população que se encontravam a mercê do caos instalado nos hospitais que ora foram requisitados. De fato, o decreto não necessita de qualquer pressuposto, senão a formulação de juízo discricionário da Administração diante da situação fática com a qual se depara, no que tange à vontade-decisão de afetação do bem, mediante a sua requisição por decreto da necessidade. A argumentação trazida, na exordial, de que a Constituição Federal somente permite a requisição de bens privados é originada de uma interpretação pobre e totalmente dissimulada. Como o próprio Impetrante asseverou a requisição é medida drástica prevista no art. 5o, XXV, da Constituição Federal, verbis: “No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurado ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;” A norma constitucional suscitada não comporta exegese exclusivamente literal, mas, sim, teleológica, visando aferir concomitantemente a mens legis genérica e a medida exata de sua aplicação fática. 23 Fls. 4 da petição inicial. Grifos nos original. 30 Ou seja, a exegese do dispositivo constitucional deve ser no sentido de que se até mesmo a propriedade privada, que se encontra amplamente amparada e protegida pela Carta Política, pode ser requisitada pela Administração, com mais sentido estará a possibilidade de requisição de um bem público, cuja finalidade é, sem qualquer questionamento, servir à população. Neste ponto não há como tergiversar. Para corroborar esse posicionamento, busca-se amparo nos ensinamentos dos doutrinadores pátrios. De início, deve-se buscar qual é, efetivamente, a característica da requisição. A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro assim disserta sobre a requisição: “A requisição administrativa pode apresentar-se sob diferentes modalidades, incidindo ora sobre bens, móveis ou imóveis, ora sobre serviços, identificando-se, às vezes, com a ocupação temporária e assemelhando-se, em outras, à desapropriação; é forma de limitação à propriedade privada e de intervenção estatal no domínio econômico; justificase em tempo de paz e de guerra. (...) Em qualquer das modalidades, a requisição caracteriza-se por ser procedimento unilateral e auto-executório, pois independe da aquiescência do particular e da prévia intervenção do Poder Judiciário.”24 (grifamos) Ainda sobre a requisição, eis o que ensina Celso Antonio Bandeira de Melo, et litteris: 24 Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Atlas, 2001, p. 129. 31 “Requisição é ato pelo qual o Estado, em proveito de um interesse público, constitui alguém, de modo unilateral e auto-executório, na obrigação de prestar-lhe um serviço ou ceder-lhe transitoriamente o uso de uma coisa in natura, obrigando-se a indenizar os prejuízos que tal medida efetivamente acarretar ao obrigado. A requisição funda-se no art. 5o, XXV, do Texto Constitucional brasileiro e a competência para legislar sobre ela assiste apenas à União, conforme o art. 22, III, da Constituição.”25 (grifamos) E, a seu turno, eis os ensinamentos de Diógenes Gasparini, verbis: “Requisição. Em situação de urgência, ou não, e quase sempre sem o caráter de definitividade, a Administração Pública, com ou sem indenização posterior, pode utilizar bens particulares, valendo-se de atos e medida auto-executórias, cuja obtenção, pelos procedimentos comuns, porque demorados ou dependentes da vontade do particular, prejudicaria a eficiência administrativa. É a requisição. Pode ser definida como a utilização, quase sempre transitória, pela Administração Pública, de bens particulares, mediante determinação da autoridade competente, com ou sem indenização posterior, em razão ou não de perigo público. Seu fundamento político é o estado de necessidade pública. Tem, entre nós, dois fundamentos constitucionais. Um, genérico, previsto no inciso III do art. 170 (função social da propriedade); outro, específico, fincado no inciso XXV do art. 5o, embora essa disposição pareça sempre exigir uma situação de urgência, de perigo público. Tal utilização, como ato ou medida auto-executória que é, independe de prévia autorização judicial. Os abusos, no entanto, podem ser obstados por mandado de segurança. Seu controle é, por conseguinte, a posteriori. Pode recair, como vimos, sobre bens móveis, imóveis e semoventes. Se incidir sobre bens consumíveis (gêneros alimentícios, roupas, cobertores) é definitiva. Nesse caso, há transferência dominial e a 25 Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Malheiros, 13a ed., 2001, p. 750. 32 correspondente indenização posterior, sem, no entanto, caracterizar uma desapropriação. Da desapropriação difere porque a indenização é a posteriori, isto é, não é prévia como exige a Constituição para a expropriação, e porque independe para a sua concreção, do auxílio do Judiciário, mesmo quando for contrária aos interesses de seu proprietário. Se recair sobre bens inconsumíveis (terrenos, prédios, máquinas, veículos), é transitória. Finda, nesse caso, a utilização, devolve-se o bem ao proprietário e se satisfaz, de modo completo, o prejuízo causado. As requisições podem ser civis e militares. (...) As civis, não por favorecerem os particulares, mas por prestigiarem as autoridades públicas, são também chamadas de administrativas e se destinam a evitar um dano à vida, à saúde e aos bens da coletividade ou a minorar os seus efeitos, ou, ainda, a facilitar a prestação de certo serviço público.”26 (grifamos) Cumpre-se trazer à colação as considerações de José Cretella Júnior sobre a requisição: “Operação unilateral de gestão pública pela qual a Administração exige de uma pessoa a prestação de atividade, o fornecimento de objetos móveis, o abandono temporário de gozo de imóveis ou de empresas, para usá-los conforme o interesse geral, num determinado fim (Duez e Debeyre, Traité ... 1952, p. 859). (...) O instituto da requisição, que se apóia no sacrifício privado em prol do interesse público, apresenta-se, na prática, como o procedimento unilateral da Administração, obrigando o sujeito particular à prestação de serviços ou à entrega de bens, dirigidos à satisfação de interesses coletivos.”27 (grifamos) Por derradeiro, trazem-se os comentários de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins: 26 27 Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000, p. 594-595. Dicionário de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, p. 395. 33 “A via da desapropriação não satisfaz a todas as necessidades do Poder Público em matéria de bens. Isto porque, pelas suas próprias características, aquele instituto é moroso, ao menos relativamente à necessidade de atender a situações de urgência. (...) É fácil imaginar que o Estado, não raras vezes, tem de enfrentar situações emergenciais para as quais torna-se indispensável a utilização de bens, tanto móveis quanto imóveis, que não poderiam sujeitar-se às delongas de um processo expropriatório. Daí porque a Constituição prevê a possibilidade de uso de bem particular independentemente da vontade do seu titular que restringe uma das prerrogativas do domínio, qual seja: o direito das medidas que criam ressalvas à proteção constitucional da propriedade privada. (...) No entanto, a expressão 'perigo público iminente' é bastante em si mesma para transmitir a idéia que deseja. Trata-se de atender a situações de calamidade pública ou mesmo de convulsão ou perturbação social, que não permitam o funcionamento normal das atividades e serviços corriqueiramente prestados. Tal situação faz pesar sobre os ombros das autoridades o dever de assegurar o funcionamento daqueles serviços sem os quais a coletividade entraria em colapso. É fácil notar que não se exige que o perigo esteja em fase inicial de consumação. Basta que ele seja iminente, é dizer: impõe-se a existência de uma ameaça próxima. (...) Portanto, embora matéria de apreciação discricionária dos Poderes Públicos que haverão de aquilatar com serenidade e moderação se em determinado caso configura-se ou não perigo público iminente, (...).”28 (grifamos) Assim, percebe-se dos ensinamentos acima colacionados que o instituto da requisição é um ato de vontade unilateral da Administração, podendo recair até mesmo sobre bens privados, no intuito de satisfazer interesses coletivos buscando evitar danos à saúde e à vida da população. 28 Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 05 de outubro de 1988). São Paulo: Ed. Saraiva, 1989, p. 136-138. 34 Como ficou demonstrado, o instituto da requisição encontra pleno amparo na vigente Carta Constitucional, a exemplo do que já ocorria em relação ao texto constitucional anterior, não havendo, pois, que se cogitar de sua inconstitucionalidade. Resta claro, também, que o iminente perigo público engloba a questão da calamidade pública, conforme asseverou os Professores Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins. Neste momento, faz-se necessário um esclarecimento com relação à questão da conceituação de calamidade pública. Na exordial, o Impetrante busca fazer crer que o conceito de calamidade pública é ligado exclusivamente aos fenômenos da natureza, trazendo inclusive a definição constante no Decreto no 5.376, de 17 de fevereiro de 2005. Entretanto, deixou o Impetrante de trazer a definição de desastre que consta do mesmo Decreto. Segundo o mesmo dispositivo legal, desastre é o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem. Por conseqüência, se calamidade pública é a situação anormal provocada por desastres e desastre é o resultado de evento adverso provocado pela natureza ou pelo homem, nenhum óbice há para evidenciar que tais requisitos encontram-se presentes no Sistema Único de Saúde na cidade do Rio de Janeiro. Deve-se frisar, novamente, que é absurda a alegação de que a requisição não pode recair sobre bens públicos. O Impetrante busca dar uma proteção aos seus bens que nem a própria Constituição vislumbrou. 35 Neste sentido, deve-se destacar que o novo Código Civil ao tratar da propriedade buscou dar o enquadramento social mais amplo possível. De fato, pelo Código Civil de 2002, a propriedade, sem deixar de ser um direito subjetivo, um jus, passa a ser considerada, também, um munus, exprimindo, simultaneamente, um direito e um dever. Assim, deixa de ser um direito pleno, retirando-se da propriedade privada sua incondicional prevalência, e, destarte, não se legitimando todo e qualquer ato ou omissão do proprietário, na medida em que o seu conteúdo depende de interesses extraproprietários, inseridos na relação jurídica de propriedade, pelo estatuto jurídico que dá configuração à sua função social29. Em termos hermenêuticos, a função social implica a adaptação de sentidos e finalidades, a fim de que as regras jurídicas sejam interpretadas sociologicamente e teleologicamente. Deste modo, o novo Código Civil abandona definitivamente o paradigma do individualismo jurídico, permitindo que o magistrado concretize a conhecida regra de interpretação prevista no art. 5o do Decreto-lei no 4.657, de 1942, (LICC), verbis: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum.” 29 Para Gustavo Tepedino, a propriedade “não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade.” (Contornos constitucionais da propriedade privada. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 280) 36 De fato, a propriedade desempenhará uma função social, quando estiver voltada para a realização de um fim economicamente útil, produtivo, em benefício do proprietário e de terceiros, especialmente quando ocorrer a interação entre o trabalho e os meios econômicos.30 Ao afirmar que o direito de propriedade deve desempenhar uma função social, o novo Código Civil também faz com que os interesses do proprietário e os da sociedade sejam conciliados, bem como reconhece o interesse que o Estado tem na propriedade31, a fim de que, havendo conflito entre o interesse público e o particular, possa fazer prevalecer o primeiro, em razão da supremacia dos interesses públicos sobre os individuais.32 O regime jurídico administrativo, por sua vez, assimila os dogmas, princípios e valores que fundamentam o direito público consagrando-os em normas que vão compor o ordenamento jurídico-administrativo onde são preservadas as noções de supremacia do interesse público sobre o particular. É com base nesse regime jurídico especial que o Estado goza de prerrogativas e privilégios em face daqueles que se relacionam com a Administração Pública, caracterizando uma relação jurídica onde não se fala, a 30 Cfr. Miguel Reale Júnior. Casos de Direito Constitucional. São Paulo. RT, 1992. p. 14. “Sabe-se que a propriedade é o direito individual que assegura a seu titular uma série de poderes cujo conteúdo constitui objeto do direito civil; compreende os poderes de usar, gozar e dispor da coisa, de modo absoluto, exclusivo e perpétuo. Não podem, no entanto, esses poderes ser exercidos ilimitadamente, porque coexistem com direitos alheios, de igual natureza, e porque existem interesses públicos maiores, cuja tutela incumbe ao Poder Público exercer, ainda que em prejuízo de interesses individuais. Entra-se aqui na esfera do poder de polícia do Estado, ponto em que o estudo da propriedade sai da órbita do direito privado e passa a constituir objeto do direito público e submeter-se a regime jurídico derrogatório e exorbitante do direito comum.” (Maria Sylvia Zanella di Pietro in Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002. p. 120) (grifamos) 32 O art. 1.288 do nCC é uma regra de direito público inserida no regramento privado, pois opta, prioritariamente, por tutelar os interesses públicos e apenas, reflexamente, os interesse individuais. Isto é um reflexo das reações surgidas no final do século XIX contra o individualismo jurídico exacerbado, fazendo com que o Estado abandonasse a sua posição passiva e passasse a atuar mais ativamente na ordem sócio-econômica, antes relegada à esfera do direito privado. Destarte, o Direito Civil deixa de ser um mero instrumento de garantia dos direitos individuais, assumindo o mais relevante escopo de buscar a realização do bem-estar coletivo e do bem comum. A efetividade do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular – também denominado de princípio da finalidade pública – deixa de ser uma preocupação exclusiva dos Direitos Constitucional e Administrativo, para ser também um dos mais importantes fins do Direito Civil. 31 37 princípio, em igualdade entre as partes. O interesse público posto sob a administração do Poder Público exige a supremacia de suas pretensões sobre aquelas almejadas pelo interesse particular. Partilhando a mesma opinião, a Professora Maria Helena Diniz ensina que “a propriedade pertence mais à seara do direito público do que à do direito privado, visto ser a Carta Magna que traça seu perfil jurídico. Urge fazer com que se cumpra a função social da propriedade, criando condições para que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo o desenvolvimento econômico e os relamos de justiça social”.33 Assim, é imperioso afirmar que é possível, sim, a requisição de bens públicos em situações de iminente perigo público, nada tendo haver com a exigência da decretação do Estado de Defesa como quis fazer crer o Impetrante. Ademais, é de se destacar que a própria Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, que disciplina o Sistema Único de Saúde, autoriza no art. 15, XIII, a requisição de bens e serviços para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, sem fazer qualquer restrição quanto à requisição de bens públicos. Sob outro enfoque, cumpre asseverar, também, que nos termos do art. 21, XVIII, da Constituição Federal, compete à União promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, et litteris: “XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;” (grifamos) 33 Maria Helena Diniz. in Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 15a ed., 2000, pág. 101. 38 Desta forma, em face da situação fática anteriormente relatada não poderia, a Administração Pública Federal, permanecer inerte face ao periclitante estado no qual se encontrava a rede hospitalar do município do Rio de Janeiro. Deve-se registrar, também, que em nenhum momento ficou demonstrada nos autos a não existência de estado de calamidade na rede hospitalar na cidade do Rio de Janeiro, bem como não restou configurada a existência de qualquer intervenção. Portanto, uma vez não demonstrada, incontroversa e induvidosamente, o perfeito funcionamento da rede hospitalar, por meio de prova documental pré-constituída, e existindo evidências no rumo oposto, ou seja, pela existência de calamidade pública, não subsiste qualquer outro tipo de alegação, pois se não se prova a normalidade do funcionamento da rede hospitalar descabido aduzir quaisquer outras argumentações. De outro lado, deve-se lembrar que a matéria que busca debater o Impetrante vai diretamente de encontro ao entendimento já sedimentado pela Corte Suprema, que afasta qualquer possibilidade de discussão, na estreita via do writ, de questões controvertidas. Por derradeiro, não merece prosperar a alegação do Impetrante de que uma vez verificado o estado de calamidade pública seria necessário a assunção de toda a rede hospitalar. Deve-se esclarecer que a definição das unidades inicialmente requisitadas respondeu a critérios absolutamente técnico-assistenciais. 39 Procurou-se estabelecer a abertura de uma rede de serviços de urgência que pudesse garantir o atendimento de urgência/emergência à população, contando com o apoio e participação de outros serviços gerenciados diretamente pela Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro (exemplo: Hospitais Estaduais Albert Schweitzer, Carlos Chagas, Getúlio Vargas, Rocha Faria), com forte presença na zona oeste da cidade, ou os do próprio Ministério da Saúde, como é o caso do Hospital Geral de Bonsucesso (responsável pela cobertura de urgência para a zona norte da cidade, Ilha do Governador, zona Leopoldina, Penha, Ramos, Complexo da Maré e do Alemão). O Hospital Souza Aguiar (maior hospital de urgência da América Latina) garante a cobertura de urgência para a região do centro, zona norte e parte da zona Leopoldina. Já o Hospital Miguel Couto permite a cobertura da zona Sul da cidade, enquanto que o serviço de urgência dos Hospitais do Andaraí e do Cardoso Fontes, que se encontravam completamente fechados, garantem atendimento à população de referência das regiões das zonas Norte e Oeste, respectivamente. Como requisitadas permite se observa, a abrangência territorial das unidades estabelecer uma rede de serviços de urgência estrategicamente delimitada (complementada pelos hospitais de campana que vêm sendo instalados), em conjunto com os serviços de urgência da SÉS/RJ e sob administração direta do Ministério da Saúde (Hospital Geral de Bonsucesso) para garantir que – pelo menos do ponto de vista do serviço de urgência – a atenção à saúde pudesse ser garantida imediatamente a toda a população do município do Rio de Janeiro. 40 Por outro lado, a requisição dos Hospitais da Lagoa e de Ipanema permitiu, com a reabertura de seus leitos, apoiar a rede hospitalar necessária para a retaguarda cirúrgica e clínica de suporte aos hospitais de urgência. Tais medidas possibilitam que a própria Prefeitura, caso haja efetivo interesse, busque a dedicar-se em garantir o pleno funcionamento do restante da rede de serviços básicos que ainda continuam sob a sua responsabilidade, buscando agir dentro suas responsabilidades constitucionais. É necessário frisar que nos termos do Decreto guerreado o Ministério da Saúde está autorizado a requisitar outros serviços de saúde públicos (art. 2o, § 1o), portanto não há fundamento nas alegações do Impetrante. Pelo exposto, depreende-se que a escolha dos hospitais não foi aleatória e impensada. Ao contrário, foi feita com base em um planejamento estratégico que possibilitasse, em um curtíssimo prazo, dar condições de efetivo atendimento à população. Neste sentido, a mídia nacional vem registrando diariamente o êxito e acerto nas medidas implementadas pela Administração Pública Federal. Por todo o exposto, resta claro que não procedem as alegações da inicial, não existindo razão para a invalidação do Decreto editado pelo Presidente da República, haja vista que o mesmo se deu de acordo com a Constituição Federal e legislação em vigor. V 41 As exposições acima expendidas demonstraram a ausência de plausibilidade jurídica das alegações, afastando o atendimento ao requisito consubstanciado no fumus boni iuris e inviabilizando a concessão da medida cautelar pleiteada. Além disso, a jurisprudência do Supremo já se firmou no sentido de que é necessário que haja relevância jurídica na fundamentação da ação para que seja concedida a liminar, o que não ocorre no presente caso. VI O exposto admite a conclusão de que as preliminares pleiteadas devem ser deferidas extinguindo-se, assim, o presente mandamus pelas razões já expostas. Caso não seja este o melhor entendimento, o relato permite asseverar que inexiste qualquer direito líquido e certo a ser tutelado por meio do writ, pois não se afigura harmônico com as normas disciplinadoras da matéria pretender alterar a correta atuação do Estado, pautada na Constituição e na lei, consoante demonstrado nestas informações. Eram essas, Senhor Consultor-Geral da União, as considerações tidas por pertinentes para consubstanciar as informações a serem prestadas pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, solicitando o envio da documentação encaminhada pelo Ministério da Saúde em anexo às informações. 42 À consideração superior. Brasília, 29 de março de 2005. Rafaelo Abritta Advogado da União 43