AROLDO PLÍNIO GONÇALVES TÉCNICA PROCESSUAL E TEORIA DO PROCESSO NULIDADES NO PROCESSO 1 a edição - 2 a tiragem - 2 0 0 0 O tratamento teórico que tem sido conferido à nulidade tem feito dela um tema difícil, por vezes confuso, e até mesmo, de certo modo, desajustado perante outros conceitos e institutos do Processo. Os múltiplos sentidos que se emprestam à palavra (...) acabam provocando dificuldades não apenas de ordem terminológica, mas sobretudo de ordem conceituai, no campo doutrinário. O termo nulidade tem sido empregado indiferencialmente tanto para designar uma categoria jurídica, que se faz objeto de uma teoria, como para significar uma conseqüência jurídica — a sanção que torna ineficaz o ato processual —, como para denotar uma qualidade negativa que adere a um ato processual, como se fosse o defeito do ato, sendo equiparada ao próprio vício que o atinge. AIDE EDITORA AROLDO PLÍNIO GONÇALVES TÉCNICA PROCESSUAL E TEORIA DO PROCESSO 1a edição 2a tiragem - 2001 G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943 Técnica processual e teoria do processo / Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2001. 224p. 1. Direito processual civil. I. Título. CDD-341.45 ISBN 85-321-0071-6 PUBLICAÇÃO N° 146 Direitos desta edição reservados à AIDE EDITORA E COMÉRCIO DE LIVROS LTDA. Rua Bela, 740 - São Cristóvão 20930-380 - Rio de Janeiro - RJ Telefone, e Fax: (21) 2589-9926 (PABX) E.mail - [email protected] Home-Page - http://www.radnet.com.br/aideeditora Ao PAULINHO, o meu jurista in erba. A CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, ELIO FAZZALARI, ELZA MARIA MIRANDA AFONSO e WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA, a razão de ser e a única razão, pela comunione spirituale. INTRODUÇÃO O movimento de renovação do Direito Processual, que eclode em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e novas reflexões sobre antigas questões da construção doutrinária. Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicismo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a visão do processo como estrutura técnica que se põe como instrumento para o exercício da jurisdição. Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem um destino comum. Não se passam como as ações e reações explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias. Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e nem sempre vão apenas na direção contrária, mas abrem-se em um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos. Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste século , o movimento da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considerada arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris, no movimento hippie, nos woodstockes, e em tantas outras manifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos das revoluções. O movimento de renovação do Direito Processual parece cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se torna o elemento menos importante, confrontado com uma ordem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica. Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas, e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importante, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se faz urgente, porque é preciso transformar as condições sociais. E o mecanismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de finalidades políticas e sociais. 1 MARX é sempre relembrado, na 1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos institutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processual apto a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A Instrumentalidade do Processo" 2 a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA- passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11 a tese: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo". Mas não será lembrado que MARX não chamava os teóricos como agentes da transformação e sim os operários do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário, ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formulados. GALILEU não foi processado pela força de qualquer teoria de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL, "foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem com as idéias que coloca em circulação 3 limita-se à sua honestidade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias. Os movimentos de renovação deste século, no campo da cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da História, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS vê como uma criação humana enlouquecida 4 e que tem sido motivo de muitas angústias. MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" in Synthesís - Direito do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, nº 4/87, pp. 46/47. 2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro, Trad. de Brenno Silveira, 3ª ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 55. 3 A questão é levantada por M1CHEL V1RRALY - La Pensée Juridique, Paris: Librairie Généraíe de Droit et de Jurisprudence, 1960. 4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTINHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se entretido com a literatura grega, 5 o Ocidente carrega essa sina. Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por haver cedido à sua sedução e faz o seu mea culpa, repudiando-a. Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentos irracionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a razão. A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrouse pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostas adequadas a seus problemas, o feto não poderia ser tributado à razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a direciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os crimes não basta destruir as pedras. O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS CASTORIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade, trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Editora de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado está na p.144. 5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15, pp. 36/37. não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa, porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contínua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimina-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios. Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reconhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele a detém cativa.7 A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus membros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. A indignação que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade contemporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições. O direito material, enquanto cânone de conduta e de organização social, será fator de transformação, se assim for construído pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O 6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3ª ed., 1981. 7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Consciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os conflitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E esse Direito é o único poder capaz de limitar a atuação do Poder. Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre na Alemanha, o Freirecht de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de PHILIPP HECK, mas foi também ela que, a partir de 1933, inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e confiou no senso inato do juiz à condition qu'il soit de p u r e race et qu'il s'inspire, non pas d'un individualisme désuet, mais de la communauté nationale, que admitiu que a lei é um aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un droit non écrit qui se dégage de l'âme du peuple allemand et qui est conforme aux necessités de la vie nationale, droit clairement reconnu, ou mieux, senti et énergiquement réalisé par le juge allemand8. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurídico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939, tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no sentido de que o juiz vincula-se à lei, ressalvando-se que ele s'inspire de l'esprit de la nouvelle philosophie et non plus des príncipes individualistes surannés du siècle passé? Essa nova filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo. O século XX rompeu com o mito do século passado de que a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes, 8 Número inaugural de l'Akademie für deutsches Recht, juin 1934, p.6, article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académie, intitule Der deutsche Richter Cf. CLAUDE DU PASQUIER - Introduction à la Théorie Générale et à la Philosophie du Droit, 4ª ed., Neuchâtei. Delachaux et Niestlé, 1967, p.l96 9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p.196. imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao contrário de depor contra o conhecimento científico, essa postura anseia pelo seu progresso, por sua contínua complementação, e conduz àquela palavra de fé, de que fala BACHELARD, do cientista que termina o seu dia de trabalho dizendo: "Amanhã saberei".10. E nessa profissão de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo conhecimento, em qualquer área, é fruto de muitos esforços conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e se renovam, e, não raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas concepções repudiadas ou como resposta a elas. Toda afirmação sobre a inutilidade, a impropriedade ou impossibilidade do reexame de conceitos só pode ser tomada como uma atitude de renúncia ou como uma atitude autoritária, ou, ainda, como manifestação de extraordinária pureza, da qual uma das formas se revela naquela fé inabalável no dogma que leva as pessoas a morrerem por suas verdades. Essa fé é a dos santos, mas não dos cientistas, pois, lembrando novamente BACHELARD, "verdades inatas não poderiam intervir na ciência" 11 . A liberdade da investigação científica não pode ser tolhida, e mesmo a lei, quando fixa definições e estabelece conceitos, não poderia impedir a ação da doutrina jurídica. Poderia, por certo, tentar impedir a sua divulgação, como ocorreu com a censura, quando legalmente admitida, mas a própria história demonstra que a liberdade de pensamento, mesmo quando não encontra sua correlata garantia de comunicação, encontra outros caminhos para se expandir. A autonomia do Direito Processual, com o seu bem demarcado campo de investigação, com conceitos e categorias próprias, não poderia constituir razão para se dispensar uma revisão de seus principais institutos. A revisita a eles não é movida por 10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 334. 11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334. diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHERING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que perdem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também, de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas principalmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",— expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo, porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as transformações sociais possam se fazer não de modo caótico, mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade que a época alcança. No momento em que uma ciência renuncia a continuar investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria, como competência explicativa da realidade, quando clarificar a realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavelmente, a missão social comum de qualquer ciência. A retomada do exame de alguns dos conceitos já considerados seguramente estabelecidos no Direito Processual pode comportar certas surpresas. A importância crescente que os institutos do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negligenciar seu próprio progresso justamente quando as formas de solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam. Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186. tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Processual Civil. Mas pretende deixar uma contribuição sobre a nova concepção de processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes, que exige que se pensem novamente alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a própria concepção de procedimento, de relação jurídica processual, da ação, da relação entre o direito material e o processo. Pretende, também, a partir de uma nova concepção de processo, refletir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos. A nova concepção de processo será trabalhada com base na obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupação de se citar passagens no original, a não ser quando a oportunidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se relevarem os aspectos mais importantes que justificariam a transcrição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do autor citado e do controle de sua autenticidade. O método escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a preferência é por essa última, em coerência com o que se entende ser a função social da ciência. A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINAMARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensamento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros da nova geração. Não se negará, em nenhum momento, o direito fundamental da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca em questão são os problemas da construção jurídica e de sua fundamentação. As possíveis elucidações sobre as ainda presentes insuficiências ou contradições do quadro conceituai utilizado pela doutrina do Direito Processual Civil para estabelecer as relações entre procedimento e processo, que incidem inevitavelmente em diferentes modos de se conceber o processo, e que se refletem no conceito de ação, e que se projetam na finalidade do processo, poderão se constituir em contribuição tanto para a Ciência do Direito Processual, como para o tratamento de questões de ordem prática, tão necessária nesse momento em que a nova ordem constitucional brasileira abriu extenso campo de possibilidades de alterações no Direito Processual, aqui referido como sistema normativo. CAPÍTULO I CIÊNCIA E TÉCNICA 1.1. A CIÊNCIA A divisão do campo do conhecimento, no curso da História, gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de terminologias para designá-las de acordo com variados critérios referidos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto da investigação científica. Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreensão do tema que se põe como objeto deste estudo. É, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre teóricas e práticas, ou especulativas e práticas. A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na doutrina jurídica, 13 que contrapõe às ciências teóricas as práticas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam 13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev. e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, l º v . , pp. 264 e s. para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação dos resultados adquiridos por aquelas. Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aristotélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego teXvn, de que derivou a palavra "técnica"). Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transformações por que as duas concepções passaram na experiência histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é concebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do necessário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível. Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a expressão arte à ação possível que tem como objeto a produção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se produzir alguma coisa. 14 Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquícios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada para resultados determinados. Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teórica, embora a atividade humana encontre procedimentos para a aplicação prática das aquisições do conhecimento. Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendida como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda ciência se quer como uma competência explicativa de uma determinada realidade, seja ela natural ou cultural. Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do 14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L.l, in Obras, trad. de Francisco de P. Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977. termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas disputas inúteis, no campo do Direito. 15 Em uma das cinco acepções registradas por LALANDE — quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habilidade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de generalidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram a conclusões concordantes que não resultam de convenções arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradualmente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação definidos".16 A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, também, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus resultados são sujeitos à verificabilidade. HU1SMAN e VERGEZ, com base em LALANDE , afirmam que "a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para conhecer, para explicar o que é".17 Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ- 15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte. Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o termo Direito comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse conhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito. 16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et Critique de la Philosophie, Paris: Presses Universitaires deFrance, 1972 - verbete: Science. 17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8 a ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42. I to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produzi-lo. Quando se diz que a ciência e uma procura, uma investigação, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirmação, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é, antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (embora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomina instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, noções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade penetra na mente humana senão pela representação que se tenha dela, por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na medida em que novos conhecimentos são produzidos. A ciência, considerada já não como atividade, mas como conjunto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das descobertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação. Assim, as duas acepções do termo, como atividade que produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fundamentados, se complementam. Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas definições propostas, em síntese magistral, por BRONOWSKI: "Toda ciência é a procura da unidade em semelhanças ocultas". 18 18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal, "A Ciência é um processo de criação de novos conceitos que unificam a nossa compreensão do mundo". 19 A atividade essencial da ciência é essa procura das semelhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, do que se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realidade. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é classicamente definido como uma unidade mental pela qual se representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciência exerce a sua atividade criadora. É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um processo. A antiga concepção de ciência como saber definitivamente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confirma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfeição, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade que admite, e requer, processos de correções sobre todo conhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação seguida da decomposição. Os processos e métodos utilizados na atividade científica são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submetidos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na história da humanidade. 20 Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 19. 19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil Ribeiro da Silva, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, p.114. 20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não um saber infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens 1.2. A TÉCNICA A palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE, que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um objeto, é por ele definida com dois sentidos: "Conjunto de procedimentos bem definidos e transmissíveis destinados a produzir certos resultados julgados úteis" imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a forma mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro saber "pelas notas da necessidade lógica e da validade universal". O verdadeiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensível, o mundo das idéias que são modelos dos conceitos e da realidade empírica. A ele, Platão julga possível ascender, como mostra pela teoria da anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rememoração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena. Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio Correia, 8 a ed., Coimbra.- Arménio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entretanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja "doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAUFRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve: "...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao contrário, é acesso direto ao que existe de propriamente sendo naquilo que é..., ou seja, àquilo que sempre se comporta invariavelmente em relação a si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socráticos Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, 2ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 163/169- Em relação à alétbeia, a doxa era opinião sem fundamento, pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme, a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investigação do método adequado para a busca de Alétbeia, iniciada, no Ocidente, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias. "Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz particularmente dos métodos organizados que se fundam sobre um conhecimento científico correspondente" 21 . A noção geral da técnica é de conjunto de meios adequados para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos idôneos para a realização de finalidades. É bastante difundida a concepção de que a adequação dos meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficácia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica genuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o seu destino. 22 Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque, depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão recentes estudos de MAX WEBER sobre os processos de racionalidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a consecução de finalidades desejadas. Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência" significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen- 21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire cit., verbete: Technique (subst.). 22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion al Estudio del Derecho Vigesimaquinta Edícion Revisada, México: Editorial Porrua S.A., 1975, p 317. tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser aceita. É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em ABBAGNANO.23 Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resultados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto de conhecimentos, organizado e ordenado. 1.3. RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E TÉCNICA A concepção de que a ciência revela as relações entre os fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciência do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MÁYNEZ — supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é teoricamente correlato. Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demonstrando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos 23 Cf. NICOLA ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev. por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio ...et al., 2 a ed., São Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica. 24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que, prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se bastante significativos para demonstrar um postulado que é quase intuitivo, quando se reflete sobre os processos culturais e os resultados deles derivados: o de que "historicamente a prática precede a teoria, a técnica precede à ciência". O processo de racionalização da técnica iria levá-la a possibilitar que a ciência se tornasse, realmente, um "saber aplicado". Ao alcançar essa etapa, a ciência engendra novas técnicas e a técnica, racionalizada, permite tanto o crescimento do conhecimento científico como a melhor aplicação da ciência, conforme finalidades previamente concebidas. A partir desse ponto de confluência, é possível se fazer uma ciência da técnica e é também possível se obter tanto o aprimoramento de antigas como a produção de novas técnicas pela aplicação do conhecimento fornecido pela ciência. Entretanto, deve ser ressaltado que essa possibilidade é apenas o que se disse: uma possibilidade. MAX WEBER,25 a quem se deve uma sistematizada investigação dos processos da crescente racionalização da civilização ocidental, demonstrou como essa tendência não é suficiente para afastar as formas irracionais em vários de seus domínios, dentre eles o do Direito. 26 multiplicar em dimensão insuspeitada. 25 MAX WEBER - Essais sur la Tbéorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A Sociologia do Direito (Rechtssoziologie) que constituiu um capítulo da Wirtscbaft und Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada separadamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber havia confiado a um de seus alunos, como relata JULIEN FREUND, a quem se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte deste rodapé. 26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racionalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamurabi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciência, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeiramente, se construir a si mesma, como competência explicativa da realidade que se fez objeto de sua investigação. com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração, porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribunais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a irracionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material, oferecendo quatro hipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (não importando sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3. O direito formal irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se ã revelação do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elaborados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation du droit selon Max Weber, in Formes de Racionalité en Droit, Arcbives de Pbilosophie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92. CAPÍTULO II CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA 2.1. RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamente, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo de construção. No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma, lhe correspondia. Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idôneos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si mesma. Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entre coerências e contradições, puseram em pauta as questões das relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade individual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito manifestado na experiência, do direito positivo, com existência no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de reflexões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a própria existência da sociedade humana, as formas de sua organização e de solução de seus conflitos. 2.2. OS CAMPOS DA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que a doutrina ainda separa por critérios diferentes, 27 mas nos quadros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões 27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit, 2º v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p.18 e s., GUSTAV RADBRUCH Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN, FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion al Derecho, 8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUÍS RECASÉNS SICHES Tratado General de Filosofia Del Derecho, Quinta Edicion, México: Editorial Porrua, S.A., 1975, p.160 e s. Sem pretender esgotar os quadros do saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda, outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTÔNIO HERNANDEZ GIL - Metodologia de la Ciencia del Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352. internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus fundamentos; a Sociologia Jurídica se preocupou com as relações entre os fatos sociais e a normatividade-, a Ciência do Direito restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas possibilidades se voltam também para o passado, pela História do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preocupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica, que já pretende se sistematizar como campo autônomo do conhecimento jurídico. 29 O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades que se põem para o trato da técnica processual. 23- DOGMÁTICA JURÍDICA E TEORIA GERAL DO DIREITO A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente realizado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo", 30 em síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do 28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p.185. 29 Cf. PIERRE CATALA - L 'informatique et la ractonalité du Droit, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit, Paris: Sirey, 1978, pp. 295/321. 30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976, pp. 16/17. direito positivo", 31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direito, no século passado, como mostra RADBRUCH32. Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídicos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momento, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos gerais comparecem com certa uniformidade em todos os sistemas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade — desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem 31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185. 32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 18933 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968, pp.88/91, p.130. 34 Cf. JOHN AUSTIN - Lectures on Jurisprudence, London: R Campbell, 1885. Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p.121 e s; W. FRIEDMAN - Théorie Générale du Droit, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciência do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano, Rio de Janeiro: Forense, 1966; p.109 e s.; ALBERT BRIMO - Les Grands Courants de La Philosophie du Droit et de L 'État, Paris: Ed. A. Pedone, 3a ed., 1978, p. 276 e s. jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjunto. 35 Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a Dogmática Jurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto de investigação o Direito positivo 36 e, por isso, estão no quadro da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu-a como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de uma ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo. 37 2.4. A TÉCNICA JURÍDICA JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutrinas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda década do século XX, considera que o estudo da ciência do Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da grande revolução do pensamento jurídico. 38 A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e 35 Cf. PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science du Droit, Luxembourg: Office des Imprimes de L'Etat, 1960, p. 73 36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria General del Derecho - Trad. por el Dr. José Zafra Valverde, Madrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE PESCATORE - Introduction à la Science du Droit., Luxembourg: Office des Imprimes de L'Etat, 1960, pp. 74/75. 37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado, Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5a ed., p.17. 38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science du Droit et Romantisme - Les Ccmflits des conceptions juridiaues en Trance de 1880 à Theure actuelle, Paris: Librairie de Recueil Sirey, 1928, pp. 268/269. passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos intelectuais da construção jurídica. 39 A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PASQUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito transforma em regras claras e práticas as diretivas da política jurídica"'40. Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de ramos do Direito positivo. É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos: Interpretação, Construção e Sistematização, a que correspondem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos conceitos jurídicos 41 . Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental 39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY, que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo método da libre recherbe scierttifique, poderão encontrar soluções para os problemas da elaboração, buscando os critérios da integração, que serão utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY-Science et Tecbnique en Droit Prive Positif, 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à técnica de elaboração teórica e lógica, compreendendo o estudo das fontes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN DABIN, na clássica obra La Technique de 1'élaboration du droit positif Bruxelles: Bruylant et Paris-. Sirey, 1935. 40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p.l6341 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a sistemática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta, citando BUCKHARDT, Methode und System como: "Consiruíre, c'est alors ramener les élements caractéristiques du cas concret aux notions abstraites incluses dans la règle ou dans l'institution juridique", op. cit., p.170. teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituíram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava sem explicação, ou, antes, explicado como une affaire des praticiens, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre casos concretos ou a dar solução para os conflitos sociais, submetidos à decisão do Poder. Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos constituíam o savoir faire daqueles que elaboram e praticam o Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis — a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d'autres mots, la pratique judiciaire et administrative42. Sua descrição dessa atividade é significativa para demonstrar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica resplandescia: "Considérée comme pratique du droit, la technique juridique consiste à appliquer le droit, à l'exécuter, à le mettre en oeuvre. Cest l' habilite pratique du magistrat, de l'avocat, du notaire, du fonctionnaire... Cespraticiens n'ont pas la même liberté que ceux qui font qffice de législateur et leur art se distingue sensiblement de l'art de la législation. Pour les praticiens, il s 'agit avant tout de saisir la réalité des faits et des situations concrètes, de manier les règles de droit avec intelligence et de faire emploi judicieux du pouvoir discrétionnaire qui leur est 42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47. laissé. Leur art est la prudence juridique, la iuris prudentia au sens etymologique du terme"43. É muito compreensível que, em decorrência dos resultados do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha assumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica, sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindolhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedicando-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas, elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizando ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma, o procedimento de aplicação não fosse mais do que une affaire des praticiens44. A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se preparava na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pandectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transformar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria Geral do Processo 45 . 43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48. 44 Tal concepção não foi superada, como demonstra, ilustrativamente, K. STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La Justice en France, Mutations de l'appareil Judiciaire et Lutte de Classes", avec la collaboration de GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceci parce qu'il traite du fonctionnement de l'appareil judiciaire, qui est tine question terre à terre et non pas de questions qui interessent la philosophie du droit (justice, droit objectif, intérêt general, sujet de droit, responsabilité...)" Cf. Comptes Rendues, in Arcbives dePhilosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.431/433. 45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8ª ed. rev. e atual. Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurídica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de meios idôneos para o trato do Direito. O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletividade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que representa a comunidade jurídica, a sociedade politicamente organizada pelo Direito. A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu trabalho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formulados, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade, unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicável a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao conjunto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídicos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críticas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legislador. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e em construção criadora 46 . Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamente valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a - São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 199146 Cf. CLAUDE DL) PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion al Derecho, Octava Edicion, Buenos Aires: Editorial Pennt, 1975, pp.149/167, sobre a elaboração do conceito, v. RAFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé: Librería y Editorial Castellví S.A., 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op. cit., p. 188 e s. aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da aplicação do Direito 47 . 2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA 2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃO Algumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e, conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avaliada, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões, referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que despertaram polêmicas. Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso concreto como premissa menor e a sentença como conclusão 48 . 47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explicado.(...) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasileiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Processual: quarta série - São Paulo: Saraiva, 1989, p-12. Sobre a dignidade da dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os práticos, e Redenti, que punha como questão de primeira ordem a necessidade de que o Direito se fizesse concreto: Ma prima di tutto bisogna che il códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge. Cf. JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4ª ed., 2ª tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 1989, pp.7/18. 48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse É compreensível que, na falta de uma construção científica mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação" estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao silogismo. As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável, a questão axiológica que permeia todo o direito 49 . O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou improvável, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogismo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN em Tbéories re/atives au raisonnement judiciaire, surtout en droit continental, depuis le Code Napoléon jusqu'à nos jours, primeira parte de sua obra Méthode du Droit-Logique Juridique-Nouvelle Rhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por C1AUDE DU PASQU1ER, que, no capítulo destinado à L'application du Droit, estuda os mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juridiqties multiptes; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer une règle, c'est transposer sur un casparticulier et concret la décision incluse dans la règle abstraite" ..."Cette application comporte donc un passage de l'abstrait au concret, du general au particulier, bref une déduction. Son instrument est le syllogisme" in op. cit., p.126. 49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses argumentos, como as de COíNG, em Grundzüge der Rechtsphilosopbie, sobre as "situações-tipos". possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo; o termo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar em estranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferidas. E claro que não se nega que o "argumento", no sentido estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da decisão judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica) conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto para se inferir a sentença. De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria aparecer como algo aterrador. A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser relegada a permanecer à margem de uma ciência que se propôs a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma- na e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da razão. Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensamento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que fala ORTEGA Y GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito. Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurável esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas, que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento, da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verificação e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência. 2.5.2. UM INSTRUMENTO PARA UM RACIOCÍNIO A lógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que é a busca do conhecimento. ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando o critério temporal como metodologia da exposição, para penetrar nas especificidades de cada um, começando pelos precursores da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão, e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos, pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís- 50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963. 51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a seguir. 52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente-em 1662 La Logique ou l'art de Pensei; mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal. tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreender, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbólica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que, "agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga denominação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica. A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal contemporânea, mas mais do que o nome, é conveniente esclarecer alguns dos pontos por ela estabelecidos. 1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência normativa 54 . Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de recolher as "leis do pensamento" 55 . O pensamento, como processo mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para construir o método da livre associação, pode passar por movimentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição, que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não alcançadas por critérios objetivos de descrição. 2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclusões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a correção do resultado já completado 56 . Propõe-se, assim, "a estabelecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309- 54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348. 55 Sobre esse sistema de lógica que se dá como objeto presidir "as leis formais do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8 a ed., p. 297 e s. 56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21. do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomatizada57." 3. A lógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas, mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente, também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existência, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o que é evidente em um campo do conhecimento pode não o ser em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas diferentes. 4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da dedução. As verdades da lógica são formais, porque referidas não ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argumento, como um sistema proposicional de premissas e conclusões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalidade", e pela forma de relações entre proposições que são premissas e proposições que são conclusões. 5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal 58 , mas se 57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348. 58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enunciado, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade, em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares correspondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos, no argumento 59 . 6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma premissa (uma proposição que será usada como base para se inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma proposição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado). 7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela- Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica: "Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendimento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier, 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionando-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240; no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad. do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987, pp.169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do summum genus? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓTELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se conceber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica, geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nominalismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito. 59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento. É aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicionais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT MANCHE, op. cit. pp.310/311. cionada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isolada porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclusão 60 . 8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões. O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o argumento indutivo p r e t e n d e oferecer a p e n a s uma probabilidade da afirmação da conclusão 61 . 9. A dedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção de objetos que possuem algumas características específicas comuns. O que é necessário na identificação dos objetos para integrá-los a uma classe é que compartilhem de características, qualidades, determinações específicas. Assim como o problema da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do conhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão. 60 Cf. IRVINGM. COPI, op. cit.,p. 23. 61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/3962 ROBERT BLANCHÉ mostra como a aflição de FREGE, que é considerado o criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL,.seu grande divulgador, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um puro pensamento, não reconhecido como verdadeiro, não pode ser uma premissa. É só quando eu reconheci como verdadeiro um pensamento que ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser empregadas como premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BOCHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., pp.307/308. "A lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos universais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência particular". (RUSSELL, L'importante philosophique de la logique, Rev. de métapb., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309- E sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos. Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis- 10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta, segundo determinadas características de que compartilham, mas pode também pertencer a uma outra classe, de elementos diferentes, quando uma característica é tomada como totalidade dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia das classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu 63 . A preocupação com o levantamento desses dez tópicos, escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pensamento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência, e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum benefício para seu desenvolvimento. mo lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell constituíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da lógica. Cf. op. cit., pp.309/310. 63 Cf. ROBERT BlANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma variedade de outras classes. 64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a Lógica tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no pensamento", p.256. CAPÍTULO III CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E TÉCNICA PROCESSUAL 3.1. A CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racionalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetivamente definidos e delimitados pelas normas integrantes do próprio sistema. O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordenamentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das garantias constitucionais, importa na superação do critério de aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julgador, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo "Fenômeno Magnaud"65. Esse critério é substituído por uma 65 Le phénomène Magnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edição doMéthode d'Interprétation et Sources en Droit PrivePositif, analisou os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de ChâteauThierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram como le bonjuge técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos nãosubjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos membros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma segurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de inteligência, cultura é sensibilidade invulgares, quer estejam diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos predicados. A aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, que, em fins do século passado, despertou na teoria do Direito um intenso interesse em torno da figura do juiz, de sua missão e de seus deveres perante a lei injusta, passou, também, por sua fase de racionalização, no plano do Direito positivo e da doutrina que sobre ele se desenvolvia. A ciência do Direito Processual teve, como qualquer ciência, sua fase de construção, que lhe permitiu desenvolver suas técnicas para investigar o seu objeto, constituído pelas normas que organizam e disciplinam a própria técnica da aplicação do Direito pelo Estado, através dos órgãos da jurisdição. Sobre essa realidade normativa, dada pelas leis que organizam e disciplinam a jurisdição e o instrumento de sua manifestação, o Direito Processual — enquanto ciência, na acepção de atividade que produz conhecimento — trabalha, elabora seus conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre semelhanças não aparentes em seu campo de investigação, desenvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão da matéria, criando, assim, categorias e institutos jurídicos, e organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobra- Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes: Les Jugements du Président Magnaud (1900) e Les Nouveaux Jugements du Président Magnaud (1904). Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser o bom juiz favorável aos miseráveis e severo com os privilegiados. Não se preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN Logique Juridique - Nouvelle Rhétorique, Paris: Dallox, 1979, pp.71/72. mento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, constituir-se em novas disciplinas autônomas. Na reflexão sobre a Ciência e a Técnica do Processo, convém relembrar com EDUARDO J. COUTURE, que "a ciência do processo não é só a ciência das petições, das provas, das apelações, das execuções, das formas e dos prazos, Seria difícil construir uma ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindose, apenas, desses elementos. Antes, porém, de chegar a eles, a ciência do processo necessita assentar uma série de proposições de conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência — o processo não pode ser concebido, nem chegar a ser realizado" 66 . 3.2.A NECESSIDADE DA DISTINÇÃO ENTRE A CIÊNCIA E SEU OBJETO Como a expressão "direito processual" é utilizada para designar mais de um objeto, sendo empregada para denotar tanto uma ciência, ou seja, uma atividade de conhecimento ou um conhecimento organizado, quanto para designar o próprio complexo normativo que constitui o seu objeto, surgem alguns problemas no seu uso. O Direito Processual, no sentido de ciência, enquanto conjunto de conhecimentos, organizado como disciplina, no sentido didático-metodológico, que se insere entre outras disciplinas, classificadas no campo do Direito Público, não "governa a atividade jurisdicional", e não "cria órgãos jurisdicionais", não "cria" ou "regula o exercício dos remédios jurídicos que tornam efetivo todo o ordenamento jurídico" 67 , porque a ciência, considerada 66 Cf. EDUARDO J. COUTURE - Interpretação das Leis Processuais, Trad. da Dra. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, São Paulo: Max Limonad, 1956, p.157. 67 A discordância se manifesta aqui em relação aos conceitos expostos na valiosa obra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI como atividade de conhecimento, ou considerada como conjunto organizado de conhecimentos, não tem essa função. Considerado como complexo de normas, objeto do conhecimento da ciência que dele se ocupa, o Direito Processual tem a função criadora que toda norma possui, no sentido de conferir significado jurídico a determinadas situações produzidas por fatos e atos que recebem a valoração normativa. 33- A NORMA PROCESSUAL As normas jurídicas são classificadas com base em diversos critérios, que permitem sejam recolhidas e sistematizadas, dentre outros, os referentes a sua forma de produção, a seu âmbito de validade, a seu grau de obrigatoriedade, à garantia de sua exigibilidade, à matéria por ela regulamentada, ao objeto de sua disciplina, a sua posição na hierarquia do sistema normativo. Tomando o objeto de sua regulamentação como ponto de referência, a doutrina desdobra os critérios de classificação pela pluralidade da matéria disciplinada. Nesse sentido fala em normas de direito material, ou substancial, e em normas de Direito Processual. Relacionando as duas categorias, com base em critérios ditos de complementação, denomina as normas de direito material como normas substantivas, normas primárias, normas de primeiro grau, e as normas processuais normas secundárias, normas de segundo grau, normas instrumentais. É interessante verificar que as teorias, embora utilizando a mesma denominação, nem sempre falam a mesma linguagem sobre essa classificação. Alguns autores invertem a posição das normas, dentro do quadro definido pelo critério, e denominam normas de primeiro grau, normas primárias, as normas proces- GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 48. suais, e reservam a qualificação de normas secundárias, de secundo grau, às normas materiais 68 . É, ainda, oportuno ressaltar que as duas categorias de normas são plenas de substância, de conteúdo, de matéria. Essas constatações são suficientes para que se dê razão a FAZZAIARI quando afirma que a qualificação das normas em normas de primeiro grau e de segundo grau é meramente convencional 69 . Ambas disciplinam condutas, inserem-se no mesmo ordenamento jurídico e se complementam mutuamente. A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que comportam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta, qualificando-a como lícita e como ilícita, tendo como matéria as 68 Nessa posição encontra-se LÉON DUGUIT, que distingue as regras estabelecidas pelo grupo social em normativas e construtivas ou técnicas. As primeiras são imperativos que impõem uma abstenção ou uma ação, constituindo-se como condição da manutenção da vida em sociedade. Delas, conforme expõe, tem consciência cada indivíduo que, por mais primitivo que seja, sabe que, se não se conformar a elas, o grupo reagirá contra ele. O grupo pode estabelecer regras para assegurar diretamente ou indiretamente a execução da norma. Normas construtivas ou técnicas são aquelas estabelecidas para assegurar na medida do possível o respeito e a aplicação das regras normativas. As normas construtivas ou técnicas organizam, fixam competências, criam as vias para a aplicação de sanções jurídicas, fixam condições sob as quais os detentores da força podem intervir, determinam o poder e o alcance das decisões. A regra construtiva é en somme le règle organique de la contrainte e por ela se define a própria existência do Estado: il n'y a d'État que s'il y a monopole de la contrainte, et il y a État des que ce monopole existe. Cf. LÉON DUGUIT - Traité de Droit Constitutionnel. Paris: Ancienne Librairíe Fontemoing & Cie Éditeurs, 1927, v.I, pp. 106/108. HANS NAWIASKI entende que as normas de direito material são apenas seminormas, normas parciais, que só em conjunto com as normas processuais e executivas se convertem em normas jurídicas completas. Cf. HANS NAWIASKI - Teoria General del Derecho, traduccion de la segunda edicion en lengua alemana por el Dr. José Safra Valverde, Madrid. Ediciones Rialp S.A., 1962, pp.35/38. 69 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antônio Milano, 1989, pp.91/96. situações jurídicas de que decorrem direitos e deveres, as normas processuais disciplinam a jurisdição: o exercício da função jurisdicional e o instrumento pelo qual ela se manifesta, o processo. 3.4. A JURISDIÇÃO O Estado exerce a função jurisdicional, sobre o mesmo fundamento que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem jurídica instituída, as funções legislativa e administrativa. As ordens jurídicas contemporâneas proclamam que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, que a soberania pertence ao povo ou à nação. O Estado, enquanto representante da sociedade politicamente organizada pelo Direito, assume o poder em nome da nação, legisla, estatuindo deveres, garantindo direitos, ordenando a vida social, administra, gerindo os negócios públicos e exerce a função jurisdicional, pela qual reage contra o ilícito e promove a tutela de direitos. E preciso, entretanto, ressaltar que, nas ordens jurídicas soberanas, ou seja, no Estado de Direito, o poder legitimamente constituído se exerce nos limites da lei, e a função jurisdicional, que traz implícito o poder uno e indivisível do Estado, que fala pela nação, se exerce em conformidade com as normas que disciplinam a jurisdição. "Toda jurisdição, exercida em qualquer esfera, provém do Estado" — diz NELSON SALDANHA — pelo que "o próprio problema dos pressupostos processuais, vistos sob certo ângulo, nos levaria a esse problema: o processo existe, com seus elementos necessários, pelo fato de se darem sob a égide do Estado (ou dentro do ordenamento jurídico demarcado pelo Estado) as situações e os conflitos que pedem que o processo exista"70. 70 Cf. NELSON SALDANHA - Estado de Direito, Liberdades e Garantias. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980, p. 66. O antigo conceito de Estado foi referido à junção de duas noções.- status, no sentido original de situação, condição, e res populi-res pública, a coisa pública, que se sintetizaram no Status-res pública, em que a situação de organização política da sociedade se corporifica no Estado 71 . As doutrinas contratualistas, dos séculos XVII e XVIII, com HOBBES, LOCKE e ROUSSEAU, contrapuseram o estado de "natureza" ao estado "social" ou "político", o direito natural ao direito positivo, civil, adquirido — expressões utilizadas para designar o direito existente no estado "social" ou "político" — na tentativa de estabelecer um fundamento racional para o poder. Embora divergindo sobre o caráter social do estado pré-político, negado por HOBBES, com violência a manifesta e latente do bomo lupus homini, e afirmado por LOCKE e ROUSSEAU, sobre o caráter cordial do ser humano, o seu ponto de convergência se deu na construção teórica do "pacto social". Tais d o u t r i n a s são expressões de uma época em que dominava o voluntarismo, e a necessidade de se buscar um fundamento de legitimidade para o poder, sem referi-lo a um direito "divino", que permitisse de alguma forma limitar, teoricamente, seu exercício pelo Direito, foi trabalhada sob as concepções disponíveis na época. Na época contemporânea, surgem várias teorias sobre o Estado, e a tese da cisão entre Estado e sociedade, cuja formulação mais expressiva é devida a MARX — o Estado sendo concebido como instrumento de opressão da classe dominante —, tem recebido várias análises da Ciência Política e da Sociologia Jurídica. Uma delas tem se desenvolvido sobre o conceito de racionalidade do Estado contemporâneo, baseada na legitimação pelo procedimento em detrimento da complexidade social, o que caracterizaria a crise resultante da contraposição entre a superlegalidade política e a legalidade consti- 71 Essas expressões históricas são levantadas por ENRICO REDENTI, em Diritto Processuale Civile, 1 - Nozione e Regole Generali, Bologna: Giufjrè Edítore, 1980, pp.3/4. tucional 72 . O dimensionamento da "crise", sob a concepção da "democracia" como espaço da liberdade que não anula mas permite a manifestação de conflitos, tem se expandido na reflexão jurídica 73 , e é sob esse enfoque que a idéia do contraditório se desenvolveu como elemento fundamental do conceito de processo. Os três enfoques mencionados, referidos a momentos históricos distintos, foram escolhidos para demonstrar que a questão da legitimidade do poder pode ser contemplada sob prismas diferentes. Entretanto, quaisquer que possam ser as teorias desenvolvidas sobre o Estado, dificilmente será possível concebê-lo sem a função jurisdicional, ainda que se mudem as formulações sobre os modelos instrumentais de sua atuação. E a função jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expressão de um poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela norma jurídica. No que tem de específico, a função jurisdicional substitui a autodefesa, eliminando o recurso da autotutela, da vingança privada, da represália. Do primitivo rito da religião doméstica, do culto dos deuses lares, quando a represália era uma das formas de obrigação para com os Manes, pela vingança de sangue realizada pelo membro do clã ofendido contra qualquer representante do clã de onde partira a ofensa, vingança necessária para o repouso da alma da vítima74, às mais antigas leis que 72 Cf. GUSTAVO GOZZI - Estado Contemporâneo, in Dicionário de Política NORBERTO BOBBIO, NICOIA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, trad. de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis Gerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2 a ed., 1986, pp.401/409. 73 Cf. JOSÉ EDUARDO FARIA - Sociologia Jurídica: Crise do direito epraxis política, Rio de Janeiro; Ed. Forense, 1984, pp.56/58. 74 Cf. FUSTEL DE COULANGES - A Cidade Antiga, Trad. de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, pp. 17/32. Sobre as primitivas sanções transcendentes à sociedade, derivadas do princípio da - retribuição, cf. KELSEN - Teoria Pura do Direito, cit., pp.53-59- hoje são conhecidas, as da Cidade-Reino de Eshnunna, tombado sob o exército de Hammurabi75, o Estado foi se organizando juridicamente, e avocando, progressivamente, a repressão dos atos repudiados pelo grupo social. Dentre as flutuações históricas da racionalidade e da irracionalidade, de que fala WEBER, o Estado organizou sua função jurisdicional dirigida a dar respostas à sociedade sobre as condutas valoradas negativamente, que seriam qualificadas de ilícitos, e, em conseqüência, assumiu a tutela dos direitos da sociedade. "Direitos da sociedade" é expressão intencionalmente escolhida, para que nela se introduzam os direitos individuais e coletivos, em suas várias classificações: sociais, culturais, econômicos e políticos, cujo reconhecimento e ampliação se observa como uma tendência comum nas sociedades contemporâneas. Baseando-se na mesma concepção de RUDOLF VON JHERING, a quem reconhece o título deLe plus grand jurisconsulte de l'Allemagne modeme, segundo a qual o Direito era composto de dois elementos: a regra (Norm) e a realização da regra pela força (Zwang), DUGUIT conclui que, se o Estado tem o monopólio da força sobre seu território, não são regras de direito senão aquelas que têm, atrás delas, a força estatal 7ó . O caráter de universalidade da sanção jurídica, frente a outros tipos de sanção que estão presentes em outras formas normativas, é lapidarmente posto em evidência por MIGUEL REALE, quando, discorrendo sobre a pluralidade de ordens normativas, e de ordens jurídicas grupalistas, extra ou intra-estatais, demonstra que se pode escapar às sanções grupais renunciando75 Cf. - As Leis de Eshnunna, Introdução, texto cuneiforme em transcrição, tradução e comentário de EMANUEL BOUZON, Petrópotis: Vozes, 1981. 76 DUGUIT entende que o momento da organização do Estado coincide com aquele em que as regras construtivas, ou técnicas, que estabelecem a via para a repressão da conduta rejeitada pelo grupo se correlacionam com as regras normativas. Cf. Traité de Droit Constitutionnel, troisiène édition, Tome I - La Règle de Droit - Le Problème de L 'État, Paris: Ancienne Libraire Fontemoing & Cie, Éditeurs, 1927, p.101. se aos grupos, mas não se pode renunciar ao Estado, porque mesmo se se abandona o território nacional, junto ao retirante segue uma série de normas de seu sistema jurídico 77 . Podem ser aparados os excessos das doutrinas que concebem o Direito tão-só com a garantia da sanção, pois mesmo ao se investigar apenas o sistema jurídico positivo, sem o recurso a outros critérios axiológicos 78 , que não sejam os dele decorrentes, constata-se que uma pluralidade de preceitos (em evidência comparecem os constitucionais), ainda que não assegurados pelas sanções de normas do sistema, atuam como limite à ação dos indivíduos e, sobretudo, como limite à atuação do Poder. O sentido lógico de "princípio" — o que está posto como fundamento e limite, para se evitar a regressão do raciocínio ao infinito —, é perfeitamente aplicável ao Direito, quando se trata de "princípios jurídicos". Os preceitos constitucionais, que se apresentam como princípios jurídicos, balizam o sistema normativo, impedem sua projeção, através de normas que com ele possam ser incompatíveis, em direção contrária aos fundamentos do sistema, e limitam a atuação do poder, pois no Estado fundado sobre o Direito, o poder se exerce nos "limites" determinados pela lei. Os princípios constitucionais, mesmo quando tidos como não-auto-aplicáveis, já possuem eficácia intrínseca porque, obstando a criação de normas jurídicas infraconstitucionais que os contrariem, não permitem possam as leis se projetar além do sistema jurídico, em direção contrária a ele. Pode-se confirmar, ainda, a cada instante, a observância do Direito sem a manifestação da sanção, pois não se pode negar 77 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 1976, pp.76/78. 78 Não se nega que as doutrinas axiológicas têm sido extremamente preciosas para provocar o "re-pensar" do papel da coação no Direito. Nesse sentido, v. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Direito e Coerção, Belo Horizonte, 1956, que sustenta a tese de que apenas ao Estado Totalitário pode-se atribuir o monopólio do "direito" como força, porque a lei pode ter sua vis coativa, mas não é, em sua essência, a própria força. efeitos jurídicos aos atos lícitos cumpridos espontaneamente, que se desenvolvem e se esgotam sem o apelo à proteção jurisdicional. E esses, em uma sociedade dotada de certa estabilidade, prevalecem sobre as situações de litígio que, quando não resolvidas na esfera particular, são levadas à apreciação do Estado, através da provocação da função jurisdicional. A jurisdição se organiza para a proteção de direitos e das liberdades, asseguradas na ordem jurídica, contra o ilícito, e ilícito, em qualquer campo do Direito, é a inobservância da conduta normativamente valorada como devida, cuja ocorrência na prática, se se admitir a liberdade do reino humano, não estará fora da esfera do possível. 3.5. O PROCESSO O Direito Processual, como ra,mo a u t ô n o m o do conhecimento jurídico, desenvolve sua investigação sobre a norma que ordena e disciplina a jurisdição, a norma que regula o exercício do Poder Jurisdicional, e, por isso, não é raro que se diga que seu objeto é a norma que disciplina o processo. A jurisdição, entretanto, é organizada para que o Estado, através dos órgãos jurisdicionais, se manifeste em situações que envolvem conflitos litigiosos e em situações em que, havendo ou não divergências, encontra-se ausente o litígio. Por isso a afirmação de que o processo constitui o objeto por excelência do estudo do Direito Processual deve ser tomada com certo cuidado, pois para se compreender o seu alcance é necessário se entender o que se está designando como "processo . A questão se reveste da maior importância, por várias razões. Primeiro, pode considerar-se que vem posta no próprio ordenamento jurídico positivo, quando destina suas normas a reger a "jurisdição contenciosa e voluntária", a regular o "procedimento comum" e os "procedimentos especiais", o "processo" de conhecimento, de execução e cautelar 79 . Em seguida, observa-se que já se encontra consolidada, no plano teórico, a proposta de um novo tratamento das relações entre procedimento e processo, que suscita nova reflexão sobre seus conceitos. Por fim, a Constituição da República de 5 de outubro de 1988, ao atribuir, no art. 22, item I, competência privativa à União para legislar sobre Direito Processual, e no art. 24, item XI, competência concorrente 8 0 aos Estados e ao Distrito Federal, para legislar 79 O art. 1º do Código de Processo Civil expressamente estatuiu que a jurisdição civil, "contenciosa e voluntária", seria exercida em conformidade com suas normas. Essas normas, como decorre dos arts. 270 e 271, se destinaram a regular o "procedimento comum" e os "procedimentos especiais", o "processo" de conhecimento, de execução e cautelar, e o art. 1.211, ao delimitar o âmbito espacial e temporal de sua validade, dispôs que o Código rege o "processo" civil. Além de delimitar o quadro da atuação do Poder Jurisdicional, tra2endo para seu âmbito relações litigiosas e não litigiosas, a norma do Código de Processo Civil especificou a sua matéria, apontando o objeto de sua disciplina: procedimento e processo. 80 RAUL MACHADO HORTA distingue, na repartição das competências, o modelo clássico e o que denomina de moderno, que se caracteriza por compreender a legislação exclusiva da Federação e a legislação concorrente ou comum, em uma competência mista, a ser exercida pela União e pelos Estados-membros. É ela que configura o Federalismo de equilíbrio, em que a descentralização tende a ampliar as matérias da legislação comum à União e aos Estados-membros, ficando no domínio da União a legislação de normas gerais e no dos Estados-membros, a complementação da legislação federal. Cf. Organização Constitucional do Federalismo in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, nºs 28/29, 1985/1986, pp.9/31. Estudando as possíveis hipóteses de incompatibilidade entre a lei federal e a lei estadual, JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO demonstra que, quer na competência privativa, quer na competência concorrente, a questão se acerta pelo princípio da hierarquia das leis, esgotando-se, quanto à competência privativa e exclusiva, pela declaração de inconstitucionalidade da lei estadual incompatível com a lei federal e na competência concorrente pelo predomínio da lei federal válida. Cf. JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Teoria Geral do Federalismo - Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982, pp.68/69. Em relação à extensão, JOSÉ AFONSO DA SILVA classifica as competências em exclusiva, privativa, comum, cumulativa ou paralela, concorrente, e suplementar: a privativa é enumerada como própria de uma entidade com possibilidade de delegação, ou de competência suplementar, a competência comum, sobre "procedimentos em matéria processual", desperta um novo interesse sobre procedimento e processo como objeto das normas estudadas pelo Direito Processual, que ultrapassa o campo acadêmico. Anote-se que a doutrina processual brasileira já vislumbra, nos arts. 22, I, e 24, XI, da Constituição da República de 5 de outubro de 1988, distinção entre "norma processual" e "norma procedimental" 81 . cumulativa ou paralela, significa a faculdade de legislar ou praticar certos atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistindo, pois, num campo de atuação comum às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência da outra, que pode assim ser exercida cumulativamente, a competência concorrente possui dois elementos constitutivos: 1. a possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; 2. a primazia da União no que tange à fixação de normas gerais; a competência suplementar, que é correlativa da competência concorrente, significa o poder de formular normas que desdobrem o conceito de princípios ou normas gerais ou que supram a ausência ou omissão destas. Essa é a dos §§ 1º a 4º do art. 24 da Constituição de 1988. Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA - Curso de Direito Constitucional Positivo - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, pp.413/415. 81 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 83Desta "técnica e teoria..." vai resultar, no final, que a Constituição de 05 de outubro de 1988, abre, definitivamente, as portas para a edição de Códigos Estaduais de Processo (civil e penal). Outra não pode ser a conclusão que se extrai de leitura do art. 24, item XI e parágrafos, do texto constitucional em vigor, que dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, concorrentemente, sobre "procedimentos em matéria processual", ou em outras palavras, legislar sobre "procedimentos em processo jurisdicional". Para maior clareza vejam-se os capítulos IV e VI seguintes, onde estão explicitados os sentidos dos termos "procedimento" (gênero) e "processo" (espécie), não havendo "distinção" entre eles, mas relação de inclusão (todo processo é um procedimento). Fica, pois, aos "legisladores estaduais" o cumprimento da missão que lhes foi deferida, cabendo-lhes discutir, votar e aprovar, o quanto antes, as Codificações locais de processo (civil e penal). No que concerne à "distinção" entre "norma processual" e "norma procedimental", ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMAR- Essa interpretação só poderia se ajustar a um contexto teórico em que procedimento e processo são tratados como realidades independentes e distintas. Em uma concepção de procedimento que comporta o processo, a diferenciação teórica entre normas de procedimento e normas de processo perde todo o significado, mesmo diante das disposições constitucionais referidas. O processo será uma espécie de procedimento, e assim se poderá compreender que a matéria processual sobre que incide a competência concorrente é a matéria do Direito Processual, enquanto norma que disciplina o processo jurisdicional. A norma processual é a que disciplina a jurisdição e seu instrumento de manifestação, o processo, mas a própria extensão do conceito de processo ainda não se esgotou na doutrina. CO incidem em leve equívoco, resultante, talvez, do fato de que o Constituinte de 1988 tenha se utilizado das expressões legislar sobre "direito processual" (art. 22, item I) e "procedimentos em matéria processual" (art. 24, item XI) e da falsa suposição de que haja "distinção" entre "procedimentos" e "processo". Não, não há, o vínculo é de inclusão ou fica mais bem explicitado se se recorrer ao auxílio da "lógica da relação entre classes..." (v. retro 2.5.2, nos 9 e 10 e adiante 6.3.1 fine). Frise-se, e bem, que, com o art. 22, item I, o Constituinte de 05 de outubro de 1988 dispôs, isto sim, que é da competência privativa da União legislar sobre "direito processual" em "processo administrativo", em "processo legislativo" e em "processos jurisdicionais" exclusivamente federais (os das justiças federais - comum e especializadas); nos "processos jurisdicionais" das Justiças Estaduais editará normas em concorrência com as Codificações Estaduais, civis e penais (art. 22, XI e parágrafos). CAPÍTULO IV PROCESSO E PROCEDIMENTO 4.1. PROCESSO E PROCEDIMENTO: MULTIPLICIDADE DE ACEPÇÕES 4.1.1. PROCESSO O termo processo é muito rico em acepções. É empregado na linguagem comum, na linguagem científica, na linguagem filosófica e na linguagem jurídica (com maior ou menor rigor), com uma variedade tão grande de sentidos que, quando se pretende dar-lhe uma conotação específica, é conveniente determinar a acepção em que é utilizado. Na linguagem corrente, fala-se indiferentemente em processo como etapa, como desenvolvimento, como método, como movimento, como transformação. Na linguagem científica, com suas conotações específicas, o termo é amplamente utilizado em qualquer domínio do conhecimento. Pode-se lembrar que, na informática, por exemplo, a idéia sugestiva de processo integrou-se à linguagem da ciência na expressão processamento de dados, como técnica de transformação de dados (números) em informações, informações obtidas de variáveis quantitativas ou qualitativas, depois que os dados são organizados, pois os núme- ros sozinhos não dizem nada. Processamento de dados, processador de textos, são exemplos frisantes dos mais recentes usos do vocábulo, que denotam a intensa carga simbólica sugerida pela palavra processo. Na linguagem filosófica, NICOLA ABBAGNANO82 registra três sentidos para o termo: 1. "Procedimento, maneira de operar ou de agir", exemplificando com extratos da Summa Theologica de Sto. Tomás de Aquino, "o Processo de composição e de resolução" que indica "o método que consiste no descer das causas ao efeito, ou no subir, de novo, do efeito às causas", e "processo ao infinito" "para indicar o subir de novo de uma causa para outra sem parar". 2. "Transformação ou desenvolvimento" exemplificando com WHITEHEAD (Process and Reality, 1929): "Processo da história". 3. "Uma concatenação qualquer de eventos", exemplificando com expressões de campos científicos "Processo de digestão", "Processo químico". Em LALANDE, o vocábulo é registrado significando: Suite de phénomènes présentant une certaine unité ou se reproduisant avec une certaine régularité83. Em meio às variedades da acepção do termo, pode-se perceber uma constante implícita em seu sentido: a de movimento e de conseqüente desenvolvimento e transformação, o que se contrapõe à inércia, à imobilidade e à inalterabilidade. Que a vida, a realidade, a experiência humana, as paixões, os sentimentos e, também, o conhecimento, enfim, tudo que pertence a este mundo sublunar 84 , possuam seus "processos", no 82 Cf. NICOLA. ABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, cit., verbete: Processo. 83 ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Paris: Presses Universitaires de France, 1972 - verbete: Procès ou Processus. 84 Lembrando a filosofia grega pré-socrática que via as transformações ou o movimento (como processo de geração e corrupção, isto é, de gênese e destruição) no mundo sublunar, e o imutável no mundo supralunar, o céu das estrelas fixas, a quintessência. sentido de movimento, de desenvolvimento e de transformação, já o havia percebido HERÁCLITO — "tudo flui", "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio" 85 , e, na filosofia moderna, é difícil imaginar que algum pensador o tenha exposto com maior ardor do que HEGEL86. No Direito, a palavra está também impregnada desse simbolismo, mesmo quando tecnicamente empregada, embora seu uso indiferenciado, em diversificadas situações, a tenha tornado um dos termos mais equívocos do campo jurídico. 4.1.2. PROCEDIMENTO A palavra procedimento, na linguagem comum, assume freqüentemente o mesmo sentido registrado por ABBAGNANO na primeira acepção do termo processo: "maneira de operar ou de agir". Em geral, a doutrina do Direito Processual relembra a origem etimológica do termo procedimento: "procedere" — prosseguir, seguir em frente, para dela fazer derivar a palavra "processo", com idêntico sentido etimológico. Esquece-se, entretanto, de indicar um outro significado que etimologicamente o vocábu85 O eterno fluir das coisas, como tônica de seu pensamento, é expresso em diversas assertivas. Cf. a reunião dos fragmentos da filosofia pré-socrática, com comentários de vários filósofos modernos e para HERÁCLITO, sobretudo, HEGEL, NIETZCHE e HEIDEGGER: "Os Pré-Socráticos — Fragmentos, Doxografia e Comentários", seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, 2 a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp.92-136. 86 Cf. As bases de seu sistema, principalmente os conceitos desenvolvidos no Prefácio à Fenomenologia do Espírito, foram retomadas em sua Filosofia do Direito, em cujo prefácio explicita o que é a filosofia, essa "rosa na cruz do sofrimento presente", que tem a sua missão em "conceber o que é, porque o que é é a razão" e "tudo que é racional é real e tudo que é real é racional", e cujo Prefácio se ocupa do movimento dialético do conceito - Cf. HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, Trad. de Orlando Vitorino, s/l: Livraria Martins Fontes Ltda., 1976, p.l a 51. Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - Introdução Ontológica, in Natureza Jurídica dos Recolhimentos Para o Fundo de Garantia Por Tempo de Serviço - Belo Horizonte, 1977 (Tese de Doutoramento), pp.1/91, principalmente pp.6/15. lo procedimento comporta, e em sentido próprio mesmo, não apenas figurado, extraído de TITO LÍVIO, e ainda hoje tão comum em nossa língua, quando se usa o verbo proceder como transitivo indireto (isto procede de...) e, embora o retorno as origens das palavras nem sempre auxilie o aclaramento de conceitos, a retomada do tema, pelo sentido de derivação, compreendido no termo procedimento, pode se revelar de alguma utilidade. No latim, processus, -a, -um, é particípio passado de procedo, e processus, -us, é substantivo. A origem de processo é, portanto, do verbo procedo, -is, -ere, -cessi, -cessum, que teve dois sentidos próprios e alguns sentidos figurados. O primeiro sentido próprio, utilizado por CÉSAR (De Bello Gallico) e CÍCERO (Tusculanae), corresponde a avançar, alongar-se; o segundo, usado por TITO LÍVIO, refere-se a prolongar, continuar. Na mesma raiz, há, no latim, o verbo progigno, -is, -ere, -genui, -genitum, com o sentido próprio de: prolongar a raça engendrando, gerar, assim empregado por CÍCERO (De Divinatione), e o adjetivo prognatus, -a, -um, com o sentido próprio de: saído de, descendente de, como utilizado por HORÁCIO (Sátiras) 87 . Proceder é, também, "originar-se", "descender de" e procedimento é, também, "o originar-se", e "o descender de". Essa lembrança pode ser de alguma utilidade no tratamento dos novos conceitos que serão examinados. 4.2.PROCEDIMENTO E PROCESSO: DUAS TENDÊNCIAS TEÓRICAS DISTINTAS A postura da doutrina contemporânea sobre o modo de se compreender o procedimento e o processo, sobre os critérios que devem ser utilizados para a conceituação de cada um deles, 87 Pode-se consultar o Dicionário Escolar Latino-Português do Professor ERNESTO FARIA. sobre a relação que pode existir entre eles, é básica para a adoção de todo um quadro conceptual, um sistema de conceitos, que servirá como instrumental teórico para o tratamento do processo. As doutrinas particulares, quando possuem fundamentos comuns, podem ser agregadas em escolas ou em correntes de um determinado campo do pensamento jurídico. Podem ser, ainda, designadas genericamente como "doutrina", mas a essa expressão se ajunta um determinado qualificativo, que será a marca pela qual se reconhecem os fundamentos que, sendo por elas compartilhados, sustentam diversas construções teóricas sobre um dado tema, que se põe como objeto do conhecimento. As diferenças internas que apresentem não serão importantes para impedir seu recolhimento dentro de uma mesma tendência de pensamento. É nesse sentido que se pode falar na existência, no campo do Direito Processual, de duas tendências distintas, firmadas sobre dois fundamentos teóricos diferentes, cada uma delas trabalhando com base em seus conceitos, suas definições, suas categorias, seus institutos. As diferenças do quadro teórico não incidem apenas no conceito isolado de procedimento e de processo, mas alcançam temas fundamentais do Direito Processual. E necessário se ressaltar, entretanto, que essa diferença de tratamento dado aos temas decorre, fundamentalmente, da concepção que se adote sobre procedimento e sobre processo, porque é por ela que se começará a estabelecer todo um sistema de conceitos de que o Direito Processual necessita para suas construções jurídicas. No desenvolvimento do Direito Processual Civil como ciência autônoma, a doutrina, sob a influência de BÜLOW, reagiu contra a postura tradicional de séculos passados, q u e absorvia o processo no procedimento e considerava este como mera sucessão de atos que compunham o rito da aplicação judicial do direito. Em progressivos passos, buscou estabelecer a distinção entre processo e procedimento, e encontrou, em critérios teleológicos, a base da diferenciação. Essa distinção perdurou por muito tempo de forma quase soberana, até que começou a despontar, dentro da doutrina, uma outra proposta pela qual era possível se considerar as relações entre procedimento e processo. Em movimentos concernentes a desenvolvimento de idéias, falar-se em pioneirismos é algo bastante arriscado, mesmo porque, como ocorre em geral, as idéias que conduzem a mudanças são latentes nos sistemas precedentes, e, ademais, não se fez um levantamento histórico com esse objetivo. Mas dentre os autores mais divulgados, podese encontrar em REDENTI um esforço bem conduzido em direção a essa nova visualização do procedimento e do processo, e em FAZZALARI, o sistema aperfeiçoado dessa nova postura 88 . 4.2.1.PROCEDIMENTO E PROCESSO: A DISTINÇÃO BASEADA EM CRITÉRIO "TELEOLÓGICO" A linha doutrinária que separa o procedimento do processo firmou-se sobre o critério teleológico, pelo qual se atribui finalidades ao processo e se considera o procedimento delas destituído. Nela, o procedimento é "puramente formal", algo que tanto pode ser uma técnica, como os atos de uma técnica, como a ordenação de uma técnica, enfim, separa-se do processo como idéia impregnada de finalidades por ser estranho a qualquer teleologia 89 . 88 O tema não encontrou, ainda, suficiente divulgação na doutrina brasileira, onde sequer aparece dentre as grandes preocupações por ela manifestadas ou dentre as perspectivas abertas no estudo do processo, inventariadas e examinadas por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA em "Os Temas Fundamentais do Direito Brasileiro nos anos 80: Direito Processual Civil" - e "Sobre a Multiplicidade de Perspectivas no Estudo do Processo" In Temas de Direito Processual, Quarta Série, São Paulo: Saraiva, 1989, pp.l/10 e pp.11/21. 89 Assim, como se lê em N1CETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO recordaremos que mientras la idea de proceso responde a una contemplación teleolágica, la de procedimiento obedece a un enfoque formalista. Cf. Essa posição predomina na doutrina processual brasileira contemporânea, em que o procedimento comparece como técnica que "disciplina, organiza ou ordena em sucessão lógica o processo"90, a técnica de "ordenação e racionalização da atividade a ser desenvolvida" (...) "forma imposta ao fenômeno processual"91. A doutrina pátria, em sua expressão mais jovem e brilhante, aprofundou o conceito do procedimento como "meio extrínseco" de desenvolvimento do processo, "meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo", até reduzi-lo a manifestação exterior do processo, "sua realidade fenomenológica perceptível" 92 . Em contraposição, ao processo é atribuída natureza teleológica, "nele se caracteriza sua finalidade de exercício do poder", como "instrumento através do qual a jurisdição opera (instrumento para a positivação do poder)" 93 . A distinção pelo critério teleológico propicia ao processo a abertura de um leque de finalidades 94 , dentre as quais a atuação do direito 95 , mas suscita, dentre outras questões, um problema para o qual não se encontra resposta adequada. E que, se o Estudios Procesales, Madrid: Editorial Tecnos, 1975, p. 455. No mesmo sentido, reporta-se à sua obra Processo, autocomposición, pp. 127-9. 90 WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL - Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., Sâo Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1979, v. 3, p. 9. 91 WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL, op. cit., p.10. 92 ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p. 247. 93 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p.247. 94 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - A Instrumentalidade do Processo, 2a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990. 95 JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA refere-se às finalidades que não são excluídas perante o fim público do processo, em As Bases do Direito Processual Civil In Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 3/15. procedimento se constitui em meio necessário, (pois não se aboliu, ainda, a necessidade da existência do procedimento), para a existência, ou o desenvolvimento, ou a ordenação, do processo, tem, então, o caráter teleológico que toda técnica intrinsecamente comporta, como meio idôneo para atingir finalidades. Mesmo considerado como série de atos, como forma de ordenação, como meio de se estamparem os atos do processo, o procedimento estaria impregnado de sentido teleológico, porque sua finalidade, já explícita em sua funcionalidade, não poderia ser negada. 4.2.2. A BASE DA DISTINÇÃO PELO CRITÉRIO TELEOLÓGICO As reações contra as posições tradicionais do século passado geraram múltiplos resultados e um deles foi o estigma que se abateu sobre o procedimento. Se o procedimento envolvera o processo, a ponto de deluílo na mera sucessão de atos, a reação veio tão forte que provocou a postura doutrinária exatamente em pólo contrário. A doutrina processual moderna, em sua larga maioria, diluiu o procedimento no processo. O processo absorveu-o e anulou sua importância. Não obstante, essa postura não supera o quadro do século passado, pois continua operando dentro dele, embora nela já se note a integração de vários conceitos renovados, que fazem pensar em um passo ensaiado para um novo itinerário, que ainda não se completou. Mesmo trazendo latentes as inovações da construção jurídica que se reelaboraram nas últimas décadas, essa linha doutrinária trata o processo com apelo a uma categoria conceitual do século passado, a da relação jurídica, que já passou por graves críticas na teoria do Direito e que é absolutamente imprópria para explicar as posições que assumem os sujeitos envolvidos no processo. 4.2.3. PROCEDIMENTO E PROCESSO VISTOS SOB UMA PERSPECTIVA LÓGICA A evolução dos conceitos de procedimento e de processo, como se percebe na exposição dos itens anteriores, não se fez em trajeto linear, mas foi bastante assemelhada a uma dialética de oposição, em que a antítese se levanta contra a tese, para negá-la, até que advém o momento da síntese, que absorve as afirmações e as negações em uma nova tese. Como assinala ELIO FAZZALARI96, o desenvolvimento dos contornos dos dois institutos e o próprio "emprego apropriado dos dois termos tardaram muito". O conceito de procedimento mudou, acompanhando o desenvolvimento da realidade normativa, do Direito positivo, e não foi por acaso que as maiores contribuições, para sua alteração, vieram do campo do Direito Administrativo, que iria se inspirar justamente no modelo de processo, buscado nos domínios do Direito Processual. Entretanto, a doutrina processual não extraiu dessa mudança as conseqüências adequadas para definir o processo. Mesmo diante de um novo conceito de procedimento, os processualistas não aproveitaram essa contribuição para a conceituação do processo e, necessitando de um suporte teórico para defini-lo, prenderamse ao antigo modelo da relação jurídica processual 97 . Esse "velho e antigo clichê pandectista", na expressão de FAZZALARI, teria imperado, ainda, conforme expõe ele, em alguns decênios deste século 98 . Entretanto, não se pode tratar a questão no passado, como o faz FAZZALARI, porque a relação jurídica ainda predomina, mas, agora, não já com a sua antiga soberania, sobre toda a doutrina. 96 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antônio Milano, 1989, pp. 72/73. 97 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 72/73. 98 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 73. Pelo critério lógico, as características do procedimento e do processo não devem ser investigadas em razão de elementos finalísticos, mas devem ser buscadas dentro do próprio sistema jurídico que os disciplina. E o sistema normativo revela que, antes que "distinção", há entre eles uma relação de inclusão, porque o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se pode ser dele separado é por uma diferença específica, uma propriedade que possui e que o torna, então, distinto, na mesma escala em que pode haver distinção entre gênero e espécie. A diferença específica entre o procedimento em geral, que pode ou não se desenvolver como processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste do elemento que o especifica: o contraditório. O processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses em relação ao ato final são opostos. Fica evidente que essa concepção trabalha com um novo conceito de procedimento e dele extrai um novo conceito de processo. Ao se concluir este tópico, não se pode deixar de registrar as palavras dirigidas por FAZZALARI à própria ciência do Direito Processual, ante a constatação de um fato que os processualistas de ambas as correntes já perceberam, o da crescente tendência da sociedade contemporânea para resolver suas questões (suas quaestiones) adotando o modelo do processo, com o contraditório que o especifica: "Insomma, la nostra era assiste alla diffusione del processo in tutti i settori dell'ordinamento, specie, per cosi dire, in qualli più caldi; e il futuro ne farà sentire maggiortnente il bisogno. Rimane, perciò, compito delia dottrina approfondire eperfezionare i moduli processuali (ciò di partecipazione degli interessati, in contraddittorio, all'iter diformazione di un ato), enucleare principi, offrirli a chi fa le leggi ed a chi deve applicarle"99. A doutrina do Direito Processual, por certo, não recusará o papel que constitui a missão social de toda a ciência de elucidar, de esclarecer, de aperfeiçoar e aprofundar a realidade, objeto de sua investigação, e, depois, tornar o resultado de seu trabalho — o conhecimento, por mínimo que seja — disponível, não só para os que devem fazer as leis e os que irão aplicá-las, mas para a própria sociedade. 99 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 14/15. Impende insistir na Codificação Estadual de Processo (civil e penal), em face da diretiva de política jurídica emanada do texto da Constituição de 05 de outubro de 1988 (art. 24, XI e parágrafos). E isto porque, como se deixou bem claro, não há "distinção" entre "norma processual" e "norma procedimental" ou entre "processo" e "procedimento". "Procedimento" é gênero, "processo" é espécie. Como se insistiu, a marca ou sinal específico está no "contraditório" e a relação é de "inclusão". Como já está no rodapé 81, importa destacar, mais uma vez, que, com o art. 22, item I, o Constituinte de 05 de outubro de 1988 dispôs, isto sim, que é da competência privativa da União legislar sobre "direito processual" em "processo administrativo", em "processo legislativo", e em processos jurisdicionais exclusivamente federais (os das Justiças Federais comuns e especializadas); nos processos jurisdicionais das Justiças Estaduais editará normas em concorrência com as Codificações Estaduais, civis e penais (art.22, XI e parágrafos). CAPÍTULO V O PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA 5.1. RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL CHIOVENDA, ao lançar as bases da ciência do Direito Processual Civil, fixou o conceito de processo como relação jurídica. "Il processo civile contiene un rapporto giuridico. E l'idea già inerente ai iudicium romano; nonchè alla definizione che del giudizio davano i nostri processualisti medievali: Iudicium est actus trium personarum, actoris, rei, iudicis (Bulgaro, De iudiciis, § 8). É l'idea che la dottrína e la pratica esprimevano già inconsapevolmente colla parola litispendenza, intesa questa come la pendenza d'una lite nella pienezza dei suoi effetti giuridici. Litispendenza e rapporto giuridico processuale sono concetti ed espressioni non equivalenti ma coincidenti"100. 100 GIUSEPPE CHIOVENDA - Istituzioni di Diritto Processuale Civile, volume I, I Concetti Fondamentali - La Dottrína Delle Azioni-Ristampa inalterata Delia 2a Edizione, Napoli: Casa Editrice Dott. Eugênio Jovene, 1940-XVIII, p.50. A figura da relação jurídica que já se constituíra como um dogma na doutrina civilista, para explicar direitos e deveres, faculdades e obrigações, e alcançara outros ramos do Direito, alastrou-se também pelo Direito Processual Civil que a adotou sem grandes polêmicas. A profundidade com que a idéia do processo como "relação jurídica" arraigou-se na ciência do Direito Processual Civil pode ser apreendida na exposição de CÂNDIDO R. DINAMARCO: "A doutrina da relação jurídica processual nasceu na Alemanha há pouco mais de um século e tem hoje ampla aceitação em toda a literatura do m u n d o romano-germânico. Embora a idéia já andasse pela doutrina do processo, dela não se tinha senão mera intuição e foi apenas no século passado que se observou a sua existência — ressaltando-se que se trata de relação nitidamente distinta da de direito substancial, da qual difere, em seus pressupostos, em seu objeto e em seus sujeitos". 101 Essa idéia intuída no século passado brotava realmente do espírito da época, como se verá, e encontrou sua formulação nas teses de WINDSCHEID, no momento que se conciliou uma determinada noção de Direito subjetivo, que se firmava também segundo o espírito da época, com a de processo. Mas a ampla aceitação a que se refere DINAMARCO, dessa que, na sua exposição, é uma "formulação, clara e convincente, quase elementar no estágio atual da ciência do processo" 102 , começou a encontrar suas objeções em outros campos da reflexão jurídica, quando o pilar do conceito de relação jurídica, o Direito subjetivo, nas dimensões concebidas no século passado, foi posto em questão. A descoberta das semelhanças não aparentes e das relações existentes entre os conceitos com que a ciência do Direito Processual Civil trabalha tem sido retardada, talvez porque o Direito Processual Civil tenha se acomodado nos progressos 101 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, vol. 1, 2a ed. rev. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 95. 102 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, cit. p. 95. que já obteve, dando por encerrada sua reflexão sobre a adequação de seu próprio instrumental técnico para capturar o objeto de sua investigação. EDUARDO COUTURE, afirmando que La doctrina dominante concibe el proceso como una relación jurídica103, menciona os argumentos que se levantaram contra tal concepção e tenta demonstrar que a relação é uma "união real ou mental, vínculo que aproxima uma coisa da outra, permitindo que mantenham sua individualidade". Entretanto, não é só de uma correlação, de uma interação, que se fala quando se emprega o termo relação jurídica, mas de vínculo entre sujeitos. COUTURE o demonstra: Cuando en el lenguage del derecho procesal se habla de relación jurídica, no se tiende sino a senalar el vínculo o ligamen que une entre si a los sujetos del proceso y sus poderesy deberes respecto de los diversos actos procesales. (...) Se habla, entonces, de la relación jurídica procesale en el sentido apuntado de ordenación de la conducta de los sujetos del proceso en sus conexiones recíprocas; al cúmulo de poderes y facultades en que se hallan unos respecto de los otros104. Os gráficos que representam as relações paralelas, as formas angulares de relação, são repetidos habitualmente para caracterizar a relação jurídica processual, ressaltando, justamente, esse vínculo entre sujeitos do qual fala COUTURE. As teorias que trabalham com os antigos conceitos de relação jurídica e de Direito subjetivo, na clássica acepção, são ainda predominantes na ciência do Direito Processual 105 . OSKAR VON 103 Cf. EDUARDO COUTURE -Fundamentos Del Derecho Procesal Civil, tercera edición (póstuma), Reimpresión inalterada, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1974, p.132. 104 Cf. EDUARDO COUTURE, op. cit., pp. 133/134. 105 Cf. OSKAR VON BÜLOW - La Teoria de Ias Excepciones Procesales, Los Presupuestos Procesales. Trad. de Miguel Angel Rosas Lichtschein, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-Anierica, 1984, J. RAMIRO PODETTI Teoria y Técnica del Proceso Civily Trilogia Estructural de la Ciência del Proceso Civil, Buenos Aires: Ediar Soc. Anón. Editores, 1963, UGO ROCCO BÜLOW, J. RAMIRO PODETTI, UGO ROCCO, SALVATORE SATTA, CARNELUTTI, LIEBMAN ... seria longa a relação dos nomes representativos da doutrina já clássica, que se encontram nessa linha, e dela não diverge, nesse ponto, a doutrina processual brasileira. CARNELUTTI recorda que a intuição da conexão entre relação jurídica e processo, tendo germinado na Alemanha e se transplantado para a Itália, continuou sendo cultivada. E faz a crítica da concepção de processo como relação jurídica, e da doutrina que sustenta que no processo a relação jurídica assume significado diferenciado. Entretanto, sua resposta ao problema é a pluralidade de relações jurídicas geradas no processo: La simple verdad de que el proceso no es una relación jurídica sino que genera una red, por no decir una maraña de relaciones jurídicas, no está en absoluto consolidada en la ciência del derecho procesal; y esto bastaria para demonstrar todo el camino que esta ciência ha de recorrer todavia a pesar de considerarse muy avanzada106. Em suas obras, percebe-se que há uma pronunciada intuição de que o conceito de Direito subjetivo deveria ser retrabalhado, mas seu quadro conceitual é ainda o de supra-ordenação e de subordinação, do caráter imperativo do Direito subjetivo, de obrigações como sujeições 107 . 5.2. A QUESTÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA O modelo clássico de relação jurídica construiu-se sobre a idéia de que é ela um enlace normativo entre duas pessoas, das - Tratado de Derecho Procesal Civil, Bogotá: Temis Buenos Aires: Depalma, 1970, SALVATORE SATTA - Diritto Processuale Civile, nona edizione ríveduta ed ampliata a cura di Carmine Punzi, Padova: CEDAM, 1981. 106 Cf. CARNELUTTI - Derecho y Proceso, Trad. de Santiago Sentis Melendo, Bueno Aires: Ediciones Jurídicas Eumpa-America, 1971, p. 41. 107 Cf. CARNELUTTI, op. cit., pp. 16/17. Na nota 32 da p. 17, há referências às obras anteriores que tentaram aprofundar tais conceitos. quais uma pode exigir da outra o cumprimento de um dever jurídico. O desenvolvimento desse modelo é bem descrito por CLAUDE DU PASQUIER108, que relembra a lição de ORTOLAN (18021873), segundo a qual "Todo direito tem necessariamente um sujeito ativo e um ou vários sujeitos passivos, e sejam eles ativo ou passivos, somente podem ser pessoas" 109 . Nascia, assim, a teoria dos dois sujeitos, que começaria a ser aperfeiçoada quando ROGUIN nela incluiu um terceiro elemento: a prestação. A confluência de direitos e deveres para a prestação permitia a afirmação do jus et obligatio sunt correlata. A teoria da relação jurídica não se distinguiu, em suas bases fundamentais, das construções do Direito privado do século passado, impregnadas das concepções individualistas da época. JOÃO BAPTISTA VILLELA descreve como essas concepções, assentadas na "idéia de concorrência", se refletiram no Direito: "O princípio cardeal que tudo informava era o da obrigação concebida como vínculo jurídico exercitável pelo constrangimento." Não se vislumbrava outra forma de se organizarem as relações sociais e humanas senão pela opressão, pelos elos de uma tirânica dominação de que, conforme diz, nem o Direito de família com seu conteúdo ético e afetivo escapava. "Todos os direitos da ordem privada, segundo a idéia individualista, se reduzem àquela formulação dos clássicos COLIN e CAPITANT lembrada ainda por BERTRAND: "faculdades ou prerrogativas pertencentes a um indivíduo e das quais ele pode prevalecer-se em relação a seus semelhantes" 110 . 108 Cf. CLAUDE DU PASQUIER - Introduction à la Théorie Générale et à la Philosophie du Droit, 4ª ed., Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1967, p.102 e s. 109 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p.102. 110 Cf. JOÃO BAPTISTA VILLELA - Por uma nova teoria dos contratos, in Revista Forense, vol. 261, ano 74, jan.-fev.- mar. de 1978, pp.27/35, v. especialmente p. 32. O conceito de relação jurídica foi elaborado nesse quadro. Seus elementos se definiram com a contribuição definitiva de WINDSCHEID para as novas bases científicas do Direito subjetivo, a partir das quais o "vínculo de exigibilidade", ligando "sujeito ativo" e "sujeito passivo", por um poder da vontade, se estruturava para logo se alastrar por todo o campo do Direito. 5.3. A QUESTÃO DO DIREITO SUBJETIVO "Nous nous sommes longuement attardés sur cette heure privilégiée de l'histoire du droit subjectif, ou cet enfant monstrueux semble sortir des litnbes"111 . As palavras de M1CHEL VILLLEY dão a dimensão das mutações que, desde sua gênese, iriam fazer do direito subjetivo uma criatura monstruosa do Direito, até que a ciência jurídica despertou para a necessidade de refletir sobre a sua própria criação, recuperando-a ajustada aos novos tempos — à la recherche de l'horizont théorique, c o m o se expressa FRANÇOIS LONGCHAMPS sobre as novas "vias que levam a esse tema sedutor" 112 . A idéia do direito subjetivo tem a sua fase mais profícua, conforme narra HELMUT GOiNG, no Aufklárung, no iluminismo, em que floresce o direito natural do racionalismo 113 . Mas sua gênese é mais remota e tem sido referida pela doutrina que 111 Cf. MICHEL V1LLEY - La Genèse du Droit Subjetif chez Guillaumc d'Occam, In Arcbives de Philosopbie du Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.127. 112 Cf. FRANÇOIS LONGCHAMPS - Quelques Observations sur la notion de droit subjectif dans la doctrine, In Arcbives de Philosopbie du Droit, tome IX Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.70. 113 Cf. HELMUT GOïNG - Signification de la notion de droit subjectif, trad. par N. Poulantzas, in Arcbives de Philosopbie du Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, pp. 1/15. se dedica ao tema a GUILHERME DE OCCAM, que segundo MICHEL VILLEY foi, provavelmente, o primeiro a definir o direito subjetivo e a edificar sobre ele uma teoria. As teses de GUILHERME DE OCCAM, formuladas para demonstrar a heresia de João XXII, em defesa de Michel de Césène e da Ordem Franciscana, destinaram-se a sustentar que Jesus Cristo e os apóstolos tinham o uso dos bens, sem deles ter a propriedade. A revolta dos Franciscanos contra o papa de Avignon, na defesa da idéia da pobreza e do poder profano, conduziu-o à concepção de um direito inserido em uma hierarquia de poderes, na qual os conferidos pelas leis humanas podiam ser renunciados. O poder se organizava hierarquicamente em três planos: no primeiro, estava a potestas absoluta, fonte de toda ordem jurídica, que era a liberdade de Deus; no segundo, os jura poli, constituídos pelo poder dos homens, e no terceiro, os jura fori, pelos quais o governante recebia, por delegação do povo, o poder legislativo. As leis positivas engendravam o dominium e o jus utendi, e os direitos subjetivos, no sentido estrito, garantidos pela sanção da autoridade estatal, importando em potestas vindicandi. Os direitos subjetivos, como poder, admitiam renúncia e, enquanto direitos assegurados pela lei, poderiam ser reivindicados 114 . De OCCAM, no século XIV, a WINDSCHEID, no século XIX, as transformações se fizeram na quebra da hierarquia do regime feudal, e os direitos subjetivos do racionalismo foram pensados em termos de uma liberdade absoluta que, derivada do direito natural, ou a ele identificada, se opunha ao próprio Direito positivo e ao Estado. Com WINDSCHEID, o conceito de direito subjetivo deu origem ao de relação jurídica, já no sentido prenunciado por OCCAM. O antigo vinculum juris aperfeiçoou-se como o vínculo normativo que liga sujeitos, em dois pólos, passivo e ativo, atri- 114 Cf. MICHEL VILLEY - La Genèse du Droit Subjeclif chez Guillaunte d'Occam, in Archives de Philosophie du Droit, Tome IX • Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, pp. 116/125. buindo ao sujeito ativo o poder de exigir do sujeito passivo uma determinada conduta e impondo a este o dever de prestá-la. Como afirma HELMUT GOïNG: En Allemagne, on est venu, depuis Windscheid, à une rupture entre la façon de voir du droit prive et du droit de la procédure. Cest porquoi on a reinplacê la notion d'actio par celle de "Anspruch". Le sens de celle-ci consiste ici dans le droit subjectif à exiger d'autrui qu 'il fosse quelque chose, ou qu'il s'abstienne115. Vê-se por que o conceito de direito de ação, que iria surgir das posturas divergentes entre WINDSCHEID e MUTHER, nasce sob o signo de um conceito de relação jurídica engendrado por uma noção de direito subjetivo. Essa opção ressurgida com WINDSCHEID conciliava o direito subjetivo da Aufklärung, poder absoluto decorrente da liberdade, com o poder de exigir de outrem ações e omissões. Com a clássica obra "A ação do direito romano do ponto de vista do direito civil", de 1856, WINDSCHEID lançava as bases da moderna concepção de direito subjetivo, como narra FRANZ WIEACKER116. São conhecidas as objeções feitas à teoria de WINDSCHEID por outras teses que pretenderam aperfeiçoar o conceito de direito subjetivo (de VON HERING, DABIN, JELLINEK, dentre outras) mas, na procura de novos fundamentos, a doutrina não feria nenhum ponto essencial do conceito, estabelecido como poder absoluto sobre a própria conduta ou como prerrogativa sobre a conduta alheia 117 . 115 Cf. HELMUT GOYNG - Signification de la notion de droit subjectif- trad. par N. Poulcmtzas, in Arcbives de Philosophie du Droit, Tome IX - Le Droit Subjectif en Question, Paris: Sirey, 1964, p.9. 116 Cf. FRANZ WIEACKER -Storia del Diritto Privato Moderno con particofatv riguardo alia Germania, volume secondo, traduzione italiana di Umberto Santarelli (§§ 1-19, tomo 1) e Sandro - A Fusco (§ 20-fine, tomo II), Mi/ano: Giuffrè Editore, 1976, p.145. 117 Em seu desenvolvimento, no século passado, a partir da clássica obra de WINDSCHEID o direito subjetivo foi concebido como faculdade jurídica abstrata, uma facultas agendi que o titular usava sem prestar contas a Do campo do Direito Privado o conceito ganhou o do Direito Público, e nessa passagem foi fundamental a contribuição da obra clássica de JELLINEK - System der Subjektiven Offentlichen Rechte, de 1892. O transporte se deu com a mesma conotação do vínculo normativo entre sujeitos e da exigibilidade da prestação: o particular, no pólo ativo da relação jurídica, podendo exigir do Estado, no pólo passivo da relação jurídica, uma determinada prestação. 5.4. AS DIFICULDADES NA APLICAÇÃO DO MODELO CLÁSSICO DE RELAÇÃO JURÍDICA E DO CLÁSSICO CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO A teoria da relação jurídica em breve se revelou insuficiente para responder às situações jurídicas que, à evidência, não correspondiam a vínculos entre sujeitos. O problema do direito de propriedade recebeu novas formulações, mas o pátrio poder, a nacionalidade, o direito à honra e, genericamente, o que mais tarde se denominaria direitos personalíssimos ficavam sem respostas adequadas pelo vinculum iuris. LÉON DUGUIT demonstra que a noção que está na base do ninguém, ou como poder garantido porque dotado de exigibilidade. Devese, ainda, a WINDSCHEID, a base da classificação dos direitos subjetivos: absolutos, seriam os direitos que existem contra todos; relativos, os que existem contra uma pessoa ou um número determinado de pessoas. Quanto aos direitos subjetivos relativos, a doutrina não encontrou qualquer ponto para colocar em dúvida o vínculo jurídico que, nos direitos obrigacionais, ligava dois sujeitos (ou mesmo uma pluralidade de pessoas, porque as relações jurídicas, bilaterais ou plurilaterais, se caracterizam pela bipolaridade das situações dos sujeitos). Mas a respeito dos direitos subjetivos absolutos, a construção foi acidentada, havendo teses que sustentavam a relação jurídica imediata do sujeito com a coisa; propostas de substituição dos conceitos tradicionais e adoção de uma nova definição dos direitos reais como direitos correlatos de uma obrigação passivamente universal; negação da existência de uma obrigação, no sentido específico do termo, nesse tipo de relação. conceito de relação jurídica é a da autonomia da vontade, q u e constitui o fundamento de todo o sistema individualista do século passado, da noção de contrato à noção de liberdade 118 , extraindo do Código Civil francês os postulados que sustentam suas conclusões. As conseqüências decorrentes do princípio da autonomia da vontade, conforme discorre, levou ao dogma da doutrina do século passado, com heranças no vinculum juris dos romanos, que não permitiu que o Direito fosse concebido senão como uma relação entre sujeitos, dos quais um deve uma prestação negativa ou positiva que o outro pode exigir 119 . Das dificuldades que a doutrina encontrou para sustentar essa tese, perante situações que exigem proteção em razão de seu fim social e que devem ser garantidas pelo Direito, mesmo sem a existência de qualquer relação entre as pessoas, fala DUGUIT, ressaltando as concepções de MICHOUD, sobre a irrealidade das noções de Direito objetivo e direito subjetivo, e sua indispensabilidade para a ciência do Direito; de PLANIOL, sobre a excepcional situação dos direitos reais e, por fim, a jurisprudência administrativa e judicial que se formou em França, permitindo a criação de fundações de Direito privado, através 118 DUGUIT contesta a doutrina que denomina individualista e que funda toda norma na autonomia da pessoa humana. Nega, expressamente, essa auto nomia, que, se existe, conforme diz, é um simples fato, e fatos não fundam normas. Em lugar da autonomia, propõe, sob a inspiração de DURKHEIM (La Division du Travail Social, 1891), o princípio da solidariedade social como fundante da norma social. Essa será moral, econômica ou jurídica, pelo grau de reação produzida, no interior do grupo social, à sua violação Toda regra social torna-se norma jurídica quando penetra na consciência da massa de indivíduos, componentes de determinado grupo social, a noção de que o grupo pode intervir, ou o próprio grupo ou aqueles que detêm a força mais concentrada dentro dele, para reprimir a violação daquela regra. Cf. LÉON DUGUIT -Traité de Droit Constitutionnel, Paris Ancíenne Librairie Fontemoing & Cie, Éditeurs, 1927, v.l, pp. 65/116. 119 Cf. LÉON DUGUIT - Las Transformaciones del Derecho (Público y Priva do), trad. Las Transformaciones del Derecbo Público, por Adolfo G. Posa da y Ramónjaén, Las Transformaciones del Derecho Privado, por Carlos G. Posada, Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., 1975, p. 216. de testamento, contra as concepções dos civilistas e da própria disposição do Código de Napoleão, que no art. 906, § 2º, exigia, para a validade da disposição testamentária, que o beneficiário fosse ao menos concebido antes da morte do testador. O início dessa construção jurisprudencial se deu pelo célebre caso do reconhecimento, pelos Tribunais franceses, da validade do ato que culminaria na criação da Academia Goncourt, o testamento deixado pelo escritor Edmond Goncourt (1822-1896), que, representando também a vontade de seu irmão, o escritor Jules Goncourt (1830-1870), dispunha que todos os seus bens deveriam ser vendidos para a criação de uma sociedade literária que teria renda e a obrigação de premiar, a cada ano, uma obra da literatura. Os argumentos utilizados, quando os herdeiros dos irmãos Goncourt pretenderam invalidar o ato, a polêmica criada em torno da impossibilidade de existência de direitos sem sujeitos, e os fundamentos dos arestos são amplamente relatados por DUGUIT, para demonstrar como se realizou uma profunda transformação nas concepções jurídicas, ao se admitir a possibilidade de que o sistema jurídico proteja e garanta certas situações, em razão de sua finalidade social, e sem que haja relação entre sujeitos 120 . O conceito de relação jurídica, com suas conotações individualistas e seu precário alcance, é rejeitado por DUGUIT de modo absoluto, tanto pela sua fundamentação quanto pela sua estreiteza, que o torna inaplicável aos atos jurídicos que se projetam fora das figuras criadas pela autonomia da vontade. Em vários capítulos da obra aqui referida, (Las Transformaciones...) cita, como exemplo, o "contrato" de adesão, o "contrato" coletivo de trabalho, e outras figuras, a que a doutrina, mais tarde, acrescentaria, com muita facilidade, prazos, capacidade, e tantas outras. 120 Cf. DUGUIT -Las Transformaciones... cit., pp. 216/220. 5.5. AS REAÇÕES DA DOUTRINA E A FORMULAÇÃO DE NOVAS PROPOSTAS As reações que surgiram no campo doutrinário, inspiradas em questões teóricas e questões de ordem prática, discutidas nos Tribunais, que, como se mostrou, desafiavam soluções, foram direcionadas para um ponto: a superação do conceito de relação jurídica. Os fundamentos, entretanto, em que se assentaram as propostas, se diversificaram, e doutrinas que partiram de bases diferentes chegaram também a conclusões diferentes. Quando se compara a doutrina de KELSEN com as de BONNECASE, DUGUIT, JÈZE e ROUBIER percebe-se que em comum só tiveram um ponto essencial: a rejeição do conceito de relação jurídica. 5.6. A NEGAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA PELA SUA REDUÇÃO A UMA CONEXÃO DE NORMAS E A CORRELATA NEGAÇÃO DO DIREITO SUBJETIVO Em sentido diametralmente oposto ao adotado pelas doutrinas tradicionais, KELSEN analisa o conceito de relação jurídica e os possíveis empregos da expressão, para demonstrar que, em todas as hipóteses em que se poderia falar em relação jurídica, o que existe não é uma conexão de vontades, um vínculo entre sujeitos, mas uma conexão de normas que determinam a conduta dos indivíduos. Começando pela análise da concepção tradicional, KELSEN afirma que: "Dizer que dever e direito se correspondem significa que o direito é um reflexo do dever, que existe uma relação entre dois indivíduos dos quais um é obrigado a uma determinada conduta em face do outro" 121 . Desse ponto de partida, mostra a estreiteza da concepção 121 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, 5ª ed., trad. de João Baptista Machado, Coimbra.- Arménio Amado - Editor Sucessor, 1979, p. 231. tradicional, porquanto há "relações jurídicas", isto é, determinadas pela norma, não só entre dois indivíduos mas entre o indivíduo que tem competência para criar normas gerais e os que têm competência para aplicá-las, entre indivíduos que têm competência para imposição de atos coativos e indivíduos contra os quais esses atos se dirigem. Essa extensão da relação jurídica não significa, entretanto, outra coisa que a relação entre sujeitos de deveres. A relação entre o sujeito do dever de criar ou aplicar a norma e o sujeito de direitos estabelecidos por essa norma é duplamente reflexa, pois esses direitos não são reflexos imediatos do dever do órgão aos quais incumbe a criação ou a aplicação da norma, mas dos próprios deveres estatuídos por essa mesma norma. Por outro lado, afirma, não há qualquer posição de supraordenação ou de infra-ordenação entre esses sujeitos, pois os órgãos, a quem incumbe criar ou aplicar a norma, somente podem atuar no exercício de um poder jurídico, ou seja, estão subordinados à norma que lhes confere poder ou competência para o exercício da função. Assim, não são esses órgãos que estatuem os direitos conferidos ou os deveres impostos mas, sim, a própria norma que lhes adjudicou tal competência. Não há, verdadeiramente, relação entre sujeitos, mas apenas relações entre normas, e entre as condutas que são por elas reguladas, formando o seu conteúdo. Prosseguindo em sua análise, examina uma outra possibilidade de "relação jurídica" entre a conduta de dois indivíduos: "Quando a ordem jurídica confere ao indivíduo, em face do qual um outro está obrigado a conduzir-se de determinada maneira, o poder jurídico de, através de uma ação, iniciar um processo que conduza à norma individual, a estabelecer pelo tribunal, pela qual é ordenada a sanção prevista pela norma geral e a dirigir contra o indivíduo que se conduz contrariamente ao dever" 122 . 122 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234. A "relação jurídica" entre o indivíduo dotado do poder jurídico e o indivíduo obrigado não é, entretanto, "outra coisa senão a conexão ou relação entre a conduta que consiste no exercício deste poder jurídico, a ação, e a conduta contra a qual a sanção é dirigida, o delito; isto é, a conexão entre dois fatos determinados pela ordem jurídica como pressupostos para sanção" 123 . A distinção da teoria tradicional que via na relação entre o Estado, representado pelo tribunal, e o réu, uma relação de supra-ordenação e de subordinação é, segundo diz, a mesma que existe entre o autor e o réu, pois o poder de instaurar a ação, ou "o poder jurídico do titular do direito de ação consiste na sua competência para intervir na produção da norma individual que ordena a sanção a dirigir contra o indivíduo q u e se conduz contrariamente ao dever" 124 . Assim, a relação de supra-ordenação e infra-ordenação "nada mais é senão a supra-ordenação e infra-ordenação que existe entre a ordem jurídica e os indivíduos cuja conduta ela regula", ou seja, o fato de que a conduta desses indivíduos forma o conteúdo das normas da ordem jurídica, e a autoridade que se representou foi apenas a autoridade da ordem jurídica, que obriga e confere poderes 125 . A terceira possibilidade de uma "relação jurídica" se dá "quando a obrigação de um indivíduo em face do outro está numa interconexâo determinada pela ordem jurídica, com a obrigação deste outro, em face do primeiro" 126 . KELSEN exemplifica com o contrato de compra e venda em que a obrigação de prestar a coisa está em conexão com a obrigação de pagar o preço. Essa relação jurídica nada mais é do que a conexão entre 123 Cf. KELSEN, op. cit., p. 234. 124 Cf. KELSEN, op. cie, p. 234. 125 Cf. KELSEN, op. cit., p. 235. 126 Cf. KELSEN, op. cit., p. 235. normas que prescrevem a conduta do vendedor e do comprador. Por última hipótese de "relação jurídica", KELSEN toma a relação da vida, em crítica à teoria de VON JHERING, do direito subjetivo como interesse juridicamente protegido. Como o direito subjetivo não é o interesse protegido, mas a própria proteção, que consiste nas normas, também toda e qualquer relação da vida não é extrinsecamente regulada, mas toma forma no direito, através da norma. E nada mais é, então, do que um instituto jurídico, um complexo de deveres jurídicos e de direitos subjetivos, "no sentido técnico do termo", ou seja, como KELSEN repete à exaustão, o reflexo daqueles deveres. Sob qualquer ângulo, nessa perspectiva normativista, a relação jurídica será sempre negada e seu conceito substituído por uma conexão de normas jurídicas, enquanto conexão de condutas reguladas pelas normas. Em correlaçãocom a negação da relação jurídica, KELSEN rejeita a concepção tradicional de direito subjetivo. De início, demonstra que não há base para a distinção tradicional entre direito subjetivo absoluto e direito subjetivo relativo, pois ambos se unificam no mesmo conceito, sendo que "um jus in rem é também um jus in personam", podendo se considerar, em tal distinção, apenas uma relação primária entre sujeitos, e secundariamente, a conduta do sujeito em relação à coisa 127 . A partir da unificação dos conceitos demonstra a precariedade das construções tradicionais e, na linha de sua concepção de direito centrada no ilícito, em que a norma é vista sob o aspecto coativo, uma vez reduzido o conceito de direito subjetivo à unidade conceitual, KELSEN lhe retira a substância, concebendo-o como um "reflexo do dever jurídico". 127 Cf. KELSEN, op. cit., pp. 190/193. 5.7. A TEORIA DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS Em bases diferentes da adotada por KELSEN, mas destinando-se, também, à superação do conceito de relação jurídica, desenvolveu-se a teoria das situações jurídicas. Ela não excluirá a faculdade, ou o dever do campo do Direito, que não é concebido apenas como um instrumento coativo, mas não aceitará, também, a clássica concepção de relação jurídica como vínculo entre sujeitos, e do direito subjetivo como poder sobre a conduta de outrem. Como toda construção doutrinária, passou ela pela fase polêmica de elaboração, desde a tese de JULIEN BONNECASE128, que dividia as situações jurídicas em concretas e abstratas, para nessas incluir os direitos de liberdade, de personalidade, enquanto faculdades jurídicas abstratas, até a de PAUL ROUBIER, que demonstrou que situações jurídicas não nascem automaticamente da lei, e que ofereceu a contribuição definitiva para o tratamento teórico do tema. ROUBIER rejeitou a proposta de BONNECASE, entendendo que não era possível falar-se em situações jurídicas abstratas, que são apenas complexos normativos. Somente o ato jurídico é susceptível de criar a situação jurídica. As fontes genéticas do Direito criam as normas, e estas definem os atos que dão nascimento às situações legais, mas não são em si mesmas essas situações. 128 "La situation Juridique concrète - definiu BONNECASE - qui absorbe la notion de rapport de droit concret est, par opposition à la situation juridique abstraite, une manière d'étre dêrivéépour unepersonne déterminée d'un acte juridique ou d'un fait juridique qui a fait jouer à son profit ou à son encontre les règles d'une institution juridique et lui a du coup confere effectivement les avantages et les obligations inhérents aux fonctionnement de cette institution. Autrement dit, tandis que la situation juridique abstraite est simple manière d'être tbéorique, une vocation, pourraiton dire, à bénéflcier éventuellement d'une institution, la situation juridique concrète est une réalité positive". JULIEN BONNECASE -Introduction à 1'Étude du Droit, Paris: Sirey, 2- ed. 1931, pp. 105/106. Na doutrina francesa, ROUBIER destaca duas grandes contribuições para o desenvolvimento da teoria das situações jurídicas, vindas do campo do Direito Público: a de LEON DUGUIT e a de GASTON JÈZE. DUGUIT, no clássico Traité de Droit Constitutionnel, rejeitando a teoria da relação jurídica, como uma construção do individualismo do século passado, e a concepção clássica de direito subjetivo, que via como mera metafísica, dividiu as situações jurídicas em legais ou objetivas, que derivariam diretamente da lei, e individuais ou subjetivas, que resultariam de manifestações individuais de vontade 129 . GASTON JÈZE, cuja doutrina se formou na mesma linha, indicou as diferenças entre a situação subjetiva ou individual e a situação objetiva ou legal. A situação jurídica subjetiva ou individual, em sua concepção, é particular e temporária, sendo fixada a partir de um ato de declaração individual de vontade, como, por exemplo, a aquisição de um bem, de que pode derivar a situação de adquirente ou de legatário; a situação jurídica legal é geral e permanente, sendo fixada para todos, da mesma maneira, como por exemplo a situação do proprietário ou dos cônjuges 130 . PAUL ROUBIER131, apontando as dificuldades apresentadas por essa divisão quando confrontada com a questão da irretroatividade das leis. demonstrou que as situações jurídicas, cujo número é infinito, cabendo a cada ramo do direito determiná-las e definir seus efeitos, têm um ciclo de desenvolvimento que se cumpre em três momentos: o da constituição, o da produção dos efeitos e o da extinção. No que concerne ao momento da 129 Cf. DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, Paris, 1927, vol.I, pp. 200/307. Cf. também Las Transformaciones... cit. 130 Cf. Os trabalhos de JÈZE, Les Príncipes Généraux du Droit Administratif, 2 a ed., 1914, e numerosos artigos publicados na Revue du Droit Administratif, de 1913 a 1924, são amplamente citados por ROUBIER, em sua clássica obra Les Conflits des Lois dans le Temps - tome Premiei; Paris: Libraire du Recueil, Sirey, 1929, p 3 4 6 e s. 131 PAUL ROUBIER - Théorie Générale du Droit, Paris: Sirey, 1946. constituição, ou da extinção, a questão a ser resolvida, conforme diz incumbe ao legislador. Este se coloca diante de simples fatos que podem ser, indiferentemente, naturais ou humanos. A lei discriminará entre esses fatos e atos aqueles que são susceptíveis de produzir a constituição ou a extinção da situação jurídica e os que são vistos como incapazes para engendrá-la 132 . Em relação à produção dos efeitos, o interesse de ROUBIER se concentra em estudá-los enquanto referidos à possibilidade ou à impossibilidade de serem alcançados pela nova lei, pois a sua investigação é dirigida ao problema da irretroatividade das leis. Das quatro categorias de situações jurídicas especiais estudadas por ROUBIER133, é oportuno recordar que as situações jurídicas concorrentes têm um caráter duplo, no sentido de que interessam simultaneamente a duas pessoas, como o crédito que interessa ao mesmo tempo ao devedor e ao credor, a prescrição que terá efeito simultâneo sobre o patrimônio daquele a quem beneficia e daquele contra quem opera. E, ainda, convém relembrar que as situações jurídicas dependentes surgem como conseqüência de uma outra situação jurídica, de tal modo que a lei que governa sua constituição pode ser vista como governando os efeitos desta que a gerou. Assim o direito ao nome, a obrigação alimentar são, como exemplifica ROUBIER, conseqüências de certas situações de estado, como casamento, parentesco; como a constituição de uma tutela é conseqüência da situação jurídica da menoridade. A superioridade da categoria da situação jurídica sobre a da relação jurídica, para o tratamento dos temas do Direito, é demonstrada por ROUBIER em razão de sua amplitude. Todas as leis são feitas para determinar certo número de situações jurídicas que podem ser unilaterais ou oponíveis a todas as pessoas, 132 Cf. PAUL ROUBIER -Les Conflits des Lois dans le Temps, cit., tomepremier, pp. 346/381. 133 As permanentes, as concorrentes, as dependentes e as retroativas, Cf. ROUBIER, op. cit., p.406 e s. que podem ser constituídas pela ocorrência de um fato, ou de um ato ou de uma pluralidade de fatos e atos, e que não poderiam ser explicadas pela categoria da relação jurídica porque não decorrem de vínculo entre sujeitos. Em todas as propostas, a teoria das situações jurídicas se estruturou não como vínculo jurídico entre dois sujeitos, com o poder de exigibilidade de um sobre a conduta do outro. A situação jurídica forma-se por fato jurídico ou ato jurídico, produzido segundo a lei que governa a sua constituição. E, uma vez constituída, é ela o complexo de direitos e deveres de uma pessoa, direitos e deveres que não se confinam mais no plano abstrato e genérico da norma, mas que se realizam na situação de um determinado sujeito. Assim, na situação jurídica de advogado, nascem para uma pessoa direitos e deveres, que não são os mesmos de uma pessoa que se encontra na situação de comerciante ou de empregado. Nas situações jurídicas concorrentes, pode-se qualificar o status ou a posição jurídica de que um determinado sujeito é titular. Em uma situação jurídica de parentesco, por exemplo, perante a lei, pode-se falar na posição jurídica do filho, com seu complexo de direitos e deveres, e na posição jurídica do pai, igualmente com seu complexo de direitos e deveres, como se pode falar na situação jurídica do serviço público, na posição jurídica da Administração Pública, com seu complexo de direitos e deveres, e na posição jurídica do servidor público, igualmente com seu complexo de direitos e deveres. Os exemplos seriam infinitos como infinitas são as possibilidades que nascem das normas, que se criam para organizar a vida social e regular a conduta, tanto quando definem a competência para a prática de atos, como quando valoram os atos como lícitos ou ilícitos. Pode-se lembra, aqui, que a doutrina das situações jurídicas não encontrou terreno fértil no Brasil, pelo tempo e pela forma em que foi aqui introduzida. A tentativa de sua aplicação não teve grande sucesso, quando o Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setem- bio de 1942, alterou a Lei de Introdução ao Código Civil e substituiu, no art. 6º, a doutrina dos direitos adquiridos, construídos sobre a concepção de direito subjetivo, pela das situações jurídicas 134 . Era a tese de PAUL ROUBIER, adotada na reforma do Código Civil francês. No Brasil, as situações jurídicas penetraram no Direito sob a vigência da Constituição de 1937, que abolira a proteção especial que, no plano da norma constitucional, era conferida ao direito adquirido perante os efeitos da lei nova. Sem essa proteção, a situação jurídica esteve na letra da Lei de Introdução ao Código Civil até 1957, mas na letra apenas, porque a Constituição de 1946, em seu art. 141, § 3º, reintroduziu a garantia do direito adquirido no sistema brasileiro e, confrontado com o preceito constitucional, o artigo da Lei de Introdução ao Código Civil não poderia subsistir no sistema. Os juristas brasileiros nunca deixaram de trabalhar com o conceito de direito adquirido, mesmo quando o Direito brasileiro o substituiu pelo critério da situação jurídica 135 e, depois que a Constituição de 1946 o recuperou, seu retorno na lei infraconstitucional se deu com a alteração da Lei de Introdução ao Código Civil de 1957 136 . 134 O texto era o seguinte: "A lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito". 135 Cf. VICENTE RÁO - O Direito e a Vida dos Direitos, 2ª ed., São Paulo: Ed. Resenha Universitária, 1976, v.I, Tomo III, p.370. 136 Observe-se que a resistência da doutrina brasileira às inovações da época do Estado Novo manifestou-se, também, em outros campos. Assim, em relação ao Anteprojeto de Código de Obrigações, conforme análise de JOÃO BAPTISTA VILLELA: "A circunstância de que o Anteprojeto se tenha produzido em tempo de restrição às liberdades públicas terá concorrido, possivelmente, para uma certa indisposição que se formou a seu respeito e para que sobre ele se cerrasse cômoda, porém imerecida cortina de silêncio, após a reconstitucionalização do País, em 1946." Cf. Introdução in Anteprojeto de Código de Obrigações, Arquivo do Ministério da Justiça. Ano 41 - n 2 174, Outubro/Dezembro 1988, p . l l . 5.8. DIREITOS SUBJETIVOS E SITUAÇÃO JURÍDICA A teoria das situações jurídicas nasceu para superar a doutrina da relação jurídica e para fornecer um critério "mais objetivo" 137 para se falar em direitos, não em "direitos objetivos", no direito como norma, mas em direitos constituídos para um determinado sujeito, que assume sua titularidade. A expressão direito subjetivo, entretanto, é, pela tradição, muito forte, e as tentativas de substituí-la por outras não tiveram grandes êxitos na doutrina 138 . Contudo, é conveniente assinalar que a teoria das situações jurídicas não pretendeu eliminar a noção do direito que decorre da norma para um determinado titular. Pretendeu, sim, assentálo em outras bases, defini-lo em outros termos, porque a reflexão jurídica demonstrou que o direito qualificado de subjetivo, ou com qualquer terminologia alternativa, poderia ser visto como uma faculdade ou como um poder de agir, mas não poderia ser concebido como um "poder sobre a conduta alheia" 139 . 137 Esse critério "mais objetivo", assim qualificado por BONNECASE e por ROUBIER, tem sido utilizado, amplamente, pela doutrina, que já denomina a linha desses autores de "objetivista", quando fazem o levantamento das teorias sobre a irretroatividade da lei. Nesse sentido, v. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA - Instituições de Direito Civil, (Edição Universitária), vol. I, 2 a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, p.108 e s. 138 Cf. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral do Direito, Belo Horizonte, Editora Vega, 1976, pp. 258/259139 Cabe aqui uma observação sobre as concepções de "poder" desenvolvidas no campo da Ciência Política, como relação que envolve a possibilidade de se "provocar intencionalmente o comportamento de outrem, ou de se exercer influência" sobre a conduta alheia, ou mesmo a mais ampla "possibilidade de agir e de provocar efeitos", registradas por MARIO STOPPINO no verbete Poder, do Dicionário de Política, de NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, trad. de João Ferreira e outros, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2- ed., 1986. Na teoria da relação jurídica e no conceito clássico de direito subjetivo, o poder já é aquele acolhido pela norma jurídica, já não é fenômeno psicológico ou sociológico, mas jurídico. 5.9.0 PROBLEMA DO DIREITO SUBJETIVO COMO PODER DE EXIGIR A CONDUTA DE OUTREM Negando que pudesse haver um direito sobre a conduta de outrem, a doutrina se dividiu, na negação de todo direito decorrente da norma e na busca de novas bases para se falar em um direito decorrente da norma. De qualquer modo, teve necessidade de estruturar um novo quadro para superar o antigo conceito de relação jurídica, formada por um vínculo entre sujeitos, em que se fazia presente o direito de um sujeito ativo exigir de um sujeito passivo uma conduta, ou uma prestação, o que significa o mesmo, e essa necessidade resultou nas tendências já discutidas. Entretanto, talvez nenhuma construção haja mostrado tão profundamente, com tanta clareza, o que significava essa tentativa de superação, que nasceu e cresceu em diversas direções, do que a interrogação de GOETHE, lembrada por RADBRUCH quando examinou os fundamentos da pena de morte 1 4 0 . "Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben?" A pergunta perplexa de Margarida, no Fausto141, é a mesma que se põe sobre o vínculo da relação jurídica, que liga sujeito ativo e sujeito passivo: Que ser humano possui poder sobre a conduta de outro ser humano? Que pessoa tem poder sobre o ato de pessoa? Que vínculo pode conferir a um ente que o Direito reconhece como livre, tratando-o como sujeito de direitos e deveres, ao lhe reconhecer a personalidade, poder sobre outro ente igualmente livre, porque também dotado de persona140 Cf. RADBRUCH - Filosofia do Direito, trad. do Professor L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, VoL.II, pp. 99/108. 141 Cf. GOETHE - Fausto, Trad. de Jenny Klabin SegaU, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981. O verso original: Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben? Literalmente: "Quem deu a ti, Carrasco, esse poder sobre mim?" foi traduzido: "Carrasco, quem te deu, nas trevas,/Sobre mim tal poder?", p.198. lidade, que o torna igualmente sujeito de seus atos, agente e não instrumento do querer de outrem? Que tratamento é esse que se dá à vontade, a ponto de se torná-la soberana e dominante sobre uma outra vontade, subjugada e dominada? Que pacto pode tornar a vontade, que se constitui na consciente determinação para o agir, senhora de outra vontade? A substituição do termo vontade pelo termo interesse, pelo pertença-domínio, por qualquer outro termo, não resolvia a questão, porque o seu ponto de estrangulamento não estava em se saber o que o Direito protegia para conferir tamanho poder a um ser humano sobre outro ser humano, ou a uma pessoa, de direito privado ou de direito público, sobre outra pessoa de qualquer das categorias. Direito de exigir a conduta alheia., jus in rem, que é também um jus in personam, direito de obrigar alguém à prática de um ato, direito de exigir de outrem uma prestação, exigibilidade sobre a conduta de outrem... Não é de causar admiração que a doutrina jurídica reagisse, como podia, e nos limites em que podia. A doutrina contemporânea reconhece que o único ato imperativo que pode incidir sobre a universalidade de direitos de uma pessoa é o ato imperativo do Estado, proferido segundo um procedimento regulado pelo Direito, que disciplina o próprio exercício do poder, manifeste-se ele no cumprimento de qualquer das funções do Estado, legislativa, administrativa ou jurisdicional. Sublinhe-se que esse reconhecimento não tem como conseqüência a negação de direitos, que existem no plano da norma jurídica material, ou substancial, direitos que dela decorrem e se manifestam, se realizam nas situações jurídicas. É a força imperativa de uma vontade particular sobre o ato de outrem que se contesta. É por isso que a função jurisdicional é dita substitutiva. Por ela, a atividade do Estado se substitui à atividade do particular, quando um direito deve ser garantido, ou quando sua própria existência, perante o ato de outrem (ação ou omissão), deve ser apreciada e declarada. A atividade do Estado se substitui à do particular quando um dever deve ser coativamente exigido e uma medida reparatória deve ser aplicada. O ato imperativo do Estado o provimento, pode reparar direitos lesados, mas nenhum particular tem poder para, através do predomínio de sua vontade vincular outro sujeito. Só ao ordenamento jurídico se pode reconhecer a força para atos de império, só pelos procedimentos, por ele definidos e regulados, tais atos podem ser admitidos. Mesmo quando se pensa na hipótese da legítima defesa, torna-se evidente, no Direito contemporâneo, que é toda submetida a um quadro disciplinado pela lei, que a define, estabelece seus limites e as condições em que ela é permitida. O despertar da doutrina jurídica para a fragilidade do conceito de relação jurídica, como vínculo entre sujeitos, vínculo de exigibilidade, não teve como conseqüência necessária, como se viu, a destruição da concepção de direitos decorrentes da norma, mas a modificação de seus fundamentos e a sua visualização sob um novo prisma. O direito que decorre da norma passou a ser visto não mais como um poder sobre outrem, mas uma posição de vantagem de um sujeito "em relação a um bem", posição que não se funda em relação de vontades dominantes e vontades subjugadas, mas na existência de uma situação jurídica, em que se pode considerar a posição subjetiva, a posição do sujeito em relação à norma que a disciplina. Já foi explicitado que a teoria da situação jurídica evoluiu de sua consideração como complexo de normas para uma situação constituída por fatos e atos que a lei reconhece como idôneos para sua formação. O "direito subjetivo", ou qualquer outra denominação que se dê ao direito que decorre da norma, direito renovado em seus fundamentos sob a concepção de uma posição jurídica de vantagem do sujeito em relação a um bem, surge, não do nada, evidentemente, mas quando é produzido um fato jurídico (genericamente considerado) que cria as condições para seu nascimento. Assim, o próprio tempo que, como dizia RADBRUCH, não interessa ao direito pelas voltas que a Terra dá em torno de si mesma ou em torno do Sol, mas pela significação jurídica que lhe é conferida, pode ser o fato legalmente previsto como idôneo para o nascimento de todo um complexo de direitos, nas situações jurídicas de diversas categorias, como idôneo para produzir direitos pode ser o fato humano. A eleição desses fatos é do Estado, através da função legislativa. Nessa perspectiva, pode-se falar nos direitos que, configurando-se como uma posição de vantagem do sujeito em relação a um bem, manifestam-se na situação jurídica, como se pode falar na posição jurídica subjetiva que se qualifica como um dever, ou seja, como uma conduta que, perante a norma, deve ser observada. Se se quiser manter a clássica terminologia dos direitos "subjetivos", sobre o novo fundamento, são eles posições jurídicas do sujeito, de vantagem em relação a um bem. Essas posições jurídicas não se formam do nada, mas são posições derivadas da situação jurídica, que também não se forma do nada, mas do ato (ou fato) a que a lei confere força para tanto. São, portanto, posições apreendidas quando se confronta o ato do sujeito com a qualificação que a norma lhe confere, como poder ou faculdade. Como se disse, quando se fala em dever e na posição subjetiva a ele concernente, não se está referindo a uma conduta subjugada a ou trem, mas a uma conduta que deve ser observa, porque qualificada, pelos cânones normativos, como devida. A classificação das posições jurídicas de vantagem de um sujeito em relação a um bem, segundo as possibilidades de sua manifestação, teoricamente consideradas, pode ser feita, porque o direito que decorre da situação jurídica é sempre uma faculdade ou um poder. O dever que dela decorre não traz grandes problemas de classificação, pois todo dever significa observância de uma conduta estabelecida pela norma, segundo a valoração dos atos pelo ordenamento jurídico. Sob o selo da licitude, a posição subjetiva de vantagem do sujeito em relação a um bem deixará de ser uma mera faculdade abstrata, pela realização de uma faculdade que a norma assegura ao sujeito, ou por um poder que a norma lhe confere, ou pela conjugação das faculdades ou dos poderes com os deveres que a norma atribui a outrem ou à generalidade das demais pessoas. FAZZALARI faz, em relação ao ordenamento jurídico italiano, o levantamento das possibilidades de manifestação, nas situações jurídicas de direito substancial (ou de direito material), do chamado "direito subjetivo", ou seja, da posição de vantagem de um sujeito em relação a um bem. Seu quadro é perfeitamente aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro, e dele se podem obter as seguintes hipóteses: 1. o direito realizado por uma faculdade do titular; 2. o direito realizado por um poder do titular (que corresponde, em termos, ao chamado direito potestativo, mas sem a clássica conotação de poder sobre a conduta de outrem, como, por exemplo, a renúncia a um direito, a confissão judicial); 3. o direito realizado pela obrigação de outro (que corresponde, em termos, ao "direito de crédito", sem a conotação do "vínculo" da relação jurídica); 4. o direito realizado pela faculdade do titular e pelos deveres de todos os demais (que corresponde, em termos, ao "direito absoluto" de propriedade); 5. o direito realizado somente pelo dever de todos (nesse critério estão os direitos da personalidade e os direitos reais em que falta a faculdade, como a servidão negativa) 142 . Não é demais insistir em que faculdades e poderes não significam faculdades e poderes de um titular de direitos sobre atos de outras pessoas, mas são prerrogativas que derivam da norma e que qualificam o ato do próprio agente em relação à sua própria conduta. Uma faculdade é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem e realiza-se pelo simples ato (conduta) sem necessidade de prévias declarações de vontade, sendo que esta constitui a consciente determinação para o ato. Na faculdade essa determinação não necessita ser explicitada, manifesta-se naturalmente na conduta. Um poder que decorre da 142 Cf. ELIO FAZZALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, Quinta Edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antônio Milani, 1989, P- 264. norma é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem, que se realiza pela declaração da vontade do agente, ou seja, quando é condição do ato a manifestação, a exteriorização da consciente determinação que o produziu 143 . 143 Alarga-se, hoje, o quadro, e aprofunda-se a importância dos direitos individuais, sociais, políticos, culturais e econômicos. Mas a antiga divisão dos direitos subjetivos em absolutos e relativos, privados e públicos, ainda tem sido resolvida pelo critério da oponibilidade do direito ao "sujeito passivo" da "relação jurídica", e continua a basear-se na nota essencial que acompanhou o conceito do vínculo entre sujeitos e da exigibilidade da conduta de outrem. Nessa postura, alguns problemas emergentes do Direito positivo contemporâneo continuam sem solução adequada. Assim, na classificação dos direitos subjetivos, entre os relativos, no campo do Direito Privado, foram recolhidos os obrigacionais e, no campo do Direito Público, o direito de ação, o direito de petição e os direitos políticos, entre os direitos subjetivos absolutos, no campo do Direito Privado foram postos os direitos reais e os direitos personalíssimos, e, no campo do Direito Público, a liberdade jurídica, com os seus desdobramentos em vários direitos de liberdade (as liberdades de pensamento, de circulação, de religião, de associação, de comunicação, dentre outras). O antigo problema do direito absoluto foi resolvido pela sua oponibilidade erga omnes, o que significava o poder do titular sobre a conduta de todos os demais membros da coletividade. Essa concepção, vinda do esquema da relação jurídica, que parecia válida para o direito de propriedade, instituto dotado de uma ampla prescrição normativa protetora, que impede e veda a perturbação dos direitos do proprietário, dirigindo deveres a terceiros, volta a suscitar um antigo problema, quando se trata de outros direitos, que não são dotados de igual proteção, pela indicação dos deveres dos demais feita pela lei. O problema aparece quando uma faculdade normativamente conferida não encontra, também na norma, os correlatos deveres. A resposta da doutrina, presa à relação jurídica, só poderia ser o recurso à mera faculdade jurídica abstrata, sem possibilidade de concretização como direito, a não ser no momento em que é turbada. A solução não é coerente, pois se um direito é objeto da proteção legal, isso significa que sua existência precede à violação, e a própria violação só poderia incidir sobre direito existente. A discussão desse tema envolveu, sob outro prisma, a interessantíssima e atualíssima questão do direito de liberdade, quando definido pelo aspecto negativo, que se exprime pelo brocardo "tudo que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido". A permissão, no sentido negativo, conforme já explicitara KELSEN (Cf. Teoria Pura do Direito, op. cit., pp. 35/37, e Teoria Geral de Normas, trad. de José Florentino Duarte, Porto Alegre, Fabris, 1986, pp. 123/125) significa somente que nenhuma norma tem tal conduta por objeto, o que resultaria no total 5.10. A QUESTÃO DA CONCEPÇÃO DO PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA O problema que se coloca ao se considerar o processo como uma relação jurídica é o problema da própria relação jurídica. A se admitir o processo como relação jurídica, na acepção tradicional do termo, ter-se-ia que admitir, conseqüentemente, que ele é um vínculo constituído entre sujeitos em que um p o d e exigir do outro uma determinada prestação, ou seja, uma conduta determinada. Seria o mesmo que se conceber que há direito de um dos sujeitos processuais sobre a conduta do outro, que perante o primeiro é obrigado, na condição de sujeito passivo, a uma determinada prestação, ou que há direitos das partes sobre a conduta do juiz, que, então, compareceria como sujeito passivo de prestações, ou, ainda, que há direitos do juiz sobre a conduta das partes, que, então, seriam os sujeitos passivos da prestação. A doutrina processual utilizando a figura da relação jurídica desamparo jurídico do titular daquela liberdade, definida pelo negativo, pois não há como se torná-la eficaz. Para exemplificar com a atualidade do tema no Brasil, basta a lembrança dos direitos e das liberdades públicas que decorrem da liberdade jurídica, que ficavam sem proteção até que, pela Constituição da República de 05 de outubro de 1988, foi instituída a garantia do Mandado de Injunção, que veio como um instrumento para a criação de instrumento, da proteção jurídica; um instrumento que cria instrumento, que faz lembrar a expressão de BERGSON sobre a técnica: des outils qui font des outils. Mas o Mandado de Injunção tem endereço certo quanto aos direitos cuja eficácia visa a garantir. Há direitos, além daqueles que podem constituir objeto de provocação da proteção, que dependem de regulamentação e cuja eficácia não se tornou efetiva. Esses, pelo conceito de relação jurídica, continuam sendo, para os possíveis titulares, mera. faculdade jurídica abstrata, embora não se coloquem no mesmo plano da liberdade definida pelo negativo. Não se pode, entretanto, deixar de considerar que o problema da eficácia se levanta sobre outro plano, pois tais direitos constitucionalmente garantidos já existem efetivamente enquanto atuam como um princípio de limitação à ação do legislador ordinário. "trilateral" inovou a velha bipolaridade do vínculo normativo existente na relação jurídica, mas mesmo a inovação não poderia dispensar, na relação "angular" ou trilateral, o vínculo jurídico de exigibilidade entre os sujeitos do processo, vínculo que constitui a marca de qualquer "relação jurídica". E é esse o ponto significativo da questão. Foi demonstrado que, quer se negue ou se admita o direito subjetivo, já não se pode afirmar que ele se constitui em "poder sobre a conduta alheia". Em conseqüência, não há como se admitir que, no processo, uma das partes possa exigir da outra o cumprimento de qualquer conduta, por um vínculo entre sujeito ativo e sujeito passivo. O processo não se confunde com a situação de direito material, ou situação de direito substancial, cuja existência ou cujos efeitos nele se discutem, mas deve se relevar que mesmo na situação de direito material, como se expôs, já não se concebe a possibilidade de que um sujeito possua o poder de exigir a conduta de outro sujeito. É por isso que o particular tem, na função da jurisdição, a possibilidade de pedir que o Estado o substitua, na imposição do ato de caráter imperativo. Assim, mesmo à situação de direito substancial já não se poderia, coerentemente, aplicar a figura da relação jurídica que, nascida do individualismo do século passado, constituía-se em vínculo entre sujeitos, vínculo que, mesmo quando dito de "coordenação", expressava, apenas, momentos alternados de subjugação. No processo não poderia haver tal vínculo entre as partes, porque nenhuma delas pode, juridicamente, impor à outra a prática de qualquer ato processual. No exercício de faculdades ou poderes, nos atos processuais, a parte sequer se dirige à outra, mas sim ao juiz, que conduz o processo. E, do juiz, as partes não exigem conduta ou atos. Mesmo a doutrina tradicional já via a dificuldade de se sustentar o poder da parte sobre a conduta do juiz, resolvendo a questão pela concepção de que a "relação" entre eles, juiz e parte, seria de "subordinação". Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer das partes, resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão. A análise de algumas hipóteses pode ser ilustrativa dessas situações, a começar pelos deveres das partes e de seus procuradores, previstos no Capítulo II, do Título II, do Livro I, do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973. Nenhum deles, nem a boa fé, nem a lealdade, nem a responsabilidade por danos pela litigância de má-fé, nem a responsabilidade por despesas e multas tem a sua origem na manifestação de vontade de qualquer das partes, em vínculo de exigibilidade 144 . Esses deveres decorrem tão-somente da situação jurídica que confere à pessoa a posição de parte no processo. O mesmo se poderia dizer quanto aos deveres do juiz, que se podem relacionar, no Código de Processo Civil de 1973, com base nos arts. 125 a 128: assegurar às partes igualdade de tratamento; velar pela rápida solução do litígio; prevenir ou reprimir atos atentatórios à justiça; decidir; decidir nos limites da lei; decidir nos limites da lide. A relação poderia prosseguir pelo art. 35 da Lei Complementar nº 035, de 14 de março de 1979, que, nos itens I a VI, tanto se refere a deveres no processo como a deveres em relação ao processo (cumprir e fazer cumprir prazos, até o relacionamento do juiz com as partes). Contudo, verifica-se de plano que os deveres do juiz não derivam de poderes das partes sobre seus atos, mas são deveres que decorrem da função jurisdicional. Seu fundamento está nas próprias normas que disciplinam a jurisdição e o processo, que é a estrutura normativa em que ela se manifesta, onde o exercício do poder é a realização do poder de cumprir o dever, o dever pelo qual o 144 Sobre o tema, v. a excelente exposição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - "A Responsabilidade das Partes por Dano Processual no Direito Brasileiro" in Temas de Direito Processual, São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 16/33. Estado se obrigou, quando assumiu a função de se substituir ao particular para garantir seus direitos, para reagir contra o ilícito, exercendo um poder que, como todo poder, no Estado de Direito, limita-se pela lei. Inexistindo vínculo entre sujeitos, pelo qual atos possam ser exigidos, pelo qual condutas possam ser impostas entre as partes e o juiz, não há como se aplicar ao processo a figura da relação jurídica que, conforme se expôs, construída no século passado, fruto do individualismo jurídico, já não encontra terreno propício para continuar vicejando no Direito. Há ainda que se registrar problemas que surgem quando se explica a natureza do processo pela eclética mistura de dois quadros conceituais diferentes. Posições subjetivas são faculdades, poderes e deveres que decorrem de uma situação jurídica. Subordinação e subjugação são conceitos que se situam no quadro da relação jurídica. Assim, faculdades, poderes e deveres como posições subjetivas decorrem da situação jurídica, que se constitui, como foi visto, sob a disciplina da lei. Faculdades, poderes e deveres, no quadro conceitual da relação jurídica, decorrem de vínculos de subordinação de vontade de um sujeito sobre a vontade do outro. Faculdades, poderes e deveres, na situação jurídica, são qualificação de condutas valoradas como lícitas: faculdades e poderes como possibilidades juridicamente asseguradas, e deveres, como a conduta a ser cumprida. O ato gerado por uma vontade implícita (faculdade), o ato gerado por uma vontade declarada (poder) e o ato de cumprimento da norma (dever) são manifestações exteriorizadas do comportamento dos sujeitos, ou seja, conteúdo de condutas. Quando se usa dentro do mesmo argumento conceitos pertencentes a categorias jurídicas diferentes, criam-se, inevitavelmente, dificuldades para a compreensão do próprio argumento. Diante dessas dificuldades, a reflexão jurídica deve indagar o que se pretende dizer com tal linguagem, o que se está chamando por um determinado nome. Sem resolver a questão, ela não tem qualquer condição de prosseguir em seu crescimento. A exposição que se fez sobre a teoria das situações jurídicas não levará à afirmação de que o processo é uma situação jurídica. A teoria da situação jurídica cumpre o seu papel quando demonstra a impossibilidade de se considerar vínculos imperativos entre sujeitos, quando substitui a relação jurídica, mas nem por isso se pode dizer que o processo seja uma situação jurídica 145 . Situações jurídicas nele estarão presentes, mas não o definem, porque, como instrumento do exercício da jurisdição, ele é uma estrutura normativa que as comporta. É essa estrutura normativa de um procedimento que prepara um ato final, de caráter imperativo, um provimento, ,realizado em contraditório entre as partes, que se estudará a seguir. 145 A tentativa de superação da concepção de processo como relação jurídica levou à construção de outras teorias, dentre as quais a da situação jurídica. A visão do processo como "situação jurídica", de GOLDSCHMIDT, encontrou alentadas críticas na doutrina, dentre as quais as produzidas pela profunda reflexão de HÉLIO TORNAGHI - Instituições de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 1977, pp. 387/397. Tanto a concepção de GOLDSCHMIDT quanto as críticas estão estruturadas sobre o mesmo campo teórico que se pretende superar, e GOLDSCHMIDT o tentou. Situações jurídicas existem dentro do processo, diz TORNAGHI, no que tem toda razão. Mas isso o reconduz à relação jurídica, e o círculo se fecha, sem outra alternativa (a não ser, é claro, das construções mais frágeis, como a do processo como contrato, quase-contrato, instituição, serviço público). CAPÍTULO VI O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO EM CONTRADITÓRIO ENTRE AS PARTES 6.1. PROCEDIMENTO: ATIVIDADE PREPARATÓRIA DO PROVIMENTO A caracterização do processo como uma espécie de procedimento exigiu a reelaboração do conceito de procedimento. Para edificar este como uma unidade mental, suficientemente genérica, para comportar uma multiplicidade de particularidades, o ponto de partida foi o ato do Estado, dotado de caráter imperativo, para o qual se volta toda a estrutura normativa que disciplina a atividade constituída pelo procedimento. O procedimento é uma atividade preparatória de um determinado ato estatal, atividade regulada por uma estrutura normativa, composta de uma seqüência de normas, de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma dinâmica bastante específica, na preparação de um provimento. O provimento é um ato do Estado, de caráter imperativo, produzido pelos seus órgãos no âmbito de sua competência, seja um ato administrativo, um ato legislativo ou um ato jurisdicional. No exer- cício das funções administrativa, legislativa e jurisdicional, o Estado pratica vários atos que não se revestem de imperatividade e que são necessários na dinâmica de sua atuação. Mas quando o ato do Estado se destina a provocar efeitos na esfera dos direitos dos administrados, da sociedade, dos jurisdicionados, quando é um ato dotado de natureza imperativa, um ato de poder, tem-se o provimento que, para que seja emanado, válida e eficazmente, deve ser precedido da atividade preparatória, disciplinada no ordenamento jurídico. Em razão de seu caráter imperativo, o provimento se distingue de todos os demais atos (sejam atos dos órgãos da administração, dos órgãos legislativos e dos órgãos judiciários), pois no Estado de Direito o poder se exerce nos limites da lei e o Estado cumpre suas funções dentro do quadro legal que disciplina suas atividades. A atividade preparatória do provimento é o procedimento que, normalmente, chega a seu termo final com a edição do ato por ele preparado, por isso, esse mesmo ato de caráter imperativo geralmente é a conclusão do procedimento, o seu ato final. 146 6.2. A RENOVAÇÃO DO CONCEITO DE PROCEDIMENTO A renovação do conceito de procedimento já vinha despontando na doutrina do processo, mas de um modo incompleto, indiferenciado, ou ainda bastante informe, com várias questões não resolvidas ou resolvidas de forma insatisfatória. Em estudos publicados a partir de 1936, ENRICO REDENTI já vislumbra o procedimento sob uma nova ótica,147 entendendo 146 Cf. FAZZAIARI - Istituzioni di Diritto Processuale, Quinta Edizione, Padova: CEDAM-Casa Editrice Dott. Antônio Milani, 1989, pp. 7/8. 147 Conforme menciona REDENTT, os Profili, publicados pela Giuffrè em 1936, foram os progenitoces do Diritto Processuale Civili, publicado pela primeira vez em 1947 e o projeto do amplo Trattato delia giustizia civile não chegou a ser concluído. Cf. Proemio alla Terza Edizione e Proemio alla segonda Edizione, in Diritto Processuale Civile, Terza edizione ag- o processo como a atividade destinada à formação do provimento jurisdicional. A lei se ocupa de determinar os atos que devem compor essa atividade, quando são legalmente necessários ou simplesmente consentidos, como devem ser coordenados e combinados entre eles. A atividade preparatória do provimento envolve atos do próprio autor do provimento e dos outros sujeitos que devem concorrer para a sua formação, por isso sua disciplina se dá por vários esquemas normativos. Esses esquemas, segundo REDENTI, propostos para as diversas possibilidades de processos, devem tomar o nome de procedimento, que se entende 148 como il modulo legale del fenômeno in astratto . Os paradigmas ou módulos legais, como diz REDENTI, não se encontram sempre perfeitamente traçados e prontos para o uso, no texto da lei. Muitas vezes é necessário construí-los pela via da interpretação, com auxílio de critérios gerais, come il buon geometra procede alle sue triangulazione dalla conoscenza di lati e di angoli,149 O "módulo legal", o modelo normativo capaz de comportar toda a variedade de procedimentos, se elabora pela mesma atividade de generalização e abstração desenvolvida na formulação de qualquer conceito. Sua construção é possível a partir das espécies de procedimentos previstos pela lei, que, conforme diz REDENTI, podem ser recolhidos ou distinguidos em grupos ou subgrupos (famiglie), em razão da classificação dos provimentos finais que visam a formar. 150 giornata e rielaborata da Tito Camacini e Mario Vellani, 1 - Nozione e Regole Generali, Giuffrè Editore, 1980. 148 Cf. REDENTI, op. cit., pp. 99/100. 149 Cf. REDENTT - Il Giudizio Civile con Pluralità di Parti, Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 1960, pp. XI/XII. A obra é reimpressão da edição original de 1911. No prefácio feito para a reimpressão, REDENTI refere-se ao problema da configuração dos paradigmas das ações civis, que por uma visão "planimetrica del sistema stesso viene a trovarsi in posizione marginale" Cf. p. XI. 150 Cf. REDENTI - Diritto Processuale Civile, cit. p. 100. Também LIEBMAN já revela uma certa aproximação dessa nova concepção, quando discorre sobre a estrutura do procedimento, em que os atos processuais formam elos de uma corrente. Mas a aproximação de LIEBMAN é apenas relativa, pois sua doutrina separa o processo do procedimento, mantendo quanto a este a concepção antiga, ainda dominante na teoria processual, quando enuncia que o termo processo é mais amplo, porque pode compreender mais de um procedimento. 151 O ato estatal de caráter imperativo para cuja preparação todo procedimento se volta é o seu motivo, sua ratio, mas não é elemento próprio para que dele se deduza a específica dinâmica do procedimento, que não é um mero encadeamento de atos. 6.3. A CONTRIBUIÇÃO DE ELIO FAZZALARI A contribuição definitiva para a renovação do conceito de procedimento, no Direito Processual, orgânica, sistematizada, coerente e lógica, vem de ELIO FAZZALARI, que partiu de uma bem estruturada visão do ordenamento jurídico e de um quadro conceitual muito bem definido para investigar as formas possíveis de "enucleação", ou de conexões de normas, ou seja, de agrupamentos normativos vistos quanto à especial forma do entrelaçamento dessas normas; dos atos por elas regidos, não só na qualificação de sua juridicidade, mas na sua predicação quando tais atos são correlacionados com tais normas, para a caracterização do procedimento e do processo. FAZZALARI preocupa-se em definir previamente os conceitos q u e utiliza no desenvolvimento de sua argumenta151 Cf. LIEBMAN - Manual de Direito Processual Civil, Vol. I, tradução e notas de Cândido R. Dinamarco, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp. 228/229. Essa posição aproximada também se verifica em ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO, quando, vendo o processo como uma relação jurídica, incluem, em seu conceito, o procedimento. Cf. op. cit. 253. ção, porque estes, muitas vezes designados com o mesmo nome dos conceitos tradicionais, não possuem a mesma conotação e, conseqüentemente, referem-se a realidades jurídicas diferentes. A norma jurídica, do ponto de vista de sua estrutura lógica, é contemplada não apenas como "cânone de valoração de uma conduta", isto é, como regra vinculante e exclusiva que expressa os valores da sociedade, 152 mas também em relação à conduta por ela descrita, a que se liga a valoração normativa. Sendo o ato sinônimo de conduta (que tem no comportamento o seu conteúdo), dessa valoração resulta a qualificação do ato jurídico como lícito (o uso do próprio bem), ou como devido. A posição do sujeito em relação à norma permite falar em posição subjetiva, ou posição jurídica subjetiva, e qualificar a conduta como faculdade ou poder, se é valorada como lícita, e como dever, se é valorada como devida. Da posição do sujeito em relação ao objeto do comportamento descrito na norma, FAZZALARI extrai o conceito de direito subjetivo, não como um poder sobre a conduta alheia, ou de direito à prestação decorrente de relação jurídica, mas como uma posição de vantagem do sujeito assegurada pela norma, posição que se apreende pelo "objeto do comportamento" descrito na norma relacionado ao sujeito. Se da norma decorre uma faculdade ou um poder, para o sujeito, sua posição de vantagem incide sobre o objeto daquela faculdade ou daquele poder que a norma lhe conferiu 153 . O quadro conceitual com o qual FAZZALARI trabalha será explicitado, na medida em que for conveniente para a clareza desta exposição. Entretanto, é importante sublinhar, desde já, que os atos lícitos qualificados como faculdades ou poderes nada têm a ver com a concepção tradicional de direitos subjetivos, e que seu 152 Cf. FAZZALARI, op. cit. pp. 19/26. 153 Cf. FAZZALARI, op. cit. pp. 46/50. contraponto não é o ilícito. Os atos lícitos constituem poderes, se consistem em declarações de vontade (uma confissão judicial) e, faculdades, se consistem em atos em que a vontade, embora presente, como em qualquer ato válido, não necessita ser declarada porque é implícita como "consciente determinação do agente de ter o comportamento descrito na norma". 154 Os exemplos oferecidos por FAZZALARI auxiliam a distinção: as partes têm poder de "proferir juramento decisório", faculdade de alegar fatos e dever de exibir prova. 155 Quando há conseqüências legais vinculadas à falta do exercício dos poderes e faculdades, desfavoráveis ao titular do ato, surge a figura do ônus. Como diz FAZZALARI, os poderes e faculdades caracterizam-se como ônus, quando à falta de seu exercício a lei processual liga uma conseqüência desfavorável ao titular do ato. Ao sujeito é dado cumprir ou não o ato, mas a falta de cumprimento se resolve na possibilidade de dano para ele 156 . O segundo ponto que merece relevo é a explicitação de que a qualificação do ato como lícito (poderes e faculdades) não se faz em contraposição ao ilícito. O ilícito não é incluído na estrutura do procedimento e do ponto de vista lógico, nem o poderia ser, pois não poderia compor o conceito de ato jurídico. E é sobre atos jurídicos que se fala no procedimento, são eles que o compõem em todo o seu iter, até o momento final. É claro que não se exclui o ilícito da experiência do Direito, mas nela ele comparece como inobservância da conduta devida, descrita pela norma substancial, pela norma de direito material. Terá ele, naturalmente, assim como o direito material cuja tutela é requerida, suas relações com o ato final, o provimento, no processo, mas não integra a sua estrutura. 157 154 Cf. FAZZALARI, op. cit. p. 338, v., ainda, p. 330 e p. 401. 155 CF. FAZZALARI, op. cit., p. 401. 156 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 401. 157 Cf. A concepção de norma jurídica, como cânone de conduta, vinculativa (no sentido de que a conduta deve se conformar a ela) e exclusiva (porque O procedimento não é atividade que se esgota no cumprimento de um único ato, mas requer toda uma série de atos e uma série de normas que os disciplinam, em conexão entre elas, regendo a seqüência de seu desenvolvimento. Por isso se fala em procedimento como seqüência de normas, de atos e de posições subjetivas. se sobrepõe a outras normas) de que decorre a jurídicidade, em FAZZALARI, lembra STAMMLER, na definição do Direito como um querer vinculativo, entrelaçante, autárquico e inviolável, e também pela opinio iuris vel necessitatls, toda linha de pensamento, de diversas tendências que, pelas contribuições do historicismo jurídico, se formou sobre a jurídicidade. O ilícito não é realçado nessa jurídicidade, senão como elemento que a rompe. Nesse ponto FAZZALARI está mais próximo da linha humanista, com a qual concilia sua abordagem lógica da norma, e em posição absolutamente distanciada de KELSEN. Mesmo a norma penal em FAZZALARI, como norma de conduta, refere-se à conduta devida, e sua expressão lógica que liga o ilícito à sanção não descreve a norma substancial, mas a norma jurisdicional. Ressalte-se que no campo do estudo da estrutura lógica da norma e das funções que decorrem de sua vinculação com a conduta regida, há excelente contribuição de NORBERTO BOBBIO - Teoria do Ordenamento Jurídico, trad. de Cláudio de Cicco (capítulo 1) e de Maria Celeste C.J. Santos (capítulo 2 a 5), São Paulo: Polis, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1989. KELSEN, que já havia desenvolvido o tema, em tópicos da Teoria Pura do Direito, teve seus trabalhos sobre a norma recolhidos em publicação póstuma sob o título de Teoria Geral das Normas. As funções da norma jurídica, que são estudadas do ponto de vista teleológico ou sob o prisma formal, na Ciência do Direito, enquanto referidas ao sistema jurídico, estão ali descritas como funções da norma, enquanto dever-ser de conduta, em relação à própria conduta por ela disciplinada. Por esse critério, KELSEN classifica as funções da norma como de: 1) Imposição de uma conduta, em que imposição é sinônimo de prescrição, que se diferencia de descrição, enquanto se remete a algo que deve ser. Toda proibição pode ser descrita como imposição, precisamente como imposição da conduta ou de sua omissão, porque o conceito de conduta compreende "o fazer e a omissão passiva de uma ação". A imposição compreende, assim, a prescrição e a proibição: a imposição do fazer — a prescrição, e a imposição do omitir aquele fazer — a proibição. 2) Autorização — que é o ter poder para a conduta. 3) Permissão — o ter a conduta consentida. A permissão compreende dois sentidos: o sentido positivo e sentido negativo. (O sentido negativo, para KELSEN, não é função na norma; para BOBBIO, gera problema do espaço vazio. Significa O ato de caráter imperativo, um provimento, tem no procedimento sua fase preparatória, mas não é, entretanto, suficiente para esgotar sua definição. A atividade que precede sua emissão, ou edição, ou emanação, é constituída de atos que são disciplinados segundo um modelo normativo próprio, que determina sua especial forma de coordenação e de conexão, no desenvolvimento, ou, no iter do procedimento, até o ato final. Essa especial forma de coordenação será descrita a seguir, mas, antes, convém recordar que, para FAZZALARI, o procedimento não é um conceito particular de uma disciplina, mas um conceito geral do Direito, e deve ser "colhido", extraído, de um complexo de normas que incidem sobre atos e posições subjetivas que preparam o provimento, que é, como se viu, um ato do Estado, emanado de seus órgãos, na órbita de sua competência, dotado de caráter imperativo. Não é excessivo ressaltar que a expressão "posição subjetiva" contém um sentido muito específico. Não se refere à posição de sujeitos em uma relação com outro sujeito ou à posição de sujeitos em um quadro qualquer de liames. Posição subjetiva é a posição de sujeitos perante a norma, que valora suas condutas como lícitas, facultadas ou devidas. No procedimento, os atos e as posições subjetivas são normativamente previstos e se conectam de forma especial para tornar possível o advento do ato final, por ele preparado. Não só que a conduta nem é proibida, nem imposta. O ser permitido aí é o ser livre. Em KELSEN, o sentido positivo da autorização p o d e significar que uma norma que proíbe uma conduta definida é abolida, ou que a norma que proíbe tal conduta é limitada por outra (Ex. a proibição de matar e a legítima defesa). A limitação da proibição importa em permissão. Essa função é reduzida à função de derrogação (que aparece como a 4ª espécie), ou seja, a abolição ou limitação da validade, norma que proíbe uma conduta definida. Isto porque a permissão não pode ser cumprida nem violada. Sobre os desdobramentos e a importância de cada uma dessas funções KELSEN fala longamente, mas prosseguir no tema desviaria o propósito dessa exposição. Cf. KELSEN —Teoria Geral das Normas - trad. de José Florentino Duarte, Porto Alegre: Fabris, 1986, pp. 120/144. o ato final, em sua existência, mas a própria validade desse ato e, conseqüentemente, sua eficácia, dependerão do correto desenvolvimento do procedimento. A forma especial de conexão dos atos e posições subjetivas normativamente previstas, que torna possível a identificação de qualquer procedimento, é descrita por FAZZALARI: "Il procedimento si coglie quando ci trova di fronte a una serie di nortne, ciascuna delle quali regola una determinata condotta (qualificandola como lecita o doverosa), ma enuncia comepresupposto delia própria incidenza il compimento di un'attività regolata da altra norma delia serie, e cosi via fino alla norma regolatrice di un ato finale"158 . Quando o pressuposto para a incidência de uma norma é o cumprimento de uma atividade prevista na norma anterior da série do complexo normativo, não se está diante da simples ordenação de uma cadeia normativa, que poderia ser linearmente concebida. Pressuposto, em linguagem filosófica e da lógica, é premissa não explícita, e essa, como se mostrou, em tópico anterior, é a proposição da qual são extraídas outras proposições, pelo processo de inferência, e, como se recordou, as conclusões podem se tornar novas premissas de novas conclusões, na cadeia de proposições, no raciocínio dedutivo 159 . Essa é a noção funda- 158 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 57/58. 159 FAZZALARI trabalha com a lógica, como ele próprio declara quando explicita a eleição de seu método: Dalparticolare al generale, dal generale al particolare: è il metoda della doppia scala che, quattro secoli fà, ci ha insegnato Bacone. Cf. op. cit., p. 16. Mas está visto que não trabalhou com a lógica das classes, no desenvolvimento do raciocínio que o levou a relacionar o processo com o procedimento, através da extração da espécie do gênero, quando ao invés de uma relação, que levaria à inclusão, procedeu a uma cisão. mental para a apreensão do novo conceito de procedimento. Foi ele inicialmente referido como uma estrutura q u e prepara um ato final imperativo, o provimento, e essa estrutura é constituída de tal forma que, na cadeia normativa que disciplina os atos e as posições subjetivas, a incidência de uma norma só poderá se verificar validamente sobre os atos da seqüência, se a norma anterior houver sido observada e cumprida, na sua previsão de ates que poderiam ter sido exercidos ou que deveriam ter sido cumpridos. Em outras palavras, na seqüência normativa que compõe a estrutura do procedimento, a observância da incidência da norma que prevê o ato que pode ser exercido ou deve ser cumprido é pressuposto, é condição de validade, da incidência de outra norma que dispõe sobre a realização de outro ato, sendo deste o pressuposto, assim até que o procedimento se esgota atingindo seu ato final, quando se verificaram todos os pressupostos normativamente previstos para a emanação do provimento. A observância da incidência da norma significa que os atos que ela permite são realizados ou têm a possibilidade de sua realização garantida, e o atos que ela estatui como devidos são realizadas, quando não se permite a sua conversão em ônus. Se o procedimento fosse considerado apenas como uma série de normas, atos e de posições subjetivas, o ato jurídico isoladamente considerado poderia produzir nele seus efeitos. Mas o procedimento é mais do que uma mera seqüência normativa, que disciplina atos e posições subjetivas, porque faz depender a validade de cada um de sua posição na estrutura, que requer o cumprimento de seu pressuposto. O ato praticado fora dessa estrutura, sem a observância de seu pressuposto, não pode ser por ela acolhido validamente, porque não pode ser nela inserido. 6.3.1. O PROCESSO COMO ESPÉCIE DO GÊNERO PROCEDIMENTO Como foi exposto, FAZZAIARI caracterizou os provimentos como atos imperativos do Estado, emanados dos órgãos que exercem o poder, nas funções legislativa, administrativa ou jurisdicional. O procedimento, como atividade preparatória do provimento, possui sua específica estrutura constituída da seqüência de normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o cumprimento de uma norma da seqüência é pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato nela previsto. O provimento implica na conclusão de um procedimento, pois a lei não reconhece sua validade, se não é precedido das atividades preparatórias que ela estabelece. Mas o provimento pode ser visto como ato final do procedimento não apenas porque este se esgota na preparação de seu advento. Pode ser concebido como parte do procedimento, como seu ato final, como o último ato de sua estrutura. É na possibilidade de se enuclearem os provimentos, em conjunto, segundo essa ótica, pela qual eles são o próprio ato final do procedimento, que FAZZALARI encontra a perspectiva própria para o estudo do processo. 160 O processo começará a se caracterizar como uma "espécie" do "gênero" procedimento, pela participação na atividade de preparação do provimento, dos "interessados", juntamente com o autor do próprio provimento. Os interessados são aqueles em cuja esfera particular o ato está destinado a produzir efeitos, ou seja, o provimento interferirá, de alguma forma, no patrimônio, 161 no sentido de universum ius, dessas pessoas. A primeira aproximação do conceito de processo é assim desenvolvida: "Se, poi, al procedimento di formazione del provvedimento, alle attività preparatorie attraverso le quali si verificano i presupposti del provvedimen- 160 Cf. FAZZALARI, op. cit, p. 7/8. 161 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 54. to stesso, sono chiamati a participare, in una o piú fasi, anchegli interessati, in contraddittorio, cogliamo l'essenza del "processo": che è, appunto, un procedimento al quale, oltre all'autore dell'atto finale, partecipano, in contraddittorio fra loro, gl'interessati, cioè í destinatari degli effetti di tale atto"162 processo começa a se definir pela participação dos interessados no provimento na fase que o prepara, ou seja, no procedimento. Mas essa definição se concluirá pela apreensão da específica estrutura legal que inclui essa participação, da qual se extrairá o predicado que identifica o processo, que é o ponto de sua distinção: a participação dos interessados, em contraditório entre eles: "Se, poi, il procedimento è regolato in modo che vi partecipino ancbe coloro nella cui sfera giuridica 1'atto finale è destinato a svolgere effeti (talché Vautore di esso debba tener conto della loro attività), e se tale partecipazione è congegnata in modo che i contrapposti interessati (quelli che aspirano alla emanazione dell'atto finale — interessati in senso stretto — e quelli che vogliono evitaria — controinteressaty siano sul piano di simmetrica parità; allora il procedimento comprende il contraddittorio, si fa più articolato e complesso, e dal genus procedimento è consentito enucleare la species processo. 163 Chega-se, assim, ao processo como "espécie" 164 de procedi162 FAZZALARI op. cit, p. 8. 163 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 57/58. 164 Lembrando o que foi exposto anteriormente, sobre as doutrinas que consideram o processo mais amplo que o procedimento, incluindo este mento realizado através do contraditório entre os interessados, que, no processo jurisdicional, são as partes. Dentro da linha de raciocínio desenvolvida por FAZZALARI, talvez a relação entre o "gênero" procedimento e a "espécie" processo possa ficar mais bem explicitada se se recorrer ao auxílio da lógica da relação entre classes para a apreensão de seu argumento. Uma classe se define pelas qualidades, ou propriedades, comuns dos membros que nela se incluem. A classe dos procedimentos é constituída pela atividade que possui uma "estrutura normativa" determinada, voltada para a preparação do provimento. A classe dos processos (jurisdicionais, legislativos, administrativos, e outros admitidos pelos ordenamentos jurídicos como os arbitrais) possui em comum a preparação do provimento com a participação dos interessados, em contraditório entre eles. Como se disse, anteriormente, a respeito dos princípios lógicos da inclusão, ela é válida se obedecida a hierarquia das classes. O procedimento, como "estrutura normativa" que prepara o provimento, constitui a classe imediatamente superior pela abrangência que comporta, para que nela se inclua a classe dos processos. É interessante observar que a via encontrada por FAZZALARI, que foi a da cisão, quando ceifou o gênero, para extrair de seu naquele, pode-se testar o resultado apresentado para FAZZALARI. Se se invertesse a proposição, dizendo-se que o processo é o gênero e o procedimento a espécie, isso significaria que todos os procedimentos deveriam conter todas as qualidades específicas do processo, o que não seria correto porque há procedimentos que não possuem a especificidade que caracteriza o processo: o contraditório. O processo, sim, contém as qualidades atribuídas ao procedimento. Por isso, se se diz que "todo procedimento é preparação de um provimento", é possível se dizer que o processo comparece como espécie do gênero procedimento porque participa da qualidade que lhe foi predicada. A relação entre gênero e espécie pela quantificação do sujeito do discurso, no juízo, nas antigas formulações do juízo universal (Todo S é P) ou particular (Alguns S são P), ou do juízo singular (S é P) trazia algumas dificuldades, que foram superadas pela lógica das relações entre classes. âmago a espécie, importou, implicitamente, em uma relação que é, logicamente, de inclusão, porque a classe dos processos, pela sua qualidade de atividade que prepara o provimento, compartilha, com os procedimentos, dessa "específica qualidade" que os define. O que há de realmente extraordinário nos resultados de suas investigações é a identificação do elemento que permite definir o procedimento e do elemento que constitui a diferença específica do processo, sendo que este é um procedimento. 6.3.2. O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO REALIZADO EM CONTRADITÓRIO Há processo sempre onde houver o procedimento realizando-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na "simétrica paridade" 165 da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos. A espécie de procedimento denominada processo se subdivide, também, em subclasses, e pode-se falar em espécies de processos: processo administrativo, em que se desenvolve a atividade da Administração, processo legislativo, em que se desenvolve a atividade legislativa, processo jurisdicional, em que se desenvolve a atividade do Estado de fazer a justiça, por meio de seus juizes. Há, ainda, os "processos" infra-estatais, que são aqueles que, no campo do Direito Privado, em que prevalece a autonomia da vontade, preparam um ato final sem a característica do ato estatal, porque não dotado da imperatividade do provimento, mas que tem o caráter de uma deliberação, e cuja dinâmica se faz pelo modelo do processo jurisdicional. FAZZALARI lembra exemplos que mostram a extensão, em tendência crescente, do arquétipo do processo jurisdicional, ao campo do Direito Privado para solução de controvérsias, entre outros, nas deliberações internas de partidos políticos, de sindicatos, de associações es165 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 80. portivas, de sociedades comerciais. Os exemplos poderiam ser multiplicados na realidade social brasileira, em q u e se observa o movimento ascendente de organização de associações, em vários setores, e a introdução da prática democrática d o s debates que precedem as decisões dos grupos. É claro que a atividade que prepara o provimento, seja administrativa ou jurisdicional, nem sempre constitui processo, pois o contraditório pode dela estar ausente. O provimento administrativo e o provimento jurisdicional podem ter como atividade preparatória o simples procedimento, como se dá, por exemplo, no âmbito da administração, em relação a um pedido de inscrição em concurso público, um pedido de licença para porte de arma, um pedido de matrícula em Instituição Pública de Ensino e, no âmbito do Judiciário, em relação a um pedido de tutela, enfim, aos atos da chamada "jurisdição voluntária". Mas se ocorrer divergência de interesses sobre o provimento, entre seus destinatários, o procedimento pode se transformar em processo. Observe-se, apenas, que, em relação aos exemplos referentes à matéria de natureza simplesmente administrativa, a transformação do procedimento em processo exigirá, naturalmente, o pressuposto de sua instauração perante o órgão jurisdicional, onde não houver especialização dos órgãos da Justiça para a apreciação de matéria administrativa. Essa questão não prejudicará a compreensão da transformação do procedimento em processo se se recordar que a jurisdição é una, comportando especialização de órgãos do Poder para seu exercício. Pode entender-se, então, por que o estudo da jurisdição, ou seja, da norma processual, que é a norma que disciplina seu correto exercício, deve se fazer sobre o processo que, sendo uma espécie de procedimento, oferece, como diz FAZZALARI, a estrutura mais completa para que sejam reunidos e ordenados coerentemente os vários aspectos que envolvem a manifestação dessa atividade fundamental do poder. 166 166 "... lo studio deliagiurisdizione (e cosi di quella civile) devefarperno sul Da manifestação do poder jurisdicional, em razão da matéria constitucionalmente organizada, segundo a estrutura dos órgãos jurisdicionais, podem ser apontadas as várias espécies de processo. Nos termos da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, no ordenamento jurídico brasileiro, pode-se falar em processo jurisdicional civil, penal, trabalhista, militar, eleitoral, constitucional e legislativo. 167 O processo jurisdicional administrativo — em plano de jurisdição autônoma —, e o arbitral não foram contemplados no texto constitucional, que é de onde se extrai, fundamentalmente, a legitimidade dos órgãos que podem atuar no exercício da jurisdição. 168 Em relação ao processo de apreciação de inconstitucionaliprocesso. Il processo è la sola struttura nela quele, e in virtú della quale, i varí aspetti di quell'attività fondamentale possono essere coerenziati ed ordinati: con un cambiamento, ma anche, io credo, con un innegabile progresso rispetto aí precedenti sistemi, fondati sul conceito di azione, ancora atile, ma da elaborare e collocare ai suo posto, e su quello di rapporto giuridico processuale, ormai da ripudiare del tutto". Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 98/99167 JOSÉ FREDERICO MARQUES denomina categorias anômalas de jurisdição não-judiciária as exercidas por órgão administrativo, no contencioso administrativo que não chegou a se implantar e por órgão legislativo, no julgamento do Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal e Procurador Geral da República, nos termos previstos na Constituição. Cf. Manual de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, 1985-1986, lºvol., p. 2. 168 O art. 114, § 1º da Constituição de 1988, permitiu às partes elegerem árbitros, frustrada a negociação coletiva. Entretanto, essa arbitragem se coloca no campo das relações privadas, como a própria negociação, pois não substitui o provimento jurisdicional, como se extrai do § 3º do mesmo artigo. A arbitragem, na hipótese referida, é apenas uma fase preparatória de um procedimento, desenvolve-se na fase pré-processual da instauração do dissídio coletivo, mas voluntária e não necessária, pois, inexistindo, não impede seu ajuizamento. Todo o Capítulo XIV, do Título I, do Livro IV do Código de Processo Civil, cuja constitucionalidade poderia ser discutida perante a Constituição anterior, sob cuja égide o Código entrou em vigor, está revogado, porque mais do que um simples negócio jurídico, prevê o ato imperativo do provimento, e este é, constitucionalmente, reservado ao poder jurisdicional do Estado, cujos órgãos são definidos na Constituição. dade da lei em tese, as divergências doutrinárias 169 sobre sua natureza, como "processo" ou como processo de "jurisdição voluntária", ou seja, simples procedimento, não poderão ser resolvidas sem o exame do direito positivo, que determina a estrutura do procedimento em que se dá o controle da constitucionalidade. As dúvidas, entretanto, não alcançam o Direito brasileiro, pois o contraditório ressalta do art. 103 e parágrafos, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, sendo que o § 3 º expressamente determina a prévia citação do Advogado-Geral da União, "que defenderá o ato ou o texto impugnado, quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade em tese (abstrata) de norma legal ou ato normativo. É, portanto, um verdadeiro processo, e não um simples procedimento, ou um "processo de jurisdição voluntária". O procedimento legislativo, conforme observa FAZZALARI, sempre é processo, sempre se realiza como "espécie" processo, sempre se realiza com a participação de parlamentares que representam e reproduzem os interesses divergentes dos grupos e comunidades dos cidadãos. E na sua caracterização que FAZZALARI sublinha o valor da própria estrutura do processo para a democracia, o momento em que ele comparece nitidamente como um instrumento para a garantia da liberdade: "Si tratta, dunque non di meri procedimenti, bensi di processi. Qui il processo conferma, se mai ve ne sia bisogno, la sua essenza di struttura privilegiata per la gestione democrática di attività fondamentali; e dunque, di strumento per la salvaguardia delle liberta"170. 169 Em linha contrária à de FAZZALARI, CAPPELLETTI sustenta a tese de que "a jurisdição constitucional é uma dentre as grandes manifestações da jurisdição não 'contenciosa', latu sensu, 'voluntária'" Cf. MAURO CAPPELLETTI O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, trad. de Aroldo Plínio Gonçalves, Revisão de José Carlos Barbosa Moreira, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, pp. 125/126. 170 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 580. Não custa repetir, resistir, persistir e insistir na necessidade da urgente edição dos Códigos Estaduais de Processo (civil 6.4. O CONTRADITÓRIO A idéia do contraditório não é recente. RUDOLF VON JHERING deixou páginas memoráveis sobre a administração da justiça, na qual a primeira exigência era a da "justiça no processo". Para ela, para essa justiça interna e intrínseca, a "organização" do processo deveria estar voltada, pois, no processo, era ela a primeira e também a única exigência essencial, perante a qual todas as demais, no processo, seriam secundárias. Essa "justiça no processo" é bem explicitada por VON JHERING, quando fala das relações das partes no processo, que, com o juiz, terceiro e não parte, era, segundo entendia, de "subordinação jurídica". Mas a relação entre as partes deveria ser caracterizada pela igualdade jurídica: "devem combater-se com armas iguais e devem-lhes ser distribuídas com igualdade a sombra e a luz". 171 O conceito de contraditório, entretanto, é bem atual, e ainda não foi totalmente assimilado, embora seu princípio fundamental, "audiatur (...) et altera pars", "audita altera parte", "audi alteram partem", seja bastante difundido, e já esteja presente na Teoria Geral do Direito, com a conotação bastante aproximada da que lhe seria dada pelo Direito Processual Civil. Assim, na segunda parte de sua "Introduction à la Science du Droit (dividida em Encyclopédie du Droit, em Tbéorie Générale du Droit e em Introduction à la Philosophie du Droit)", PIERRE PESCATORE fala sobre le caractère contradictoire de la procédure, explicitando o adágio audiatur (...) et altera pars, que significa, conforme diz, que uma decisão não pode adquirir a autoridade da coisa julgada para quem não participou do debate judiciário, que o contraditório e penal), já que esta é a vontade política do Constituinte de 1988 (art. 22, XI) — que cumpre seja rigorosamente respeitada —, voltando em parte, e isto pouco importa, ao regime da Constituição de 1891171 Cf. RUDOLF VON JHERING - A evolução do Direito, Salvador: Livraria Progresso Editora, 1956 (Não há menção ao tradutor, mas trata-se da obra cujo título original é Zweck im Recht, de 1878), p. 307. possibilita o melhor esclarecimento do juiz, e que, entretanto, significa, sobretudo, a possibilidade que a parte deve ter de se fazer ouvir: "Ce príncipe doit être entendu toutefois en ce sens que toute partie interessée doit avoir la possibilite de se faire entendre" 172 A conotação citada como uma aproximação do conceito atual de contraditório explica-se, pois ele exige mais do que a audiência da parte, mais do que o direito das partes de se fazerem ouvir. Hoje, seu conceito evoluiu para o de garantia de participação das partes, no sentido em que já falava VON JHERING, em simétrica paridade de armas, no sentido de justiça interna no processo, de justiça no processo, quando as mesmas oportunidades são distribuídas com igualdade às partes. O contraditório não é apenas "a participação dos sujeitos do processo". Sujeitos do processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as partes (autor, réu, intervenientes). O contraditório é a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os "interessados", ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor. O juiz é sujeito do processo, é o sujeito que tem a titularidade não apenas do ato do provimento final, mas de provimentos emitidos no curso do procedimento, sempre que decisões são proferidas, e de outros tantos atos processuais que a lei lhe reserva, na preparação do ato final, enquanto investido na função jurisdicional, enquanto órgão pelo qual o Estado fala. Sendo sujeito de atos processuais, é claro que ele participa do processo. A participação do juiz, na fase de instrução, que afasta definitivamente a possibilidade de que ele seja visto como um simples autômato, é posta em relevo por BARBOSA MOREIRA, que, com base em várias disposições do Código de Processo Civil de 1973, 172 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 374. demonstra que ele não se limita a "uma postura de estátua" 173 . A maior participação dos juizes no processo é um direito que, conforme alerta, assiste à própria sociedade, para o qual o legislador deve ser sensibilizado e despertado 174 . Contudo, saliente-se, a participação do juiz não o transforma em um contraditor, ele não participa "em contraditório com as partes", entre ele e as partes não há interesse em disputa, ele não é um "interessado", ou um "contra-interessado" no provimento. O contraditório se passa entre as partes porque importa no jogo de seus interesses em direções contrárias, em divergência de pretensões sobre o futuro provimento que o iter procedimental prepara, em oposição. E essa oposição, essa contrariedade de interesses, de que o provimento seja favorável a uma e desfavorável à outra, que marca a presença das partes e que tem a garantia de igual tratamento no processo. O contraditória não é, por isso, a "mera participação no processo". Essa era a idéia originária do contraditório, quando a participação era concebida como o auge das garantias processuais. Participação no processo têm todos os sujeitos do processo, caso contrário não seriam "sujeitos dos atos processuais". Entretanto, a participação em contraditório se desenvolve "entre as partes", porque a disputa se passa entre elas, elas são as detentoras de interesses que serão atingidos pelo provimento. O juiz, perante os interesses em jogo, é terceiro, e deve ter essa posição para poder comparecer como sujeito de atos de um determinado processo e como autor do provimento. Essa é uma garantia das partes, que se expressa tanto pelo princípio do juízo natural, e não pós-constituído, tanto pelas normas que contro- 173 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - "Sobre a 'Participação' do Juiz no Processo Civil", in Participação e Processo, Coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, pp. 380/394. 174 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, "Sobre a 'Participação' do Juiz no Processo Civil", in op. cit., p. 390. lam a competência do juiz. Investido dos deveres da jurisdição, o juiz não entra no jogo do dizer-e-contra-dizer, não se faz contraditor. Seus atos passam pelo controle das partes, na medida em que a lei lhes possibilita insurgir-se contra eles. Sublinhe-se, nesse ponto, o profundo sentido do duplo grau de jurisdição como garantia de direitos processuais. O controle das partes sobre os atos do juiz é de suma importância e, nesse aspecto, a publicidade e a comunicação, a cientificação do ato processual às partes (que é, também, garantia processual) é de extrema relevância. Entretanto, as partes não se colocam em combate com o juiz, nem este em contraditório com as partes. Ele fala sempre pelo Estado, enquanto investido da função jurisdicional, e os atos decisórios do processo têm o selo da imperatividade. As partes exercem o seu controle sobre ele, pelo remédio legal adequado à natureza do ato, mas esse controle se dará sempre através do pedido de pronunciamento do próprio Poder Judiciário, chamado a intervir para a proteção dos direitos processuais. Quando tal controle se faz pela impugnação do ato imperativo, pela via recursal, é o mesmo Poder Jurisdicional, em outro grau, mas sempre o mesmo Poder, a quem incumbe a reapreciaçâo do ato. A revisão recursal não importa, como bem demonstra BARBOSA MOREIRA, "reforma" ou "confirmação" da decisão impugnada, mas em sua substituição. 175 Na hipótese de cassação da decisão, ou anulação, o provimento em grau de recurso implica na determinação para que a substituição se faça pelo próprio autor do provimento viciado, para que não se suprima grau de jurisdição. De qualquer modo, a revisão não se faz por outro órgão que não o jurisdicional, em qualquer grau de sua manifestação. O contraditório realizado entre as partes não exclui que o juiz participe atentamente do processo, mas, ao contrário, o exige, porquanto, sendo o contraditório um princípio jurídico, é 175 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V: art. 476 a 565, 5 a ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1985, pp. 384/389- necessário que o juiz a ele se atenha, adote as providências necessárias para garanti-lo, determine as medidas adequadas para assegurá-lo, para fazê-lo observar, para observá-lo, ele mesmo. 1 7 6 Nessa exigência, convém ressaltar que mesmo as provas 176 Nesse sentido, dispõe o atual art. 16 do Noiveau Code de Procédure Civile da França: Le juge doit, en toutes circonstances, faire observer et observer Itii-même le príncipe de la contradiction. A nova redação provocou o retorno aos textos de 1971 e 1972, substituindo o art. 16 do novo Código instituído pelo Decreto nº 75-1123, de 05 de dezembro de 1975: "Le juge doit en toutes circonstances faire observer le príncipe de la contradiction" e sua alínea 1ª, que dispensava o juiz de observar "le príncipe de la contradiction des débats lorsqu'il releve d'office un moyen de pur droit", disposição anulada pelo Conseil d'État, em 12 de outubro de 1979, após reação manifestada por várias associações de advogados, conforme relatam JEAN VINCENT e SERGE GUINCHARD - Procédure Civile, vingtième édition, Paris: Dalloz, 1981, p. 432. Como expõem EMMANUEL BLANC e JEAN VIATTE, o antigo texto de 1971, que foi revigorado, tinha originariamente a seguinte redação: "le juge doit, en toutes circonstances, faire observer et observer lui-même le príncipe de la contradiction. Il ne peut fonder sa décison sur les moyens de droits autres que d'ordre public qu'il a releves d'office ou sur les explications complémentaires qu 'il a demandées, sans avoir au préalable invité les parties à présenter leurs observations". CE Nouveau Code de Procédure Civile commenté dans l'orde des articles, Paris, Librairie du Journal des Notaires et des Avocats, 1980, p.33). Sobre os Moyens (conceito muito amplo que designa não apenas motivos e fundamentos, mas os meios de convencimento em geral que comportam várias classificações, estudadas por JEAN VINCENT e SERGE GUINCHARD, op. cit., pp. 400/401) e os Moyens d'office, foram copiosos os arestos dos Tribunais, que culminaram na revogação da citada alínea: Um tribunal não pode levantar de ofício un moyen não invocado pelas partes e sobre o qual uma delas não haja sido chamada a se manifestar; A Corte deve dar vista à parte para que apresente suas alegações, desde que levante de ofício un moyen não invocado; Um juiz francês não pode aplicar lei estrangeira por ele invocada de ofício, senão após dar vista às partes para que, em contraditório, se manifestem sobre sua aplicação e sua interpretação; Os juizes não podem reter, mesmo a título de informação, contra uma das partes, laudos técnicos que não tenham sido elaborados em contraditório com ela; É vedado aos juizes fundamentar suas decisões sobre uma peça produzida por uma parte, que não tenha sido submetida à discussão contraditória. As ementas, que serviram de base à citação, podem ser encontradas no Noiveau Code de Procédure Civile et Code de Procédure Civile, soixantetreizième édition, Paris: Dalloz, 1981, nas notas referentes ao art. 16. necessárias para a instrução do processo, determinadas de ofício, devem ser postas no debate do contraditório. 177 Em recente obra, ADA PELLEGRINI GRINOVER faz um profundo exame da garantia do contraditório na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos da América e no Brasil, salientando, quanto à participação do juiz, a observância do contraditório que alcança as provas introduzidas de ofício, e o zelo pela correta garantia da integral utilização dos prazos. 178 A preocupação com o rápido andamento do processo, com a superação do estigma da morosidade da Justiça que prejudica o próprio direito de acesso ao Judiciário, porque esse direito é também o direito à resposta do Estado ao jurisdicionado, é compartilhada hoje por toda a doutrina do Direito Processual Civil. As propostas de novas categorias e de novas vias que abreviem o momento da decisão são particularmente voltadas 177 LOURIVAL VILELA VIANA, aprofundando a reflexão sobre a extensão do contraditório, levanta a questão da eventual relapsia ou inaptidão do defensor, no processo penal, e indaga se o juiz deve assistir inerte ao fato. Conclui que "no caso de omissão, não houve contraditório (que é garantia assegurada constitucionalmente), não se atendeu à defesa plena (que é também imperativo constitucional)". Cf. Defesa Penal, in Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vol. 14, nº 1, janeiro-dezembro, 1985, pp. 33/44, v. especialmente p. 4l). A mesma solução quanto à inexistência do contraditório, no cível, aplica-se quando o juiz omite seu dever de assegurar às partes o debate sobre os elementos capazes de influir no convencimento que sustentará a decisão. 178 Cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER - Novas Tendências do Direito Processual - de acordo com a Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, pp. 17/44. Sobre a necessidade do equilíbrio na fixação dos prazos para que seja viável sua utilização, podem ser relembradas as ponderações de LUÍS EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, de que a redução de prazos não contribui para abreviar o julgamento e é apenas causa de angústia para os advogados. Cf. Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, vol. VI, arts. 485 a 495, p. 223. A questão é também posta por ALCIDES DE MENDONÇA LIMA: "não se agrava o processo por meio de prazos longos e nem se beneficiam os litigantes com prazos curtos". Cf. Introdução aos Recursos Cíveis, 2 a ed., rev. e atual., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, p. 269. para a economia e a celeridade como predicados essenciais da decisão justa, sobretudo quando a natureza dos interesses em jogo exige que os ritos sejam simplificados. 179 Contudo, a economia e a celeridade do processo não são incompatíveis com as garantias das partes, 180 e a garantia constitucional do contraditório não permite que seja ele violado em nome do rápido andamento do processo. 181 A decisão não se qualifica como justa apenas pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença. O juiz, sendo terceiro em relação aos efeitos do provimento, não é um "terceiro no processo", no desenvolvimento do procedimento realizado em contraditório para preparar o provimento, como não o é em relação ao próprio ato final do provimento. Não é um estranho no desenvolvimento do iter processual, pois dele não pode estar ausente, em relação a ele não pode ser alheio; é necessário que esteja presente, atuante nos atos 179 Cf. CÂNDIDO R DINAMARCO - Manual das Pequenas Causas, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1986, pp. 3/8. 180 Cf. KAZUO WATANABE... (et al.) -Juizado Especial de Pequenas Causas, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985. 181 A tendência para a celeridade é característica da época. Lembre-se, a propósito, o instituto do "processo de adesão" que permite o pedido de reparação civil no próprio processo criminal a que o lesado é facultado a aderir e que foi objeto de recente Simpósio realizado em Sarre, na Alemanha, conforme divulgado por JOÃO BAPTISTA VILLEIA na resenha da publicação. "Will, Michael R (Hrsg.). Schadensersatz im Strafverfahren: Rechtsvergleicbendes Symposium zum Adhàsionsprozess. Kehl am Rhein: Engel, 1990". "In Síntese, Nova Fase, nº 52, vol. XVIII janeiro-março, 1991, pp. 109/112. No Direito brasileiro as inovações certamente virão com a aplicação do art. 98, item I da Constituição da República de 1988, pela criação dos juizados especiais para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumaríssimo. A grande abertura para a celeridade, entretanto, está na competência concorrente, prevista no art. 24, XI, da Constituição de 1988, que permitirá novas construções e já constitui um desafio à criatividade dos juristas. judiciais que visem a assegurar o desenvolvimento correto e pleno do princípio do contraditório. Fazê-lo observar significará cumprir o dever da jurisdição, para assegurar que o contraditório não seja negligenciado, violado, que a participação das partes em simétrica paridade seja eficazmente garantida 182 . Observá-lo, ele mesmo, significará que o juiz se submete às normas do processo pelas quais os atos das partes são garantidos, que o juiz não pode se recusar ao cumprimento da norma que instituiu o direito de igual participação das partes, em simétrica paridade. A necessidade da observância do contraditório também na execução forçada é ressaltada por SÉRGIO LA CHINA, que se preocupa em apontar as normas do Direito italiano e examinar os princípios que visam a impedir a emanação do provimento inaudita altera parte. O princípio do contraditório, tecnicamente considerado, segundo expõe, se articula em dois tempos essenciais: informazione, reazione; a primeira, sempre necessária, e a segunda, sendo eventual, devendo ser necessariamente garantida na possibilidade de sua manifestação.183 O juiz tem o dever de informar e de garantir que a informação seja dada, para que a parte, querendo, possa intervir. E quando se diz querendo, pretende-se realçar que a parte jamais poderia ser obrigada a vir praticar os atos processuais que lhe são destinados, podendo optar por suportar os eventuais ônus de sua omissão. Não se pode perder de vista que o contraditório é a garantia, a possibilidade assegurada da participação das partes em simétrica paridade, e uma garantia, considerada do ângulo do Estado, é um dever, mas do ângulo do jurisdicionado 182 Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA - A garantia do contraditório na atividade de instrução - in Temas de Direito Processual: terceira série, São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 65/77. 183 Cf. SÉRGIO LA CHINA, L'Esecuzione Forzata e Le Disposizioni Generali del Códice di Procedura Civíle, Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 1970, pp. 39V402, v. especialmente p. 394. jamais pode ser identificada a uma coação, porque sempre será proteção assegurada pelo Direito. A idéia da participação, como elemento integrante do contraditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desenvolveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera participação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo. O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas os "interessados e os contra-interessados" na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo imperativamente em seu patrimônio. O contraditório não é o "dizer" e o "contradizer" sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, q u e se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo. As várias espécies de processo não se regem por normas, que prevêem atos e posições subjetivas, iguais "em conteúdo e número", como diz FAZZALARI, normas qualitativa e quantitativamente iguais. Há processos mais extensos e processos mais sumários. Mas o contraditório será sempre o mesmo, enquanto igualdade de oportunidades, ou garantia de participação simetricamente igual. 184 184 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 85. A essência do contraditório, que é a igualdade simétrica de oportunidade dos participantes que sofrerão os efeitos do ato final, do provimento, a igualdade de oportunidade de "dizer e contradizer", não se confunde com o seu objeto, que se constitui das questões que se suscitam sobre os atos processuais. E essas questões devem ser distinguidas da quaestio, no específico sentido de res dubia, que nem sempre se torna questão controversa. O objeto do contraditório, como elucida FAZZALARI, é constituído das questões relativas aos atos processuais que compõem a própria atividade processual. Sobre a admissibilidade desses atos, no sentido de que sejam lícitos ou devidos, vale dizer, de que os sujeitos do processo tenham a faculdade, o poder ou o dever de praticá-los, se tais atos são pertinentes ou úteis, formam-se as questões. São questões que incidem sobre os atos dos sujeitos do processo. A quaestio, 185 no sentido próprio de quesito, de res dubia, não se identifica com as questões objeto do contraditório, porque o seu conteúdo incide sobre os requisitos legais do próprio ato, e não sobre a admissibilidade do ato (no sentido exposto, de que o referido ato constitui uma faculdade, um poder ou um dever do sujeito do processo), ou sobre sua oportunidade. A quaestio, no sentido de res dubia, pode ou não comparecer no processo como objeto do contraditório, pois nem sempre o contraditório se fixa sobre ela. A sua solução pode resultar do exame dos requisitos legais do ato pelo próprio sujeito que dele seja titular, que faz o prévio controle dos pressupostos legais de sua existência e subsistência jurídica. E, uma vez resolvida, pode ocorrer que a quaestio sequer seja suscitada no processo. Pode ocorrer, ainda, que ela seja levantada e que seja resolvida sem divergências. Mas, pode 185 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - A Prescrição no Processo do Trabalho, Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ltda, 1987, 2 a ed., p. 55. 186 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 86. ocorrer a terceira hipótese, que é a da solução disputada, que é a da controvérsia sobre a solução juridicamente correta para resolver a res dubia. Nesse caso, em razão da disputa, da controvérsia, a quaestio passa a ser questão controvertida, e, nesse caso, sobre ela instala-se o contraditório, como o "dizer e contradizer". FAZZALARI adverte sobre a sinonímia imprópria que se estabelece entre "questão e questão controvertida", porque a questão, no sentido próprio de res dubia, não é necessariamente controvertida. É a manifestação do contraditório em torno dela que faz com que o uso das duas expressões questão e questão controversa seja, com certa freqüência, indiferenciado, e como a questão controvertida é a mais freqüente nos processos que concretamente se desenvolvem, a idéia de contraditório surge impregnada do sentido de "dizer e contradizer". 187 6.5. CONDIÇÕES E RESULTADOS DA CARACTERIZAÇÃO DO CONTRADITÓRIO O contraditório, como garantia de participação paritária, em simétrica igualdade, das pessoas a que se destina o provimento, no processo, supõe, naturalmente, mais de um sujeito, na fase preparatória do ato final. A doutrina, utilizando os conceitos tradicionais, tem tido dificuldades para caracterizar a natureza do processo penal, levantando até mesmo questões paradoxais, como as postas por CARNELUTTI, de que não é ele um processo "de partes" e de que a jurisdição é una potestad que pertenece al juez y no al Estado.188 Essa dificuldade desaparece com o conceito atual do contraditório. No processo penal, os interessados no ato final são o 187 Cf. FAZZAIARI, op. cit., pp. 85/86, 188 Cf. CARNELUTTI -Derecho Procesal Civil y Penal, Trad. de Santiago Sentis Meleno, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971, vol. I, p. 70 e vot. II p. 63. acusado e o Estado, que atua como parte, através do Ministério Público. Entre eles o contraditório se desenvolve. As questões suscitadas em torno do argumento de que o Estado é também o autor do ato final resolvem-se pela essência do contraditório. Essa essência exige, como diz FAZZALARI, que do processo participem pelo menos dois sujeitos, um interessado e outro contrainteressado, um dos quais receberá os efeitos favoráveis e o outro os efeitos desfavoráveis do ato final. O autor do ato final pode ser um dos contraditores, mas o que o distingue, como autor do ato e como contraditor, é a sua posição, nessa qualidade, de simétrica paridade em relação ao outro, ou aos outros contraditores. 189 A dupla atividade do Estado, como parte, através do Ministério Público e como poder, que atua pelo órgão jurisdicional, não prejudica o processo se nele há a garantia do contraditório, e é exatamente a presença do contraditório, no processo penal, que necessariamente o caracteriza como processo, que faz dele um procedimento realizado em contraditório entre as partes. Outro tema que se põe à reflexão, à luz do conceito do contraditório, é o da caracterização do processo de execução. FAZZALARI faz ressalvas quanto a ele, porque nele não vislumbra o contraditório. Entretanto, mesmo considerando-o como um procedimento sem contraditório, entende que sua estrutura legal é disposta para comportar um verdadeiro processo. 190 No ordenamento jurídico brasileiro, não pode subsistir dúvida de que o processo de execução é processo, em toda a extensão desse termo, e não porque haja nele manifestação do poder jurisdicional. O poder jurisdicional se manifesta em "jurisdição contenciosa" e em "jurisdição voluntária". O que torna o processo de execução um verdadeiro processo é a presença do contraditório, e este emerge de várias questões que incidem 189 Cf. FAZZALARI, op. cit, pp. 83/84. 190 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 98. sobre a faculdade, o poder ou o dever de praticar um ato, sua oportunidade e utilidade no processo. Surge, igualmente, a res dubia sobre a subsistência de atos que, não raro, transformam-se em questão controvertida. CÂNDIDO R. DINAMARCO demonstra, em outros termos, a presença da controvérsia e do contraditório na execução, quando, conforme diz: "O juiz é seguidamente chamado, na realidade, a proferir juízos de valor no processo de execução, seja acerca dos pressupostos processuais, condições da ação ou dos pressupostos específicos dos diversos atos levados ou a levar a efeito." 191 Em sua exposição, fornece vários exemplos em que questões são resolvidas, e ressalta que a preparação do ato final da execução é feita com a garantia do contraditório. O processo é o procedimento que se desenvolve em contraditório entre os interessados, na fase de preparação do ato final e entre o ato inicial do procedimento de execução até o ato final, aquele provimento pelo qual ela é julgada extinta, está presente o contraditório, como possibilidade de participação simetricamente igual dos destinatários do ato de caráter imperativo que esgota o procedimento. É claro que o provimento, no processo de conhecimento, tem conteúdo distinto do ato final da execução e é mesmo pressuposto substancial desta. Mas é também claro que o ato final da execução se caracteriza como provimento, porque incide imperativamente sobre a situação jurídica das partes, produzindo também efeitos sobre o seu universum ius. Como procedimento realizado em contraditório, o processo caracteriza-se por ser uma atividade cuja estrutura normativa (organizada por uma forma especial de conexão das normas e dos atos por elas disciplinados) exige que, na fase que precede o provimento, o ato final de caráter imperativo, seja garantida a participação daqueles que são os destinatários de seus efeitos, em contraditório, ou seja, em simétrica igualdade de oportuni191 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, 2a ed., rev. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 107. dades, e, pelo "dizer e contradizer", que resulta da controvérsia sobre os atos, seja-lhes assegurado o exercício do mesmo controle sobre a atividade processual. A caracterização do processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes não é compatível com o conceito de processo como relação jurídica. 192 Ressaltou-se, neste capítulo, o quanto foi possível, a idéia de contraditório como direito de participação, o conceito renovado de contraditório como garantia de participação em simétrica paridade, o contraditório como oportunidade de participação, como direito, hoje revestido da especial proteção constitucional. O conceito de relação jurídica é o de vínculo de exigibilidade, de subordinação, de supra e infra-ordenação, de sujeição. Uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é liberdade assegurada. Se o contraditório é garantia de simétrica igualdade de participação no processo, como conciliálo com a categoria da relação jurídica? Os conceitos de garantia e de vínculo de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos. O processo como relação jurídica e como procedimento realizado em contraditório entre as partes não se encontram no mesmo quadro, e não há ponto de identificação entre eles que permita sua unificação conceitual. 192 Em sentido contrário v. CÂNDIDO R. DINAMARCO - Execução Civil, 2ª ed., rev. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, pp. 96/103. Fundamentos do Processo Civil Moderno, 2 a ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, pp. 64/72. CAPÍTULO VII A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO 7.1. A AÇÃO: RESPOSTA DA CIÊNCIA AO PROBLEMA DE UMA ÉPOCA O trabalho de investigação científica deve sempre relembrar que as teorias não se constroem no vazio. Elas aparecem sempre para dar, ou pelo menos para buscar, respostas adequadas aos problemas de cada época. Não foi por acaso que a polêmica sobre a natureza jurídica do direito de ação partiria da Alemanha, e dali se desenvolveria para dar início à construção da ciência do Direito Processual Civil, que tem uma data especial — o 03 de fevereiro de 1903, um local especial — a Faculdade de Direito de Bolonha, um nome especial — GIUSEPPE CHIOVENDA, e, também, um documento especial: o texto da conferência intitulada L'azione nel sistema dei diritti. A polêmica entre WINDSCHEID e MUTHER representou a contraposição de duas posturas teóricas, que a Alemanha pandectista, na época, comportava. O movimento pandectista revigorava e atualizava o Direito Romano, com base no último Direito das Pandectas de Justiniano, e deixou ilustres nomes na histó- dade da lei em tese, as divergências doutrinárias 169 sobre sua natureza, como "processo" ou como processo de "jurisdição voluntária", ou seja, simples procedimento, não poderão ser resolvidas sem o exame do direito positivo, que determina a estrutura do procedimento em que se dá o controle da constitucionalidade. As dúvidas, entretanto, não alcançam o Direito brasileiro, pois o contraditório ressalta do art. 103 e parágrafos, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, sendo que o § 3º expressamente determina a prévia citação do Advogado-Geral da União, "que defenderá o ato ou o texto impugnado, quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade em tese (abstrata) de norma legal ou ato normativo. É, portanto, um verdadeiro processo, e não um simples procedimento, ou um "processo de jurisdição voluntária". O procedimento legislativo, conforme observa FAZZALARI, sempre é processo, sempre se realiza como "espécie" processo, sempre se realiza com a participação de parlamentares que representam e reproduzem os interesses divergentes dos grupos e comunidades dos cidadãos. E na sua caracterização que FAZZALARI sublinha o valor da própria estrutura do processo para a democracia, o momento em que ele comparece nitidamente como um instrumento para a garantia da liberdade: "Si tratta, dunque non di meri procedimenti, bensi di processi. Qui il processo conferma, se mai ve ne sia bisogno, la sua essenza di struttura privilegiata per la gestione democrática di attività fondamentali; e dunque, di strumento per la salvaguardia delle liberta"170. 169 Em linha contrária à de FAZZALARI, CAPPELLETTI sustenta a tese de que "a jurisdição constitucional é uma dentre as grandes manifestações da jurisdição não 'contenciosa', latu sensu, 'voluntária'" Cf. MAURO CAPPELLETTI O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, trad. de Aroldo Plínio Gonçalves, Revisão de José Carlos Barbosa Moreira, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, pp. 125/126. 170 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 580. Não custa repetir, resistir, persistir e insistir na necessidade da urgente edição dos Códigos Estaduais de Processo (civil particular pedir ao magistrado a fórmula em que a proteção estava condensada, e esse direito ao formulário era a actió) e a glage, ou Klagerecht — o direito de demanda, de querela, de queixa. A actio, que WINDSCHEID quis substituir por pretensão (Anspruch) significava o direito de se exigir de alguém uma ação ou uma omissão. A Klage não era essa pretensão, mas o direito de ter a tutela jurisdicional do Estado, assim, a actio era dirigida contra o obrigado, e a Klage, contra o Estado 196 . Compreende-se por que a discussão doutrinária durou tanto tempo, pois, embora diferentes, as bases das duas concepções fundavam-se em um direito que os juristas alemães atualizavam para fins práticos e que encontrou aplicação até 1900, quando se completou a elaboração do BGB, para o qual WINDSCHEID contribuiu oficialmente, integrando a primeira comissão que se dedicara ao projeto. Um segundo ponto que deve ser ressaltado é o de que o Direito Processual Civil não se desenvolveu à margem dos próprios sistemas jurídicos positivos, e sim como parte deles, e, por isso, quando se compara, por exemplo, o direito de ação, no Brasil, de 1891 a 1934, de 1934 a 1937, de 1937 a 1946, de 1946 a 1967, de 1967 a 1969, de 1969 a 1988 e o direito de ação no Brasil a partir de 05 de outubro de 1988, é claro que haveria diferença sobre o que poderia ser dito sobre ele 1 9 7 . A análise de 196 Cf. GIUSEPPE CHIOVENDA - Saggi di Diritto Processuale Civile (19001930) Nuova Edizione Considerevolmente Autnentata dei 'Saggi' e dei 'Nuovi Saggi", volume primo, Roma: Società Editrice - Foro Italiano, 1930, pp. 3/99- Para uma conexão entre o plano histórico e a teoria do Direito v. WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA, Introdução ao Direito (Filosofia, História e Ciência do Direito), vol. II, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1968, pp. 902/903; ENRIQUE AFTALIÓN, FERNANDO GARCIA OLANO e JOSÉ VILANOVA t- Introducción al Derecho, Buenos Aires: La Ley, 1967, 8 a ed., pp.759/762. 197 O "direito de ação" foi incluído entre os direitos constitucionalmente garantidos, no Brasil, na Constituição de 18 de setembro de 1946, art. 141, § 4º: "A Lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual". Nesses mesmos termos, foi acolhido no art. 150, § 4° da Constituição de 24 de janeiro de 1967. Na Emenda Constitu- doutrinas históricas deve comportar, portanto, a relatividade histórica, caso contrário corre-se o risco de se ser absolutamente impertinente nas possíveis conclusões que delas se tente extrair, com a certeza de se ser extremamente injusto com os grandes passos dados na obra comum de construção do conhecimento. As teorias sobre o direito de ação fizeram dela o centro de interesse do Direito Processual Civil. Talvez seja o tema mais discutido nesse ramo do Direito, e, com apoio em CELSO BARBI, pode-se afirmar que "o conceito de ação talvez seja o mais polêmico entre todos os do Direito Processual" 198 . A importância histórica que o conceito de ação teve no desenvolvimento da investigação e da construção científica do Direito Processual Civil certamente justificou esse imensurável interesse por ele. O lugar ocupado pelo direito de ação, considecional nº 1 de 17 de outubro de 1969, a redação sofreu alterações, no art. 153, § 4°: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido". Na Constituição 05 de outubro de 1988, foi expresso em fórmula lapidar, de extrema felicidade; art. 5 , item XXXV: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Nas Constituições anteriores, não há dispositivo análogo, nas declarações de direitos. A de 1937, no art. 122, item 7, inclui entre os direitos e garantias individuais, em fórmula genérica, "o direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral". A Constituição de 1934 prevê, no art. 113, item 10, da declaração de direitos, o direito de representação garantido "a quem quer que seja". A Constituição de 1891, nos direitos declarados no art. 72, não contém disposição análoga. A Constituição de 1824, no art. 179, item XXX, dispõe sobre o direito de representação e petição, perante o Poder Legislativo e Executivo, e embora contenha disposições da maior atualidade sobre o Poder Judiciário (art. 179, XII) não se refere ao direito de ação em geral. Há, sim, nessas Constituições, as garantias criminais, que, aliás, juntamente com os direitos políticos e as liberdades individuais, foram as primeiras que compareceram nas Declarações de Direito que tiveram repercussão universal (a mais importante delas, historicamente, a de 1789, na França). 198 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI - Comentários ao Código de Processo Civil, Lei nº 5869, de 11 de janeiro de 1973, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1991, p.16. rado, ao lado da jurisdição e do processo, como elemento fundamental na estrutura científica do Direito Processual Civil199, é, ainda, tão destacado como o foi (embora não se tenha certeza de que o verbo possa ser usado corretamente no passado) o do direito subjetivo, no Direito Civil. As teorias sobre o direito de ação, construídas sobre o conceito de relação jurídica, não podiam deixar de vislumbrá-lo como um direito subjetivo. E sobre a espécie de direito subjetivo que seria, no amplo quadro da classificação que cresceu à medida que o tema se desenvolvia, formularam-se as propostas doutrinárias. A partir da polêmica entre WINDSCHEID e MUTHER, com seus desdobramentos, surgia a concepção de ação como um direito subjetivo público oponível ao Estado, que assumia o dever, no pólo passivo de uma relação jurídica, de prestar a tutela jurídica, e a conquista da noção de "prestação" jurisdicional se fez básica em vários conceitos, que encerram variações sobre o direito concreto ou abstrato correlato dessa "prestação". CHIOVENDA sempre merecerá destaque especial na história do Direito Processual Civil; com ele, firmou-se a concepção do direito de ação como direito subjetivo de natureza potestativa e do processo como relação jurídica e como instrumento de atuação da lei 200 . À importância que CHIOVENDA teve no desenvolvimento do Direito Processual Civil pode-se comparar a importância que teve ENRICO TULLIO LIEBMAN, no desenvolvimento do Direito Processual Civil no Brasil. O realce que lhe é devido não se liga apenas a seu magistério na Universidade de São Paulo, que seus discípulos lembram com justo orgulho e especial veneração 201 199 Cf. J. RAMIRO PODETTI - Teoria e Técnica del Processo civil Y Trilogia Estmctural de la Ciência del Processo Civil, Buenos Aires: EDIAR - Soc. Anón. Editores, 1963, pp. 335/415. 200 Cf. CHIOVENDA. Saggi di Diritto Processuale Civile, op. cit., pp. 18/26, 227/238. 201 Cf. ENRICO TULLIO LIEBMAN, Manual de Direito Processual Civil, I, Tradução e notas de CÂNDIDO R. DINAMARCO, Rio de Janeiro: Forense, pela figura do Mestre, mediante o qual influenciou profundamente a formação de brilhantes processualistas, mas também às possíveis marcas de várias de suas teses no próprio Direito positivo, através do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, que traz a chancela do Congresso Nacional, sob a exposição de motivos de um de seus discípulos, o Ministro da Justiça ALFREDO BUZAID. LIEBMAN distingue o "poder de agir em juízo", "garantia constitucionalmente instituída", "reflexo ex parte subiecti da instituição dos tribunais pelo Estado", do direito de ação, "direito subjetivo sobre o qual está construído todo o sistema do processo", delineado no art. 24 da Constituição italiana, e caracterizado na norma infra-constitucional. Do art. 24 da Constituição italiana, extrai a "legitimação para agir", referindo-o à atribuição da tutela dos próprios direitos e interesses legítimos, e o "interesse de agir". "Como", segundo diz, "o direito de agir é concedido para a tutela de um direito ou interesse legítimo, é claro que existe apenas quando há necessidade dessa tutela, ou seja, quando o direito ou o interesse legítimo não foi satisfeito como era devido, ou quando foi contestado, reduzido à incerteza ou gravemente ameaçado 202 . Nos termos do art. 24 da Constituição (italiana), dentre os que podem propor uma demanda encontram-se os "que são titulares de um verdadeiro direito que, com referência a uma situação determinada e concreta, visam a obter um 1984, v. "Palavras do Tradutor". V. CÂNDIDO R. DINAMARCO: "A Formação do Moderno Processo Civil Brasileiro (Uma Homenagem a Enrico Tullio Liebman)", conferência proferida quando LIEBMAN recebeu a Comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul/w Fundamentos do Processo Civil Moderno, 2ª ed., São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1987, pp. 1/11. V. ainda ADA PELLEGRINI GRINOVER — "O Magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil", publicado originalmente na Rivista di diritto processuale, 1986, v.4, por ocasião do falecimento de Liebman, in Novas Tendências do Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, pp. 439/442. 202 Cf. LIEBMAN, op. cit., p.150. pronunciamento sobre essa demanda, para que ela seja julgada procedente ou improcedente, sendo com isso negada ou concedida a tutela pedida. Esse direito é precisamente a ação, que tem por garantia constitucional o genérico poder de agir, mas em si mesma nada tem de genérico: ao contrário "guarda relação com uma situação concreta, decorrente de uma alegada lesão a direito ou interesse legítimo do seu titular(...) 203 ". A existência da ação, em LIEBMAN, tem como requisitos duas condições: o interesse de agir e a legitimação, e esses requisitos de existência são dados na norma processual 204 . O fato de que LIEBMAN haja admitido que o provimento pode não ser favorável à pretensão do autor não é significativo, pois lesão e ameaça a direitos se provam no processo, e o conteúdo da decisão final depende, e muito, do que está nos autos. Entre a alegação de uma lesão de direito substancial e o conteúdo de uma sentença há uma relação inegável, mas entre eles há, também, inegavelmente, todo um desdobrar de atos processuais que preparam as condições do advento da sentença, e também as condições materiais para a formação de seu conteúdo. Significativa, na verdade, é a cisão feita por LIEBMAN entre "o direito de agir em juízo" e "o direito de ação" delineado no art. 24 da Constituição italiana, tendo sua existência caracterizada na norma infra-constitucional em relação à situação jurídica concreta: a ação separada do poder de agir, o corte entre o genérico poder de agir como garantia constitucional e o direito de ação, a "ação como direito ao processo e ao julgamento do mérito" 205 . O art. 24 da Constituição italiana, que reserva o direito de agir em juízo para a "tutela dos próprios direitos e interesses legítimos" 206 não teve paralelo fiel nas Constituições brasileiras. 203 Cf. LIEBMAN, op. cit., pp. 150/151. 204 Cf. LIEBMAN, op. cie, pp. 153/159. 205 Cf. LIEBMAN, op. cit., p.151. 206 Cf. LIEBMAN, op. cit., p.150. Ressalte-se que, embora não haja interesse em se acompanhar a evolução constitucional do direito de ação, mesmo porque isso exigiria um longo desvio do tema central desse trabalho, não se p o d e deixar de pôr em evidência a premissa de que partia LIEBMAN, por ele próprio explicitada, quando separou o "poder de agir em juízo" e o "direito de ação", no plano constitucional e no do direito infra-constitucional nele alicerçado. As dificuldades dessa construção, que em LIEBMAN se vinculam ao problema das doutrinas erigidas sobre a ação, são também enfrentadas por FAZZALARI, que adota um esquema conceituai distinto, em que repudia o processo como relação jurídica e reelabora o conceito de "direito de ação". E chega a elas, precisamente, quando, discorrendo sobre as medidas jurisdicionais e o provimento, adverte que nem todo processo jurisdícional se desenvolve por inteiro, e seu primeiro exemplo é o da hipótese em que há recusa do provimento 207 . O tema fica ainda mais claro quando, examinando os pressupostos processuais, FAZZALARI demonstra que "nei processi di cognizione, il giudice, prima de emettere, e per emettere, il comando in che la sentenza consiste, accerta, in epílogo del processo, la sussistenza del dovere, del diritto, della lesione; si di contro, gliene risulti la insussistenza, egli non potrà emettere la sentenza e dovrà rigettare la domanda"208. A assertiva de FAZZALARI é compreensível, assim como era a de LIEBMAN, diante do art. 24 da Constituição Italiana, de 1947: "Tutti possono agire in giudizio per la tutela dei propri diritti e interessi legittimi. La difesa è diritto inviolabile in ogni stato e grado del procedimento. 207 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 99. 208 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 259. Sono assicurati ai non abbienti, con appositi istituti, i mezzi per agire e difendersi davanti ad ogni giurisdizione. La legge determina le condizioni e i modiper la riparazione degli errori giudiziari"209. Há sensível diferença entre o texto da Constituição italiana e o texto da Constituição brasileira. Por este, é logicamente possível afirmar-se que o ato final do processo que seja uma decisão desfavorável ao autor recusa o provimento do pedido formulado sobre o direito substancial, mas não o pedido da apreciação da lesão ou ameaça a direito. Mesmo ocorrendo a hipótese em que não fique acertada a existência do ilícito, se não há causa que impeça o julgamento do mérito, a sentença desfavorável é emitida e o processo, no sistema brasileiro, terá se realizado por inteiro. Quando se sentem as insuficiências das doutrinas sobre o direito de ação, talvez se esteja sentindo também a insuficiência da apreensão da ordem jurídica vigente no contexto em que foram formuladas. Não foi gratuitamente que os autores alemães puderam fazer oposição a WINDSCHEID, mas, ao contrário, tinham eles todo o suporte do Klagerecht. CELSO BARBI anota sobre o direito de ação que "nenhuma das teorias até hoje construídas está isenta de críticas irrespondíveis" 210 . A confirmação da assertiva está na quase generalidade das obras de Processo Civil. Não se pretende repassar essas críticas, mas em relação ao Código de Processo Civil brasileiro, de 1973, pelo menos duas considerações devem ser feitas, em torno da concepção do direito de ação nele acolhida, e que já se fez objeto de polêmica. 209 Cf. O texto utilizado é da Costítttzione, que integra a compilação Códice Civile e di Procedura Civile e Leggi Complementarí, a cura di F. CARNELUTTI, W. BIGIAVI, A. CALTABIANO, Edizione Aggiornata al 10 giugno 1980, Padova: CEDAM - Casa Editríce Dott. A Milani, 1980. 210 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI, op. cit., p. 20. As condições fixadas pelo art. 3º do Código "Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade" — "interesse" e "legitimidade" — são condições que só poderiam ser apreciadas após a instalação do processo, e assim só podem se tornar questões intraprocessuais. A instauração do processo não depende delas, e nem mesmo podem elas existir antes do processo. O art. 267, item VI, permite a extinção do processo sem julgamento do mérito "quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual". Pelo confronto desse artigo com os arts. 890 a 900, 901 a 906, 914, 920 a 940, CELSO BARB1 entende haver uma possível contradição na linha do Código, que parecia haver adotado a tese de LIEBMAN, e após parece se adaptar à concepção de CHIOVENDA211. Mas, haverá mesmo tal adoção da tese de LIEBMAN ou de CHIOVENDA nessas disposições? O Código do Processo Civil entrou em vigor sob a égide da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que na primeira parte do § 4-, do art. 153, dispunha: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual". O direito de submeter o ilícito, porque lesão a direito é ilícito, à apreciação do Judiciário não se condicionou aos direitos substanciais 212 . Quando o item VI, do art. 267, do Código de Processo Civil, fala em condições da ação, fala, conseqüentemente, em condi- 211 Cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI, op. cit., p. 20. 212 Sobre as dificuldades que decorrem do condicionamento do direito de ação à existência do direito subjetivo, que levam à solução de que "não tem ação quem não tem razão", cf. CELSO AGRÍCOLA BARBI -Ação Declaratória Principal e Incidente, 6 a ed. rev., aumentada e atual., de acordo com o Código de Processo Civil de 1973 e legislação posterior, Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 60/65. ções que, como se disse, só podem ser verificadas dentro do processo. Os procedimentos especiais dos arts. 914, 926, 934, reservam determinadas ações a quem detém uma qualidade jurídica específica, um status decorrente de uma determinada situação jurídica. Assim, também, os artigos que tratam da ação de consignação em pagamento, da ação de depósito e das ações possessórias. Pelas disposições desses artigos não se pode pré-definir a sentença, ou seja, não há qualquer possibilidade de se afirmar de antemão que a sentença será favorável ou desfavorável ao autor. A sentença deverá ser preparada pelos atos do processo, e enquanto esses não se cumprem, não se pode antecipar seu conteúdo. Não parece, portanto, que possa ser evidenciada a marca de LIEBMAN ou de CHIOVENDA em tais disposições, ou que se possa, por elas, extrair contradições do Código. Talvez haja chegado o tempo de se tentar visualizar o direito de ação sob outros prismas, que permitam uma maior aproximação das novas conquistas da teoria do Direito e da realidade do sistema jurídico, que tem a sua unidade e o seu fundamento no sistema constitucional. 7.2. A REVISÃO DO CONCEITO DE AÇÃO O princípio nemo judex sine actore, que é um princípio da própria jurisdição, disciplinada de forma que o Estado responda ao pedido para fazer cessar o ilícito, para promover a reparação dos direitos lesados e prevenir a lesão de direitos ameaçados, aplicando as medidas jurisdicionais previstas no ordenamento jurídico, exige a iniciativa do sujeito que almeja a tutela jurisdicional. Sobre a natureza do ato inaugural do processo denominado pela doutrina direito de ação, travaram-se debates pelo decurso deste século. O direito de ação encontrou, entretanto, o seu momento de revisão em uma reelaboração conceituai mais ajus- tada aos progressos verificados no quadro dos conceitos gerais do Direito. Lembrando a preleção de CHIOVENDA, Vazione nel sistema dei diritti, de 1903, o estudo de LIEBMAN L 'azione nella teoria del processo civile, de 1950, e outros clássicos, FAZZALARI registra que a relatividade do conceito de ação já se encontra em CALAMANDREI, La relatività del conceito di azionne, de 1939, em ORESTANO, Azione in generale, verbete da Enciclopédia del diritto, de 1959, e prevê a aproximação da época em que se reconheça não apenas a historicidade das doutrinas, mas a própria historicidade do problema da ação e da ciência jurídica que o formulou 213 . FAZZALARI faz a revisão do conceito de ação tomando como critério a legitimação para agir, que não pode ser concebida como atribuída apenas ao autor, mas se estende a todos os sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para agir não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos. Entretanto, a legitimação para agir, trabalhada pelo Direito Processual Civil, é espécie do gênero legitimação, que é um conceito geral do Direito, e é por esta base que desenvolve o argumento, no qual procede ao reexame da ação. A legitimação em gênero é contemplada por FAZZALARI sob um duplo aspecto: o da "situação legitimante" e o da "situação legitimada": "Chiamiamo situazione legittimante il punto di aggancio della legittimazione ad agire, fuor di metafora da situazione in base alia quale si determina qual'è il soggeto che, in 213 Cf. FAZZALARI - "Di recente, ORESTANO ha, anzi, aperto l'affascinante prospettiva di riconoscere, non solo e non tanto la storicità delle varie costruzioni proposte, ma anche la storicità dello stesso problema delVazione e delia scienxa giuridica cbe lo ha posto". Cf. op. cit., p.403Para FAZZALARI, o "conceito de ação" ainda é útil ("ancora utile, ma da elaborare e collocare ai suo posto"), enquanto que a idéia de "relação jurídica processual" deve ser de todo repudiada ("... ormai da ripudiare del tutto"). Cf. op. cit., p. 99. concreto, può e deve compiere un certo atto, e situazione legittimata il potere, a la facoltà, o il devere — o una serie dei medesimi-che, di conseguenza, viene a spettare al soggeto individuato, val dire il contenuto della legittimazione, ciò in cui essa consiste"214. Não é demais recordar que, na evolução do conceito de situação jurídica, a situação jurídica abstrata, de BONNECASE, foi superada e que a situação jurídica, seja objetiva ou subjetiva, para se constituir, dependerá sempre do cumprimento ou da ocorrência de um ato jurídico ou de um fato jurídico. A situação legitimante é uma situação constituída, perante a qual um poder, uma faculdade ou um dever são conferidos ao sujeito, e, conforme considerada por FAZZALÂRI, permite a indicação de quem pode atuar como sujeito em um processo concretamente considerado, quem deterá a legitimação para agir em um dado processo 215 . Tem-se argumentado que a legitimatio... sustenta-se na personalidade, o "atributo", ou em linguagem mais técnica, a qualidade pela qual se adquire o status de sujeito, a titularidade de direitos e deveres. Esse argumento é, contudo, absolutamente impróprio e insuficiente, pois a legitimação se dá sempre para determinado processo, para a participação em uma série de 214 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 289. 215 CÂNDIDO R. DINAMARCO utiliza a categoria de situação jurídica para caracterizar a "qualidade de parte", mas em linha diversa da de FAZZALÂRI, porque insere-a na categoria da relação jurídica processual: "Consiste esta, como se vê, na titularidade das situações jurídicas ativas e passivas que compõem a relação jurídica processual (faculdades, poderes, deveres, ônus, sujeição). Cf. Litisconsórcio (um estudo sobre o litisconsórcio comum, unitário, necessário, facultativo): doutrina e jurisprudência - 2 a ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1986, p.7. Bem cairia, aqui, a afirmação que FAZZALARI faz a respeito de CAIANIELLO que, embora aderindo à nova concepção, continua a impiegare anche il vecchio chicbè del rapporto processuale logo senza adesione convinta". (Cf. op. cit., p. 99, rodapé 15). atividades preparatórias de um determinado provimento, e de uma determinada medida jurisdicional. O critério para a determinação da legitimação para agir, no processo jurisdicional civil (podendo ser estendido a qualquer processo), é referido por FAZZALARI ao provimento, e, em conseqüência, à medida jurisdicional dele emanada. O provimento será o ponto referencial para que, com base na situação legitimante, se identifique quem é o sujeito, dentre os protagonistas do processo — as partes, (autor, réu, intervenientes), o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exigir —, que pode ou deve cumprir um determinado ato processual. Em relação às partes, os efeitos do provimento determinam a legitimação para agir porque esses efeitos incidirão no patrimônio (universum ius) dos sujeitos que dele são os destinatários, e o princípio do contraditório exige 216 que aqueles que sofrerão tais efeitos tenham a oportunidade de participar da fase de sua formação. Por isso, diz FAZZALARI, enquanto são legitimados passivos (perante o provimento), tais sujeitos são legitimados a "dizer e contradizer", são "legitimados ao processo" 217 . Anote-se que a própria concepção de parte já tem seu ponto focai de definição deslocado do pedido (parte não é mais apenas "aquele que pede...") para o destinatário do provimento, e, por isso, é sujeito do processo, com a garantia de participação nos atos que o preparam 218 . 216 Exigência hoje posta em princípio constitucional no ordenamento jurídico brasileiro - Constituição da República, art. 5º, LIV e LV. 217 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 289218 Sobre a correlação do conceito de parte com o provimento já se lê em PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA: "O conceito definitivo, preciso, de parte só nô-lo pode dar a sentença como ato final e de decisão do processo. Pode-se conceituar a Parte, no processo, todo aquele que, necessariamente, como destinatário ou como legitimado, compõe o pólo passivo da sentença". Cf. As partes no Processo Civil in Revista Brasileira de Direito Processual, Uberaba (MG), vol. 12, 4º trim. 1977, pp. 109/121, especialmente p.117. A situação legitimante da parte é constituída por dois elementos logicamente encadeados: o da medida jurisdicional requerida, e o dos sujeitos que serão por ela alcançados, que sofrerão seus efeitos. São eles que permitem a individualização de quem pode estar em juízo para participar do processo que se desenvolve em contraditório. Quanto à medida jurisdicional, seu estudo só pode ter por base o Direito positivo, pois cada sistema jurídico especifica aquelas que nele são possíveis, e cada espécie de processo contempla suas medidas. No processo jurisdicional civil, a medida jurisdicional que resulta da sentença condenatória pode se constituir, por exemplo, em um ato de eventual execução forçada que incidirá no patrimônio das partes, beneficiando o autor e atingindo desfavoravelmente a esfera patrimonial do devedor inadimplente, em um ato de execução forçada que incidirá diretamente sobre a disponibilidade física de um bem, e um ato que impõe a uma das partes um determinado comportamento como conteúdo de uma conduta. Pode-se, também, transferir os exemplos para o processo jurisdicional trabalhista, em que as reparações de direitos lesados comportam as medidas indenizatórias, a imissão na posse, a reintegração do empregado no serviço, a assinatura de uma Carteira de Trabalho. Em qualquer das hipóteses, o patrimônio das partes, como universum ius, é alcançado pelo provimento que, sendo favorável ao autor, impõe a medida jurisdicional requerida. Em caso de um provimento desfavorável ao autor, obviamente a medida por ele requerida não será imposta, mas o provimento, como ato final, de caráter imperativo, de qualquer modo alcança a esfera patrimonial das partes, acertando que, se não ocorreu a lesão, o universum ius não pode sofrer perturbação. Na análise feita por FAZZALARI, no caso concreto, pode ocorrer que o processo, ao invés de se concluir por um provimento, termine com um pronunciamento "de recusa", ou que a seqüência de atos fique a meio caminho porque a parte renuncia a seu prosseguimento (dentro das hipóteses permitidas na lei), ou porque o juiz se declara incompetente. A autonomia do processo se constata pelo seu resultado: o processo se desenvolve embora não chegue à medida jurisdicional, mas se desenvolve, mesmo para estabelecer se a medida jurisdicional deve ser, no caso concreto, emitida ou recusada 219 . Quanto às partes, perante a situação legitimante, que permite a indicação de quem pode estar em juízo, para, em determinado processo, participar, em contraditório, da formação do provimento, através da participação no iter procedimental, deve ser considerado que, além do autor e do réu, há os litisconsortes, e os intervenientes 220 . E, como parte é aquele a quem se destinam os efeitos do provimento, aquele que suportará ou se beneficiará de tais efeitos em seu universum ius, é oportuno que se façam duas considerações em torno do Direito brasileiro, sobre a questão da legitimação: a primeira, sobre a questão do revel, no Código de Processo Civil, de 1973, em conexão com a Constituição da República de 05 de outubro de 1988, e, a segunda, sobre a "legitimação extraordinária", que começa a assumir uma importância crescente, não porque constitua inovação, mas pelos efeitos sociais de medidas jurisdicionais em processos recentemente regulados. O art. 322 do Código de Processo Civil, de 1973, — "Contra o revel correrão os prazos independentemente de intimação. Poderá ele, entretanto, intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontra" — deve ser considerado revogado, porque se o contraditório era, anteriormente, apenas um princípio processual no Direito Processual Civil brasileiro, pela Constituição de 1988 foi elevado a princípio constitucional (art. 5º, LV da Constituição) 221 . 219 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 97 e s. 220 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - Da Denunciação da Lide, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2 a ed., 1987. 221 Ressalte-se que o sistema jurídico brasileiro, nesse ponto, superou os Pelo princípio da hierarquia das leis, o art. 322 do Código de Processo Civil perde a eficácia, pois contraria o princípio constitucional do contraditório. É possível que o réu não compareça para se defender por uma infinidade de motivos diversificados, que absolutamente não interferem em seu direito de participar da formação do provimento. Contudo, constitui enorme incongruência afirmar-se que ele poderá intervir em qualquer fase em que o processo se encontre, se se afirma, também e conjuntamente, que os prazos correm para ele, independentemente de intimação. Sem se entrar na questão das regras da contagem do prazo, já se percebe que seria verdadeiramente incompreensível a garantia de participação ao revel, em fases posteriores àquela em que se caracterizou o efeito da revelia, se não é ele cientificado dos atos que lhe permitam a participação. O art. 322 do Código de Processo Civil contraria o princípio do contraditório e é incompatível com a norma constitucional, pelo que só pode se considerar revogado. Quanto à "legitimação extraordinária", é necessário considerar que a legitimação para agir, enquanto posição subjetiva decorrente da situação legitimante, da qualidade para ser parte, pode ser objeto de disciplina legal que, em "caráter extraordinário", destina os efeitos do provimento a sujeitos que não participaram do processo. Mas a "legitimação extraordinária" constitui exceção ao princípio do contraditório, que exige que participem do iter que leva à formação do provimento aqueles que são seus destinatários, e, como se configura em exceção, só pode resultar da lei 222 . sistemas que vinham dando tratamento mais avançado ao contraditório, transformando-o em norma de Direito positivo, como o Código de Processo da França, que, no art. 16, expressamente estipula que o juiz deve, ele mesmo, observar e fazer observar o contraditório. 222 FAZZALARI alerta para a distinção entre legittimazione straordinaria e substituição processual — cf. op. cit. pp. 317/320. A propósito da substituição processual no Direito brasileiro, v. HÉLIO TORNAGHI - Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, vol. I, pp. 98/101, 1974. É interessante ressaltar que FAZZALARI, trantando a questão do ponto de vista do Direito italiano, faz ressalvas quanto à via daJustiça civil, para a proteção dos interesses coletivos ou difusos. Não se pode esquecer que o art. 24 da Constituição italiana, já mencionado anteriormente, em sua primeira parte, reserva a legitimação para agir em juízo a todos, "para a tutela de seus mente mais ampla, no item XXXV do art. 5º, como já se examinou, também, anteriormente. Por ele, não se poderá "excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a Direito". Os direitos lesados ou ameaçados, objeto da proteção jurisdicional, não são, a partir de 05 de outubro de 1988, apenas os direitos individuais, e não apenas para direitos próprios se pode postular a proteção jurisdicional. Perante a norma constitucional, encontram, assim, explicação lógica, as disposições do art. 103, itens I, II e III, §§ 1º a 4º, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Tais disposições não importam em alteração do conceito de coisa julgada 223 , mas em uma nova visão do conceito de parte, como aquele ou aqueles que devem receber os efeitos do provimento ou da medida jurisdicional por ele imposta. É evidente que a legitimação prevista nos arts. 81 e 82, da referida lei, importa em representação, quando os efeitos da sentença são destinados a se produzirem no patrimônio dos representados. A propósito, pode-se entender, também, logicamente, pelo 223 Cf. A respeito dos efeitos da sentença, disciplinados no Código de Defesa do Consumidor, começam a despontar na doutrina brasileira construções jurídicas sobre outros fundamentos. V. ADA PELLEGRINI GRINOVER "Da Coisa Julgada no Código de Defesa do Consumidor" in Livro de Estudos Jurídicos, nº 1, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 2ª ed., 1991, p p . 38l/406; PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO - A Coisa Julgada nas Ações Coletivas, in Livro de Estudos Jurídicos, nº 1, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 2ª ed. 1991, pp. 199/207; ADA PELLEGRINI GRINOVER - A Class Action Brasileira, in Livro de Estudos Jurídicos, vol. 2, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1991, pp. 22/28. novo prisma em que se considera a legitimação para agir e a situação legitimante de que decorre a qualificação jurídica de "parte", a disposição do art. 13 do Código de Processo Civil brasileiro, em sua exata extensão, quando contempla a incapacidade "processual", além da irregularidade da representação. As questões relacionadas com a ilegitimidade da parte, também, como já se antecipou, são questões do processo, questões que se suscitam, e que constituem o objeto do contraditório, no iter processual. Sobre a ilegitimidade, diversas questões podem ocorrer desde a questão que pode incidir sobre a oportunidade do ato (a alegação da ilegitimidade), até a da preclusão, que se pode constituir em simples questão objeto do contraditório, ou em res dubia que se converte em questão controvertida. Recuperando a exposição de FAZZALARI, deve-se, ainda, registrar, perante a situação legitimante, a legitimação do juiz, e, em conseqüência, a de seus auxiliares. Esta se extrai, também, pelo critério do provimento requerido. O juiz deve controlar se pode ser sujeito do processo, se pode desenvolver suas funções de dirigir o iter que conduz ao ato final, ou seja, se pode cumprir o ato de emanar o provimento, com a medida jurisdicional requerida, verificando se ele se inclui, ou não, dentro de sua jurisdição. O exame, a partir do provimento, deve dar relevo, também, ao princípio inerente à jurisdição que exige que o juiz, sendo autor do provimento, seja terceiro, em relação aos efeitos que este irá produzir no universum ius das partes 224 . E claro que a parcialidade ou a imparcialidade jamais poderá ser totalmente controlada pela lei, mas a lei estabelece as condições objetivas para que a imparcialidade possa ser esperada. Como a situação legitimante fornece os critérios para se identificar os sujeitos do processo, concretamente considerado, pode-se compreender, logicamente, por que FAZZALARI repele, por absolutamente imprópria, a afirmação de que o autor se reveste da legitimação ativa e o réu da legitimação passiva, pois a 224 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 295/297. legitimação para agir é de todos os protagonistas do processo e é "sempre ativa". Somente em relação ao provimento pode-se falar em legitimação passiva daqueles a quem vem imposto 225 . A par da situação legitimante, há a "situação legitimada", como desdobramento da legitimação, na construção doutrinária de FAZZAIARI. Enquanto a situação legitimante é contemplada como aquela em presença da qual um poder, uma faculdade ou um dever são conferidos ao sujeito, a situação legitimada consiste em uma série de poderes, faculdades, deveres, que se põem como expectativa para cada um dos sujeitos do processo 226 . A legitimação para agir de cada um dos sujeitos do processo tem como conteúdo uma série de atos, poderes, faculdades, deveres. "Tale serie di atti costituisce, infatti, il contenuto delia di lui legittimazione ad agire, la situazione legittimata di ciascuno"227. E sobre a situação legitimada que será formulada a nova concepção sobre a "ação". O conceito de processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes permite que se deduza que os atos dos sujeitos do processo, das partes, do juiz e dos auxiliares, são mutuamente implicados, o que decorre da própria estrutura do procedimento e da essência do contraditório. Da situação legitimante dos sujeitos decorre uma série de atos que, na ordem do processo, a lei processual impõe ou permite a cada participante, e tais atos podem ser vistos do ângulo da posição subjetiva de cada um, quando referidos à lei que os valora, como poderes, deveres, faculdades. Dessa série de poderes, faculdades e deveres, para o autor e para o réu, e para 225 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 300. 226 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 402 (v. nota de rodapé nº 7 nessa referida página). 227 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 402. os intervenientes se delineia, então, uma "posição subjetiva composta". Mas, para o juiz, como afirma FAZZALARI, si configura un'altrettale posizione, consistente nella serie dei di lui dovere228. Conclui, assim, que: La posizione composita che fa capo alla parte costituisce 1'azione; que lia che fa capo al giudice (o ad un suo ausiliare) costituisce la funzione229. A construção é admiravelmente lógica e coerente. Para se perceber o seu alcance é necessário recordar-se que a situação legitimada, em FAZZALARI, corresponde à situação jurídica subjetiva, ou posição subjetiva, extraída da específica posição em que se coloca o sujeito em frente da norma, conceito geral do Direito, aplicável à categoria de situação jurídica. É pela posição subjetiva que o sujeito comparece como titular de um poder, uma faculdade ou um dever. Os atos que são o conteúdo da situação jurídica subjetiva não são atos isolados no processo, mas constituem uma série, e se entrelaçam como pressupostos da incidência de normas que disciplinam outros atos, até o ato final do provimento, na estrutura do processo. Ressalte-se, mais uma vez, dada a importância do tema, na doutrina de FAZZALARI, que os poderes, faculdades e deveres das partes não resultam de "relações jurídicas", mas constituem os atos lícitos ou devidos que podem ser cumpridos no processo — os poderes como atos que importam na declaração da vontade, e as faculdades trazendo implícita a vontade como consciente determinação para o ato. Os poderes, faculdades e deveres das partes não lhes podem ser exigidos. Se a parte preferir não cumprir tais atos pode optar por sofrer as eventuais conseqüências desfavoráveis que poderão resultar do não cumprimento. Quanto ao juiz, seus atos não são valorados como poderes ou faculdades, porque não lhe é dado deixar de cumpri-los. O juiz 228 Cf. FAZZALARI, op. cit., pp. 402/403. 229 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 403. não pode, como seus auxiliares não o podem, transformar deveres em ônus, preferindo suportar as conseqüências desfavoráveis, como é dado à parte. Ele tem o dever de cumprir os deveres da jurisdição. E os deveres da jurisdição exigem que ele haja dentro do processo, que decida nos limites do pedido, nos limites do processo, e nos limites do Direito. A construção de FAZZALARI sobre a ação, baseada em toda a estrutura do processo como procedimento realizado em contraditório, supera as doutrinas clássicas, com suas dificuldades não resolvidas 230 , da ação como um "direito potestativo" que, na concepção tradicional de direito subjetivo, esgota-se no cumprimento de um único ato, e, além disto, nessa perspectiva, comparece como "direito sobre a conduta alheia", concepção de há muito superada. A alternativa encontrada pela doutrina, de conferir caráter "político" ao conceito de ação, não resolvia o problema, senão alijando-o do Direito, ou seja, o problema não era resolvido, mas excluído da cogitação jurídica. 230 É fácil perceber a razão pela qual pouco se falou neste tópico (7.2. A Revisão do Conceito de Ação). O tradicional "direito de ação", com as inúmeras teorias que procuram ou procuraram explicar sua natureza, posto que ancora utile (ainda útil), tende fortemente a tornar-se peça de museu jurídico. E isto porque a cada dia fica mais nítida a consciência de que "ação" e "processo" são fenômenos interdependentes e essa só é importante enquanto vista como um agir em relação aquele (estrutura que se desenvolve em face de atos praticados em decorrência de posições subjetivas das partes). CAPÍTULO VIII A SITUAÇÃO DE DIREITO MATERIAL E O PROCESSO A concepção do processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes é erigida sobre um sistema que se apresenta com um rigor lógico que encontra poucos pontos de comparação na doutrina do Direito. KELSEN legou à doutrina jurídica, também, um sistema lógico de rara perfeição. Entretanto, enquanto KELSEN concentrou o estudo da juridicidade no ilícito, FAZZAIARI trabalha exatamente em linha contrária. O ilícito para ele não é o cânone de conduta. A conduta é valorada pelo lícito, e o ordenamento jurídico é o complexo de normas, de faculdades, de poderes, de deveres, o complexo de licitudes. O ilícito nele comparece, mas como a conduta que consiste na inobservância do dever. Mesmo quando trabalha a norma penal, FAZZAIARI demonstra que o cânone de conduta, em relação à norma que define, por exemplo, o homicídio, é o não matar, e a norma penal tem, para ele, o caráter de norma processual, porque se dirige ao poder jurisdicional. É um argumento, sem dúvida, correto, pois a quem, a não ser ao Estado, pelo exercício da jurisdição, cumpriria a imposição da sanção? Com essa observação preliminar, pode-se passar à relação existente entre o processo e a situação substancial, que nada mais é do que a situação de direito material que será discutida no iter do processo, e decidida, no ato final, no provimento. No processo civil, a situação jurídica de direito substancial, ou situação jurídica de direito material, ou simplesmente situação substancial, é dada pela conexão entre a inobservância de um dever jurídico, o ilícito, e o direito por ela lesado ou ameaçado. O direito, objeto da lesão ou ameaça, no processo civil, é um direito subjetivo, mas não mais considerado na acepção tradicional, e sim no sentido, já exposto, de posição de vantagem de um sujeito em relação a um bem. Essa posição subjetiva resulta ou da norma que a confere a um sujeito ou do endereçamento, pela norma, de obrigações (conteúdo de deveres) a outro ou outros sujeitos, em determinadas situações jurídicas 231 , ou da conjugação das duas hipóteses. A relação entre a situação jurídica de direito material e o processo deve ser tratada com certo cuidado. Em uma primeira aproximação, tende-se a pensar que ela é o pressuposto do processo de conhecimento. A confirmação ou a refutação de tal afirmação dependeria, entretanto, do exame de cada ordenamento jurídico, que possui as suas especificidades. É interessante verificar, por exemplo, a mudança da concep- 231 FAZZAIARI relaciona as possibilidades de se apreender o direito subjetivo, nas várias espécies de sua manifestação, que se menciona, a seguir, mas com a observação de que a expressão "direito realizado", por ele utilizada, deve ser entendida no sentido de direito que se constitui para o titular, em oposição a um direito abstratamente considerado: o direito realizado por uma faculdade do titular; o direito realizado por um poder do titular (classicamente dito direito potestativo); o direito realizado pela obrigação de outro (o "direito de crédito"); o direito realizado pela faculdade do titular e pelos deveres de todos os demais (o "direito absoluto"); - o direito realizado somente pelo dever de todos (nesse critério estão os direitos da personalidade e os direitos reais em que falta a faculdade, como a servidão negativa). Cf. op. cit., p. 264. ção do direito de ação, na doutrina francesa, ante as novas disposições dos arts. 30, 31 e 32, do Nouveau Code de Procédure Civile. E não deixa de ser surpreendente a constatação de que esses artigos são reproduções textuais dos arts. 2º, 3º e 4º do Decreto de 20 de julho de 1972, como expõem EMMANUEL BLANC e J. V1ATTE. Analisando-os, os dois processualistas franceses discorrem sobre a evolução das teorias da ação e mostram que a assimilação da ação à realização de um direito subjetivo, tradicionalmente partilhada pela doutrina clássica, foi abandonada. A ação, em princípio concebida como um meio de exercício de um direito, est devenue le droit d'accès devant la justice en vue de lui soumettre les prétentions les plus diverses"232. No ordenamento jurídico italiano, FAZZALARI demonstra que a situação substancial não é condição prévia para a instauração do processo jurisdicional civil, pois a lei processual requer a exposição do pedido, mas não a exposição dos fatos e do direito, como condição para o processo, podendo ela ser feita em fase posterior à sua inauguração 233 . No Brasil, a lei processual exige que a inicial contenha os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, bem como o pedido e suas especificações (Código de Processo Civil, art. 282, III e IV) e situa a falta do pedido ou da causa de pedir dentre os elementos que caracterizam a inépcia da inicial, que é causa de indeferimento (Código de Processo Civil, art. 295,1, Parágrafo único, I). Contudo, essa constatação ainda não basta para que se considere a situação de direito material como pressuposto do processo civil, no Direito brasileiro. A inicial inepta nem sempre é indeferida de plano, o que não é raridade 234 . Ademais, o pró232 Cf. EMMANUEL BLANC-JEAN VIATTE - Nouveau Code de Procédure Civile commenté dans l'ordre des articles, Paris: Librairie du Journal des Notaires et des Avocats, 1980, p. 45. 233 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 258. 234 ALCIDES DE MENDONÇA LIMA levanta as questões referentes à inicial inepta na Justiça do TrabaLho, em que a Reclamação se faz por petição ou por termo, e o juiz despacha a inicial marcando audiência. Entende que, no prio Código de Processo Civil admite essa hipótese, quando no art. 301, III, prevê que o réu, em sua defesa, alegue, preliminarmente, a inépcia da inicial, e não limita a alegação da inépcia a qualquer uma das hipóteses possíveis, descritas nos itens do parágrafo único do art. 295. Obviamente, a alegação de inépcia da inicial já supõe o contraditório, e, portanto, o processo em franco movimento. Pelo Código de Processo Civil brasileiro, está visto que a situação de direito substancial não constitui pressuposto para a instalação do processo. A questão deve ser examinada, também, pelo prisma constitucional, e, por este, não se pode subtrair da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5 2 , XXXV, da Constituição). Não é, portanto, o ilícito, o pressuposto do processo, ou o direito lesado ou ameaçado. A apreciação do Judiciário confirmará ou negará a existência do direito lesado ou ameaçado, mas o direito de acesso ao Judiciário está garantido, independentemente da prévia constatação da existência do ilícito, da lesão ou da ameaça a direitos. A rejeição da inicial inepta, como se disse, pode ocorrer no curso do processo, e não poderia ser sequer a mera afirmação do ilícito, da lesão ou ameaça a direito, o pressuposto do processo, porque dentre as causas de inépcia está a falta de pedido ou da causa de pedir. Pode-se confirmar, então, que situação de direito material não é pressuposto do Processo Civil brasileiro. A situação de direito substancial comparece nos atos do caso de inépcia, o Juiz Presidente da JCJ não poderia indeferi-la, sem a audiência dos vogais, porque somente pode agir isoladamente nas execuções. Cf. Processo Civil no Processo do Trabalho, 3 a ed. atual, de acordo com a Constituição Federal de 1988, São Paulo: LTr, 1991, PP 35/36. Ressalve-se, porém, o entendimento de que, em face da Constituição de outubro de 1988 (arts. 111 e 117), está revogado o art. 877 da CLT, sendo competente a JCJ tanto para o processo de conhecimento como para o de execução e para o cautelar. processo, mas não como pressuposto desses atos e sim como objeto de alegações e provas, como conteúdo do contraditório 235 . A res in iudicium deducta não é, também, pressuposto da sentença que põe (ou deveria pôr) fim ao processo, pois os casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, sem apreciação da situação de direito substancial, estão previstos no art. 267 do Código de Processo Civil. A propósito desse artigo, é oportuno abrir-se um parêntese para registrar que as disposições de seus itens II e III são absolutamente incompatíveis com o princípio do contraditório, constitucionalmente acolhido. O contraditório não pode ser considerado como dever das partes de cumprirem atos processuais. Já se disse sobre faculdades, poderes e deveres que se tornam ônus, quando a parte não os utiliza. O contraditório é a oportunidade de participação paritária, e não de participação coativa. Se os prazos processuais são os da lei, se existe o instituto da preclusão, se o juiz tem o dever de decidir, que é um dever da jurisdição, e que está explícito no art. 5°, XXXV, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, não se explica por que o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito, nas hipóteses mencionadas. Por incompatíveis com o art. 5º, XXXV e LV, os referidos itens devem ser considerados como revogados 236 . Se a situação de direito material, constituída por um direito subjetivo, no sentido que já se definiu, lesado ou ameaçado, não é pressuposto do processo ou da sentença, o é, entretanto, da sentença de mérito, do provimento e da medida jurisdicional requerida, seja ela acolhida ou rejeitada. Seja o provimento favorável ou desfavorável ao autor, ele 235 Cf. FAZZALARI, op. cit., p. 260. 236 Em casos que tais cm face do impulso oficial (art. 262 do CPC) e do que dispõe o art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988, caberia ao juiz prover de imediato sobre o mérito, julgando conforme o estado do processo. acerta a situação de direito substancial, confirmando a existência do ilícito e do direito lesado ou ameaçado, para impor as medidas requeridas para sua reparação ou para determinar a cessação da ameaça, ou nega a existência do ilícito e da lesão ou ameaça a direito, negando a medida requerida. Nesse ponto, é conveniente que se registre, novamente, a distinção entre o Direito italiano e o Direito brasileiro, pela diferença da norma constitucional dos dois sistemas. No Direito italiano, conforme já se mencionou, o art. 24 da Constituição destina o direito de "agir em juízo" à tutela dos próprios direitos ou interesses legítimos, o que possibilitou várias interpretações no sentido de que, se constatada a inexistência do direito, não poderia haver provimento. FAZZALARI resolveu a questão distinguindo a legittimazione ad agire e a legittimazione al provvedtmento. Esta última não ocorrerá no caso em que se constata a inexistência do dever e, ou, direito subjetivo (ou que o autor e o réu não são, respectivamente, titulares do direito e do dever) e, conseqüentemente, da lesão ao direito. Entretanto, o processo existiu, como existiu a ação, como série de posições subjetivas das partes, que o acompanha do princípio até o momento do provimento 2 3 7 . A questão que se apresenta no confronto entre processo válido e provimento desfavorável, relevante perante o Direito positivo italiano, pelos termos do art. 24 da Constituição que funda aquele ordenamento jurídico, poderia ter recebido tratamento teórico sobre bases diferentes no Direito brasileiro. Não obstante, a investigação da doutrina processual no Brasil transcorreu em linha paralela com a doutrina italiana e seus resultados merecem uma reflexão mais detida. 237 "Le attività processuali esuberanti — cosi quelle spese per istrtuire il merito — andranno considerate inutiliter gestae, ma non mai invalide per carenza di legittimazione ad agire". Cf. FAZZALARI, op. cit, p. 49. No mesmo sentido, v. pp. 299/301. Verifica-se, por exemplo, que AMILCAR DE CASTRO238 ofereceu, quanto ao problema dos atos processuais úteis, solução aparentemente semelhante à proposta de FAZZALARI, mas manifesta e profundamente distinta quanto à fundamentação, em conseqüência da concepção diferente sobre a relação entre procedimento, processo e ação. A aparente semelhança está na admissão por AMILCAR DE CASTRO da movimentação válida mas "inútil" do processo: "(...) formado um procedimento por pessoa carecedora de ação, o mesmo, por falta da legitimação para agir, não deve ser tido como nulo, ou anulavel, mas inteiramente inútil a essa pessoa que não pôde atingir o alvo em mira" 239 . A semelhança é, como se disse, apenas aparente porque em FAZZALARI não há movimentação inútil, mas "exuberante" do processo, podendo-se falar em inutilidade da gestae e não na inutilidade do processo para uma pessoa, porque não é por esse critério que o processo cumpre seu destino como estrutura que prepara o provimento. A diferença verdadeiramente marcante entre ambos transparece em nível mais profundo, na própria concepção de "ação, de processo ou procedimento", que, para AMILCAR DE CASTRO, como para a doutrina brasileira predominante, constituem "realidades jurídicas inconfundíveis, com aparência definida, uma independente da outra" 240 . Em FAZZALARI, como se viu, a ação não possui essa independência do processo, mas é nele que se realiza, como desdobramento da legitimação para agir dos sujeitos do processo (juiz, auxiliares, Ministério Público quando a lei o exigir, partes). A legitimação para agir, que é de todos, se especifica em ação e 238 Cf. AMILCAR DE CASTRO - Comentários ao Código de Processo Civil, Vol VIII, Arts. 566 a 747, 3ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983, pp. 6/8. 239 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 7. 240 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 6. função, dada a posição jurídica dos sujeitos do processo. Enquanto a "função" é dada pela série de atos que correspondem à posição jurídica legitimada do sujeito investido da função jurisdicional — o juiz — a ação se forma pelo complexo de posições jurídicas legitimadas das partes, complexo que resulta da atuação conjunta e interdependente dos sujeitos do iter do processo, e por isso não pode ser dele isolada. Ressalte-se que AMILCAR DE CASTRO aceita, como pressuposto de seu argumento, o de que o procedimento é acessível a todas as pessoas, que a faculdade de recorrer ao Poder Judiciário é de todos que tenham supostamente um direito lesado ou ameaçado, e separa os atos processuais válidos dos atos processuais úteis, com base em interesses, distinguindo os escopos das partes, que, conforme afirma, é o de "defenderem seus próprios direitos, e a finalidade do processo, que é de ordem pública 241 . Não se pode desconhecer a precariedade do critério do interesse, de ordem individual e de ordem pública 242 para se explicar o processo existente quando há carência de ação ou quando se constata a "pretensão infundada", critério pelo qual AMILCAR DE CASTRO distingue os "escopos particulares e finalidade pública", no processo. Percebe-se que o argumento é posto como alternativa quase necessária de uma concepção que separa processo, procedimento e ação 243 . 241 Cf. AMILCAR DE CASTRO, op. cit., p. 6. 242 Cf. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES - A Prescrição no Processo do Trabalho, 2a ed., Belo Horizonte: Livraria Del Rey Ltda., 1987, p. 35. A dificuldade é da mesma natureza do problema que se suscita quando se fala em interesses de "ordem pública e "ordem privada" para se diferenciar algo que sempre tem marcadamente o caráter público, como ocorre com as próprias normas. 243 Cf. AMILCAR DE CASTRO: "se o procedimento é independente da ação, a falta de um dos elementos desta não pode determinar a anulação daquele".(...) "Por conseguinte, nada mais razoável do que uma pessoa, sem o direito de ação, poder movimentar processo válido, mas inútil, ou prejudicial a si mesma". "A ação e o processo são conceitos autônomos, independentes (...) pode a pessoa não ter ação, e não obstante figurar como sujeito de Tal postura, dominante na doutrina, correlaciona-se com a necessidade que teve o movimento de construção do Direito Processual Civil, centralizado no direito de ação, independentemente de suas divergências internas sobre a natureza de tal direito, de conciliar, coerentemente, o direito de se provocar a atuação do Judiciário com a possibilidade da pretensão infundada 244 . As tentativas de superação dessa dificuldade sugeriram várias teses na doutrina brasileira, desde a dos atos úteis e inúteis do processo, acima lembrada, até a do fundamento ideológico que teria pretendido legitimar a "universalização do procedimento ordinário", excluindo os processos sumários, levantada por OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, quando, conforme sustenta, "toda ação é una e abstrata" 245 . A utilidade do processo e a sua instrumentalidade são, por essas doutrinas que têm a atenção voltada para o "direito de procedimento válido (...) na hipótese de carência de ação, o procedimento permanece válido, precisamente para continuar evidenciando que não havia relação social ameaçada, ou violada, entre o autor e o réu, preenchendo seus fins (...) o Estado mantém também a organização da lide judiciária para que se verifique e declare se à pessoa assiste, ou não, o chamado direito subjetivo que suponha ter", op. cit. p. 7. 244 JOSÊ OLÍMPIO DE CASTRO FILHO suscita o problema indagando até onde se pode falar em abuso de direito daquele que demanda sem ter razão. Diante da questão lembra NICETO ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, quando diz "que a rigor não se devia nem falar em direito de ação, mas em faculdade, poder, ou possibilidade de ação". Cf. Abuso do Direito no Processo Civil, 2 a ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 40. 245 Cf. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA - Curso de Processo Civil, vol. I, Porto Alegre: Fabris, 1987, pp. 59/115. V. especialmente pp. 96 e 97. "Hoje, porém — afirma —, transcorridos alguns anos, a maior novidade científica, no campo do processo civil, passou a ser, justamente, a busca de formas especiais de tutela jurisdicional indicadas pelos processualistas como espécies de "tutela diferenciada", que outra coisa não é senão a redescoberta tardia de que a todo direito corresponde, ou deve corresponder, uma ação (adequada) que efetivamente o "assegure", proclamando-se, mais uma vez, a função eminentemente instrumental do processo". Cf. op. cit., p. 98. ação", medidas pelo "direito material", sem que se cogite de outra finalidade cumprida de forma muito útil pelo processo quando se constata que o direito material, para o qual foi postulada a proteção, não teve sua existência confirmada no ato final do provimento. No sistema brasileiro a Constituição não destina o direito de se pedir a tutela jurisdicional do Estado à existência de um direito material. O Poder Judiciário é provocado para "a apreciação de lesão ou ameaça a direito" 246 . O princípio nemo iudex sine actore, que condiciona a manifestação da jurisdição à iniciativa de quem pretende a tutela jurisdicional, não é apenas um apêndice do sistema constitucional brasileiro, pois explica-se já a partir do caput do art. 5º da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, em que há a promessa de garantia, aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual- 246 É oportuno observar que a expressão "ameaça a direito" do art. 5 a , XXXV, da Constituição da República de 1988, abre um amplo campo para a tutela preventiva de direitos que, como demonstra BARBOSA MOREIRA, não se identifica com a tutela das medidas provisórias em razão do caráter definitivo que lhe é peculiar, e que é preventiva justamente porque, ao contrário da tutela sancionatória, é capaz de resguardar o direito contra a própria consumação da lesão. O avanço da Constituição nesse aspecto é notável, pois se a proteção de direitos submetidos à ameaça já encontrava garantias contra atos ilegais ou abusivos do poder (pelo Mandado de Segurança preventivo para os direitos líquidos e certos não amparados pelo Habeas Corpus, pela Ação Popular), na esfera particular, ressalvando-se a nunciação de obra nova, foi limitada, pelo Código de Processo Civil de 1973, à proteção da posse e da propriedade, com injustificada omissão dos direitos que não possuem caráter patrimonial. Cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Tutela Sancionatória e Tutela Preventiva, in Temas de Direito Processual, Segunda Série, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 21/29; Processo Civil e Direito à Intimidade, in loc. cit., pp. 3/19- De se ressaltar, ainda, a ampliação, pela Constituição de 1988, dos instrumentos das garantias de direitos pela introdução de novos institutos processuais submetidos à sensível análise de J.J. CALMON DE PASSOS em "Mandado de Segurança Coletivo, Mandado de Injunção, Habeas Data (Constituição e Processo)", Rio de Janeiro: Forense, 1989- dade, à segurança e à propriedade, nos termos dos itens I a LXXVII, com seus dois parágrafos. A disposição do item XXXV não comportaria, portanto, qualquer interpretação no sentido do exercício espontâneo da jurisdição 247 , pois a atuação do Poder Judiciário é posta entre as garantias dos direitos e liberdades declarados. É certo que, nos termos do dispositivo constitucional, o objeto da apreciação judicial é o direito lesado ou ameaçado e o ilícito, como dever não observado, causa da lesão ou da ameaça. O caráter substitutivo da função jurisdicional confere a essa apreciação sua dimensão tutelar. Contudo, quer se ponha em relevo o direito subjetivo, quer o ilícito que o lesa ou ameaça, o "objeto da apreciação" não se confunde com o próprio "ato da apreciação", e por isso, nos termos postos pela Constituição brasileira, o agir em juízo não pode se condicionar ao prévio reconhecimento da existência do direito alegado. Significa dizer que a existência do direito para o qual se pleiteia a tutela pode ser confirmada ou negada pelo provimento, sem que se necessite indagar sobre a existência útil ou inútil do processo. Este cumprirá sua finalidade ao chegar a seu final com a participação das partes, participação revestida da garantia do contraditório, quer se confinne a existência do direito, da lesão ou da ameaça, caso em que não se poderá negar a tutela, quer se verifique a inexistência do direito, da lesão ou da ameaça, quando o provimento será emitido, mas a medida jurisdicional requerida será rejeitada. O art. 93, item IX da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, exige que "todos os julgamentos dos órgãos do 247 CÂNDIDO R. DINAMARCO refere-se ao dilema criado, quando se examina o escopo da jurisdição de atuação da vontade da lei; como esta não pertence ao domínio dos litigantes, chegar-se-ia ao exercício espontâneo da jurisdição. Crê que a solução poderia ser buscada não no plano do direito, mas no da sociedade ao qual ele se destina. Cf. A Instrumentalidade do Processo, 2 a ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, pp. 228/229. Poder Judiciário" sejam públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, permitindo que a lei limite a presença, em determinados atos, às partes e seus advogados, ou somente a estes, quando o interesse público o exigir. Sobre a publicidade dos atos judiciários, ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, analisando o dispositivo constitucional, observa que ela tem sido considerada, "tradicionalmente, como exigência democrática, instituída como decorrência da Revolução Francesa", pelo que o sigilo, quando admissível, constituindo exceção, deve sempre vir expresso em lei 248 . Ressalta, entretanto, a inovação introduzida pela Constituição de 1988, no Direito brasileiro, pela extensão da expressão "todos os julgamentos", que repele a votação secreta, em todas as circunstâncias, mesmo naquelas anteriormente admitidas pelo sistema jurídico, como em matéria administrativa referente à remoção, disponibilidade, aposentadoria de juizes, ou recusa de promoção por antiguidade 249 . A doutrina brasileira tem visto, na exigência constitucional de publicidade e fundamentação das decisões, a oportunidade do controle popular sobre os atos judiciais, ou uma "função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões 250 . 248 Cf. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA - O Poder Judiciário e a Nova Constituição. Rio de Janeiro: Aide Ed. 1989, p. 39 249 Cf. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, op. cit., p. 40. 250 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER, CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p 67. Cf. também BARBOSA MOREIRA - A Motivação das Decisões Judiciais Como Garantia Inerente ao Estado de Direito, in Temas de Direito Processual: segunda série, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 83/95. Convém advertir para o risco ou o perigo dos "julgamentos públicos", que podem ser afetados pela natural vaidade dos juizes. "Julgamento público" não deve ser confundido com "julgamento fundamentado" ou com "julgamento cuja fundamentação deve ser Não há dúvida de que o caráter público das decisões (que nem sempre se confunde com o caráter público do julgamento, exigido no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1988), acompanhado de sua fundamentação, é uma garantia que, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produzida pela Revolução Francesa, resguarda a sociedade contra o autoritarismo e o arbítrio que se manifestavam em nome da lei. Não se pode deixar de considerar, contudo, que a fundamentação da decisão é uma proteção constitucional especialmente dirigida às partes. Elas receberão os efeitos da sentença em seu patrimônio, em seu universum ius, efeitos sustentados sobre a apreciação da situação de direito material discutida em contraditório, e se lhes é garantido, pelo contraditório, a participação nos atos processuais que preparam o provimento, é uma conseqüência dessa garantia que as partes saibam por que um pedido foi negado ou por que uma condenação foi imposta. Elas viveram o processo, ou tiveram a garantia de vivê-lo, participaram do seu desenvolvimento, reconstruindo a situação de direito material sobre que deveria incidir o provimento e, nessa reconstrução, fizeram, juntamente como juiz, o próprio processo, na expectativa do provimento final. Não é, portanto, demasiado que se tenham as partes como os primeiros destinatários da garantia da fundamentação das decisões. Se houver possibilidade de recurso, o contraditório continuará garantido e se não houver, o contraditório terá cumprido sua finalidade, permitindo que se saiba por que se nega um suposto direito e por que se condena, em nome do Direito. necessariamente publicada", para o controle das partes e dos jurisdicionados em geral (crítica nos autos ou em órgãos normais de divulgação — imprensa, revistas e livros jurídicos — ou melhor, o controle "endoprocessual" e o controle "extraprocessual" das decisões judiciais). CAPÍTULO LX A INSTRUMENTALIDADE TÉCNICA DO PROCESSO 9.1. O PROCESSO COMO TÉCNICA O procedimento jurisdicional, como atividade disciplinada por uma estrutura normativa voltada para a preparação do provimento, com a participação, em contraditório, de seus destinatários, é uma técnica criada pelo ordenamento jurídico, e trabalhada pela ciência do Direito Processual, que, em sua função de formular conceitos, categorias e institutos concernentes a toda a atividade da jurisdição, deve se esmerar em fornecer o melhor instrumental teórico para que o processo se torne a técnica mais idônea possível no cumprimento de sua finalidade. A norma processual disciplina o exercício da jurisdição, e a preocupação de se fazer com que a ciência do Direito Processual ofereça a sua técnica instrumental para o aperfeiçoamento da instrumentalidade técnica do processo tem sido externada de várias formas na doutrina 251 . De modo evidente ou ainda obscu251 Investigando as tendências do processo no Direito Comparado, MAURO CAPPELLETTI ressalta que o processo não é um fim em si mesmo: es un ro, quase intuitivo, a doutrina jurídica vem percebendo a profunda e crescente importância do processo como modelo ideal de participação dos próprios destinatários na formação, na execução e na aplicação de seu direito. Seja o processo legislativo, seja o administrativo, seja o jurisdicional, sua instrumentalidade técnica é a mesma: a de poder se elaborar, com a melhor estrutura possível, a mais adequada e ágil, para dar respostas ao fim para o qual se instaura: a emanação de um ato do Estado, de caráter imperativo, para cuja formação concorrem, em contraditório, aqueles que receberão, na esfera de seus direitos, os efeitos de tal ato. O processo que se põe como estudo do Direito Processual Civil é o processo jurisdicional, porque o Direito Processual Civil tem como objeto de investigação a norma que regula o exercício da jurisdição. Uma técnica é valorada segundo sua idoneidade para a realização de suas finalidades. Será uma boa ou má técnica, conforme seja hábil a cumprir os seus fins, ou conforme se revele ineficaz para esse objetivo. De qualquer modo, a avaliação deve ser feita pela ciência, como atividade consciente e capaz para a produção do conhecimento e a correção de seus pontos de instrumento excogitado al objeto de componer las litis garantizando laefectividad — la observância, y la reintegración para el caso de inobservancia — del derecho substancial. Considera a presença do processo no ordenamento jurídico de todas as nações civilizadas como o sintoma fundamental de que os povos renunciaram a confiar à força e à vingança a proteção de seus direitos para entregá-la ao juiz e acrescenta: Pero este caracter de la instrumentalidad del derecho procesal, e de la instrumentalidad, por consiguiente, de la técnica misma del proceso, implica una consecuencia importante: lo mismo que cualquiera otro instrumento, así también aquel instrumento que es el derecho procesal, para ser eficaz o seapara conseguir cumplir eficazmente sufinalidad, debe adaptarse a la particular naturaleza del propio objeto. En otras palabras, debe asurnir aquellas técnicas y valerse de aquellos institutos que son los más idôneos para el objeto de la garantia del derecho substanciar. Cf. MAURO CAPPELLETTI - El Proceso Civil en el Derecho Comparado - Las Grandes Tendencias Evolutivas - Trad. de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, EdicionesJurídicas Europa-America, 1973, p. 18. estrangulamento. A responsabilidade da ciência do Direito Processual, em relação ao processo, não é, portanto, pequena. 9.2. A FINALIDADE DO PROCESSO JURISDICIONAL O processo jurisdicional civil, como procedimento que se realiza em contraditório entre as partes, para a formação do provimento jurisdicional, tem, no correto desenvolvimento das atividades preparatórias da sentença, a sua primeira finalidade. Essa afirmação não pode ser tomada como uma simplificação que poderia conduzir à inexata conclusão de que a técnica se desenvolve pela técnica e para a técnica, ou seja, de que ela se produz e se consome a si própria e nisso se esgota. Tal conclusão só poderia advir da falta do alcance do significado contido na realização do procedimento em contraditório entre as partes. Como se viu, em capítulo anterior, o contraditório tem a sua essência e o seu objeto. Onde ele está presente, o processo jamais será uma estrutura vazia, um esqueleto "descarnado", uma construção sem conteúdo. É pelo desenvolvimento do contraditório que o processo se desenvolve, e o contraditório é pleno de vida. E no âmago da coesão entre sua essência e seu objeto que o direito material, que será apreciado e decidido na sentença, é discutido, que o jogo dos interesses divergentes torna-se real, que as partes desvelam os direitos materiais que afirmam ter, e que se contrapõem nas afirmações dos direitos materiais que são mutuamente negados. A essência do contraditório, a garantia de uma participação simetricamente igual nas atividades que preparam a sentença, e seu objeto, a questão que pode se transformar em questão controvertida, incidem, naturalmente, no plano processual. A participação é participação no processo e a questão é questão do processo, sobre ato do processo. Mas aí está a grandeza do contraditório. A sua presença no procedimento que prepara o provimento possibilita que as partes construam, com o juiz, o autor do ato estatal de caráter imperativo, o próprio processo, e que, assim, participem da formação da sentença. A finalidade do processo jurisdicional é, portanto, a preparação do provimento jurisdicional, mas a própria estrutura do processo, como procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes, dá a dimensão dessa preparação: como a participação das partes, seus destinatários, aqueles que terão os seus efeitos incidindo sobre a esfera de seus direitos. A estrutura do processo assim concebido permite que os jurisdicionados, os membros da sociedade que nele comparecem, como destinatários do provimento jurisdicional, interfiram na sua preparação e conheçam, tenham consciência de como e por que nasce o ato estatal que irá interferir em sua liberdade; permite que saibam como e por que uma condenação lhes é imposta, um direito lhes é assegurado ou um pretenso direito lhes é negado. A instrumentalidade técnica do processo, nessa perspectiva do Direito contemporâneo, não poderia, jamais, significar a técnica se desenvolvendo para se produzir a si mesma. A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos. 9.3. A PROTEÇÃO DE DIREITOS Tem-se afirmado que chegou o momento de se dispensarem os formalismos para que os direitos sejam assegurados e o processo adquira efetividade. A história do Direito demonstra, com dados objetivos, que, com formalismos rigorosos (o processo formulário) 252 ou sem 252 Há excelente exposição na obra de JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES - Direito Romano, Rio de Janeiro: Forense, 4ªed., 1978. qualquer formalismo (os processos que WEBER denominou de "direito formal irracional", do direito Salomônico, passando pelo Kadi, chegando aos "tribunais revolucionários") 253 os processos tiveram uma enorme eficácia para uma pluralidade de fins. Com formalismos ou sem formalismos foram eficazes para condenar em nome de muitos nomes: em nome de razões sociais e em nome de razões de Estado, em nome do pecado e em nome de Deus; em nome de incompreensíveis signos e em nome de misteriosos, formidáveis e insondáveis nomes. Historicamente, com formalismos ou sem formalismos, os ordenamentos jurídicos já permitiram que o processo tivesse como finalidade a salvação da alma e a salvação da sociedade. Das finalidades transcendentes, não se tem perdido a memória, quando o juízo de Deus se manifestava nas Ordálias. E não está tão afastada a época em que os procedimentos da Santa Inquisição, que torturava para obter a confissão e para purificar a alma do condenado, antes de entregá-lo ao braço secular, se faziam em nome de um "bem maior" da sociedade: em nome da fé, e em nome de Deus. A atual estrutura normativa do processo está predisposta para que as partes que dele participam em contraditório, sendo os destinatários da sentença, contribuindo para sua formação, saibam por que pode ela constituir o ato de condenação, por que pode ela impor uma reparação, por que pode ela rejeitar um pedido de proteção a um suposto direito. Os sujeitos do processo que se realiza como um procedimento em contraditório sabem, hoje, em nome de que nome o ato final do processo condena ou declara que não há base para se condenar. E estão garantidos de que a condenação ou a rejeição do pedido de que ela se imponha se fará dentro da mais cristalina regra de uma estrutura normativa que assegura, através de suas formas, a sua participação em todas as atividades que preparam a sentença, 253 Remete-se ao estudo de JULIEN FREUND - La selon Max Weber in Archives... citado. rationalisation du droit não de modo arbitrário, mas de modo a que seus atos sejam reciprocamente controlados, em sua oportunidade e em sua subsistência. Essa é a forma de um jogo democrático que permite a manifestação das divergências no iter da formação de um ato final que produz efeitos na esfera de direitos de seus destinatários, mas com a garantia de simétrica igualdade de oportunidades desses destinatários nos atos preparatórios daquele que se revestirá de caráter imperativo. A primeira proteção que o ordenamento jurídico necessita oferecer aos jurisdicionados é a proteção de seu direito de, quando destinatário dos efeitos da sentença, participar dos atos que a preparam, concorrendo para sua formação, em igualdade de oportunidades. 9.4. A PROTEÇÃO DE DIREITOS MATERIAIS O processo terá a finalidade de proteger os direitos substanciais, os direitos subjetivos lesados ou ameaçados, se a sua existência se confirmar, no iter que prepara a formação da sentença. Nessa hipótese o juiz não poderá negar a proteção requerida, desde que, observando os deveres da jurisdição, aplique as medidas nos limites que o ordenamento jurídico as comporte. O juiz tem o dever de se ater ao pedido e de se ater às espécies de medidas jurisdicionais autorizadas pela norma. Ele atua como órgão do Estado e fala pelo Estado, e, assim como não pode penetrar na esfera dos direitos dos jurisdicionados, para protegê-los, sem ser solicitado, não pode decidir além do que foi pedido pela parte, que tem a liberdade de dispor sobre os limites da proteção requerida. O juiz não pode impor medida não autorizada pelas normas porque, sendo órgão do Estado, tem o dever de cumprir o Direito legitimamente criado pela nação pela qual o Estado fala. Na hipótese de se verificar a inexistência do direito para o qual a proteção foi requerida, logicamente, ela não poderá ser concedida. Entretanto, em ambas as alternativas, o processo, como procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes que, sendo os destinatários do provimento, participam do iter de sua formação, permite que saibam por que o conteúdo do ato final, ato imperativo do Estado, consistiu na proteção do direito ou na rejeição da proteção pleiteada. Essa questão é da mais intensa importância para se pôr em relevo a necessidade de se garantir, juridicamente, a liberdade. O processo, na perspectiva histórica, quando seu ato final era constituído unilateralmente pelo Estado, ainda que esse ato tivesse o conteúdo na maior consonância com o direito material, não poderia deixar de ser uma estrutura propícia à práticas autoritárias 254 . Quando os direitos e as garantias individuais foram se consolidando, o processo se aperfeiçoou na exigência de que nele estivesse presente o direito à ampla defesa, com as medidas a ela inerentes. Hoje, a instrumentalidade técnica do processo requer mais do que a garantia de participação das partes. Requer que essa participação se dê em contraditório, com igualdade de oportunidades, e que dela resulte essa conseqüência cujo alcance necessita ser apreendido em toda sua extensão, que é a participação dos destinatários da sentença em sua própria formação. Entre uma decisão "justa", tomada autoritariamente, e uma decisão "justa", construída democraticamente, não pode deixar de haver diferença, quando se crê que a dignidade humana se realiza através da liberdade. 254 Sérias reservas são feitas aos arts. 263 (primeira parte) e 295 (itens I a IV) do CPC brasileiro. 9.5. A PROTEÇÃO DO DIREITO LESADO OU AMEAÇADO Para a proteção de direitos, contra o ilícito, a inobservância da conduta juridicamente valorada como devida, organiza-se a jurisdição. Que proteção não é imposição, confirma-o o princípio nemo iudex sine actore, que condiciona a interferência do Estado na esfera dos direitos dos jurisdicionados, através do exercício da função jurisdicional, à provocação dos próprios jurisdicionados. Observado tal princípio, é claro que a função jurisdicional, como já se falou, exerce-se em processos "contenciosos" e em procedimento de "jurisdição voluntária", manifestase em processos onde há conflitos de interesses contrapostos (ou litígios), e onde, havendo ou não divergências, os interessados desejam a mesma decisão; enfim, manifesta-se pelo procedimento que se desenvolve em contraditório entre as partes e em procedimento que se realiza sem o contraditório. No processo jurisdicional civil de conhecimento, o ato final do provimento, para ser favorável ao autor, e impor a medida jurisdicional postulada, tem como pressuposto a constatação, através do contraditório, do direito lesado ou ameaçado e do ilícito, que, em qualquer campo do Direito, sempre se caracterizará pela inobservância da conduta legalmente prevista como cânone ou modelo para o comportamento. O provimento tem, como pressuposto de sua validade, o correto desenvolvimento do procedimento que o prepara, realizado em contraditório entre as partes, e, quando se confirma, no contraditório, a existência do direito lesado ou ameaçado, e do ilícito, de que decorreu a lesão ou que se constitui em ameaça a direito, a medida jurisdicional é imposta para impedir que perdure a lesão ou a ameaça, para determinar a reparação da lesão e a cessação da ameaça ao direito, para cuja proteção foi requerida. Sob a inspiração de CHIOVENDA, a doutrina do Direito Processual Civil, discorrendo sobre os escopos 2 5 5 do processo, 255 Cf. GIUSEPPE CHIOVENDA - Saggi di Diritto Processuale Civile (1900- sedimentou a idéia de que o escopo do processo é o de atuar o direito material, e não tardou a lhe acrescentar a pacificação com justiça, de conflitos sociais, e outras finalidades, nesse plano de valoração. Duas considerações são oportunas sobre a imprecisão de tal concepção. Já se demonstrou que a finalidade do processo não pode ser confundida com a finalidade da medida jurisdicional imposta pelo provimento. O processo atuará o direito material se constatado, pelo correto procedimento e através do contraditório, que há um direito substancial que deve ser atuado. Caso contrário, não há, obviamente, como atuar um direito inexistente. Já foi posta em relevo a distinção entre a ordem constitucional italiana e a brasileira. Pelo art. 5º, item XXXV, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, não se pode endossar a afirmação de que o processo se desenvolva para atuar o direito material. Desenvolve-se para permitir a preciação do Poder Judiciário sobre lesão ou ameaça a direito, e a forma dessa apreciação se dá pelo provimento. O segundo ponto de reflexão volta-se para as afirmações sobre os escopos do processo que agregam à atuação do direito material a pacificação com justiça. Ainda que se estenda o escopo da jurisdição — o da pacificação — ao instrumento de sua manifestação — o processo, dizer-se que a finalidade deste é pacificar com justiça suscita uma questão imediata. Os direitos garantidos no processo não se confundem com o direito material que será objeto de exame na sentença. Quando atuado o direito material, se constatada a sua existência no procedimento desenvolvido em contraditório e, cumprido o pressuposto da medida jurisdicional, esta for imposta, a 1930) Nuova Edizione Considerevoltnente Aumentata dei "Saggi" e dei "Nuovi Saggi", volume primo, Roma: Società Editrice - Foro Italiano, 1930, v. sobretudo, pp. 230/233- justiça que decorrerá da atuação da lei terá a mesma medida que tem a justiça do direito substancial. A atuação do direito poderá ser valorada como justa, se justo for o direito a ser atuado. A palavra justiça possui um apelo emocional muito forte, mas a afirmação que se fez não pode causar surpresa se se olha para trás na história, ou se se relanceia, também, o olhar sobre o tempo presente. A valoração da justiça do direito material não é finalidade do processo. Pode comparecer na sentença, que o processo prepara, mas nos limites dos deveres da jurisdição, porque o exercício do poder jurisdicional, como o exercício de qualquer poder, se faz dentro da disciplina da lei, e o poder jurisdicional não é mais o poder de Salomão, mas sim o poder de se cumprir o dever da jurisdição. É oportuno observar que, desde os fins do século passado, a doutrina jurídica passou a revelar uma grande preocupação com a natureza da função do juiz (não com a natureza da função jurisdicional, mas com o próprio papel do juiz na função de aplicar o direito). Surgiram indagações e respostas sobre o que ele deveria fazer perante a lei injusta, como poderia ter a medida para julgar com justiça. No princípio do século, a questão se tornou tão importante que toda uma corrente doutrinária se formou em torno da chamada Escola do Direito Livre, que, começando por investigar a questão das lacunas, culminou por investigar a missão do juiz, e seu lema se espalhou, soprado pelo espírito do tempo: "pelo Direito ainda que contra a lei". Não mais "pelo direito, além da lei, mas através dela", como queriam os autores mais moderados, mas "ainda que contra a lei". A cisão entre o Direito e a lei é questão antiga. Não se fala nela sem se rememorar Antígone, e SOFOCLES nasceu por volta de 496 a.C. O lema "pelo direito ainda que contra a lei" pode ser encontrado em expressões vigorosas já no século XIII, quando a contraposição entre o direito justo e a lei injusta foi organicamente analisada, sob a lógica aristotélica, por SANTO TOMÁS DE AQUINO256. Na verdade, a leitura da história da Filosofia do Direito revela que a questão nunca foi abandonada. No início do século XX, quando o problema ressurgiu, o Direito Processual Civil estava dando os primeiros passos para consolidar sua autonomia. Compreende-se que toda ânsia pela justiça no processo fosse projetada no papel que se reservava ao juiz. Se o Direito Processual, que seria o direito do exercício da jurisdição, ainda estava se construindo, não havia então base para se discutir a função jurisdicional, dentro das disciplinas jurídicas, e a alternativa encontrada foi o desvio do problema para o "papel-missão do juiz". Não se percebia que o juiz fala pelo Estado, porque está investido da função que é do Estado e que os membros da sociedade precisavam de maior proteção, no processo, do que a projetada na consciência do juiz. Hoje, a sociedade pede mais do Direito. Ela necessita de bons juizes mas não transfere para a consciência do julgador a medida de seus direitos. Sabe que a sentença "poderá ser justa ou, eventualmente, até injusta", como diz ADA PELLEGRINI GRINOVER, o que, obviamente, nunca se deseja. Mas, como prossegue a processualista, "de qualquer maneira, o que importa é que a sentença se siga necessariamente a um procedimento legitimado pelo 'devido processo legal'. Não a um procedimento qualquer. Mas a um procedimento que garanta as partes, e não somente ao autor, a possibilidade de apresentarem a sua defesa e as suas provas e a possibilidade de influírem sobre a formação do livre convencimento do juiz. Só assim a resposta jurisdicional será, realmente, a resposta adequada ao Estado de Direito" 257 . 256 Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO -La Ley, trad. do Prof. Constantino Fernandez-Alvar, Barcelona: Editorial Labor SA., 1936. A referida obra é parte da Summa Theologica, I-II, cc 90-97. V. sobretudo Art. 2, Q.6, p.91, em que a lei injusta não é considerada lei verdadeira, mas corrupção da lei. 257 Cf. ADA PELLEGRINI GRINOVER - O Processo em sua Unidade-II, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, p. 61. O Direito Processual Civil se desenvolveu, adquiriu autonomia, conquistou seu próprio domínio de investigação. Mas, para lembrar que a construção de uma ciência é uma atividade muito humana, que passa também pelas contradições e pelos sonhos humanos, as contradições aparecem dentro da própria autoconfiança que o Direito Processual adquiriu em seus achados e em suas conquistas. Ele não pode se considerar como um domínio do conhecimento pronto e acabado, como se a construção de seu mundo nada mais tivesse para oferecer de novo à sociedade, justamente quando ainda tem, em seu próprio âmago, problemas não resolvidos, e justamente no momento em que a sociedade descobre suas garantias dentro do Estado. 9.6. A QUESTÃO DOS ESCOPOS METAJURÍDICOS DO PROCESSO A doutrina processual, no Brasil, tem-se preocupado em atribuir escopos jurídicos, políticos, éticos e sociais ao processo. O grande nome nessa tendência é, certamente, CÂNDIDO R. DINAMARCO, professor respeitado nacional e internacionalmente, tradutor de LIEBMAN, autor de preciosos estudos de Direito Processual e do livro "A Instrumentalidade do Processo", que teve e tem admirável projeção nos meios acadêmicos e jurídicos de todo o país. Quando os argumentos se desenvolvem em nome da justiça social, é por certo difícil vencer o fascínio que eles provocam, principalmente quando vêm revestidos pelo vigor da cultura e pela elegância da forma. Entretanto, se se pretender que o processo seja, realmente, a melhor técnica possível para, através do procedimento realizado em contraditório, assegurar-se a participação dos destinatários do provimento nas atividades que o preparam, contribuindo para sua formação, é necessário que se reflita um pouco sobre os novos escopos que já se difundem pela doutrina brasileira, e por outras doutrinas, como atestam os Congressos internacionais 258 . Em "A Instrumentalidade do Processo", o Professor CÂNDIDO R. DINAMARCO propõe que se desenvolva uma nova mentalidade entre os processualistas modernos em torno da "instrumentalidade do processo", considerada segundo os fins da jurisdição e do processo. Os fins da jurisdição não seriam apenas jurídicos, mas também sociais, compreendendo a "pacificação com justiça e a educação", e políticos, a participação, a "afirmação da autoridade do Estado e de seu ordenamento". O conceito de jurisdição não seria jurídico mas político, já que ela é expressão do poder do Estado e, assim, "é canalizada à realização dos fins do próprio Estado (...)"259. A relatividade social e política tornaria a jurisdição permeável às mutações dos conceitos de "bem comum, justiça, e justiça social", ou seja, os escopos da jurisdição não seriam os mesmos em momentos sociais distintos e em sistemas políticos diferentes 260 . Entende que há uma tendência universal, "quanto aos escopos do processo e do exercício da jurisdição: 'o abandono das fórmulas exclusivamente jurídicas'". Aponta outras tendências e registra a impossibilidade de que os escopos da. jurisdição sejam esgotados nos "sistemas jurídicos, sociais e políticos do mundo" 261 . A obra é densa e não se pretendeu senão uma pequena abordagem sobre o que se designariam como escopos metajurídicos. Esses escopos são inspirados nas contribuições da Sociologia Jurídica, que, na linha da separação entre Direito e Estado, 258 Foi lembrado, na introdução deste trabalho, o Congresso de Viena, de maio de 1939. Entre ele e o Congresso Internacional de Direito Processual, de Gand, de 1977, a discussão evoluiu do papel reservado ao juiz para os papéis atribuídos à jurisdição. 259 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO - A Instrumentalidade do Processo, 2a ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 207. 260 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., pp. 206/219 261 Cf. CÂNDIDO R. DINAMARCO, op. cit., p. 219. alerta para o problema da legitimação pelo procedimento, que acompanhou a racionalização do Estado moderno. A contribuição de outros campos do conhecimento jurídico para o da ciência do Direito Processual Civil, e de outros campos do conhecimento em geral para o conhecimento do Direito serão sempre bem-vindas. A história das doutrinas demonstra que nenhum campo da ciência cresceu sozinho. Entretanto, quando se fala de jurisdição e de processo, está-se diante do momento em que é o Direito Processual que pode oferecer, hoje, suas grandes contribuições para os outros domínios do saber jurídico e de outras áreas da investigação científica. Seria desejável que as conquistas do Direito Processual estivessem disponíveis para outros importantíssimos domínios que se dedicam a temas vinculados à normatividade e à legitimidade de suas formas de expressão, porque seguramente se pode afirmar que hoje ele tem muito a oferecer à sociedade. No Direito Processual atual, concebido como sistema normativo, o processo já não pode ser reduzido a uma mera legitimação pelo procedimento 262 , não porque se deva dispensar as formas, mas porque o processo já não é mais apenas um rito para justificar uma sentença. A estrutura jurídica que permitiu o desenvolvimento do conceito de processo construído sobre o contraditório é resultado de muitas conquistas históricas. O procedimento desenvolvido em contraditório entre os interessados na decisão final construiu-se não como uma forma de participação dos jurisdicionais para justificar um ato imperativo final do Estado, mas como garantia da participação dos detentores de interesses contrapostos, em simétrica paridade, para interferir na formação daquele ato. O Direito Processual estuda as normas que disciplinam o 262 Cf. NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIAJNFRANCO PASQUINO - Dicionário de Política, cit., ver especialmente os verbetes "Estabilidade Política", de LEONARDO MORLINO, e "Estado Contemporâneo", de GUSTAVO GOZZ1. exercício da jurisdição. A manifestação do poder jurisdicional passou por diversos regimes jurídicos no curso de sua história, e a grande conquista do Direito contemporâneo é a de que, para que as liberdades se realizem dentro do Estado (e não fora dele, ou contra ele), o exercício do poder se submete à disciplina do Direito. É por isso que não é absolutamente vazia a afirmação de que a jurisdição e o processo são conceitos jurídicos, e a ciência do Direito Processual não pode renunciar a seu papel de tomar esses conceitos e trabalhá-los à exaustão, porque estaria se negando a seu papel social de clarificar, de tornar visível e inteligível um tema de profunda importância para a sociedade. A admissão de escopos metajurídicos da jurisdição e do processo pressupõem, necessariamente, a existência de três ordens normativas distintas: a jurídica, a social e a política. Os escopos metajurídicos só poderiam ser entendidos, portanto, como escopos pré-jurídicos. Seria possível pensar-se logicamente nessa fase pré-jurídica em relação aos momentos de transformação, que preparam o advento de uma nova ordem jurídica. No momento que antecede a cristalização dos valores que serão acolhidos pelas normas, das ideologias que constituirão o conteúdo das normas, pode-se, por certo, pensar em escopos metajurídicos que serão postos no ordenamento jurídico pela norma que funda toda sua legitimidade. A recente experiência brasileira foi um verdadeiro laboratório para a observação da eleição das ideologias que iriam compor a nova ordem estabelecida, sob uma nova Constituição. Uma vez que o ordenamento jurídico se institui e se consolida em normas, condutas e relações humanas, valoradas como lícito ou ilícito, como conduta devida e conduta que inobserva aquela estatuída como cânone valorativo, já não se pode mais cindir o ordenamento da sociedade para, paralelamente à ordem jurídica que ela instaurou, pensar-se em uma ordem social autônoma e em uma ordem política autônoma. Três ordens soberanas distintas não explicariam a soberania de uma nação, que não pode ser fragmentada. Ainda que se possa argumentar com a pluralidade de ordens jurídicas, em diferentes escalas, no meio social, elas estarão sempre dentro do ordenamento jurídico soberano, como ordens intra-estatais. A ordem política e a ordem social têm o seu fundamento na ordem jurídica, existem dentro do ordenamento jurídico e sofrem a sua regulamentação. Supor o contrário seria o mesmo que se admitir a possibilidade de se afirmar que, na sociedade organizada, o poder se exerce dentro da lei e pela lei, e que o poder não se exerce dentro da lei e pela lei. Já se percebe a impossibilidade de se manter as duas assertivas, pois mesmo no caso do abuso do poder, os limites da lei dão a medida para a qualificação de seu exercício abusivo. No Estado contemporâneo de Direito, o poder se exerce segundo a disciplina da lei, seja ela mais rígida ou mais elástica, conforme deixe ao Estado um campo mais restrito ou mais amplo de decisão sobre a oportunidade e as formas de suas manifestações. O critério para a aferição dessa maleabilidade será sempre dado pelo Direito, pois é na sua lei fundante, na Constituição, que se encontram a estruturação dos órgãos do poder, a definição de sua competência e os direitos e garantias que limitam a sua atuação. Os ordenamentos jurídicos contemporâneos têm dado um grande realce ao exercício da jurisdição e ao processo, que é o instrumento por excelência de sua manifestação. ÍTALO ANDOLINA e GUISEPPE VIGNERA263 demonstram q u e já se pode falar em um modelo constitucional de processo formado, não mais apenas pela estrutura e organização do Poder Judiciário, mas também, em plano de igual importância, pelas garantias processuais dos jurisdicionados, ao lado das garantias do Poder Judiciário e dos juizes investidos na função jurisdicional. A importância da especial garantia da norma processual acolhida no plano constitucional já há mais de três décadas era ressaltada por 263 Cf. ÍTALO ANDOLINA - GIUSEPPE VIGNERA - Il Modelo Costituzionale del Processo Civile Italiano, Corso di lezioni, Torino: G. Giappíchelli Editore, 1900, passim. RENZO PROVINCIALI264 . As garantias constitucionais do processo são garantias da própria sociedade, enquanto se coloca como comunidade de jurisdicionados perante o Estado, que detém a sanção em sua universalidade. São garantias de que o Estado não invadirá o domínio dos direitos individuais e coletivos, se não for chamado a protegê-los, de que o Estado não instituirá juízos pós-constituídos, de que a privação dos bens da vida que o Direito assegura não se dará sem as formas de um processo devido e de que não se dará sem a participação e o controle dos destinatários do provimento em sua própria formação, de que não se dará sem a devida explicação aos jurisdicionados sobre os fundamentos de uma decisão que interfere em seus direitos e nas liberdades pelo Direito asseguradas. Se as Declarações de Direito do século XVIII se preocuparam em criar as garantias políticas e criminais dos indivíduos perante o Estado, o século XX, já em fim de milênio, preocupa-se em "assegurar" a aplicação daquelas garantias, já ampliadas. Na base dessa preocupação desenvolveuse também uma concepção mais ampla de liberdade e de dignidade dos homens e da sociedade. As relações sociais não são sempre harmônicas e a paz que pelo Direito se almeja não consiste em se abolir a existência dos conflitos, amordaçando-se o pensamento, negando-se as diferenças, para se aniquilar as divergências. O conflito é acolhido e reconhecido, abre-se o espaço para que ele se manifeste, e, do jogo do contraditório, formam-se as decisões que interferem nos direitos individuais e coletivos na vida da sociedade. Processo é termo de múltiplas acepções, como se demonstrou quando foram discutidas as conotações da palavra, mas o conceito de processo, como "estrutura normativa", composta de normas e de atos, e do provimento final, é jurídico, como jurídico é o conceito de jurisdição como função ou atividade do Estado "sob a disciplina do Direito". 264 Cf. RENZO PROVINCIALI - Norme di Diritto Pmcessuale Nella Costituzione, Milano: Dott. A Giuffrè-Editore, 1959, passim. Os chamados escopos metajurídicos, sociais e políticos, acolhidos em regimes diversificados, são, também, sem nenhuma dúvida, escopos jurídicos acolhidos nas ordens constitucionais que organizam a sociedade. Assim, por exemplo, quando se traz à colação o modelo socialista265, em que o processo inclui, em suas finalidades, a educação para o socialismo, não se pode deixar de considerar que tal finalidade está prevista na Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, de 07 de outubro de 1967, onde se encontram 266 , a partir do art. 151, as normas que disciplinam a jurisdição. Os Tribunais são constituidos por juizes eleitos e assessores populares eleitos, para um mandato com prazo determinado, respondem perante os eleitores ou perante os órgãos que os elegeram, prestam-lhes contas de suas atividades e podem ser por eles demitidos (art. 152). Os juizes e os assessores populares são independentes e estão sujeitos apenas à lei (art. 155), mas essas se fazem segundo as bases do regime social e da política da URSS, definidas na Constituição (arts. 1º a 9º), onde há expressa definição da força orientadora da sociedade, o Partido Comunista, e expresso compromisso com a doutrina marxista-leninista, em toda a atuação do poder do Estado (art. 6º). Não há outra base na ciência do Direito Processual Civil, para se afirmar a existência de escopos da jurisdição e do processo, como instrumento de sua manifestação, a não ser o próprio ordenamento jurídico, dentro do qual se acomodam as ideologias, e, nesse caso, os escopos são todos jurídicos. A reflexão sobre os chamados escopos pré-jurídicos do processo escapa, por certo, ao objeto de investigação do Direito 265 C  N D I D O . DINAMARCO reflete sobre ele em várias passagens de "A Instrumentalidade do Processo". 266 Naturalmente fala-se aqui do que se contém no texto de outubro de 1967. Os acontecimentos da Peresttnika e da Glasnost e os acontecimentos do final de 1991 não oferecem ainda dados disponíveis para a reflexão sobre os escopos da jurisdição, em épocas posteriores. Processual Civil, como ciência que estuda a norma que disciplina a jurisdição. Entretanto, as contribuições que chegam de outras áreas são, como se disse, sempre bem-vindas, e tornam-se relevantes quando os elementos existentes em um momento pré-jurídico são investigados, identificados e apreendidos depois que são acolhidos pelo Direito e passam a integrá-lo. Nesse plano a Ciência do Direito dispõe de estudos verdadeiramente preciosos, desenvolvidos sobre a ideologia, em suas várias formas de manifestação, pelo Professor WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA267, que demonstram que há uma "ideologia constitucionalmente adotada", uma ideologia que pode ser apreendida nos princípios constitucionais que estão na base de todo o ordenamento normativo. A valoração da conduta, na sociedade democrática, é feita por ela própria, através dos processos admitidos na lei fundante da ordem jurídica, mas é assumida pelo Estado, que detém o poder politicamente organizado pelo Direito. Nos sistemas democráticos, que se caracterizam pelo pluralismo, em diversos planos de atuação da liberdade, que se desdobra em liberdades no Estado e perante o Estado, em liberdades privadas e públicas, individuais e coletivas, a investigação da ideologia constitucionalmente adotada pode gerar a questão para a qual a doutrina tem despertado a atenção, a das chamadas antinomias constitucionais — a convivência de princípios divergentes e con- 267 Cf. WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA - Direito Econômico, São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 32/49; p.133 e s.; Ideologia e Ordem Econômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, nº 23/25, 1980/1982, pp. 132/154; O Princípio Econômico no Discurso Consti, tucional, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, nº 60/61, Jan./lul. 1985, pp. 271/519; A Experiência Brasileira da Constituição Econômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 32, nº 32, 1989, pp. 59/96; Poder Constituinte e Ordem Jurídico-Econômica, in Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, vol. 30, nº 28/29, Nova Fase, 1985/1986, pp. 51/73 e Revista de Informação Legislativa, Brasília, vol. 23, nº 89,Jan./mai. 1986, pp. 33/48. traditórios dentro da mesma ordem instituída, declarados em sua própria base de legitimação. Os princípios "divergentes" do texto constitucional são extraordinariamente significativos, quando se pensa no pluralismo admitido na sociedade, para cuja vida a Constituição se volta. Os princípios contraditórios exprimem uma pluralidade de valores, e se a sociedade é pluralista, e não monolítica, a verdadeira contradição lógica se daria pela sua inexistência 268 . É por esse ângulo que se pode entender que o princípio do contraditório integra a vida social e se realiza plenamente na sociedade, o que torna o seu desenvolvimento um verdadeiro processo, quando suas questões são resolvidas com a verdadeira participação de um povo livre. Nem por outro motivo o modelo renovado de processo, do Direito Processual, como apontou FAZZA1ARI, conforme já referido, tem se expandido para os setores das deliberações privadas, porque nenhum outro se mostrou mais adequado para a salvaguarda das liberdades. Ao se admitir a separação entre o Direito material, para cuja apreciação o processo se desenvolve, nos casos em que o jurisdicionado pede a proteção do Estado, argüindo sua lesão ou ameaça, e o Direito Processual que disciplina o exercício do poder jurisdicional que, através do processo, apreciará o pedido e emanará o provimento, não se pode confundir a finalidade do processo com as diversificadas finalidades do Direito material, ou substancial. E a finalidade do processo, compreendida em toda a extensão e profundidade em que se pode entender o princípio do contraditório, ressurgirá de sua própria instrumentalidade técni- 268 A propósito de princípios contraditórios e de antinomias no texto constitucional, veja-se a exaustiva análise feita por WASHINGTON PÈLUSO ALBINO DE SOUZA em conferência proferida na Faculdade de Direito de Natal (RN), sob o título "Conflitos Ideológicos na Constituição Econômica", aguardando publicação na "Revista Brasileira de Estudos Políticos" (BL ISSN 0034-7191), da Universidade Federal de Minas Gerais (Av. Álvares Cabral, 211, sala 1206 - Belo Horizonte). ca. Não é ela pequena, estreita ou dispensável; ao contrário, é enorme, profunda e necessária. Essa finalidade permite que as partes recebam uma sentença, não construída unilateralmente pela clarividência do juiz, não dependente dos princípios ideológicos do juiz, não condicionada pela magnanimidade de um fenômeno Magnaud, mas gerada na liberdade de sua participação recíproca, e pelo recíproco controle dos atos do processo. A finalidade do processo, como procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes, na preparação de um provimento que irá produzir efeitos na universalidade dos direitos de seu destinatário, é a preparação participada da sentença. Os resultados dela não são desprezíveis. Por ela os homens e a sociedade, dotados de liberdade e de dignidade, poderão saber que têm um direito assegurado, que não são condenados e não têm seus supostos direitos rejeitados em nome de qualquer outro nome, a não ser em nome do Direito, do Direito que a própria sociedade formulou e do Direito cuja existência foi por ela consentida 269 . 269 Toda a polêmica questão dos escopos metajurídicos do processo deságua no Direito material. É o Direito material, construído ou reconstruído pelas partes em contraditório ao longo do procedimento, que é aplicado pelo juiz ao caso concreto submetido à sua apreciação. Na atuação deste Direito material é que se atenderá a "fins sociais" ou a "exigências do bem comum", conforme o determina o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657, de 04 de setembro de 1942). Nisto não há qualquer escopo metajurídico do processo, mas aplicação, como critério de julgamento, do Direito material, que deverá regular a espécie. Não poderá, porém, o juiz vagamente invocar ''fins sociais" da lei ou "exigências do bem comum" sem uma precisa e detalhada especificação de quais sejam estes "fins sociais" ou de qual seja o conteúdo daquilo a que chama de "bem comum". É claro, mais que claro, que o "contraditório" permitirá que as partes influam na construção ou na reconstrução destes "fins sociais" ou destas "exigências do bem comum", mas tudo com os olhos postos no direito substantivo, e que irá reger a solução da lide. Dessarte, os escopos metajurídicos são eminentemente jurídicos e, mais, pertinentes não a normas de processo, e sim a normas de Direito material (civil, administrativo, do trabalho, tributário, comercial...). E, aqui, acaba o conflito!... CAPÍTULO X CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. Como atividade humana, a ciência é um processo em permanente e contínuo desenvolvimento e não um conjunto de conhecimentos cristalizados e imobilizados no tempo. A renúncia da ciência a novas conquistas importa na renúncia a si própria e ao aperfeiçoamento de suas técnicas, porque as transformações no mundo humano são permanentes e é a realidade humana que exige seu progresso. A palavra de fé no crescimento da ciência é a da confiança em sua racionalidade, a confiança de que as respostas ainda não encontradas poderão ser alcançadas através de um esforço conjunto, na reflexão das construções legadas pelo passado e no seu repensar no presente, para que os resultados obtidos possam ser postos à disposição da sociedade. 2. No Direito, a ciência se construiu construindo sua técnica, formulando seu instrumental teórico para unificar em modelos amplos o fenômeno jurídico. De posse dessa técnica, dedicou-se a compreender e a elucidar seu objeto, o direito gerado na sociedade pelos órgãos por ela legitimados a elaborá-lo. 3. A ciência do Direito Processual Civil tornou-se autônoma ao definir seu próprio domínio de investigação e ao adquirir seu próprio instrumental teórico para o tratamento de seu objeto. Sua autonomia, entretanto, longe de significar onisciência, representou o início de um longo caminho de construção doutrinária. 4. O ordenamento jurídico, naturalmente, não aguardou pela autonomia do Direito Processual Civil para incidir sobre fatos sociais. Tão antigos como o próprio Direito foram os diversificados ritos de sua aplicação: o culto doméstico dos Manes, os oráculos, as fórmulas, os procedimentos diferenciados que, com seus ritualismos, chegaram ao século passado. O procedimento era rito e era forma quando a ciência do Direito Processual Civil começou a se formar, na segunda metade do século XIX, período em que o individualismo alastrava-se por todas as formas de relações humanas e caracterizava o próprio espírito da época. O instrumental teórico do Direito Processual Civil foi elaborado sobre o que havia de disponível no campo do conhecimento e da realidade jurídica. Em sua resposta aos problemas que deveriam encontrar solução no plano da racionalidade, as doutrinas nascentes utilizaram os conceitos construídos no curso da história. E da Alemanha, de WINDSCHEID e MUTHER, mais tarde da Itália de CHIOVENDA expandiu-se um Direito Processual Civil que se consolidou em torno do conceito do "direito de ação". Este teve a sua base na concepção de direito subjetivo que se fora elaborando, a partir da Idade Média, em dois sentidos: como um poder absoluto de que não se presta contas ou como um poder de exigir condutas de outrem. Dessa conexão com a ação surgia a concepção de processo como "relação jurídica". 5. A medida que a construção jurídica resplandecia, o proce- dimento, então mero rito, era repudiado. Esgotando-se na forma, não merecia um esforço de reflexão mais sério. A ação tornou-se o centro do universo do Direito Processual Civil, e desse centro se irradiaram os conceitos que seriam utilizados no tratamento de seu objeto, mesmo quando este foi identificado na norma processual e no processo. O Direito Processual Civil brasileiro deve a sua renovação ao brilhantismo intelectual de LIEBMAN. E se desenvolveu em paralelo com a doutrina italiana, que recebera suas bases da Alemanha do século XIX, privilegiando, também, em suas investigações, o direito de ação. A doutrina do Direito Processual Civil esteve consciente das dificuldades geradas pelas múltiplas teorias da ação, mas não se deteve suficientemente no reexame dos conceitos que estavam em suas bases. O direito subjetivo, a ação, a relação jurídica, o processo, formavam um quadro conceituai desenhado no século passado para explicar a atividade do Estado que se manifesta na jurisdição. 6. As construções teóricas desenvolveram-se para acompanhar a evolução do Direito que as conquistas sociais produziam. E aprimoraram-se o suficiente para acolher a grande conquista do Direito contemporâneo que já não nega mas reconhece o conflito e busca resolvê-lo com a participação dos interessados, em contradição. O conceito do contraditório evoluiu. Já não se limita ao direito da parte de ser ouvida, ao direito de se defender, mas erigiu-se como uma garantia dos destinatários da decisão de participar do processo, em simétrica igualdade, na etapa preparatória do ato imperativo do Estado — a sentença —, para influir em sua formação. 7. Os conceitos que responderam a uma realidade normati- va do século passado não são adequados para responder à realidade normativa do mundo de hoje. O processo foi concebido como uma relação jurídica na circunscrição de um direito marcado pelo individualismo. A categoria de relação jurídica, com seu vínculo de sujeição, foi submetida à reflexão e à crítica da doutrina do século XX, exigidas por um direito que se transformou na ampliação das garantias sociais. A reflexão crítica incidiu também sobre a clássica concepção de direito subjetivo que era o esteio da categoria da relação jurídica. Ao conceito de relação jurídica como vínculo entre sujeitos foi proposta a alternativa da categoria de situação jurídica, que permite o exame de poderes, faculdades e deveres na correlação da posição subjetiva com a norma. 8. Surge no quadro dessas renovações uma nova concepção de procedimento, como atividade preparatória do ato do Estado de caráter imperativo, o provimento, disciplinada por uma estrutura normativa em que as normas se encontram em uma especial forma de conexão. O centro de gravidade do Direito Processual Civil começa a se deslocar. Com base no renovado conceito de procedimento prepara-se um novo conceito de processo. A grande contribuição para essa construção, orgânica, lógica e sistematizada, vem de ELIO FAZZALARI que, com apoio em um quadro sólido e coerente, formula a concepção do processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes. 9. A jurisdição não é a manifestação de um poder sem disciplina jurídica. Ao contrário, quando o Estado é chamado a exercer a "função" jurisdicional ele age dentro de uma estrutura normativa que regulamenta sua atividade. E essa estrutura normativa está construída para comportar e garantir a participação dos destinatários do ato imperativo do Estado na fase de sua formação. A jurisdição, estudada pelo Direito Processual Civil, exerce-se nos limites do ordenamento jurídico, sob sua disciplina, em uma estrutura normativa, em que os atos e as normas são conectadas em especial forma de interdependência. 10. A identificação do processo nessa estrutura normativa, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, supera a concepção de processo como relação jurídica. O contraditório é oportunidade de participação paritária, é garantia de simétrica igualdade de participação dos destinatários do provimento na fase procedimental de sua preparação. A possibilidade assegurada de participação em simétrica igualdade não se concilia com vínculo de sujeição. 11. Os conceitos de garantia e de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos, de momentos sociais distintos, de concepções distintas. Pela evolução do conceito de contraditório, a categoria da relação jurídica processual já não é logicamente admitida. Perante o contraditório, não se pode falar em relação de sujeição ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato final do processo, de cuja preparação participam, e não ao juiz. A categoria da relação jurídica já não é própria para a concepção de processo centrada na garantia do contraditório, porque não é com ela compatível: ou existem vínculos de sujeição ou existe liberdade garantida de participação. 12. O processo, libertado do conceito de relação jurídica, renova-se na renovação do conceito de procedimento. O processo é um procedimento, mas não dos ritos e das formas a se justificarem a si mesmos. Um procedimento realizado em contraditório entre as partes, que trazem seus interesses contrapostos, seus conflitos e suas oposições à discussão no âmago da atividade que se desenvolve, até o momento final, um procedimento para a emanação de uma sentença participada, da sentença que é ato do Estado, mas que não é produzida isoladamente pelo Estado e sim resulta de toda uma atividade realizada com a participação, em garantia de simétrica paridade, dos interessados, ou seja, dos que irão suportar os seus efeitos. 13. Na concepção de processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes, renova-se, também, o conceito de ação como série de "posições subjetivas compostas", atribuída às partes, no processo, em todo o curso do processo, em correlação com as atividades do juiz, no exercício da função da jurisdição. 14. Na estrutura normativa do processo, os poderes, faculdades e deveres das partes não podem ser exigidos. Têm elas a liberdade de transformá-los em ônus. Mas a função jurisdicional é do Estado que não pode renunciar ao poder da jurisdição que é o "poder de cumprir o dever" da resposta, o dever de emanar o provimento. Ação e Função: o agir no processo, no curso do processo, com as garantias do processo e sob a disciplina do processo, em uma situação de legitimação. 15. O contraditório foi definitivamente conquistado como um direito das partes, foi consagrado, no Brasil, como garantia constitucional, e se transformou em uma exigência da instrumentalidade técnica do processo. A idéia que está em sua base é a da evolução da prática da democracia e da liberdade, em que os interesses divergentes ou em oposição encontram espaço garantido para sua manifestação, na busca da decisão participada. 16. Enquanto não se podia pensar a função jurisdicional com a participação das partes na fase de preparação da sentença, a reflexão jurídica se ateve à missão do juiz, e projetou nele a grande esperança de se retificarem as injustiças do Direito positivo. 17. Com as novas conquistas do Direito, o problema da justiça no processo foi deslocado do "papel-missão" do jui2 para a garantia das partes. O grande problema da época contemporânea já não é o da convicção ideológica, das preferências pessoais, das convicções íntimas do juiz. É o de que os destinatários do provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo jurisdicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade, podendo compreender por que, como, por que forma, em que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos e para impor condenações. 18. A instrumentalidade técnica do processo, como atividade regida por uma específica estrutura normativa que prevê a participação dos destinatários do provimento no iter que o prepara é repensada em uma nova dimensão. 19. Os fins metajurídicos do processo não possuem critérios objetivos de aferição no Direito Processual Civil. Se o exercício da função jurisdicional se manifesta sob a disciplina do ordenamento jurídico, e nos limites por ele definidos, "qualquer fim do processo só pode ser jurídico" (Cf. rodapé 268). 20. A concepção do processo como procedimento realizado em contraditório não comporta fins extrajurídicos, porque a preparação participada do provimento válido é juridicamente disciplinada. O provimento se forma sob a regulamentação de toda uma estrutura normativa que limita a manifestação da jurisdição e assegura às partes o direito de participação igual, simétrica e paritária, na fase que prepara o ato final (Cf., novamente, rodapé 268). 21. Entre o processo e a situação de direito material já não se concebe uma relação de necessidade lógica, e, em conseqüência, a existência dessa situação não é medida de utilidade do processo. Ao Judiciário incumbe apreciar lesão ou ameaça a direito, para deferir ou rejeitar as medidas requeridas, e essa função já não se cumpre pelo prévio controle da existência da lesão ou ameaça. Entre o ato de apreciação, o objeto da apreciação e o resultado da apreciação, há diferenças manifestas. 21.1. O processo cumprirá seu escopo existindo ou inexistindo a lesão ou a ameaça alegadas, ou deficientemente alegadas, ou ineptamente alegadas. Em face da estrutura normativa que rege a preparação do provimento, este será emanado, em sua natureza de ato imperativo, se corretamente realizado com a garantia da participação das partes, em contraditório, ainda que a medida jurisdicional requerida não possa ser concedida. 21.2. A finalidade do processo de atuar o direito é condicionada à constatação, no iter procedimental, da existência de um direito lesado a ser atuado. E a medida da justiça da decisão será a mesma medida da justiça do direito material. 21.3. O processo, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, cumprirá sua finalidade garantindo a emanação de uma sentença participada. Os seus destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juizes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do Direito, construído pela própria sociedade ou que tenha sua existência por ela consentida. 22. Este estudo foi iniciado por uma reflexão sobre a cíclica crise de confiança da cultura ocidental na razão, crise que se estende à racionalidade do Direito. E conclui pela afirmação da necessidade de se recuperar a função social do conhecimento. As práticas caóticas, e as aventuras experimentais, sem maiores compromissos com a fundamentação, quando se destinam a influir no campo social, atingindo liberdades, têm provocado ingentes sofrimentos, muitos deles irremediáveis. 22.1. O conhecimento fundamentado permite, ao'menos, que seja afastado o argumento autoritário que não se explica senão pela força que o sustenta. 23. A ciência do Direito Processual Civil não traça normas para a sociedade, tal como a racionalidade lógica da ciência não é jamais normativa. Mas ela pode ampliar os horizontes da liberdade, possibilitando que haja verdadeira escolha, lúcida e inteligível, entre opções possíveis, da utilização que a sociedade puder fazer dos resultados de suas investigações. BIBLIOGRAFIA ABBAGNANO, Nicola - "Dicionário de Filosofia", trad. coordenada e rev. por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio ...et al., 2 a ed., SãoPaulo: Mestre Jou, 1982. AFTALIÓN, Enrique R., OLANO, Fernando Garcia e VILANOVA, José - Introducción al Derecho, 8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967. ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto - Estudios Procesales, Madrid: Editorial Tecnos, 1975. 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