ÁREA TEMÁTICA: Globalização, Política e Cidadania NOVOS ATORES EM CENA: OS “INDIGNADOS” NA EUROPA E EM PORTUGAL. PROCESSOS, IDENTIDADES E ESTRATÉGIAS NAS FORMAS EMERGENTES DE AÇÃO COLETIVA. FONSECA, Dora Doutoramento em Sociologia Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – Centro de Estudos Sociais (CES) [email protected] 2 de 13 Resumo Neste artigo, o enfoque recai sobre a instituição das sociedades da austeridade e a emergência de respostas da sociedade civil à mesma. A análise centrar-se-á no ator coletivo indignados, procurando fornecer algumas pistas para a análise dos processos envolvidos na construção da identidade do ator social em questão. Tendo em vista esse objetivo, são recuperados, para servir de base à análise, a lógica política do populismo de Ernesto Laclau e o conceito de político de Chantal Mouffe. Abstract In this article, the attention will be focused on the institution of the societies of austerity and on the civil society’s responses triggered by their imposition. The analysis will be centred on the collective actor indignados, and will be aimed at finding some clues useful for the analysis of the processes involved in the identity construction of this collective actor. To accomplish this task, we will retrieve Ernesto Laclau’s political logic of populism and Chantal Mouffe’s concept of the political. Palavras-chave: indignação; Estado; sociedade civil; antagonismo; fronteira antagónica Keywords: indignation; State; civil society; antagonism; antagonistic frontier. [ PAP1081 ] 3 de 13 4 de 13 Introdução O contexto Europeu, ao longo do último ano, tornou-se palco privilegiado de emergência de novos atores coletivos. Estes dão mostras de características distintas, tanto no que diz respeito aos modos de ação adotados como em relação ao seu distanciamento face às dinâmicas institucionais. A conformação destes atores ocorre no quadro de um contexto de mudanças profundas que revela as dificuldades das sociedades contemporâneas em acomodarem uma série de processos de modernização. O crescimento imparável do desemprego, o desmantelamento do Estado social, a “ditadura” dos mercados, a segmentação dos mercados de trabalho, entre outros fatores, impõem às sociedades ocidentais transformações que terão graves consequências ao nível das relações sociais e das solidariedades previamente construídas. O contexto Europeu (referindo-nos aos países membros da EU) e a sua “tradição” de Estado social são afetados pela proliferação das ideologias dos mercados e pelas novas políticas de produção. As primeiras, baseadas na imposição do objetivo de taxas de lucro sempre crescentes, subsumem toda a produção humana à lucratividade, ignorando, e tentando mesmo anular por completo, a dimensão ontológica do trabalho enquanto atividade humana. As segundas, sustentadas pela redução da força de trabalho ativa decorrente da aplicação das novas soluções tecnológicas aplicadas à produção e pelas políticas de descentralização da produção dirigidas à redução dos custos (isto é, a deslocalização da produção para zonas do globo com legislação do trabalho mais flexível ou quase inexistente, que permitem um abaixamento substancial dos custos de produção e, consequentemente, uma maior margem de lucro), têm vindo a afetar de forma preocupante a estrutura de emprego que, até há bem pouco tempo, prevalecia nos países da EU. Outro padrão de mudança, entre os vários que é possível identificar atualmente, que assume uma importância indiscutível dada a sua centralidade na estruturação das sociedades europeias, é o “encolhimento” acelerado do Estado social. Ainda que tenha começado timidamente há algumas décadas, apresenta-se agora com um ímpeto redobrado e assume claramente o objetivo de desmantelamento. Os desafios que são colocados pela “nova ordem” – de cariz neoliberal – são, sem sombra de dúvida indesejáveis e representam, mais do que qualquer outra coisa, um severo retrocesso civilizacional. Neste quadro, a necessidade de alternativas é de urgência incontornável e concorre com a ideia de inevitabilidade instalada. No entanto, as respostas institucionais revelam estar aquém das exigências. Os atores legitimados para intervirem veem-se de mãos atadas: a austeridade impõe-se e sobrepõe-se a tudo, conformando-se um regime de exceção que, na realidade, caminha a passos acelerados para instituir-se como regra. Apesar da ideia amplamente disseminada de que as transformações em curso são inevitáveis, reabilitando a velha máxima tatcheriana de que “não há alternativa” (“there is no alternative”), a sociedade civil, ou pelo menos uma parte dela, não se conforma com o fatalismo dos discursos políticos alinhados com o projeto neoliberal e tem vindo a demonstrar um crescente dinamismo e capacidade de auto-organização. O território europeu é, cada vez mais e de forma mais intensa, locus de emergência de atores políticos e de processos de dinâmicas contenciosas. O ator coletivo sobre o qual recai a nossa atenção surge no contexto específico da sociedade da austeridade. Ferreira (2012) define austeridade como uma palavra – ação que significa o processo de implementação de políticas e de medidas económicas que conduzem à disciplina e à contenção económica, social e cultural. A especificidade do conceito de austeridade (indissociável do de inevitabilidade) é o reconhecimento de que é através dos indivíduos e das suas privações objetivas e subjetivas que se encontram as soluções para a crise, muito embora esta decorra, no essencial, do funcionamento dos mercados financeiros, do défice público do Estado e dos modelos económicos e sociais adotados ao longo dos últimos anos. A crise tem vindo a ser usada como argumento e instrumento de subordinação dos trabalhadores, governos e mesmo de sociedades aos desígnios dos mercados capitalistas globais. De acordo com o autor, com cuja visão nos identificamos, as medidas de austeridade aplicadas mais não têm feito que agravar as situações de trabalho precário e de fragilidade laboral, sendo que neste quadro, a responsabilidade de “pagar” a crise recai sobre os indivíduos e sobre as famílias. Os cidadãos são convocados a assumirem os custos, a comprometerem-se com uma postura proactiva e a aceitarem sacrifícios. Constata-se que a responsabilidade de pagar a crise recai, antes de mais e sobretudo, sobre o individuo e as famílias, por meio dos cortes nos 5 de 13 salários e nos benefícios sociais ou através da supressão das formas de conflito e dos direitos laborais (Serrano et al., 2011, in Ferreira, 2012). Esta situação tem despoletado, como iremos ver, reações da sociedade civil. 1. A Sociedade Civil e Crise Na linha do que foi referido na secção anterior, a nossa atenção recai sobre as respostas da sociedade civil à emergência e disseminação da crise multifacetada que assola vários países da União Europeia e que tem também expressões solidárias em vários pontos do planetai. Nesse sentido, é pertinente explicitar qual o conceito de sociedade civil que é tomado para análise. O conceito de sociedade civil delimita um terreno que se vê ameaçado pela lógica dos mecanismos administrativos e de mercado, mas que ao mesmo tempo fornece o principal espaço de potencial expansão da democracia no quadro dos regimes ditos democrático – liberais. Mas antes de avançarmos mais na argumentação impõe-se clarificar a que nos referimos ao utilizar este conceito. Tomamos como referência para a nossa análise o entendimento de Jean Cohen e Andrew Arato (2000), que alertam para a necessidade de distinguir a sociedade civil da sociedade política de partidos, de organizações políticas, de públicos políticos (como por exemplo, os parlamentos), e de uma sociedade económica composta por organizações de produção e de distribuição. A sociedade política e económica, de um modo geral, surge a partir da sociedade civil e partilha com esta algumas das suas formas de organização e comunicação e “institucionaliza-se mediante direitos (em particular, direitos políticos e de propriedade), que são uma continuação do tecido de direitos que asseguram a sociedade civil moderna” (idem: 9, tradução minha). O que distingue os atores da sociedade civil dos atores da sociedade política e económica é, antes de mais, o facto de os segundos participarem diretamente no poder do Estado e na produção económica, procurando controlá-los. Segundo os autores, as forças da economia de mercado capitalista podem representar um perigo tão grande para a solidariedade social, justiça social e autonomia dos cidadãos, como para o poder administrativo. No entanto, fazem a ressalva de que, no quadro das democracias liberais, seria um erro considerar à partida a oposição da sociedade civil face ao Estado e à economia. A relação antagónica da sociedade civil, ou dos seus atores, com a economia ou com o Estado surge apenas quando as mediações entre eles fracassam ou quando as instituições das sociedades económica e política atuam no sentido de isolarem o processo de tomada de decisões e quem decide a influência das organizações e iniciativas sociais, bem como as formas de discussão pública. A concretização da “ameaça” referida é visível no caso dos países que estão a ser intervencionados pela tríade FMI, BCE e Comissão Europeia (é o caso de Portugal), ou em que essa possibilidade se coloca num futuro próximo (é o caso da Espanha, que atualmente experiencia cortes na despesa pública na expectativa de evitar uma intervenção deste tipo). No caso dos países que solicitam ajuda externa, a exigência de adoção das medidas de caráter estrutural em troca da ajuda financeira é uma imposição que se traduz na perda de autonomia ao nível da tomada de decisões em matérias de fundo. É neste quadro que se delineia a emergência de um antagonismo que opõe a sociedade civil ao Estado e aos mercados, ou melhor dizendo, a um projeto societal de cariz neoliberal. É também neste contexto que se constituem os atores coletivos a que nos reportamos: os indignados. Trataremos da questão do antagonismo mais adiante. O que pretendemos salientar, abrindo a discussão para as secções seguintes, é o facto de o “ressurgimento” da sociedade civil – entendido no sentido da emergência de novos atores coletivos, e que se opera por meio da constituição de um antagonismo relativamente às sociedades política e económica - é uma reação direta à aplicação de uma nova lógica de governação que vem instituir a sociedade da austeridade. No centro do debate, e tomando a terminologia dos autores supracitados, encontram-se as oposições democracia representativa vs. democracia participativa, e a defesa do Estado social vs. anti - estatismo neoconservador. 6 de 13 2. Os indignados As secções anteriores fornecem-nos os traços gerais do contexto em que emergem os “indignados”. Os países em que a sua presença é registada são aqueles cujas sociedades se configuram como sociedades da austeridade, nomeadamente Portugal e Espanha. Os indignados surgem em Espanha com o protesto de 15 de Maio de 2011, convocado em mais de 50 cidades espanholas, e são, direta ou indiretamente, influenciados pelo exemplo português do dia 12 de Março do mesmo ano, em que centenas de milhar de pessoas saíram às ruas em várias cidades portuguesas para expressarem o seu descontentamento relativamente à classe política, aos sucessivos Planos de Estabilidade e Crescimento (PEC’s), em suma, contra a ausência de perspetivas presentes e futuras. Ficou conhecido como o protesto da Geração À Rasca, ao qual aderiram todos aqueles que se reviam na imagem de uma geração que vê comprometidas todas as perspetivas de futuro. De uma forma geral, o protesto dos indignados é dirigido contra o sistema, que consideram não representar os interesses dos cidadãos. Simultaneamente, sentem que são excluídos por ele. Os temas centrais são as deficiências do sistema democrático representativo, o desemprego crescente, a reforma laboral, os planos de ajuste e o aumento da pobreza, que culminam no defraudamento das perspetivas de futuro. Afirmam-se como anti-partidários na medida em que são descrentes no que diz respeito à adequação do funcionamento do sistema democrático representativo. Identificam-se como promotores da democracia participativa e é nesse sentido que proclamam o “direito à rua” (expresso em palavras de ordem como “a rua é nossa!”) como uma ação de apropriação dos espaços públicos pelos cidadãos, inserida numa estratégia que pretendem que seja de “luta e resistência organizada contra o sistema”. Esta apropriação do espaço público – através de manifestações e da realização de assembleias populares – pretende recriar o conceito de ágora, estabelecendo a ligação entre este último e a recuperação da essência democrática. A mobilização espanhola e os contornos que assumiu repercutiram-se em Portugal, verificando-se uma espécie de contágio, evidenciando aquilo a que mais à frente nos iremos referir como o caráter modular da mobilização. Muitos jovens ficaram entusiasmados com a audácia dos indignados espanhóis que, contra a repressão das forças policiais, ocuparam durante um período considerável as plazas das principais cidades espanholas. Seguindo este exemplo, emergem os indignados portugueses com a acampada do Rossio e a partir desta conformam-se plataformas de movimentos em grande medida inspirados nas reivindicações veiculadas pelos indignados espanhóis, como é o caso da exigência de uma “democracia verdadeira, já!”. Os objetivos e formas de organização são semelhantes nos dois casos, pelo que não vemos necessidade de particularizar tendo em conta o objetivo desta análise. No que diz respeito à organização e à composição dos indignados, será necessário referir alguns aspetos que são centrais à sua compreensão. Os indignados seguem as tendências contemporâneas, pautando-se pela amplificação das redes horizontais, pela forma reticular e por uma forte dependência relativamente à utilização de novas tecnologias como forma de comunicação (telemóvel, internet e redes sociais), pelo que a componente de ciberativismo é muito forte. É também esta última que tem fomentado a ampla disseminação da indignação, conferindo-lhe o caráter modular característico das mobilizações contemporâneas (Tarrow, 1998). Relativamente à composição deste ator coletivo, esta é fortemente influenciada pela nova organização do trabalho marcada pelas tendências de reorganização do processo de trabalho consubstanciadas no imperativo da flexibilização, abarcando principalmente jovens, mulheres, imigrantes, desempregados e todos aqueles que de alguma forma são afetados pela recusa de rigidez por parte dos mercadosii. Não será descabido identificar como um dos maiores “alimentadores”, se não mesmo o maior, das fileiras da indignação os setores das ditas “classes médias”, pelo que será apropriado analisar a indignação na sua relação com essa classe, pois, segundo Estanque (2012: 97), “os novos setores precários e desempregados altamente qualificados que integram os atuais movimentos de “indignados” estão “em luta contra um sistema que lhes frustra as expectativas de estabilização num padrão de vida de classe média”. 3. Indignação, a construção do “povo” e antagonismo 7 de 13 Até agora procuramos fazer um breve retrato de quem são os indignados e quais as condições subjacentes à sua emergência. Tal como é referido, o nosso objetivo é perceber e aprofundar a forma como é constituída a identidade dos indignados e em que medida conformam um ator político. Para empreender essa tarefa apoiamo-nos nos trabalhos de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que têm tratado de forma aprofundada o tema. Os indignados são um objeto de análise complexo, embora à primeira vista possam assemelhar-se a uma amálgama de pessoas que protestam contra as mais variadas coisas. Também, não raras vezes, as reivindicações dos indignados soam como algo muito vago, sendo a indignação entendida como um mero posicionamento contra o sistema sem apontar quaisquer soluções. Esta proposta de análise vem no sentido de contrariar as análises simplistas da construção da indignação e dos indignados, que os reduzem a meras manifestações de descontentamento e revolta. O objetivo é demonstrar como se processou a conformação do ator indignados e qual o significado que este processo assume no contexto atual. Na sua análise do populismo, Ernesto Laclau (2005) apoia-se em três categorias centrais que se encontram subjacentes à construção de um povo (pueplo no original): discurso, significantes vazios e hegemonia, e retórica. Muito embora ao falarmos dos indignados não estejamos a falar de um caso de populismo (no sentido em que é tratado por Laclau), consideramos que as categorias que o autor apresenta são importantes para a análise do nosso objeto. A primeira categoria é o discurso, que é definido como o terreno primeiro da construção da objetividade e concebido como um complexo de elementos no interior do qual as relações desempenham um papel constitutivo. Tal significa que os elementos não precedem o complexo relacional, mas sim que se constroem através deste. A categoria relação adquire, portanto, um papel central, significando, no nosso caso concreto, que a construção do ator indignados não pode ser desvinculada do contexto relacional em que se insere, a sociedade da austeridade, e dos atores que nela intervêm – o Estado, os mercados e as instituições internacionais. A segunda categoria – significantes vazios e hegemonia – exige um exercício complexo. Primeiro, para compreender conceptualmente uma totalidade temos de diferenciá-la em relação a outra coisa distinta dela, e essa outra coisa só pode ser uma diferença que, na medida em que é interna e não externa, não cumpre o papel totalizador, e a única forma de constituir um exterior verdadeiro será se esse exterior for um exterior excluído (algo que a totalidade expele para fora de si mesma de forma a constituir-se)iii. Como a equivalência é o que subverte a diferença, toda a identidade é construída no interior da tensão entre as lógicas da equivalência e da diferença. A totalidade resultante é sempre uma totalidade falhada, simultaneamente impossível e necessária. Os indignados conformam-se na medida em que se diferenciam do discurso dominante, aqui entendido como as instituições e práticas que veiculam o discurso da austeridade e da inevitabilidade que lhe está associada. Enquanto se estabelecem como diferença relativamente ao dito discurso ambos coexistem dentro do mesmo sistema – a diferença é interna - e, portanto, essa mesma diferença não cumpre um papel totalizador. Para a conformação da identidade será necessária a constituição de um exterior que só será verdadeiro se for um exterior excluído – no nosso caso, um exterior fora do sistema dominante. No entanto, no caso específico em análise e tendo em conta o que sabemos acerca dos indignados, é difícil determinar a sua interioridade / exterioridade em relação ao sistema. Coexistem posições contraditórias: uns afirmam que são anti – sistema, outros declinam esse posicionamento pois o sistema é que é “anti – eles”, outros ainda reivindicam um outro sistema pois consideram que o atual não serviria os interesses dos cidadãos mas sim os dos mercados e do capital. É, então, evidente que a identidade dos indignados se constitui no interior de uma tensão permanente entre as duas lógicas referidas. Existe a possibilidade de uma diferença – sem que deixe de ser uma diferença particular – assumir a representação de uma totalidade incomensurável. Esta última operação é particularmente importante para a nossa análise. O autor chama-lhe hegemonia. Como a totalidade implicada na hegemonia é concebida como um objeto impossível ou inatingível, a identidade hegemónica é um significante vazio que transforma a sua particularidade em uma totalidade inatingível que, não obstante, constitui um horizonte possível. O conceito 8 de 13 de hegemonia é aplicável aos indignados: enquanto diferença relativamente ao sistema dominante, os indignados (aquele grupo específico que emerge, em Espanha, do 15 de Maio e, em Portugal, da acampada do Rossio) assumem a representação de todos aqueles que são prejudicados pela lógica neoliberal do sistema (a totalidade incomensurável): o povo, “os 99%”. A terceira categoria – retórica – está relacionada com deslocamentos retóricos, que se verificam sempre que um termo literal é substituído por figurativo. É utilizada a noção de catacresis, recuperada da retórica clássica, que significa a impossibilidade de substituição de um termo figurativo por um literal. Esta figura é aplicada às noções de hegemonia e de significantes vazios. A acumulação de demandas insatisfeitas e a incapacidade cada vez maior do campo institucional em incorporá-las de uma forma diferencial conduzem ao estabelecimento de relações de equivalência entre elas. Esta situação implicaria a constituição de uma fronteira interna, isto é, a dicotomização do campo político por meio da emergência de uma cadeia de equivalências de demandas insatisfeitas, e, através desta operação, a conversão das petições iniciais em demandas. Impõe-se, neste quadro, a clarificação do que entendemos por político. Para tal recorreremos a Chantal Mouffe (2007, pp. 15-16, tradução minha), que concebe o político não como “a multitude de práticas da política convencional” (que identifica com a política), mas sim com o modo como se institui a sociedade. O político é entendido como espaço de antagonismo e de conflito, pois a instituição da sociedade implica necessariamente o desenhar de uma fronteira antagonística com base na lógica das equivalências. Laclau fornece um exemplo elucidativo a este propósito: uma sociedade que tem como horizonte o Estado social. Neste caso, a lógica das diferenças seria a única forma legítima de construção do social. Numa sociedade deste tipo, qualquer tipo de necessidade social seria satisfeita de uma forma diferencial; nesse sentido não existiria qualquer base para a constituição de uma fronteira interna por meio de uma operação de condensação, isto é, alguns significantes privilegiados que condensam em torno de si o significado de um campo antagónico. Contudo, o que acontece é que os obstáculos que seriam de encontrar na instituição desse tipo de sociedade forçam os seus proponentes à identificação de um inimigo e a reintroduzir o discurso da divisão social baseado na lógica das equivalências. Dessa forma, é possível a emergência de atores coletivos em torno do propósito da defesa do Estado social. As demandas populares são - ao contrário das demandas democráticas que são suscetíveis de serem incorporadas pela formação hegemónica em expansão – as únicas que desafiam a formação hegemónica. A constituição das primeiras depende da presença de um antagonismo e do desenhar de uma fronteira antagonista, sendo que esta última tem como função conceber a sociedade como dois campos irreconciliáveis que se estruturam em torno de duas cadeias equivalenciais incompatíveis. Nesse sentido, o antagonismo é constitutivo e requer a existência de um espaço fraturado. Esta fratura – que se encontra intimamente relacionada com a experiência de uma falta -, essencial à emergência das identidades populares, representa uma rutura na continuidade do social, e sem esta rutura inicial da ordem social não é possível a emergência de um antagonismo. É importante incluir na equação os responsáveis pela frustração da demanda, a quem são dirigidas as reivindicações pois estas visam sempre alguém ou algo. Por conseguinte, encontramo-nos perante uma divisão dicotómica entre, por um lado, as demandas sociais insatisfeitas, e por outro, o poder que ignora as demandas formuladas. Isto tem muitas vezes tradução na exclusão dos elementos identificados com o poder e, nesse sentido, a sua ilegitimização, como acontece no caso dos indignados que afirmam não serem representados pelo poder político e, consequentemente, não lhe reconhecem legitimidade para tomar de decisões, nomeadamente sobre a aplicação das medidas de austeridade. 4. Um novo sujeito político A conformação do ator coletivo indignados corresponde a uma reação à ofensiva dirigida ao Estado social, que é levada a cabo, objetivamente, através das reformas estruturais implementadas e, subjetivamente, através da construção ativa do consenso com base na aceitação e no medo. As relações sociais que se desenham na sociedade da austeridade são percebidas como um dano. De acordo com Rancière (1996), a 9 de 13 demanda social que é construída corresponde a uma produção subjetiva a partir de elementos antes não identificados cuja identificação é concomitante a uma nova forma de representação do campo de experiência, em que se encontra implicado o questionar dos sentidos dominantes a partir da emergência de novas demandas. Surge um novo sujeito político, predisposto para a ação através da produção de uma reestruturação dos sentidos dados e da expansão dos lugares de luta pela hegemonia. A emergência do sujeito político enunciado decorre da formação de uma fronteira interna decorrente da existência de um antagonismo, que separa o povo do poder. A emergência desse povo – os indignados – depende da verificação de uma articulação equivalencial de demandas que anteriormente se encontravam isoladas. Nesse sentido, os indignados não são só aqueles que reivindicam, por exemplo, o direito ao trabalho digno ou o direito ao trabalho, mas também os que reivindicam o direito à habitação (no cado dos indignados espanhóis, o “o direito a ter um teto” é um dos temas centrais) ou ao ensino completamente gratuito. Após a mobilização ter atingido um nível elevado, as diferentes demandas foram unificadas num sistema estável de significação e a sua extensão a outros setores ou grupos sociais que inicialmente não apresentam estas demandas como suas: ser indignado é rejeitar as transformações em curso, as desigualdades e ambicionar um futuro melhor e mais igualitário. A unificação num sistema estável de significação permite que um setor da população, ao identificar-se como indignado, defenda como sua, por exemplo, a reivindicação do direito à habitação mesmo que esta não seja a sua preocupação central. Utilizámos as categorias do populismo levar a cabo a nossa análise, pois enquanto lógica política (como é concebido por Laclau), revela ser uma ferramenta de análise adequada ao desmontar das dinâmicas envolvidas na conformação do nosso ator coletivo. A lógica política está relacionada com a instituição do social que decorre da existência de demandas sociais e é inerente a qualquer processo de transformação social que ocorre mediante a articulação variável entre equivalências e diferenças. O momento equivalencial pressupõe a constituição de um sujeito político global que reúne uma pluralidade de demandas sociais. Tal implica, como referido anteriormente, a construção de fronteiras internas e a identificação de um outro institucionalizado. 5. A dimensão política da luta e da resistência As transformações de natureza estrutural que impulsionam a conformação de novos atores coletivos obrigam a repensar a vigência de uma forma de política em que “a divisão do social em dois campos antagónicos é um dado originário”, sendo necessária “uma transição em direção a uma situação nova, caracterizada pela instabilidade essencial dos espaços políticos, em que a própria identidade das forças em luta está submetida a constantes deslocamentos e requere um processo de redefinição incessante” (Laclau et al., 2010, pp. 193, tradução minha). Neste contexto, a emergência de toda a identidade coletiva depende do processo de generalização da forma hegemónica da política, uma vez que as práticas articulatórias, enquanto prática hegemónica, determinam o princípio da divisão do social. Impõem-se a pluralidade e a indeterminação do social, e, portanto, a multiplicação dos pontos de rutura e de conflito. Como já foi referido, o político requer a constituição de fronteiras antagonistas dentro do campo social e a convocação de novos sujeitos de transformação social, o que envolve a produção de significantes vazios que permitem a unificação da multiplicidade de demandas heterogéneas em cadeias de equivalências. É necessária a presença de um certo tipo de equivalência num discurso para que este seja considerado político. Laclau et al. (2010) argumentam que a resistência só se constitui como política no quadro de um determinado contexto histórico, e na medida em que deixa de se opor apenas a uma instância de dominação específica e passa a estar direcionada para o objetivo de fazer desaparecer toda a estrutura de subordinação. De acordo com este argumento, a resistência politizada é discursivamente construída, e o discurso de resistência só se torna politizado na medida em que o sentido da revolução democrática é reapropriado e redefinido sob determinadas condições históricas, combinando a introdução de novos significados com a preservação de uma conceção não essencialista de articulações anteriores. Deste modo, as formas de submissão mais normalizadas passam a poder ser vistas como ilegítimas e a eliminação da subordinação 10 de 13 pode ser imaginada pelos atores sociais. A indignação, e a sua expressão corporizada nos indignados, é o veículo de uma crítica e da rejeição do sistema da democracia liberal. O discurso deste ator coletivo reflete a identificação dos limites e contradições do mesmo sistema que afirma basear-se numa conceção igualitária e de auto - determinação do indivíduo mas que, simultaneamente, promove uma ordem social pautada pelas desigualdades sociais, em que o sentido da democracia é deturpado na medida em que serve os interesses capitalistas identificados com os das classes dominantes. Há, no sistema vigente, uma contradição insolúvel entre igualitarismo e dominação e, nesse sentido, para que o indivíduo cumpra os seus desejos de auto – realização, as relações de exploração e de opressão têm de ser completamente desmanteladas, o que implica uma ordem social e sistema novos. Tal vem de encontro às formulações de autores como Habermas (1970, 1984, 1987), que consideram que a tomada de decisão orientada pelos mercados nos países ocidentais, estende-se a cada vez mais esferas da interação humana e de uma forma que colide com os princípios democráticos. A possibilidade de pensar a divisão do social em termos de fronteiras políticas concretiza-se apenas quando a primeira deixa de estar vinculada a um espaço objetivo preexistente. Para Norval (1994), pensar a divisão social em termos de fronteiras políticas é cada vez mais importante em situações em que as identidades políticas, que emergem em resultado da divisão do social, não obedecem a uma correspondência “natural” a elementos pré-designados, mas podem ser vistas como o resultado de um projeto particular de construção de identidades sociais e políticas específicas. Desta leitura decorre que as identidades políticas e sociais são objeto de construção e contestação política. No caso dos indignados, e à luz dos elementos de análise fornecidos, a luta e a resistência que desenvolvem apresentam uma dimensão política indiscutível na medida em que recusam a ordem vigente e exigem uma alternativa. 6. Considerações Finais O contexto das sociedades da austeridade e a emergência dos indignados encontram-se intrinsecamente ligados. Os últimos conformam-se como reação à imposição da primeira e exigem a apresentação de uma alternativa, não cedendo à ideia de inevitabilidade amplamente disseminada. Conformam uma resposta da sociedade civil à crise económica, mas também política, que grassa no território europeu e um pouco por todo o mundo. O ator coletivo aqui analisado remete-nos para o reconhecimento da sociedade civil como principal espaço de expansão da democracia no quadro dos regimes democráticos liberais e é nesse sentido que falámos num ressurgimento da sociedade civil, aqui identificado com a emergência de novos atores e dinâmicas. No seu conjunto, a análise empreendida leva-nos a constatar que os espaços de conflito multiplicam-se a velocidade acelerada, representando uma tendência no contexto atual. Aliás, tudo aponta para a intensificação das reações e respostas à instituição da “nova ordem”. Neste processo é cada vez mais evidente o delinear de um antagonismo entre a sociedade civil e o Estado executor das medidas de austeridade e os mercados e instituições financeiras. É a emergência do antagonismo referido que dá forma aos indignados. Os processos de conformação deste ator coletivo e de construção da sua identidade direcionam-nos para a conclusão que, ao contrário do que o discurso dominante quer fazer crer, os indignados são mais do que uma mera expressão de descontentamento sem qualquer fundamento político. Ao contrário, constituem-se por meio de uma lógica política – o populismo –, atuam no campo político e desenvolvem uma resistência e luta políticas. Obviamente, muitas e válidas questões podem ser colocadas acerca da sua estrutura e das repercussões que daí advêm para o desenvolvimento de uma ação e estratégias consequentes. Os indignados seguem as tendências contemporâneas de ação coletiva, marcadas pela flexibilidade, horizontalidade e lideranças indefinidas. Estas apresentam vantagens, mas também desvantagens: os movimentos com estas características são mais propensos à dispersão organizativa e de objetivos. No entanto, foram essas mesmas características que permitiram, e até promoveram, a construção das solidariedades nacionais, regionais e até transnacionais, que lançaram os indignados no campo mediático e simultaneamente fortaleceram a sua ação na oposição ao Estado e à esfera económica. 11 de 13 A aplicação da lógica política do populismo aos indignados permitiu identificar alguns aspetos importantes. Em primeiro lugar, a importância que os indignados assumem ao nível da desconstrução do discurso da austeridade e da inevitabilidade. Segundo, a sua conformação permite a delineação de uma fronteira antagónica que divide o campo social e opõe a sociedade civil aos agentes instituidores da sociedade da austeridade (o Estado e as instituições externas – FMI, BCE e Comissão Europeia), abrindo as portas à proliferação dos espaços de conflito. Terceiro, a aplicação da lógica das equivalências e das diferenças vem demonstrar que a dificuldade em definir quem ou o que são os indignados decorre dos factos de o significante indignados condensar uma pluralidade de sentidos num sistema estável de significação e de abranger uma cadeia equivalencial de demandas plurais que são dirigidas a um mesmo oponente – a sociedade da austeridade e as suas instituições. Estes aspetos, bem como a dimensão política da luta e resistência a que dão corpo, não devem ser desconsiderados. Admitimos, naturalmente, a existência de inúmeras limitações no que diz respeito à ação dos indignados. No entanto, em termos futuros e pelas razões apontadas, a sua importância como sujeitos políticos não deve ser menosprezada, ainda que esteja em grande medida dependente da evolução da situação de crise, tanto no espaço europeu como nas restantes zonas do globo. Referências Bibliográficas Cohen, Jean L. e Arato, Andrew (2000). Sociedad Civil y Teoría Política. México: Fondo de Cultura Económica. Estanque, Elísio (2012). A Classe Média: Ascensão e Declínio. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ferreira, António Casimiro (2012). Sociedade de Austeridade e direito do trabalho de exceção. Porto: Vida Económica – Editorial, SA. Laclau, Ernesto (2010). La Razón Populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A. _____________ e Mouffe, Chantal (2010). Hegemonía y estrategia socialista: Hacia una radicalización de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A. Laclau, Ernesto e Zac, Lilian (1994). Minding the Gap: The Subject of Politics. 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Cambridge: Cambridge University Press. 12 de 13 i A este respeito é importante referir, entre outras expressões, a recente onda de movimentos Occupy um pouco por todo o mundo e a cadeia de mobilizações descentralizadas da Primavera Global que, de 12 a 15 de Maio do corrente ano, foi levada a cabo em várias cidades também em vários pontos do globo. ii A esse respeito, é frequente no discurso dos indignados a presença da ideia que os precários do século XXI não têm lugar nas instituições herdeiras da era fordista, como os sindicatos. iii Segundo Laclau, este raciocínio apresenta um problema: todas as outras diferenças são equivalentes entre elas pois são diferentes do elemento excluído, isto é, são equivalentes no que diz respeito à sua rejeição comum em relação ao elemento excluído. 13 de 13