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Apoptose na sepse e síndrome da resposta
inflamatória sistêmica: revisão
Paula Cristina Basso
Alceu Gaspar Raiser
Daniel Curvello Mendonça Müller
Anelise Bonilla Trindade
RESUMO
Embora o conceito prevalente de que a mortalidade na sepse resulta da crescente resposta
inflamatória mediada por citocinas, as falhas na maioria dos experimentos terapêuticos utilizando antagonistas de citocinas, exigem reflexão sobre os mecanismos moleculares envolvidos na
fisiopatologia dessa síndrome. Estudos atuais indicam que a maioria das mortes de sepse resulta
de diminuição substancial na resposta imune que ocorre devido à excessiva apoptose de linfócitos
e células dendríticas, acompanhada por diminuição na apoptose de neutrófilos. Terapias efetoras
visando bloquear os mecanismos apoptóticos envolvidos na Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica, como o uso de modeladores de caspases e outros componentes da via de morte
celular, foram efetivos na melhora da sobrevida de animais com sepse induzida, tornando-se
alvo terapêutico potencial. Entretanto ainda existem questionamentos sobre o uso de inibidores
de apoptose no tratamento de pacientes sépticos, em virtude da possibilidade de crescimento
celular descontrolado.
Palavras-chave: Morte celular programada. Células imunes. Inflamação. Sepse.
Apoptosis in sepsis and systemic inflammatory response syndrome:
Review
ABSTRACT
Although the prevalent concept that mortality in sepsis is the result of an increasing
inflammatory response mediated by cytokines, the failure in the majority of the therapeutic
experiments using the antagonistic of cytokines demands a reflection on the molecular mechanisms
involved, in the pathophysiology of such syndrome. Current studies indicate that the majority
of the deaths by sepsis are resultants of a substantial reduction in the immune response that
occurs due increased lymphocytes and dendritic cells apoptosis, followed by a decreased
neutrophil apoptosis. Effector therapies, such as the use of modulators of caspases and other
components of the cell-death pathway, aim to blockade the involved apoptosis mechanisms in
the systemic inflammatory response syndrome. Such therapies had been effective in the
Paula Cristina Basso é Médica Veterinária, Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Medicina Veterinária
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Alceu Gaspar Raiser é Médico Veterinário, Professor Doutor Adjunto do Curso de Medicina Veterinária da
UFSM.
Daniel Curvello Mendonça Müller é Médico Veterinário, Doutorando do Curso de Medicina Veterinária da
UFSM.
Anelise Bonilla Trindade é Médica Veterinária, Mestranda do Curso de Medicina Veterinária da Universidade
Federal de Rio Grande do Sul.
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improvement of survival of septic experimental animals, becoming therapeutic potential targets.
However there are still some questions conceming the use of apoptosis inhibitors in the treatment
of septic patients due to the possibility of uncontrolled cellular growth.
Keywords: Programmed cell death. Immune cells. Inflammation. Sepsis.
INTRODUÇÃO
O manejo de pacientes com sepse severa continua sendo um desafio clínico
tanto na medicina humana quanto animal, em virtude da associação com alta morbidade,
mortalidade e implicações econômicas (AWAD, 2003). Mesmo diante dos avanços nas
terapias antimicrobianas (OBERHOLZER et al., 2001) e manobras de suporte de vida
em pacientes críticos, esta síndrome está associada com mortalidade de 30-45% e a
ocupação de 45% dos leitos da unidade de terapia intensiva humana nos Estados
Unidos (SINGH; EVANS, 2006).
A teoria predominante que explica a alta taxa de mortalidade nessa condição é
baseada no fato de a sepse grave ser caracterizada por uma fase pró-inflamatória, um
estado pró-coagulante e decréscimo na fibrinólise, os quais, se não controlados,
conduzem à deteriorização funcional progressiva de múltiplos órgãos interdependentes
(AWAD, 2003). Entretanto, numerosas observações clínicas utilizando agentes
antiinflamatórios específicos ou anticitocinas, como por exemplo terapias específicas
antifator de necrose tumoral (TNF) e anti-interleucina 1 (IL-1), falharam em aumentar a
sobrevida de pacientes com sepse ou, em alguns casos, exacerbaram a condição (ZENI,
1997). Estas falhas conduzem à revisão do conceito de que a morte nessa síndrome
seja apenas devido à resposta hiperinflamatória, acreditando-se existirem outros
mecanismos envolvidos nesse processo (HOTCHKISS; NICHOLSON, 2006).
Oberholzer et al. (2001) afirmam que após o estado hiperinflamatório, o paciente
séptico freqüentemente desenvolve um estado imune caracterizado por
hiporesponsividade T celular e distúrbios na apresentação de antígenos,
desencadeando, dessa forma, acentuada imunossupressão e conduzindo o paciente
ao óbito. O aumento da apoptose, particularmente no tecido linfóide e potencialmente
em órgão sólidos, contribui para a hipofunção do sistema imune do paciente séptico
sendo investigados como alvo terapêutico para intervenção nessa síndrome
(OBERHOLZER et al., 2001).
Esta revisão tem por objetivo discorrer sobre a fisiopatologia da sepse e da
Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS) associada aos mecanismos de
apoptose celular e discutir terapias anti-apoptóticas promissoras, experimentalmente
estudadas, as quais objetivam reduzir a taxa de mortalidade em pacientes sépticos.
DEFINIÇÕES ATUAIS
Sepse é definida como uma resposta inflamatória sistêmica à infecção bacteriana,
fúngica, viral ou protozoariana. Infecções que podem resultar em sepse incluem
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peritonite bacteriana, piometra, piotórax, endocardite, abscessos em órgãos, prostatite
e pneumonia (POWELL, 2003). Quando essa resposta inflamatória é desencadeada por
insultos não necessariamente infecciosos, denomina-se síndrome da resposta
inflamatória sistêmica (SIRS) (POWEL, 2003; CARCILLO, 2006). Condições não
infecciosas incluem traumatismo, queimaduras, choque hemorrágico ou hipovolêmico,
pancreatite, doenças auto-imunes e neoplasias (BLACKWELL; CHRISTMAN, 1996).
Embora Vincent e Abraham (2006) afirmem que o pulmão seja o sítio de infecção primário
mais comum associado à sepse em humanos, a infecção abdominal, segundo os autores,
tem maior significância na rotina clínica veterinária em virtude principalmente da alta
casuística de peritonite séptica e piometra.
Nguyen et al. (2006) define SIRS como a presença de dois ou mais dos seguintes
sinais: taquicardia, taquipnéia, hipertermia ou hipotermia, leucocitose ou leucopenia.
Sepse grave é definida como a presença de sepse associada com uma ou mais alterações
clínicas ou laboratoriais de disfunção orgânica, como injúria pulmonar aguda,
anormalidades de coagulação, alteração de estado mental, falência renal, cardíaca ou
hepática (NGUYEN et al., 2006).
Considera-se um paciente em choque séptico quando os sinais clínicos de sepse
prevalecem depois de adequada reposição hidroeletrolítica, ou seja, é uma hipotensão
refratária (BRADY et al., 2000). A adequada reposição pode ser avaliada pela
normalização da pressão venosa central (5-10 cmH2O), do débito urinário (1-2 ml/kg/h),
da coloração das mucosas, do tempo de reperfusão capilar e pela estimativa da pressão
arterial (POWELL, 2003).
FISIOPATOLOGIA DA SEPSE/SÍNDROME DA RESPOSTA
INFLAMATÓRIA SISTÊMICA
Normalmente o processo inflamatório local é um evento em cascata bem
controlado, incluindo respostas celulares, mecanismos neurohumorais e uma resposta
antiinflamatória para o seu controle. No entanto, devido à injúria, instabilidade
cardiovascular ou imunossupressão, pode ocorrer desrregulação desta resposta,
desencadeando a inflamação sistêmica (POWELL, 2003). A patogenia da sepse envolve
um processo complexo de ativação celular resultando na liberação de mediadores próinflamatórios, tais como citocinas, ativação de neutrófilos, monócitos, células endoteliais
microvasculares, além de envolvimento neuroendócrino, ativação do complemento,
coagulação e sistema fibrinolítico (VICENT; ABRAHAM, 2006).
A sepse inicia quando as moléculas presentes na parede celular do microorganismo
invasor se ligam a receptores de reconhecimento [receptores toll-like (TLRs)] na
superfície de células imunes (RUSSELL, 2006). Os peptideoglicanos de bactérias grampositivas e os lipopolissacarídeos de bactérias gram-negativas ligam-se ao TLR-2 e TLR4, respectivamente. A ligação de TLR-2 e TLR-4 ativa vias de sinais de transdução
intracelular que conduzem à ativação do Fator Nuclear Citosólico kB (NF-kB) (VINCENT;
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ABRAHAM, 2006). O NF-kB ativado move-se do núcleo para o citoplasma, ligando-se a
sítios de iniciação de transcrição e aumentando a transcrição de citocinas tais como o
fator de necrose tumoral α (TNF-α), a interleucina 1β e a interleucina 6. Estas são citocinas
pró-inflamatórias que ativam a resposta imune adquirida, mas causam injúria direta ou
indireta aos tecidos do hospedeiro (RUSSELL, 2006; VINCENT; ABRAHAM, 2006).
A inflamação sistêmica aumenta a atividade de sintetases indutoras de óxido
nítrico (iNOS), as quais aumentam a síntese de óxido nítrico (NO), que possui potente
efeito vasodilatador. Citocinas causam injúria de células endoteliais, o que induz
neutrófilos, monócitos, macrófagos e plaquetas a se ligarem às células endoteliais.
Estas células efetoras liberam mediadores tais como proteases, oxidantes,
prostaglandinas e leucotrienos (RUSSELL, 2006). A função chave do endotélio é a
permeabilidade seletiva, vasorregulação e provisão de superfície anticoagulante (AIRD,
2003; KISSELEVA et al., 2006). Assim, essas proteases, oxidantes, prostaglandinas e
leucotrienos causam injúria de células endoteliais, conduzindo ao aumento da
permeabilidade vascular, vasodilatação, e alteração de equilíbrio pró e anticoagulante
(AIRD, 2003).
A vasodilatação resulta em aumento da capacitância vascular devido à diminuição
na resistência periférica, o que conduz à hipovolemia relativa, desencadeando
hipotensão, hipoperfusão tecidual e danos isquêmicos (RAISER, 2005). A isquemia
resultará em Síndrome da Disfunção Orgânica Múltipla (MODS). O fígado isquêmico
terá o sistema histiolinfoplasmocitário deficiente e dessa forma não poderá detoxificar
as substâncias tóxicas provenientes do intestino, via veia porta, e estas se acumularão
na corrente sangüínea, aumentando a inflamação (AWAD, 2003). A queda na pressão
arterial é detectada pelas células da mácula densa no aparelho justaglomerular, que
ativam o sistema renina-angiotensina-aldosterona, reabsorvendo sódio e água e
expandindo a volemia (VERLANDER, 1999). No entanto, a hipotensão severa poderá
resultar em isquemia renal e insuficiência renal aguda (POWELL, 2003; SINGH; EVANS,
2006). O intestino isquêmico diminui o peristaltismo favorecendo a necrose e ulceração
da mucosa, facilitando a adesão de bactérias à parede intestinal. Isso permite a
translocação de bactérias, toxinas e citocinas para a corrente sangüínea, potencializando
ainda mais a SIRS (MACINTIRE, 2003). Enfim, o TNF e outros mediadores causam
depressão miocárdica e diminuição da performance sistólica, conduzindo à falência
cardíaca (POWELL, 2003).
Independentemente do evento inicial, neutrófilos ativados e plaquetas aderem
ao endotélio dos capilares pulmonares e liberam várias substâncias tóxicas, que
conduzem à injúria endotelial difusa e aumento de permeabilidade vascular, induzindo
edema pulmonar. Injúria de células endoteliais alveolares também conduz à hemorragia
microvascular, trombose e perda de surfactante alveolar. O resultado final é hipoxemia
profunda o que é denominado Síndrome da Angústia Respiratória Aguda (SARA)
(AWAD, 2003). Essa síndrome tem sido observada na prática clínica dos autores, onde
cães atropelados apresentam índice significativo de contusão pulmonar que evolui
agressivamente em períodos relativamente curtos (6-12hs). As lesões contundentes
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no parênquima desencadeiam processo inflamatório com retenção progressiva de
líquido e hemorragia pulmonar e/ou pneumotórax.
Devido à liberação de IL-6 e TNF-α, sepse/SIRS podem estimular a síndrome de
coagulação intravascular disseminada (CID). A IL-6 estimula a formação de fibrina,
mediada pelo complexo Fator Tissular/Fator VII ativado (FT/FVIIIa), ao passo que o
TNF-α inibe a anti-trombina III, proteína C, proteína S e inibidor da via fator tecidual
(TFPI) que são anticoagulantes naturais, e conseqüentemente, se inibidos desencadeiam
coagulação desenfreada (AIRD, 2003; AMARAL et al., 2004; RUSSELL, 2006),
característica marcante da primeira fase da síndrome CID (RAISER, 2005). Além disso,
o TNF-α estimula o aumento nos níveis de inibidores dos ativadores do plasminogênio
do tipo I (PAI-I) (AWAD, 2003). O plasminogênio tem a função de degradar a fibrina em
plasmina, dessa forma, na sua ausência, ocorrerá remoção inadequada de fibrina,
contribuindo para a trombose da microvasculatura (AWAD, 2003). Assim, ocorre
ativação sistêmica da coagulação, e a fibrina e os microtrombos formados podem
causar oclusão dos ramos e comprometimento da irrigação sanguínea em diversos
órgãos, que em conjunto com alterações metabólicas e hemodinâmicas, contribui para
MODS e morte na SIRS (AWAD, 2003). Nos pequenos animais, os distúrbios de
coagulação ocorrem como complicação do choque, gastrenterites, pancreatite,
queimaduras, esmagamento, entre outros.
FISIOLOGIA DA MORTE CELULAR PROGRAMADA
A apoptose ou morte celular programada é um processo de suicídio celular, cujos
mecanismos estão codificados nos cromossomos de células nucleadas. É dependente
de energia, assincrônico e geneticamente controlado, pelo qual células desnecessárias
ou defeituosas são destruídas (KAM; FERCH, 2000). A ativação dos genes pode ser
fisiológica, explicando a renovação normal das células no corpo (OBERHOLZER et al.,
2001), contudo a apoptose tem papel central na patogenia da doença quando os genes
que controlam o processo apoptótico são suprimidos, superexpressos ou alterados
por mutação (THATTE; DAHANUKAR, 1997).
Durante a apoptose, as células soltam-se de seu substrato e de células adjacentes
e o DNA é digerido por endonucleases específicas. Ocorre ativação de proteases
celulares que promovem a ruptura do citoesqueleto, promovendo encarquilhamento
celular. Então, a membrana plasmática da célula apoptótica emite pseudópodos
conhecidos como brotos que dão origem aos corpos apoptóticos. A membrana celular
torna-se permeável e morre, e o corpo apoptótico pode ser fagocitado por macrófagos
ou células do tecido (KAM; FERCH, 2000). Desse modo, as células mortas são removidas
antes que percam a integridade de sua membrana celular, não havendo liberação de
conteúdo celular e, portanto, não se inicia qualquer injúria ou coagulação nos tecidos
adjacentes, com ausência de reação inflamatória, fato que difere da necrose (MENDES;
GREEN, 1999).
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A morte celular programada é controlada por dois genes principais, a família Bcl2 e a família do p53. Os genes da família Bcl-2 se dividem em dois grupos, os reguladores
negativos da apoptose (anti-apoptóticos), que são Bcl-2 e Bcl-xl, e os reguladores
positivos da apoptose (pró-apoptóticos), compostos por Bax, Bad, Back e Bcl-xs
(HAUNSTETTER; IZUMO, 1998). Dentre os genes da família p53 envolvidos na
apoptose tem-se o p53 e o p73. O gene p53 controla a proliferação celular e reparo ao
DNA, é regulador positivo da apoptose celular e conhecido como gene supressor
tumoral, cuja deficiência está relacionada com o desenvolvimento de neoplasias (SILVA;
ZUCOLOTO, 2003).
O sinal que inicia a apoptose pode resultar da ligação a receptores de superfície
de células mortas ou com dano ao genoma. Receptores de morte que iniciam a apoptose
incluem o receptor FAS e o sistema receptor TNF, e correspondem à via extrínseca dos
mecanismos apoptóticos. O receptor FAS, inicialmente chamado CD95 ou APO1, é um
receptor de morte glicoprotéico transmembranoso, que é ativado pela ligação do ligante
FAS /FAS-L às membranas celulares e está expresso em células do sistema imune. O
sistema receptor TNF medeia diferentes caminhos bioquímicos, e pode se unir a um
ligante, formando TNF/TRAIL e TNF/TRADD, produzindo moléculas intracelulares
chamadas domínio de morte (KAM; FERCH, 2000).
A execução da morte celular programada é efetuada por um conjunto de proteases
cisteínicas denominadas caspases. É importante salientar que nem todos os membros
das caspases são moléculas efetoras. Caspases 6, 7 e 3 estão diretamente implicadas
com a execução de células apoptóticas. Caspases 8, 10, 9 e 2 são caspases iniciadoras
ou regulatórias, ou seja, suas atividades não causam diretamente características
morfológicas de apoptose, mas funcionam como sinalizadores moleculares,
transduzindo sinais estressantes capazes de ativar as caspases efetoras. Outros
membros incluem caspases 1, 4, 5, 11, 12 e 13 os quais parecem estar primariamente
envolvidos no processo inflamatório, via processamento de citocinas pró-inflamatórias
como interleucinas 1 e 18, sem desempenhar qualquer função apoptótica (MENDES;
GREEN, 1999).
Depois de ativadas, as caspases atuam sobre substratos celulares específicos,
como a actina, que é importante componente do citoesqueleto celular, cuja clivagem
resulta no encarquilhamento e diminuição do tamanho celular; a lâmina B, que é um
filamento intermediário do núcleo, e sua clivagem resulta no colapso e condensação da
cromatina nuclear; e a polimerase-ADP-ribose (PARP), que é enzima encontrada na maioria
dos núcleos eucarióticos e envolvida no reparo do DNA (OBERHOLZER et al., 2001).
A mitocôndria é definida como sensor de estresse e determinante se a célula vive
ou morre. Em situações fisiológicas, a mitocôndria intacta contém citocromo C e fator
indutor da apoptose (AIF) (KOWALTOWSKI, 2000). AIF é liberado da mitocôndria
através da permeabilização da membrana seletiva, secundária à abertura de poros de
transição de permeabilidade mitocondrial. A abertura desses poros é engatilhada pelo
aumento nas concentrações de cálcio (Ca++) intramitocondrial. Quando estímulos de
morte são emitidos, as concentrações de Ca++ citosólico aumentam devido à abertura
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de canais de Ca++ na membrana celular ou liberação de estoques de Ca++ pelo retículo
endoplasmático. O aumento citosólico de Ca++ estimula a captação mitocondrial,
promovendo a abertura dos poros de transição e, dessa forma, levando à perda da
permeabilidade seletiva da membrana mitocondrial. Assim, ocorre influxo de prótons,
íons e solutos, que resulta em colapso no potencial de membrana e liberação do
citocromo C e do AIF (KOWALTOWSKI, 2000; SMAILI et al., 2003). O citocromo C
liberado no citosol liga-se ao AIF, formando APAF-1, que se associa com a pró-caspase
9, induzindo sua ativação e também a ativação das caspases efetoras, especialmente a
caspase 3. As caspases ativadas irão executar a cascata proteolítica, fragmentação do
DNA e morte celular. Esse processo mitocondrial refere-se à via apoptótica intrínseca
(MENDES; GREEN, 1999; SMAILI et al., 2003) (Figura 1).
FIGURA 1 – Mecanismo da via apoptótica intrínseca: quando estímulos de morte são emitidos abrem-se os
canais de Ca++ na membrana celular, resultando no aumento de Ca++ citosólico. O aumento de Ca++ citosólico
estimula a captação mitocondrial o que promove abertura dos poros de transição e influxo de prótons,
solutos e íons, resultando no colapso da membrana mitocondrial e liberação do citocromo C e AIF.
Citocromo C e AIF ligam-se formando APAF-1, que se associa com pró-caspases 9, promovendo a sua
ativação e ativação de caspases efetoras. As caspases efetoras exercem a fragmentação do DNA e
morte celular.
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MECANISMOS APOPTÓTICOS ENVOLVIDOS NA SEPSE
E SÍNDROME DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA
SISTÊMICA
Estudos recentes sugerem que a morte de células imunes apoptóticas pode
contribuir para a disfunção imune e falência múltipla orgânica durante a sepse e que o
uso de agentes bloqueadores dos mecanismos apoptóticos tem melhorado a sobrevida
em animais com sepse induzida (CHUNG et al., 2003). Para Oberholzer et al. (2001), a
supressão imune secundária a perdas apoptóticas de células T e B pode contribuir
significativamente para o risco de infecções oportunistas e conduzir o paciente ao óbito.
As células do sistema imune mais freqüentemente documentadas exibindo morte
celular apoptótica na SIRS são os linfócitos (RIEDEMANN et al., 2003; HOTCHKISS;
NICHOLSON, 2006). A apoptose de linfócitos na sepse foi detectada no timo, baço e
tecido linfóide associado ao intestino (GALT) (AYALA et al., 2007), envolvendo tanto
a via receptora de morte (extrínseca) quanto à via mitocondrial (intrínseca) (HOTCHKISS;
NICHOLSON, 2006). Le Tulzo et al. (2002) observaram marcado aumento de apoptose
de linfócitos no sangue de pacientes humanos em choque séptico comparado com
pacientes criticamente enfermos não sépticos, e que este aumento de apoptose conduzia
a uma profunda e persistente linfopenia, o que estaria associado com prognósticos
menos favoráveis.
Outros tipos de células do sistema imune com aumento da incidência de apoptose
na sepse são as células dendríticas (AYALA et al., 2007), que se constituem numa das
mais importantes células apresentadoras de antígenos, desempenhando funções tanto
na resposta imune inata quanto adquirida (HOTCHKISS; NICHOLSON, 2006). Além
disso, Iwata et al. (2003) demonstraram que a proteção contra apoptose de células
mielóides (monócitos) foi valiosa para a resposta imune do hospedeiro na sepse,
indicando que, além da perda apoptótica de linfócitos e células dendríticas, mecanismos
apoptóticos aumentados de células mielóides também contribuem para a inabilidade
da defesa do hospedeiro séptico contra efeitos letais.
No entanto é importante ressaltar que diferentemente dos linfócitos, os neutrófilos
reagem a um processo séptico com diminuição de apoptose o que parece estar associado
à diminuição da atividade das caspase-9 e 3 e a manutenção prolongada do potencial
transmembrana mitocondrial (AYALA et al., 2007). A diminuição da apoptose em
neutrófilos também foi encontrada em estudos com pacientes humanos sépticos
realizados por Fialkow et al. (2006), os quais concluíram que a apoptose de neutrófilos
na sepse é inversamente proporcional à severidade da síndrome, podendo ser utilizada
como marcador de casos severos. Esta diminuição na apoptose de neutrófilos aumenta
a injúria tecidual na SIRS, haja vista que a permanência prolongada de neutrófilos
promoverá descontrolada liberação de metabólitos tóxicos por essas células, que são
injuriosos para as células epiteliais (OBERHOLZER et al., 2001).
Outro mecanismo que explica a apoptose como causadora de disfunção imune na
sepse, é o fato de a captação de células apoptóticas por macrófagos e células dendríticas
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Veterinária em Foco, v.6, n.1, jul./dez. 2008
estimular tolerância imune por induzir a liberação de citocinas antiinflamatórias, como a
interleucina 10, e suprimindo a liberação de citocinas pró-inflamatórias que estimulariam
a resposta imune específica (HOTCHKISS; NICHOLSON, 2006).
Atualmente, evidenciou-se que células não imunes, como as células epiteliais da
mucosa intestinal e hepatócitos, podem exibir mudanças apoptóticas em modelos
clínicos de sepse. Embora a significância desses eventos apoptóticos na sepse ainda
não esteja clara, esse potencial de perda de células contribui não apenas para a perda
da função de defesa inata do hospedeiro, mas também na disfunção orgânica múltipla
(AYALA et al., 2007).
BLOQUEIO DA APOPTOSE COMO META TERAPÊUTICA
NA SEPSE E SÍNDROME DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA
SISTÊMICA
Em virtude da grande contribuição da morte celular na fisiopatologia da sepse, o
bloqueio da apoptose mostra-se interessante no sentido de minimizar a sua progressão,
oferecendo novas abordagem terapêuticas (HOTCHKISS; NICHOLSON, 2006). Dentre
elas incluem-se a inibição das caspases, a supressão dos genes Bcl-2 e a inibição do
CD95.
Inibição de caspases
Uma estratégia terapêutica que tem atingido sucesso em modelos animais de
sepse é o uso de inibidores de caspases (HOTCHKISS; NICHOLSON, 2006). Inibidores
de caspases contém fluorometil cetonas (fmk) ou clorometil cetonas (cmk) que são
peptídeos que mimetizam sítios de clivagem de substratos caspases (AYALA et al.,
2007). Rouquet et al. (1996) citam como inibidores de caspases o z-DEVD-fmk, que
inibe as caspases 3 e 7 e Ac-YVAD-cmk, o qual inibe a caspase 1. Para Hotchkiss et al.
(2003) o z-VAD-fmk, um inibidor de caspase de amplo espectro, previne a apoptose de
linfócitos na sepse melhorando a sobrevida em 40-45%.
Apesar dos resultados experimentais favoráveis do uso de caspases no bloqueio
da apoptose na sepse, ainda existem obstáculos a serem superados. Hotchkiss e
Nicholson (2006) determinaram que a presença de pequena quantidade de caspase-3
ativada é suficiente para iniciar a separação do DNA genômico e conduzir à apoptose,
portanto é necessário alto grau de inibição de caspases para prevenir a morte celular
de linfócitos. Isso exige crescentes desafios terapêuticos para persistir e bloquear
completamente as caspases no processo séptico. Além disso, sabe-se que apesar das
caspases exercerem papéis fundamentais na apoptose, algumas são importantes como
reguladoras da inflamação, sendo essenciais para a ativação e proliferação dos linfócitos
e desenvolvimento de imunidade protetora. Desse modo, o bloqueio de caspases
pode causar algum benefício diminuindo a apoptose na sepse, mas pode causar efeitos
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adversos na habilidade do paciente em desenvolver resposta imune efetiva
(HOTCHKISS; NICHOLSON, 2006).
Superexpressão dos genes Bcl-2
Com respeito à terapia genética, o aumento de proteínas anti-apoptóticas, tais
como proteínas Bcl-2, produz completa proteção contra a apoptose de células T em
ratos sépticos com superexpressão de Bcl-2 em linfócitos, melhorando
significativamente a sobrevida (HOTCHKISS et al., 2003; OBERHOLZER et al., 2001).
Recentemente Hotchkiss e Nicholson (2006) demonstraram que a superexpressão de
AKT, um regulador da proliferação celular e morte, diminuiu a apoptose de linfócitos
na sepse induzida em ratos, melhorando a sobrevida em 94%.
Inibição do CD95
Hotchkiss e Nicholson (2006) demonstraram que inibindo a via apoptótica
mediada por CD95, pela administração de uma proteína fusional de CD95 que inibe a
sinalização, foi eficiente na redução da mortalidade em modelo de sepse induzida em
ratos. Por outro lado, Chung et al. (2003) comprovaram que a administração de proteína
de fusão CD95 não foi efetiva em reduzir a apoptose de linfócitos quando administrada
imediatamente após ligação cecal e punção, mas foi protetora quando administrada 12
horas após. Estes resultados indicam que o tempo de terapia antiapoptótica pode ser
crucial para o sucesso terapêutico.
Ainda que o bloqueio dos mecanismos apoptóticos na sepse seja alvo terapêutico
potencial de pesquisas, um dos grandes desafios é atingir apenas os linfócitos e
bloquear a apoptose somente durante a sepse, haja vista que a apoptose é um processo
fisiológico essencial para a morte e renovação de algumas populações celulares e o
retardo na apoptose tem implicado na transformação maligna de células, incluindo
linfócitos B. Além disso, o retardo na renovação apoptótica de neutrófilos na sepse ou
SIRS prolongou a vida dessas células, as quais aumentaram os danos oxidativos no
pulmão contribuindo no desenvolvimento de SARA. Assim, pesquisas estão sendo
desenvolvidas com o objetivo de bloquear a apoptose de forma específica e apenas o
necessário para atingir a população de células linfóides que estejam sofrendo aumento
de apoptose, mas que ao mesmo tempo sejam incapazes de causar transformações
malignas associadas com o prolongamento da vida celular (OBERHOLZER et al., 2001).
CONCLUSÕES
Ainda que pacientes com sepse possam morrer pela resposta hiperinflamatória
inicial, muitos destes sucumbem durante a subseqüente fase hipo-imune dessa desordem.
Apoptose é um mecanismo chave na fisiopatologia da sepse e conduz à perda de linfócitos
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e células dendríticas, contribuindo significantemente na morbidade e mortalidade dessa
síndrome. Assim, estratégias para bloquear a apoptose em modelos de sepse em animais
têm fornecido resultados encorajadores na melhora da sobrevida. Entretanto, pesquisas
ainda se fazem necessárias com a finalidade de amenizar seus efeitos adversos.
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Recebido em: 16/4/08
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Aceito em: 2/9/08
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