O Princípio da Irredutibilidade de Vencimento e o aumento da carga de responsabilidade do Procurador do Estado em razão da cumulação das atribuições de colega em gozo de férias Gustavo Brugnoli Ribeiro Cambraia Procurador do Estado de Minas Gerais Introdução: Todo cargo público é ocupado por um servidor que possui funções próprias, além de uma remuneração fixada em lei e paga pelo Estado. Entretanto, não pode haver um incremento substancial das atribuições de um servidor público, ainda que temporariamente, sem que haja um aumento da contraprestação pecuniária que é paga pelo Estado. Caso esse desequilíbrio ocorresse, certamente haveria uma vantagem indevida para o Estado, além de uma violação às avessas ao Princípio da Irredutibilidade do Vencimento, previsto no art. 37, inciso XV da Constituição da República. É com essa breve exposição que passamos a analisar o fenômeno jurídico das substituições, que ocorrem no âmbito das Procuradorias do Estado, em razão das férias dos seus Procuradores, em que um Procurador do Estado passa a cumular temporariamente as funções do seu colega. 1. Os prepostos do Estado – Administração Pública Eficiente e a adequada distribuição de serviço entre seus agentes O Estado é um ente abstrato, imaterial e intangível, que emprega diversos agentes públicos como “instrumentos expressivos da sua vontade”1. O gênero dos agentes públicos abrange todos aqueles que, mesmo de modo temporário ou não remunerado, desempenham alguma função pública, seja na Administração Direta, em qualquer um dos três Poderes ou mesmo na Administração Indireta. Tais agentes ora ocupam cargos públicos, ora empregos públicos, ora são contratados temporariamente, ora são agentes em colaboração com a Administração Pública, mas, em 1 Mello, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 22ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 235 1 todos os casos, eles desempenham uma função pública, sendo prepostos do Estado. Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho: “Como se sabe, o Estado só se faz presente através das pessoas físicas que em seu nome manifestam determinada vontade, e é por isso que essa manifestação volitiva acaba por ser imputada ao próprio Estado. São todas essas pessoas físicas que constituem os agentes públicos.”2 Dentro da categoria dos Agentes Públicos, existem os Servidores Públicos, que se vinculam à Administração Direta de modo permanente. Eles desempenham uma variedade enorme de funções previamente determinadas, relativas ao cargo público que ocupam, com uma carga previamente definida de serviço, dentro do Quadro Funcional do respectivo Ente Federado, mediante o pagamento de retribuição pecuniária na forma de remuneração ou subsídio. Com relação aos cargos e funções públicas, cumpre novamente buscar a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho3 para entender o seu conteúdo: “Cargo Público é o lugar dentro da organização funcional da Administração Direta e suas autarquias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem funções específicas e remuneração fixada em lei ou diploma a ela equivalente. A função pública é a atividade em si mesma, ou seja, função é sinônimo de atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que constituem o objeto dos serviços prestados pelos servidores públicos.” (grifo nosso) Além disso, como as funções desempenhadas pelos servidores públicos possuem inequívoco Interesse Público, é correto dizer que há um dever do Estado de criar meios para que elas possam ser prestadas, tal como bem observou José dos Santos Carvalho Filho4: “Os poderes administrativos são outorgados aos agentes do Poder Público para lhes permitir atuação voltada aos interesses da coletividade. Sendo assim, deles emanam duas ordens de conseqüência: 1ª) são eles irrenunciáveis; e 2ª) devem ser obrigatoriamente exercidos pelos titulares.”(grifo nosso). 2 Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 19ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 531. 3 Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 19ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 549. 4 Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 14ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 34. 2 Ademais, não basta qualquer tipo de prestação desses serviços públicos pelos agentes do Estado. O Direito Administrativo contemporâneo exige uma Administração Pública eficiente5, atenta às peculiaridades e desafios que cada um dos seus serviços públicos possui, o que demanda a criação de um corpo normativo capaz de concretizá-la. Dessa forma, é conseqüência da organização eficiente dos serviços públicos a sua divisão racional entre os prepostos do Estado, quais sejam, os seus agentes públicos. Com relação a essa divisão racional e eficiente do serviço público, é necessária a fixação de uma carga de serviço individualizada, que leve em conta os detalhes de cada uma das funções atribuídas aos agentes do Estado, além da criação de meios específicos para controlar o seu cumprimento. Em outras palavras, funções diferentes devem ser organizadas e controladas de maneiras diferentes, do contrário há sério risco de que o Princípio da Eficiência, inerente à Administração Pública, seja violado. Por exemplo, é adequado fixar uma jornada diária de oito horas para um carcereiro de uma penitenciária estadual, ou mesmo de vinte e quatro horas seguidas para um médico plantonista, controlando o cumprimento dessas funções através da folha de ponto. O serviço prestado por esses servidores é diretamente ligado ao tempo que eles permanecem, à disposição do Estado, dentro da repartição pública em que estão lotados. O carcereiro, assim como o médico plantonista, cumpre com todas as suas atribuições dentro de determinado horário, sendo imediatamente substituído por outro servidor com idênticas atribuições ao término da sua jornada, já que o serviço público prestado na penitenciária estadual, assim como no hospital, jamais pode ser interrompido. Por outro lado, seria inviável organizar e controlar o cumprimento das atribuições de todos os demais agentes do Estado simplesmente a partir de uma jornada diária de serviço medida em horas. Certas categorias de servidores públicos, por exemplo, possuem funções muito peculiares, tal como é o caso do Chefe do Poder Executivo estadual. Este é o agente público responsável, com o auxílio dos Secretários de Estado, pelo exercício da administração superior do Poder Executivo do respectivo Ente Federado6 e retira suas atribuições do texto da própria Constituição da República e da Constituição do Estado. 5 Constituição da República, art. 37, caput in fine. Constituição do Estado de Minas Gerais, art. 83 – O Poder Executivo é exercido pelo Governador do Estado, auxiliado pelos Secretários de Estado. 6 3 Por exemplo, de nada serviria um mero relatório de ponto7 para auferir se este agente público cumpriu sua atribuição de sancionar, promulgar e fazer públicas as leis e, para a sua fiel execução, expedir decretos, conforme dispõe o art. 90 da Constituição do Estado de Minas Gerais8. Além do fato de que a presença do Chefe do Poder Executivo dentro da sede do Governo estadual é infreqüente, ela não tem qualquer relação com o fiel desempenho dessa sua atribuição. A elaboração do texto de um decreto para regular a execução de uma lei estadual, por exemplo, pode demorar dias de serviço, pesquisa e reuniões fora da sede do Governo Estadual ou mesmo algumas horas numa conversa com um de seus Secretários de Estado. Logo, devem existir mecanismos específicos para auferir o desempenho dessa função. Entretanto, não é preciso ir tão longe, bastando o exemplo do Oficial de Justiça lotado no Setor de Cumprimento de Mandados. A atribuição desse servidor consiste no cumprimento de um número variável de mandados a partir de uma determinada distribuição de serviço. Assim, caso o Oficial de Justiça cumpra com todos os mandados que lhe forem entregues num mês em apenas alguns dias, é possível dizer que, além de cumprir integralmente as suas diligências, ele também o fez de maneira eficiente, fazendo jus à sua remuneração. Não há cabimento em vincular diretamente essa atividade a um número fixo de horas diárias de serviço ou mesmo exigir de maneira inútil que esse servidor permaneça dentro da repartição público quando não estiver cumprindo suas atribuições. O servidor público não está lá para enfeitar a repartição, mas sim para servir de maneira eficiente. Aliás, é comum a edição indiscriminada de leis fixando uma jornada semanal de serviço de vários cargos públicos e carreiras dentro do Estado a partir de um número definido de horas. Mas essas normas devem ser interpretadas cum grano salis, pois não implicam em obrigações que não possuam fundamento no interesse público. Na hipótese do Oficial de Justiça, a eventual fixação de uma jornada semanal de serviço em, por exemplo, quarenta horas, deve ser interpretada como parâmetro para definir a distribuição de serviço dentro do órgão público, evitando-se a criação de jornadas abusivas ou mesmo inexeqüíveis. Aliás, não seria lícito ao Estado exigir que um servidor, que tem uma 7 A lei do Estado de Minas Gerais n. 869 de 1952 define o ponto como meio para apurar a freqüência do servidor, a partir do registro das entradas e saídas diárias do servidor da repartição em que está lotado: “Art. 94 - A freqüência será apurada por meio do ponto. Art. 95 - Ponto é o registro pelo qual se verificarão, diariamente, as entradas e saídas dos funcionários em serviço. § 1º - Nos registros de ponto deverão ser lançados todos os elementos necessários à apuração da freqüência. (...)” 8 “Art. 90 – Compete privativamente ao Governador do Estado: (...) VII – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e, para sua fiel execução, expedir decretos e regulamentos; (...)” 4 jornada semanal de quarenta horas, uma quantidade de serviço que demanda sessenta horas de dedicação semanal, por exemplo. Em outras palavras, a jornada de quarenta horas semanais é uma referência e um limite para a distribuição do serviço eventualmente existente, não se exigindo que o Oficial de Justiça permaneça efetivamente quarenta horas cumprindo mandados ou mesmo aguardando o término desse período dentro da repartição pública. Afinal, não há interesse público em manter um servidor dentro da repartição pública em que estiver lotado sem motivo algum e, muito menos, após o cumprimento de todas as suas atribuições. Segundo ensina José dos Santos Carvalho Filho9: “Deve o Estado prestar seus serviços com a maior eficiência possível. Conexo com o princípio da continuidade, a eficiência reclama que o Poder Público se atualize com os novos processos tecnológicos, de modo que a execução seja mais proveitosa com menor dispêndio. Fator importante para a Administração reside na necessidade de, periodicamente, ser feita avaliação sobre o proveito do serviço prestado. Desse modo, poderá ser ampliada a prestação de certos serviços e reduzida em outros casos, procedendo-se à adequação entre o serviço e a demanda social.” (grifo nosso) Também cumpre ressaltar que a fixação das atribuições de cada servidor, a partir da distribuição de serviço dentro do órgão público, é de crucial importância para determinar o dever do Estado de pagar a contraprestação pecuniária ao seu agente. Assim, se determinado carcereiro guarda as celas de um presídio estadual durante oito horas diárias, tal como determinado na lei que regula a sua carreira e atribuições, cumprindo uma jornada semanal de quarenta horas, ele faz jus à sua remuneração, tal como o Oficial de Justiça que cumpriu todos os mandados que lhe foram entregues com apenas duas horas de dedicação diária. Com relação à remuneração ou ao subsídio que é pago pelo Estado, deve-se ressaltar que essas formas de retribuição pecuniária são irredutíveis. É cediço na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal10 que, muito embora não exista um direito adquirido à forma como 9 Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 14ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 270. 10 "Estabilidade financeira. Modificação de forma de cálculo da remuneração. Ofensa à garantia constitucional da irredutibilidade da remuneração: ausência. Jurisprudência. Lei complementar n. 203/2001 do Estado do Rio Grande do Norte: constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal pacificou a sua jurisprudência sobre a constitucionalidade do instituto da estabilidade financeira e sobre a ausência de direito adquirido a regime jurídico. Nesta linha, a Lei Complementar n. 203/2001, do Estado do Rio Grande do Norte, no ponto que alterou a forma de cálculo de gratificações e, conseqüentemente, a composição da remuneração de servidores públicos, 5 a remuneração é calculada, decorrente da inexistência de um direito adquirido ao regime jurídico do servidor, seu valor bruto não pode ser reduzido por lei ou ato administrativo. 2. A natureza da função exercida por um Procurador do Estado e a mensuração dessa atividade – Carga de Responsabilidade As funções desempenhadas por um Procurador do Estado possuem assento constitucional e consistem, basicamente, na “representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas”11. Entretanto, as funções de um Procurador do Estado vão muito além disso, pois se trata de um agente que, com independência funcional12, detém a representação judicial do respectivo Ente Federado e desempenha função essencial à Justiça. Trata-se de um servidor que tem sob sua inteira responsabilidade a defesa jurídica dos interesses do Estado. Enquanto o Governador desempenha a administração superior do respectivo Ente Federado, a Procuradoria Geral de um Estado, através dos seus Procuradores, detém o monopólio sobre a consultoria jurídica da qual nenhum dos órgãos do Estado pode se furtar. Trata-se de uma espécie de agente do Estado que deve buscar livremente os elementos capazes de formar a sua convicção jurídica, possibilitando a defesa do interesse do Estado e não de determinada política pública, muito embora uma não exclua a outra necessariamente. Por outro lado, embora a Procuradoria Geral do Estado possua apenas um chefe e seja única dentro do respectivo Ente Federado, a busca pela eficiência do serviço prestado por essa não ofende a Constituição da República de 1988, por dar cumprimento ao princípio da irredutibilidade da remuneração." (RE 563.965, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 11-2-09, Plenário, DJE de 20-3-09) “Servidor público estatutário – Inalterabilidade do regime jurídico – Direito adquirido – Inexistência – Remuneração – Preservação do montante global – Ausência de ofensa à irredutibilidade de vencimentos (...) Não há direito adquirido do servidor público estatutário à inalterabilidade do regime jurídico pertinente à composição dos vencimentos, desde que a eventual modificação introduzida por ato legislativo superveniente preserve o montante global da remuneração, e, em conseqüência, não provoque decesso de caráter pecuniário. Precedentes.” (AI 679.120-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-12-07, DJE de 1º-2-08). No mesmo sentido: AI 609.997-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 10-2-09, 2ª Turma, DJE de 13-3-09. 11 Constituição da República, Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. 12 Conforme enunciado elaborado no 1º Congresso de Advocacia Pública no Estado do Espírito Santo, realizado nos dias 04 e 05 de junho de 2009: “O advogado público federal detém independência técnica e funcional no desempenho de suas funções, não podendo ser compelido a praticar ou deixar de praticar ato na representação judicial ou extrajudicial da União, ou em atividades de consultoria jurídica, que seja contrário ao seu entendimento técnico-jurídico, desde que devidamente fundamentado, ressalvado o caso de existência de súmula administrativa ou parecer vinculante do Advogado-Geral da União uniformizando o entendimento técnico na defesa da União, reconhecendo-se, ainda, a necessidade de regulamentação da AGU para o exercício da independência funcional;” 6 Instituição determina que a distribuição dos seus agentes deva seguir a sua demanda dentro da Administração. Assim Procuradores do Estado são lotados nos mais diversos órgãos públicos, assim como em seus órgãos próprios. Ou seja, é comum encontrar Procuradores lotados em Secretarias de Estado, Fundações Públicas, Autarquias e outros órgãos que demandam constante atividade consultiva jurídica, além, é claro, dos órgãos próprios da Procuradoria do Estado. Trata-se de uma organização que visa atingir uma maior eficiência do serviço público prestado pela Procuradoria do Estado. Destarte, fica claro que a distribuição do serviço de consultoria jurídica e representação judicial entre os Procuradores do Estado varia muito, pois depende da lotação de cada Procurador, assim como da divisão do serviço existente em cada órgão. Dentro de um órgão próprio da Procuradoria do Estado, encarregado do acompanhamento de todas as ações judiciais em curso em uma determinada Comarca, por exemplo, cada Procurador do Estado pode ser responsável por um número determinado de processos ou essa divisão pode ser feita por Varas Judiciais existentes nessa Comarca. Para Procuradores lotados em uma Secretaria de Estado, a divisão do serviço pode envolver o tema dos pareceres a serem elaborados ou mesmo a sua complexidade. Logo, não há uma regra rígida para a divisão do serviço dentro da Procuradoria do Estado, bastando o respeito ao Princípio da Eficiência nessa organização, assim como a distribuição equânime do serviço entre os Procuradores, de modo que uns não trabalhem demais e outros muito pouco. Portanto, mesmo que a Lei que regula a carreira de Procurador do Estado, em determinado Ente da Federação, preveja uma jornada semanal medida em horas13, ela deve ser interpretada apenas como um dos critérios que devem informar a divisão do serviço entre os Procuradores do Estado, já que os Procuradores do Estado possuem uma carga de serviço cujas atribuições só possuem um vínculo indireto com o tempo gasto nesse sentido. Por exemplo, caso um Procurador do Estado deva acompanhar todos os processos em curso perante determinado Juízo, o efetivo desempenho das suas atribuições dependerá do acompanhamento de todas as publicações daquele órgão judicial, da elaboração de todos os recursos e manifestações processuais, de visitas ao Fórum para despachar com o Juiz e consultar processos em cartório, do comparecimento em audiências, da elaboração de 13 Tal como é o caso do Estado de Minas Gerais, cuja Lei Complementar nº 81 dispõe que: “art. 5º O ocupante de cargo da carreira da Advocacia Pública do Estado cumprirá carga horária de trabalho de quarenta horas semanais.” 7 pareceres solicitando a dispensa do dever de recorrer, levantamento de alvarás, do estudo em casa e no escritório para se manter atualizado, da busca de livros, artigos e notícias jurídicas para fundamentar eventuais teses jurídicas necessárias à defesa dos interesses do Estado, etc. Aliás, não é incomum que o serviço de um Procurador do Estado seja também realizado em casa, em horários estranhos àquele do funcionamento da repartição pública, com o estudo e pesquisa em um ambiente mais agradável ou mesmo através da elaboração de petições ou pareceres em notebooks, que são fornecidos pelo próprio Estado, para que sejam utilizados fora da repartição pública. Dessa forma, se em determinado mês, o Estado foi intimado a se manifestar em trezentos feitos diferentes em determinada Vara judicial, essa será essa a carga de responsabilidade do Procurador do Estado encarregado do acompanhamento dos processos daquele órgão forense. Assim sendo, diante da peculiaridade da função exercida pelo Procurador do Estado, é mais adequado dizer que este possui uma carga de responsabilidade e não uma carga horária. Da individualização da carga de responsabilidade de cada Procurador do Estado – Férias – Princípio da Continuidade do Serviço Público – Substituições Assim como no exemplo do Oficial de Justiça que cumpre mandados de citação e intimação, muito embora o Procurador do Estado possua uma carga de serviço variável, essa pode ser bem muito bem definida e, tal como já foi dito anteriormente, é apenas indiretamente ligada ao tempo que o Procurador do Estado efetivamente gasta no cumprimento das suas atribuições. Ainda que a Procuradoria do Estado não seja uma linha de montagem14, já que a elaboração de recursos e pareceres são atividades de produção científica, existem outros meios, que não o vetusto relógio de ponto e a mensuração exata do tempo gasto em cada tarefa, capazes de individualizar, a partir de estimativas, o volume de serviço de cada Procurador do Estado e, conseqüentemente, a sua carga de responsabilidade. 14 Inventada por Gerald Ford em 1908, como meio para a produção em massa do seu automóvel Ford T, onde o tempo cada uma das tarefas envolvidas na montagem dos veículos era medido com precisão, dividindo-se a produtividade e a carga de trabalho de cada funcionário pelo tempo que ele permanecia trabalhando. 8 Ora, numa época em que se encontra em implementação o processo eletrônico15, em que todas as atividades do Estado são informatizadas e que a governança corporativa exige o preenchimento de diversos relatórios virtuais de atividades por cada um dos órgãos dessa grande empresa que é o Estado, é perfeitamente possível estimar a demanda de qualquer tipo de serviço público, inclusive aquele da Procuradoria do Estado. Se a Procuradoria do Estado tem conhecimento, a partir de relatórios mensais elaborados por Procuradores e outros servidores da Procuradoria, que uma determinada Vara Judicial analisa, em média, entre duzentos e trezentos feitos por mês que tem o Estado como parte e que acompanhamento desses feitos por um Procurador do Estado demanda entre trinta e quarenta horas de dedicação semanal, temos ai a carga de responsabilidade ideal para ser atribuída a um Procurador do Estado. Logo, no pior dos meses, ainda haverá uma jornada exeqüível de serviço e caso aquele Juízo tenha uma produção forense inferior à sua média, não há que se falar que o Procurador do Estado deixou de cumprir integralmente com sua carga de responsabilidade. Ademais, essa individualização é realizada, em regra, através de atos normativos que geralmente seguem a forma de instruções, circulares ou ordens de serviço tal como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello16: “d) Instrução – é fórmula de expedição de normas gerais de orientação interna das repartições, emanadas de seus chefes, a fim de prescreverem o modo pelo qual seus subordinados deverão dar andamento aos seus serviços. (...) f) Circular – é fórmula pela qual autoridades superiores transmitem ordens uniformes a funcionários subordinados. Não veicula regras de caráter abstrato como as instruções, mas concreto, ainda que geral, por abranger um categoria de subalternos encarregados de determinadas atividades. g) Ordem de Serviço – é fórmula usada para transmitir determinação aos subordinados quanto à maneira de conduzir determinado serviço. Ao invés desta fórmula, as ordens por vezes são veiculadas por via de circular.” Também é importante lembrar que a individualização da carga de responsabilidade de cada Procurador do Estado deve levar em conta o direito de férias que é comum a todos os 15 Lei Federal n. 11.419-96. Mello, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 22ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 422. 16 9 servidores públicos17. Dessa forma, o quadro funcional de qualquer Procuradoria do Estado deve contar com Procuradores também para substituir aqueles que se encontram no gozo de férias. Ou seja, mutatis mutandis, durante trinta dias por ano, o Procurador do Estado percebe a sua remuneração ou subsídio sem cumprir com a sua carga normal de responsabilidade. Entretanto, como o serviço de consultoria jurídica e representação judicial prestado pela Procuradoria do Estado está ligado a quase todos os serviços públicos prestados pelo Estado, além, é claro, de ser um dos meios para se proteger o Erário Público, o Princípio da Continuidade do Serviço Público determina que o Estado encontre um meio para suprir essa ausência, evitando qualquer prejuízo para a Administração e para os administrados. Afinal, os prazos judiciais não se suspendem durante as férias de um Procurador do Estado, assim como não haveria cabimento postergar todos os procedimentos licitatórios a serem realizados por uma determinada Secretaria do Estado, aguardando o final das férias do Procurador do Estado encarregado de elaborar os pareceres jurídicos inerentes a esse certame18. Tal como ensina José dos Santos Carvalho Filho: “os serviços públicos não devem sofrer interrupção, ou seja, sua prestação deve ser contínua para evitar que a paralisação provoque, como às vezes ocorre, colapso nas múltiplas atividades particulares.”19 Diante do exposto, como cada Procurador do Estado possui uma carga de responsabilidade bem definida, além do que só um Procurador do Estado pode desempenhar as funções previstas no art. 132 da Constituição da República20, as férias de um Procurador do Estado determinam a substituição deste por um colega, garantindo a continuidade do serviço público de “representação judicial e a consultoria jurídica” prestado pela Procuradoria do Estado que é essencial para o respectivo Ente Federado. 17 Constituição da República art. 39, parágrafo 3º combinado com o art. 7º, inciso XVII. Lei Federal nº 8.666/93, “Art. 38. O procedimento da licitação será iniciado com a abertura de processo administrativo, devidamente autuado, protocolado e numerado, contendo a autorização respectiva, a indicação sucinta de seu objeto e do recurso próprio para a despesa, e ao qual serão juntados oportunamente: (...) VI - pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação, dispensa ou inexigibilidade;” 19 Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 19ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 300. 20 Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. 18 10 Substituição de Procuradores do Estado – Incremento da Carga de Responsabilidade – Vedação da Irredutibidade da Remuneração – Necessidade de contraprestação pecuniária adicional pelo Estado A Ordem de Serviço ou ato administrativo similar, que determina a substituição de um Procurador do Estado em gozo de férias por outro, é um ato administrativo que normalmente implica em um incremento da carga de responsabilidade para o Procurador que substitui. Por exemplo, para um Procurador do Estado que acompanha os feitos em curso perante determinado Juízo, a cumulação das funções de um colega, que possua atribuições semelhantes, implica, necessariamente, em um aumento considerável da sua carga de responsabilidade. Nesse caso, o Procurador do Estado que substitui, cumulando as duas cargas de responsabilidade, deverá elaborar mais recursos e manifestações processuais, realizará mais visitas ao Fórum para despachar com o Juiz e consultar processos em cartório, comparecerá a mais audiências, etc. Ademais, tal substituição representa uma vantagem para o Estado, que poderá contar com uma Procuradoria do Estado que funciona de maneira ininterrupta, sem precisar criar e o prover de cargos de Procurador do Estado apenas para substituir aqueles que se encontram de férias. É importante ressaltar que o art. 37, inciso XV da Constituição da República determina que “o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I”. Ou seja, como a retribuição pecuniária paga aos Procuradores do Estado tem como base a carga de responsabilidade, certamente não cabe a edição de um ato administrativo que determine o incremento dessa carga de responsabilidade sem que a remuneração ou subsídio pago ao Procurador do Estado também seja proporcionalmente majorada. Seria uma diminuição da remuneração ou subsídio que é pago ao Procurador do Estado às avessas. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre questão semelhante no julgamento do RE 255.792/MG, conforme consta do voto do Relator Ministro Marco Aurélio, que foi acompanhado à unanimidade pela Primeira Turma daquela Egrégia Corte em 28/04/2009: “As premissas constantes do acórdão impugnado revelam que o edital de concurso veiculou carga de trinta horas semanais. Mediante lei posterior teria ocorrido a majoração da jornada semanal para quarenta horas sem a indispensável 11 contraprestação. O juízo julgou procedente o pedido formulado na ação, vindo a sentença a ser reformada por maioria de votos, vencido o relator. Está configurada, na espécie, a violação ao princípio da irredutibilidade dos vencimentos. Ao aumento da carga de trabalho não se seguiu a indispensável contraprestação, alcançando o Poder Público vantagem indevida. Daí o acerto da concessão da segurança para anular o decreto municipal.” (grifo nosso) Esse julgado deixa claro que não cabe qualquer incremento da jornada de trabalho dos servidores públicos ou, no caso dos Procuradores do Estado, da carga de responsabilidade, sem a proporcional majoração da remuneração que é paga aos servidores pelo Estado, sob pena de se criar uma vantagem indevida para o Poder Público. Se as atribuições dos servidores mencionados no RE 255.792 eram definidas a partir de uma jornada de trabalho de trinta horas semanais, é certo que um aumento de 33% dessa jornada não pode vir desacompanhado de uma elevação da remuneração paga pelo Ente Público. O mesmo vale para as variações periódicas, determinadas pela própria Administração Pública em razão da substituição de Procuradores do Estado em gozo de férias, pois se trata de um incremento considerável da carga de responsabilidade atribuída ao Procurador que substitui, cumulando duas cargas de responsabilidade, além de uma inequívoca vantagem para o Estado que poderá continuar a contar com os serviços de consultoria jurídica e representação judicial ininterrupta21. Assim, todo o ato administrativo ou mesmo Lei que determine a substituição de um Procurador do Estado em gozo de férias por um colega, implicando na cumulação de duas cargas de responsabilidade, será nulo caso não venha acompanhado de uma contraprestação adicional. Também se deve ressaltar que qualquer interpretação de que a substituição de um Procurador do Estado no gozo de férias faz parte da carga de responsabilidade normal do Procurador que substitui é uma fraude ao disposto no art. 37, inciso XV, da Constituição da 21 Isso já acontece, por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, cuja Lei Complementar nº 15 de 1980, Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, dispõe que: “Art. 57-A – O Procurador do Estado, quando exercer, além de suas atribuições ordinárias, outras decorrentes da substituição de outro Procurador do Estado, em virtude de férias, licença ou qualquer outra hipótese de afastamento ou impedimento, perceberá gratificação mensal equivalente a 1/3 (um terço) da retribuição estipendial a que se refere o art. 47-A desta Lei. Parágrafo único - O valor da gratificação será concedido por ato do Procurador-Geral do Estado, proporcionalmente ao período da substituição, o qual não poderá ser inferior a 30 (trinta) dias.” (grifo nosso) 12 República. Primeiro porque não são todos os Procuradores que realizam essa substituição e, quando esta acontece, ela é restrita a determinado período do ano e implica num incremento anormal e expressivo do volume de serviço atribuído ao Procurador do Estado que realiza a substituição. Além disso, as substituições devem ser realizadas com muito cuidado, pois seriam inconstitucionais caso resultem numa jornada de serviço que ultrapasse quarenta horas semanais, limite previsto no art. 39, parágrafo 3º, combinado com o art. 7º, inciso XIII, ambos da Constituição da República. Portanto, a substituição de um Procurador do Estado em férias por um colega, que passa a cumular duas cargas de responsabilidade, resulta em um significativo aumento do serviço prestado por este servidor, que faz jus a uma retribuição pecuniária adicional pelo Estado, sob pena deste obter uma vantagem sem a justa contraprestação. Conclusões: Diante de todo o exposto, permitimo-nos lançar as seguintes conclusões: 1. Em respeito ao Princípio da Eficiência, o Estado deve levar em conta as peculiaridades das funções desempenhadas por cada um dos seus servidores ao organizar e distribuir a demanda pelo serviço público existente em seus órgãos, criando métodos adequados para auferir a sua prestação. 2. Para os servidores públicos cujas atribuições não tenham uma ligação direta com um número de horas de serviço, a edição de lei estadual, fixando uma jornada semanal em horas, deve ser interpretada como referência e limite para a distribuição de serviço dentro do órgão público, já que o Estado não pode fixar atribuições excessivas ou mesmo inexeqüíveis, além de não haver interesse público em impor obrigações irrelevantes aos seus servidores. 3. Os servidores públicos, cujas atribuições não tenham ligação direta com um número de horas efetivamente dedicadas ao cumprimento das suas atribuições, fazem jus à sua remuneração ou subsídio, ainda que cumpram todo o serviço existente em um tempo menor do que aquele previsto na lei para a sua jornada semanal. 4. Mesmo que a Lei que regula a carreira de Procurador do Estado em determinado ente da Federação preveja uma jornada semanal em horas, é certo que se trata apenas de um dos critérios que devem informar a divisão do serviço entre os Procuradores do Estado, pois 13 essa norma não está diretamente ligada a nenhuma das atribuições do cargo de Procurador do Estado. 5. Diante das peculiaridades das funções desempenhadas pelos Procuradores do Estado, é adequado dizer eles não possuem uma carga horária ou carga de trabalho medida em horas e sim uma carga de responsabilidade. 6. Muito embora um Procurador do Estado possua uma carga de responsabilidade, cujo volume de serviço varia mensalmente, é possível individualizar essa carga de responsabilidade a partir da divisão da demanda de serviço existente em cada um dos órgãos da Procuradoria do Estado que leva em conta, dentre outros fatores, uma estimativa dessa demanda. 7. Como o serviço prestado pela Procuradoria do Estado está ligado a todos os demais serviços públicos prestados pelo Estado, este não pode prescindir, em momento algum, das funções desempenhadas pelos seus Procuradores do Estado, devendo levar em conta, ao definir a carga de responsabilidade de cada um destes, dentre outros fatores, o direito a férias. 8. Como cada Procurador do Estado possui uma carga de responsabilidade bem definida, além do que só um Procurador do Estado pode desempenhar as funções previstas no art. 132 da Constituição da República22, as férias de um Procurador do Estado determinam a substituição deste por um colega. 9. Como o Estado paga uma contraprestação pecuniária ao Procurador do Estado sob a forma de remuneração ou subsídio, em razão do cumprimento de uma carga de responsabilidade, o aumento dessa carga de responsabilidade por um ato administrativo não pode vir desacompanhado do aumento proporcional dessa contraprestação. 10. Todo o ato administrativo ou mesmo Lei que determine a substituição de um Procurador do Estado em gozo de férias por um colega, implicando na cumulação de duas cargas de responsabilidade, será nulo caso não venha acompanhado de uma contraprestação adicional. 22 Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. 14