O SUS e os mecanismos de exclusão: a saúde mental à margem do sistema de saúde autora: Teresa Cristina Endo Um dos princípios fundamentais do SUS é a universalidade : todos os cidadãos têm o mesmo direito de acesso aos cuidados de saúde, que significa o atendimento ao alcance de todos, sem distinção ou restrição de qualquer tipo. A pessoa que procura o atendimento público não precisa possuir carteira de identidade, endereço fixo, ou carteira de trabalho. O caráter de universalidade estabelece o atendimento indistinto a qualquer pessoa, contudo vimos a distinção ocorrer cotidianamente nos equipamentos de saúde por outras vias, através da diversidade de concepção do que seja o doente, a doença e as formas de cuidar. A atenção à saúde pública tem história e revela uma origem imbricada de valor moral no entendimento das doenças, e principalmente no julgamento das pessoas pobres que adoecem. Na Inglaterra no séc. XVI foi instaurado a “lei dos pobres”, um sistema de assistência assumido pelo Estado, que designava a cada freguesia arrecadar impostos para assistir aos pobres, conseguir empregos para os fisicamente capazes, punir os indolentes e prestar caridade aos idosos, aos doentes e incapacitados. No séc. XVIII as pessoas que ganhavam abaixo do nível de subsistência recebiam uma pensão pelo Estado, o que ocasionou num aumento tão grande nos gastos públicos, que culminou na votação de uma nova lei, que considerava a pobreza entre os fisicamente capazes como uma falha moral. Ao invés da caridade deveria ser estimulada a busca de empregos, a partir de então só lhes era oferecido assistência nos asilos. Assim, qualquer tentativa de assistência através da Lei dos Pobres significava, em realidade, um obstáculo à auto-ajuda, um pecado contra a necessidade filosófica, e um impedimento ao progresso. Dever-se-ia, ao invés, compelir os pobres a resolverem por si mesmos os seus problemas e estimulá-los a serem previdentes, a se ajudarem.1 No séc. XIX com o crescimento do sentimento humanitário e a partir do relatório da Comissão da saúde das Cidades, escrito em 1843 por Sir Robert Peel “desnudou-se para quem desejasse ver, as apavorantes condições existentes. Mostrava-se que a superpopulação e congestão, pobreza, crime, insalubridade e mortalidade alta, em geral conviviam”. 2 1 2 Rosen, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Hucitec, 1994. Idem 1 E no séc. XX com o fenômeno do desemprego industrial, mostrou-se que a pobreza era mais que um problema moral. Revelou-se a relação íntima entre as taxas de morbidade e mortalidade e as condições de vida das diferentes classes sociais. (Rosen, 1994) A legislação social inglesa das décadas de 1930 e 1940 substituiu as “Leis dos pobres” por um sistema abrangente de serviços públicos Este recorte histórico ilustra como a pobreza era vista em diferentes épocas e recebeu construtos ideológicos distintos, conforme interesses econômicos e políticos de cada período. Ao se associar a pobreza à moralidade dos indivíduos, destituía-se o Estado e responsabilizava-se a pessoa, de sua condição de vida e de doença a partir de seus atos transgressores ou falhas morais. Aos usuários vistos como dependentes do SUS, parece restar a resignação com a assistência ofertada, herdam o mesmo status da “Lei dos Pobres”, como se lhes fosse destinado apenas o precário ou desqualificado como única alternativa de tratamento como o nome sugere: “SUS dependente”. No entanto o que se preconiza no SUS é um modelo assistencial de ponta, em que deve ser garantido o acesso universal aos tratamentos, a integralidade que garante a atenção a todas as áreas da saúde, e a equidade que determina o atendimento de forma igualitária a todo cidadão. Do outro lado da margem, do cidadão excluído da rede de cuidados do SUS, o cenário é desalentador. Assistimos horrorizados aos casos de maus tratos de familiares aos seus parentes portadores de transtorno mental, sejam crianças, adolescentes, jovens ou idosos. Causa indignação notícias como a da mãe que construiu com a ajuda da prefeitura, um quarto nos fundos da sua casa nos moldes de uma cela forte e manteve seu filho nesta condição de cárcere privado durante quinze anos, com a anuência do poder público, da comunidade local e da própria família. Ainda de acordo com esta matéria jornalística 3*: Autistas em cativeiro: sem saber como lidar com filhos sofrendo de autismo severo, famílias optam por uma solução medieval; prendêlos. 3 Revista Época, Autistas em cativeiro. Edição 520 , em 7/05/2008, Sociedade. 2 A janela do quarto de Alexsandre Borges da Silva, de 18 anos, dá para dentro da casa simples de Sapeaçu, no interior da Bahia. É um vão aberto para o corredor que leva da sala à cozinha. “Quando o dinheiro der, vamos colocar uma grade”, diz o padastro Cosme Nogueira da Silva, enquanto com as mãos desenha barras de ferro no vazio. Por todo o Brasil, no século XXI, autistas como Alexsandre ainda recebem tratamento semelhante ao que os deficientes mentais recebiam na Idade Média. Naquela época, era comum eles viverem como animais. Presos em jaulas, não recebiam educação, eram alimentados por entre as grades, faziam as necessidades no chão. O descaso para o autismo parece ter se tornado visível e objeto de indignação apenas após a ocupação e tratamento da mídia sobre o caso. O sofrimento das pessoas autistas e familiares ganhou um espaço de preocupação no contexto jornalístico, e passou a existir como problema aos olhos da sociedade. Testemunhamos, cotidianamente, não somente em celas forte, mas habitando as calçadas de passagem, pessoas à margem do SUS, doentes, famintas, isoladas, alijadas da família e da própria rede social. Seres invisíveis que vagam desapercebidos e sem qualquer assistência. Diante deste cenário, vimos se perpetuar verdadeiros vácuos de desproteção no território da saúde pública. A marca da exclusão atravessa necessariamente o trabalho da clínica no SUS, em função da realidade social e psíquica da clientela atendida, que perdeu na maioria dos casos, referências fundamentais de pertencimento a uma família, um grupo, um gênero, a sua condição humana. Os termos inserção, re inserção e inclusão social estão presentes no discurso cotidiano das práticas institucionais, nas portarias ministeriais, em artigos científicos, em fóruns e encontros de saúde mental. No entanto ainda é um desafio pensar numa clínica da inclusão. Na resenha de Elisabeth Ferreira Mângia sobre o livro Psiquiatria Institucional: Do Hospício à Reforma Psiquiátrica.*4 a autora observa: Nas últimas décadas, o problema representado pelos transtornos mentais tem ocupado cada vez mais a agenda das políticas de saúde. Muitos países têm construído políticas de saúde mental 4 Lougon M. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.226 p. (Coleção Loucura & Civilização) 3 comprometidas com o desenvolvimento de novas formas de cuidado, com a melhoria da qualidade de vida, garantia dos direitos de cidadania e combate às formas de violência, exclusão e estigma, de que são alvo as pessoas com transtornos mentais. São elementos analisados: ...promover o resgate da cidadania, a inclusão social e a ressocialização dos internos e as novas formas de atenção e escuta. O autor questiona a viabilidade do projeto e reconhece que a inclusão social esbarra na impossibilidade das famílias receberem seus membros improdutivos, ou mesmo na ausência de vínculos familiares ativos, daí sua preocupação com a necessidade de criação de dispositivos capazes de impedir o abandono dos pacientes. (Cadernos de Saúde Pública vol. 24 no.3 Rio de Janeiro Mar.2008) Com o advento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a prioridade tem sido resgatar a noção de cidadania e direitos humanos dos usuários e pensar a saúde mental numa condição mais ampla de saúde integral. Segundo a Declaração de Caracas*5, para a reestruturação da Assistência Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde consta: 1. Que a reestruturação da assistência psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário da Saúde, no quadro dos Sistemas Locais de Saúde permite a promoção de modelos alternativos centrados na comunidade e dentro de suas redes sociais. 3. Que os recursos, cuidados e tratamentos dados devem: a) salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis; c) propiciar a permanência do enfermo em seu meio comunitário; 4. Que a legislação dos países devem ajustar-se de modo que a) assegurem o respeito aos direitos humanos e civis dos doentes mentais; b) promovam a organização de serviços comunitários de saúde mental que garantam seu cumprimento Vivemos um momento privilegiado, em que a saúde mental no SUS tem ocupado fóruns de debate, tem sido objeto crescente de interesse na pesquisa acadêmica, na esfera jurídica, na mídia e atinge o cidadão comum. Em fevereiro de 2007 é criado o Laboratório de Saúde Mental coordenado pelo Prof. Manoel Tosta Berlinck e Ana Cecília Magtaz que funcionou no âmbito da Associação 5 Berlinck, M. Projeto: A Reforma Psiquiátrica Brasileira: Laboratório de Saúde Mental. site: www.fundamentalpsycopathology.org 4 Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, reuniu profissionais de saúde da rede pública e culminou em publicações importantes sobre o acúmulo de experiências de saúde mental no SUS. Este dispositivo – chamado de Laboratório de Saúde Mental – será um local (tório) de trabalho (labor) onde trabalhadores de saúde mental possam, durante um certo período, rememorar e escrever, de forma narrativa, aquilo que viveram na prática. O principal objetivo do Laboratório de Saúde Mental será, então, o de possibilitar a produção de textos narrativos escritos por trabalhadores, sobre o vivido na prática, sua impressão e divulgação. Esses textos seriam publicados e divulgados não só entre os trabalhadores de saúde mental mas, também, na sociedade. Assim, tendo engendrado novas práticas clínicas visando a integração dos usuários na sociedade e na cultura, a Reforma Psiquiátrica Brasileira precisa, também, criar um dispositivo para que tais vivências se transformem em experiências, ou seja, em saberes socialmente compartilhados, desenvolvendo capacidades de pesquisa em saúde mental. A complexa prática engendrada pela Reforma não afeta apenas os usuários. Os trabalhadores de saúde mental, profundamente envolvidos nesse processo, são personagens tão importantes quanto os usuários e suas vivências precisam ser conhecidas para que a Reforma possa ser aprimorada e atingir seus objetivos. Para que isso ocorra, é necessário que as vivências eminentemente práticas dos trabalhadores de saúde mental sejam narradas e registradas constituindo, dessa forma, um arquivo, parte fundamental da memória das práticas promovidas pela Reforma. Em outras palavras, é necessária a realização de um trabalho de autoria junto aos trabalhadores de saúde mental, que implique um processo de transformação das vivências em experiências, passando pela narrativa escrita, pelo registro narrativo da prática. *6 Da mesma forma poderíamos comparar a visibilidade social provocada pela mídia sobre os autistas, com as iniciativas acadêmicas de registro sobre as práticas assistenciais, como formas de inclusão da temática da saúde mental no SUS na sociedade. O modelo assistencial SUS preconiza como ação em saúde mental, o enfrentamento e combate às formas segregacionistas e de exclusão social aos usuários com transtornos 6 Idem 5 mentais. Mas ainda parece incipiente o entendimento e o manejo desta denominada Clinica da Reforma Psiquiátrica, a clínica da inclusão, a clínica ampliada. O apelo que se faz a sociedade brasileira a todos os atores diretamente envolvidos e responsáveis pelo cuidado, pela assistência, é de que sejamos capazes de inverter a tradição e criar condições de tratamento adequadas e coerentes com os direitos humanos. Na clínica da Reforma Psiquiátrica, teremos que aprender a conjugar loucura com cidadania, dignidade com tratamento, respeito com eficácia, ciência com ética. A potência desta política e suas condições de possibilidades encontram-se articuladas diretamente, de um lado, à posição da sociedade civil e por outro, o processo de construção e funcionamento do Sistema único de Saúde. A Reforma Psiquiátrica aprende com o SUS que a política se faz no município, lugar onde vivem os sujeitos. A sua elaboração, implementação e controle social é realizada por todos os atores que o movimento colocou em ação, categorias profissionais diversas, governos, instâncias do poder judiciário e legislativo e principalmente, os usuários...tornando enfim real a utopia que funda a lógica antimanicomial: a sociedade sem manicômioos, onde todo homem e toda mulher, loucos ou não, encontrem seu lugar e sua forma de pertencimento, mantendo sempre intocado, seu direito à liberdade.*7 Os equipamentos de atenção à saúde mental como CAPS, Residências Terapêuticas e CECCOS (os denominados substitutivos ao modelo hospitalocêntrico) poderiam ser denominados como os lugares privilegiados de experiências de ocupação e pertencimento. Uma prática de inclusão poderia ser descrita numa atividade de trabalho chamado “extra muros” num CAPS adulto. A psicóloga propiciou uma viagem à sua casa na praia, aos pacientes e familiares usuários do CAPS. Todos se divertiram muito, aproveitaram o passeio e voltaram ótimos. Os comentários se seguiram nas semanas subseqüentes sobre como se surpreenderam com a capacidade de lidar com os percalços da viagem, da sensação de bem estar, da maior aproximação com os familiares e do desejo de viverem outras experiências com esta. 7 Manifesto em Defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira, 24 de agosto de 2006 – Coordenação de Saúde Mental de Belo Horizonte 6 O resultado esperado nesta prática poderia ser o de deslocar o lugar manicomial historicamente privilegiado de pertencimento da loucura e do louco, para além dos limites instituídos para pessoas com transtornos mentais, invertendo a lógica: “Lugar de louco é no hospício”. A inclusão dar-se-ia na ocupação e apropriação dos espaços públicos. Num Hospital psiquiátrico, no qual residem pacientes há anos, estamos fazendo o processo de alta e transferências destes moradores para as Residências Terapêuticas. Falamos sobre a casa em que iriam morar, espaçosa e bonita, com amplo quintal no qual haveria jardim, piscina e churrasqueira. Seria totalmente equipada com aparelhos eletrodomésticos e mobiliários novos. E que receberiam roupas, toalhas, lençóis, edredons e outros objetos de uso pessoal. Disporiam também de um benefício financeiro mensalmente do governo para usufruir como quisessem. Ao ouvirem a notícia, as pacientes ficaram entusiasmadas, “A gente aqui não tem nada que é da gente, esse chinelo um dia é meu, no outro dia já está no pé da colega, e com a escova de dente também acontece isso...”. Uma paciente quis passar batom, outra falou do incômodo de não usar roupas íntimas, começaram a expressar o desejo de pintar as unhas, cortar os cabelos e ter roupas novas. Pareciam atingidas por uma provocação: uma casa tão bonita não combinaria com mulheres tão descuidadas com a aparência, como todas elas se apresentavam naquele dia. Em relação à Residência uma delas estranhou: “Para que tanta “bacanice” só pra gente?” O estranhamento da paciente com o que lhe parecia um excesso ou desperdício, usando o termo “bacanice” criado por ela, é coerente com a lógica pautada no “secular modelo de tratamento da loucura em hospital psiquiátrico, lugar de anulação dos direitos civis e da supressão da subjetividade”.*8 A identidade de paciente historicamente construída nas práticas assistenciais marca a trajetória profissional dos trabalhadores de saúde mental e restringem o indivíduo à esfera da clínica terapêutica stricto senso e todas as considerações patológicas a que este termo está aderido: doente, incapaz, limitado, dependente. A partir do Movimento da Reforma Psiquiátrica o usuário de um equipamento de saúde mental passa a ser visto e concebido não como um paciente, mas ganha o status de 8 Idem 7 cidadão. A partir daí há que se pensar numa prática assistencial coerente com esta nova condição social. Nesse sentido, a tarefa assistencial implicaria na oferta de um espaço clínico, num laboratório de experiências de pertencimento – destinado a este que chega sem território, sem terra natal, sem nome de pai no sobrenome, e muitos, sem sequer o primeiro nome: batizados de Fulano de Tal ou Desconhecida. Sobre a experiência de pertencimento podemos citar Berlinck apud Henckel (2008): Ser detentor de uma experiência é característica de uma forma genuína de saber – o saber fazer na realidade – que decorre de vivências que marcam a conduta. Quando a experiência se acumula, o sujeito vai adquirindo uma certa sabedoria que lhe permite distinguir aspectos da realidade e, principalmente, de seu próprio psiquismo (p. 112).*9 Demorar-se nesta tarefa experiencial pode ser o caminho para se conseguir um lugar identificatório com seus pares, cidadãos comuns que ocupam e se apropriam de seu território e não mais cidadãos- pacientes restritos a espaços demarcados. A base da experiência residira, então na focalização da subjetividade no centro do tratamento, como considera Henckel (2008) Numa importante contribuição à pesquisa psicopatológica na universidade, Queiroz (1999) resgata as idéias freudianas e as aproxima da idéia de pathos, possibilitadora da construção da experiência. Nesse contexto, a autora sublinha a posição de Freud como descobridor de uma psicopatologia da vida cotidiana, na qual “... tudo que é psíquico é psicopatológico” (Ibid., p. 99), rompendo, com isso, a dicotomia “normal” e “patológico”. Com a subjetividade no centro da psicopatologia, passa-se a considerar uma implicação do sujeito, uma responsabilidade, no seu sofrimento.*10 9 Berlink apud Henchel In Capítulo sobre o método: Dos caminhos percorridos. Trabalho apresentado ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental em 12/07/2008. 10 Queiroz apud Henckel In Idem 8 Mas como fundir numa mesma prática a experiência de pertencimento, a escuta do sofrimento, o resgate da cidadania, a clínica da inclusão numa realidade de atendimento SUS? No panorama da saúde pública testemunhamos o abismo entre o princípio de universalidade proposto pelo SUS e a práticas assistências. Diante das distintas concepções de atenção à saúde mental presentes nos discursos dos profissionais de saúde, podemos considerar que os equipamentos especializados de atenção à saúde mental vieram somar nas práticas de atendimento? São inúmeras as justificativas para não se incluir o paciente num serviço de saúde: o perfil do usuário, do profissional, os temas transversais presentes em cada caso (violência, DST/ ASIDS, menores de rua, homens de rua, adolescentes em situação de risco), a gravidade ou complexidade da doença, ou a característica do equipamento: _ Este usuário não tem perfil para CAPS. _ Aqui não atendemos co-morbidade psiquiátrica. _ Este é um caso de polícia, deve ser encaminhado ao conselho tutelar. _ Interno da FEBEM nós não atendemos, só os de assistida, a não ser que tenha um pedido do juiz. liberdade _ Paciente com AIDS tem um local específico para ser atendido. O relato de uma paciente, a qual vi uma única vez revela a ambigüidade de sentimentos produzidos no profissional de saúde, diante de uma queixa imprecisa e sem destinação, à espera de um lugar para se assentar. O meu problema é a bebida, eu vim aqui no CAPS para parar de beber. Uma amiga me trouxe, falou que aqui com o tratamento ela melhorou, bebe bem menos, só às vezes, mas consciente, socialmente. As pessoas me dizem: você tem que parar de beber, assim você está se acabando, vai no CAPS, eles dão remédio, tem psicólogo. Inclusive se não for abusar, ou pedir muito, aqui vocês dão passe de ônibus? Porque é difícil pagar condução, de onde eu moro, é duas condução. Só agora deu coragem pra eu vir, porque minha amiga me trouxe, vim ver como é. 9 Meu marido bebia muito, sabe, e não tinha jeito dele querer se tratar....ele morreu, quer dizer foi numa chacina, apagaram ele, ele e meus três filhos junto. Dizem que foi tudo mandado, por causa das drogas, dívida, sei lá. Um dia cheguei em casa e era sangue pra todo lado, nas paredes, no chão. Você percebeu que eu não tenho essa vista? (apontando para o olho esquerdo)... Então foi naquele mesmo dia, que eles me pegaram, me colocaram dentro de um saco, me espancaram e furaram meu olho, acharam que eu estava morta e me jogaram num lixão. Fiquei mais ou menos três dias, fui até dada como morta, até que os catadores de latinha viram o saco se mexer e vieram ver o que era. Quase fiquei cega. Seu relato era contundente, ia num crescendo expondo cenas cada vez mais trágicas, sem sobressaltos. O fato de ter nomeado como chacina e não como morte ou assassinato imprimia um horror maior ao acontecimento. Sua história produzia em mim uma torpe impotência, que me fazia escapar de qualquer possibilidade de escuta e reflexão clínica. Apeguei-me ao primeiro pensamento mais coerente que me ocorreu, no momento: Este certamente não era um caso para o CAPS ad (álcool e drogas), mas um caso de polícia, dos Centros de Atendimento às Vítimas de Violência, da Comissão dos Direitos Humanos. A experiência da dor indigesta e impalpável, quando expressa de diversas formas e exposta no campo analítico pode representar uma experiência de inclusão e um porvir de destinação para o sofrimento. Pode vir a ganhar outra dimensão, na ultrapassagem do horror e na forma peculiar de lidar com o fato inconsolável. Naquele momento, com a paciente e seu relato de “chacina” à queima-roupa não foi possível compartilhar nada. Acostumada com o termo nas notícias impressas em jornais e revistas ou nas imagens de vídeo, a presença da paciente revelava-se de outro modo, como algo incomparável: um testemunho vivo que se imbricava na minha escuta, colocando-me também no terreno do testemunho de um crime e de um sofrimento, à espera de um lugar de acolhimento, e não de exclusão. Referências Bibliográficas 10 Henchel,M. Capítulo sobre o método: Dos caminhos percorridos. Trabalho apresentado ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental em 12/07/2008. Berlinck, M. Projeto: A Reforma Psiquiátrica Brasileira: Laboratório de Saúde Mental. site: www.fundamentalpsycopathology.org Manifesto em Defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira, 24 de agosto de 2006 – Coordenação de Saúde Mental de Belo Horizonte Mângia, E. F. Cadernos de Saúde Pública vol. 24 no.3 Rio de Janeiro Mar.2008 Revista Época, Autistas em cativeiro. Edição 520, em 7/05/2008, Sociedade. Rosen, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Hucitec, 1994. 11