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Trilogia de obras sobre:
Bioética e dignidade humana nos limites da vida
Introdução:
Itinerário profissional e causa pessoal
Elaboramos uma trilogia sobre bioética e dignidade humana nos limites da vida que
surge como fruto da busca do autor em aprofundar a questão da dignidade humana no final
da vida que se iniciou no início da década de 1980, quando iniciamos nossa atuação
profissional no mundo da saúde. Como capelão do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, durante doze anos (1982-1993), vivenciamos
situações-limite de vida e de morte pelas quais passaram doentes e profissionais da saúde.
Justamente no Instituto do Coração da FMUSP, acompanhamos muito de perto, em abril de
1985, o desenrolar de toda a agonia e calvário de Tancredo Neves, o então presidente eleito
do Brasil. Por sua repercussão social e política, deste caso, sem dúvida alguma, foi uma das
razões que nos levaram a aprofundar eticamente a questão da “dignidade” do morrer. No
exterior, trabalhamos como Counselor e capelão nos Estados Unidos, além de cursar pósgraduação em Clinical Pastoral Education and Bioethics (1982-1983/1985-1986) no St.
Lukes´s Medical Center (Milwaukee, WI). Esta experiência nos colocou perante toda a
problemática da tecnologização do cuidado no final da vida. Constantemente discutia-se,
com os profissionais, familiares e à cabeceira do doente em estado crítico e terminal,
procedimentos ético-médicos. O comitê de ética era o fórum em que se debatiam casos
críticos que implicavam decisões em situações-limite de vida e morte.
Na obra, Eutanásia: por que abreviar a vida, retomamos, aprofundamos e
atualizamos em parte a obra originalmente publicada sob o título Eutanásia e América
Latina: questões ético-teológicas (Ed. Santuário) publicada em 1990, como fruto de nosso
mestrado em ética teológica na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção/Centro Universitário Assunção (São Paulo, SP). Num primeiro momento de
nosso itinerário de reflexão a partir de meados dos anos 1980 e início dos anos 1990, fomos
em busca do porquê de abreviar a vida: por que a eutanásia apresenta-se tão atrativa em
situações dramáticas de dor/sofrimento. Quais são as razões? Que interesses estão em jogo?
Que valores estão implicados? Num segundo momento, decorridos mais de dez anos, no
início do novo milênio, concentramos nossa reflexão na busca de resposta a uma outra
pergunta, não menos difícil e complexa, qual seja: Por que prolongar indevidamente a
vida? Como fruto desta trajetória, concluímos em 13 de setembro de 2001 nossa tese de
doutorado, na mesma instituição onde defendemos o mestrado, com o seguinte título: Viver
com dignidade a própria morte: reexame da contribuição da ética teológica no atual
debate sobre a distanásia. Este trabalho foi publicado em livro, com o seguinte título:
Distanásia: até quando prolongar a vida? (Loyola/Centro Universitário São Camilo,
2001). Registre-se que esta obra foi traduzida para o espanhol no México por Ediciones
Dabar, em 2004, e em Croata, na Croácia, pela Faculdade de Medicina da Universidade de
Rijeka, neste mesmo ano, pelo Prof. Dr. Ivan Segota, presidente da Sociedade Croata de
Bioética.
Nossa jornada reflexiva de abordagem dos desafios éticos de final de vida buscou
aprofundar uma perspectiva de entendimento e reflexão a partir de duas angustiantes
perguntas, que em seu bojo sempre trazem situações dramáticas de vida: Por que abreviar
a vida? Por que prolongar indevidamente um processo penoso de dor, sofrimento e morte?
Como perspectiva de resposta reflexiva e de compromisso solidário, organizamos
juntamente com Luciana Bertachini a obra Humanização e cuidados paliativos, publicada
por Edições Loyola/Centro Universitário São Camilo em março de 2004. Trata-se de uma
obra pioneira no país, a primeira a abordar a questão dos cuidados paliativos, de caráter
multidisciplinar, com a colaboração de 22 especialistas brasileiros e internacionais, de
várias áreas do conhecimento, entre outras: medicina, enfermagem, psicologia, psiquiatria,
psicanálise, teologia e filosofia.
Completamos assim um ciclo de reflexão, abordando os desafios éticos de final de
vida, numa trilogia de obras: 1) Eutanásia: por que abreviar a vida? (publicada em 1990,
retrabalhada e atualizada em 2004); 2) Distanásia: até quando prolongar a vida?
(publicada em 2001); e 3) Humanização e cuidados paliativos (publicada em 2004).
Este itinerário marca uma trajetória pessoal de vinte anos, marcada por dois momentos bem
distintos, mas necessariamente complementares. Num primeiro momento a vivência e
experiência em termos de cuidado e a seguir a busca de entendimento e aprofundamento
reflexivo ético/bioético no âmbito acadêmico científico. A dimensão do cuidado ocorreu
profissionalmente na primeira década (1980-1990) e foi uma profunda imersão no mundo
da dor, do sofrimento e da morte humanos, como capelão e professor de ética no Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e no
Centro Universitário São Camilo. A dimensão da reflexão ética/bioética acadêmica ocorreu
(e continua) a partir da última década do século XX. Nossa profunda convicção ética: não
abreviar a vida, muito menos prolongá-la inutilmente, mas cuidar com arte, ternura e
ciência da dor e do sofrimento humano, até o limite de nossas possibilidades, sempre
respeitando a pessoa vulnerabilizada pela doença crônica e na iminência de se despedir da
vida. É claro que estas reflexões revelam a causa pessoal e profissional, que se torna
transparente no itinerário impresso destas obras.
Uma radiografia dos desafios éticos de final da vida na contemporaneidade
A eutanásia é um tema milenar, mas que adquire sempre uma atualidade
surpreendente. Na contemporaneidade, sem deixar de ser um problema de consciência para
muitas pessoas que se encontram em situações dramáticas de dor e sofrimento sem
perspectivas, constitui-se num desafio de políticas públicas, no atual estágio do avanço
técnico-científico no mundo da saúde. A Holanda é a pioneira neste cenário, com a
legalização, em 2002, de uma prática tolerada havia mais de uma década. Seguindo nos
mesmos passos, a Bélgica, também em 2002, legalizou esta prática, sendo hoje os dois
únicos países no mundo em que a prática da eutanásia está regulamentada. O suicídio
assistido tem regulamentação legal na Suíça e no estado do Oregon, nos Estados Unidos.
Enfim, a problemática da morte digna, longe de estar resolvida com a introdução de tanta
tecnologia nos cuidados de saúde, tornou-se ao contrário mais polêmica, difícil, com
questões absolutamente novas. Estamos em busca de instrumentos e maneiras de rehumanizar todo este processo.
Diante da questão da eutanásia é muito difícil manter-se indiferente ou permanecer
olimpicamente no nível meramente racional, sem se envolver emocionalmente. Estamos
sempre deparando com situações dramáticas de pessoas que desistem de viver em razão de
situações sem perspectiva de futuro, marcadas pela dor e por sofrimentos ditos intoleráveis
e sem sentido. A mídia divulga estas situações à exaustão, como em 2003 o caso francês
Vincent Humbert, em que a própria mãe, atendendo à solicitação do filho de pôr um fim à
sua vida, pratica a eutanásia com a colaboração dos médicos.
Tudo isso teria sido impossível ao tempo do final da Segunda Guerra Mundial,
quando a opinião pública ficou profundamente horrorizada e chocada com a prática nazista
que "eutanasiou" entre 80 a 100 mil pessoas, principalmente recém-nascidos portadores de
deficiência e idosos. Este programa, iniciado em deficientes físicos e mentais, acabou sendo
também uma forma de eliminar inimigos políticos do Terceiro Reich. Foi a primeira
decisão política em relação à eutanásia, estudada e colocada em ação. Advém desse
acontecimento, com certeza, a conotação pejorativa, negativa de eutanásia (BURLEIGH,
1995).
Muitas foram as vozes no mundo desenvolvido que, na polêmica sobre o aborto,
enfatizaram o efeito "ruptura de dique" (argumento sleepery slope), conseqüência da
despenalização daquela prática. Já que se pode suprimir a vida antes do nascimento,
situamo-nos num plano inclinado em que o valor da própria vida começa a ser questionado.
Corta-se a vida em seu nascedouro e, agora, sem maiores problemas, corta-se no fim. A
eutanásia entraria, portanto, nesta perspectiva de desproteção e descaso pela vida.
Além disso, existe hoje uma forte resistência a uma moral heterônoma (normas
morais que não brotam da autonomia interior, da própria opção da pessoa) que suscita
questões como estas relacionadas com o fim da vida: Que direito temos de prolongar a vida
de um paciente que não deseja continuar a viver e solicita que se coloque um fim à sua
existência sofrida? Não seria coerente reconhecer à pessoa não somente um direito à vida
mas também um direito à morte, escolhendo o momento em que não tem mais sentido
continuar vivendo? Nesse sentido a Sociedade de Eutanásia americana já propôs que a
Declaração Universal dos Direitos do Homem inclua entre os direitos da pessoa não
somente o direito indiscutível à vida, mas também o direito à morte.
Um outro elemento a influenciar e tornar o debate ético da eutanásia mais difícil é o
progresso técnico-científico da medicina. Este contribui não somente para aumentar a
esperança de vida, mas também pode simplesmente prolongar um longo e penoso processo
de morrer. O profissional médico que constatava a morte como um acontecimento da
natureza, sendo muito mais testemunha espectadora que ator, agora pode provocá-la e fixála segundo sua escolha. Na luta pela vida contra a morte usa-se de todo um arsenal
tecnológico que na prática se traduz como a prática da distanásia, que nega a mortalidade
humana, tratando a morte como se fosse uma doença para a qual tivéssemos que encontrar a
cura a todo e qualquer custo!
No bojo desta realidade surgem questões éticas profundas, tais como: Estamos
ampliando
vida
ou
simplesmente
adiando
a
morte?
Deve
a
vida
humana,
independentemente de sua qualidade, ser preservada sempre? É dever do médico sustentar
indefinidamente a vida de uma pessoa com o encéfalo irreversivelmente lesado? Até que
ponto é lícito sedar a dor, ainda que isto signifique abreviar a própria vida? Deve-se
empregar todos os aparelhos disponíveis para acrescentar um pouco mais de vida a um
paciente terminal ou deve-se interromper o tratamento? Deve um tratamento ativo ser
utilizado em crianças nascidas com sérios defeitos congênitos, cujo futuro será um contínuo
sofrimento ou uma mera vida vegetativa? Sendo possível manter a vida nestas
circunstâncias, devem tais vidas ser mantidas? E, se não, por quê? A medicina pode fazer, a
qualquer custo, tudo o que lhe permite seu arsenal terapêutico? Estes são alguns dos
questionamentos éticos mais importantes da atualidade.
Fundamentalmente está em jogo a re-humanização do processo final de vida,
na busca de um sentido de viver diante de situações de dor e sofrimentos intoleráveis. Daí o
surgimento das Associações do Direito de Morrer com Dignidade (por muitos.
denominadas associações de eutanásia) e dos hospices, que reivindicam, por diferentes
caminhos, o direito de morrer com dignidade, advogando uma certa desmedicalização da
morte e uma reapropriação do processo do morrer pelos vivos. Exemplos disso são as
declarações dos direitos dos pacientes terminais já presentes em muitos países, bem como o
testamento de vida, que expressa as orientações de tratamento a seguir em caso de o
paciente vir a se tornar terminal. Poderíamos nos perguntar: por que o morrer se tornou uma
indignidade nesta realidade? O problema que surge é a presença da dor e do sofrimento
intolerável, numa sociedade anestésica, que procura eliminar todo e qualquer resquício de
sofrimento. Será que tem sentido sofrer inutilmente? Não seria melhor morrer? A pessoa
humana não teria direito de dizer algo sobre isso? Por que não falar de direito de morrer, se
defendemos tanto o direito de viver? Estas são algumas das interrogações, cujas respostas
não são tão simples e que voltam com muita força hoje.
A mistanásia no mundo da globalização excludente
Pensar a eutanásia na perspectiva ética do hemisfério Sul do planeta, nos leva a
ampliar o horizonte de compreensão da questão. É preciso posicionar-se numa perspectiva
dialética de encarar a vida na malha de forças ideológicas antivida em que se situa,
resgatando a dimensão da alteridade no nível de pressupostos ético-teológicos. Para além
do mundo médico hospitalar, de discussão em torno de casos extraordinários levados ao
conhecimento público pela mídia, abre-se a dimensão social. Não se trata de negar a
questão no âmbito médico-hospitalar, também importante no nível de América Latina, onde
é hoje mais um sinal de morte que de vida. O mundo desenvolvido já proporciona as
condições básicas de vida para a grande maioria da população, e a reivindicação maior está
em torno da humanização do morrer.
Trata-se de repensar a dignidade da vida humana como sendo não somente um grito pela
dignidade no adeus após uma longa vida desfrutada, mas o resgate urgente da dignidade do
viver. Entendendo-se eutanásia como abreviação da vida perante uma situação intolerável
de dor e sofrimento sem perspectivas, na América Latina abre-se espaço para se questionar
eticamente o porquê de tantas mortes precoces e injustas, o que poderíamos caracterizar
como uma verdadeira mistanásia. Neste mundo, viver não é ainda desfrutar a vida
plenamente, mas constantemente lutar contra a morte, numa sobrevivência sofrida em que o
fim (a morte) está muito perto do início (nascimento). É o contraste da morte na velhice no
mundo rico e a morte na infância no mundo pobre.
Nossa reflexão ética amplia-se da "morte de alguns" para a "morte de milhões".
Trata-se de reacender a sensibilidade ética que se traduz numa "indignação". Antes de se
preocupar prioritariamente com a a morte como um dado da natureza humana, urge resgatar
o direito à vida, expresso no direito de gozar de saúde plena. Em outras palavras, trata-se
de ver qualidade de vida antes que qualidade de morte. Antes de se aceitar tranqüilamente
a inevitabilidade da morte e trabalhar com os problemas em torno dessa realidade (primeiro
mundo), deveríamos lutar para assegurar condições básicas de afirmação da vida (mundo
pobre). O significado da expressão qualidade de vida se diferencia em seu conteúdo
segundo se aplique aos países mais desenvolvidos ou não. Nos países desenvolvidos se
trata de prolongar a expectativa de vida e combater a morte; tornar a morte menos
dramática, mais agradável e confortável (existem os especialistas, chamados tanatologistas)
e lutar contra a contaminação ambiental provocada pela superprodução industrial. Nos
países pobres, a luta não é tanto por viver mais, mas por saber como sobreviver. Falar de
qualidade de vida é lutar contra a morte prematura e injusta causada pela pobreza, pela
exploração e pela falta de recursos e assistência à saúde, entre outras causas.
É necessário cultivar a sabedoria de integrar a morte na vida, como natural desta mesma
vida. A morte não é uma doença e não deve ser tratada como tal. A medicina tecnológica
corre o risco de ser sempre menos uma ciência humanista para se tornar uma obsessão
tecnicista de tratar assuntos eminentemente éticos como sendo técnicos.
Sim, aceitar a contingência, mas rechaçar aquelas mortes, fruto da injustiça e do
empobrecimento, que ceifam impiedosa e silenciosamente a vida aos milhares, reduzindo
não somente a vida a uma "morte infeliz", mas antes disso a uma sobrevivência sofrida
materializada em corpos esqueléticos desfigurados, verdadeiros mortos-vivos.
Convivemos com centros de saúde que dispõem da tecnologia mais desenvolvida do
mundo, com maravilhosas cirurgias de transplantes, e ao mesmo tempo com a morte
"evitável" de milhares de crianças, causada por fome, sarampo, tuberculose, malária,
desidratação, diarréia e outras doenças já erradicadas no mundo desenvolvido. Os mais
candentes problemas éticos no mundo da saúde latino-americano não se ligam
prioritariamente à tecnologia, mas à justiça social no nível de acesso e distribuição
eqüitativa dos recursos básicos que garantam uma vida digna.
Que haja doentes por causa da limitação da natureza humana é inevitável e
compreensível, e devemos nesse sentido utilizar todos os recursos técnicos e humanos para
tratá-los dignamente. Não podemos, porém, ficar indiferentes e passivos ante os adoecidos
por causa da pobreza que marginaliza e condena o latino-americano "à morte antes do
tempo".
É a mistánásia, morte miserável, infeliz, fora e antes da hora . Trata-se de um grito não
somente pela dignidade de morrer, uma vez que morrer tão precocemente é uma
indignidade, mas pela dignidade de viver plenamente. A morte infeliz evoca o viver infeliz,
o viver sofrido. Falar disso é falar da vida abreviada. Não seria uma hipocrisia gritar
somente pela dignidade no adeus, se a vida toda, teimosamente levada adiante numa
sobrevivência sofrida, foi uma indignidade?
Uma convicção final: “A chave do bem morrer está no bem viver!”
Permanece como um grande desafio o cultivo da sabedoria de abraçar e integrar a
dimensão da finitude e da mortalidade na vida, bem como implementar cuidados holísticos
(físico, social, psíquico e espiritual) no adeus final. É necessário cultivar uma profunda
indignação ética em relação a tudo que diminui, corta e mata a vida num contexto social
excludente (mistanásia), e se comprometer solidariamente. Entre dois limites opostos: de
um lado a convicção profunda de não abreviar intencionalmente a vida (eutanásia), de outro
a visão de não implementar um tratamento fútil e inútil, prolongando o sofrimento e
adiando a morte inevitável (distanásia) — entre o não abreviar e o não prolongar está o
amarás... (conceito de ortotanásia). É um desafio grande aprender a amar o paciente
terminal sem exigir retorno, com a gratuidade com que se ama um bebê, num contexto
social em que tudo é medido pelo mérito! O sofrimento humano somente é intolerável
quando ninguém cuida, diz Cicely Saunders. Como fomos cuidados para nascer precisamos
também ser cuidados no adeus final da vida. Cuidar fundamentalmente é procurar viver a
solidariedade que coloca o “coração na mão”, une competência técnico-científica e ternura
humana pelos que hoje passam pelo “vale das sombras da morte”, sem esquecer que “a
chave para se morrer bem está no bem viver!”.
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