Disposição e esquemas de classificação: uma sistematização das

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE
PRÉ-ALAS BRASIL
04 a 07 de setembro
UFPI, Teresina - PI
GT 23 – ECONOMIA SIMBÓLICA E POLÍTICA DOS AFETOS
Disposição e esquemas de classificação: uma sistematização
das trocas simbólicas em Pierre Bourdieu
Fábio Bezerra de Andrade1
Danilo M. Farias da Silva2
Rodrigo Vieira de Assis3
1
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de
Pernambuco.
2
Bacharelando em Ciências Sociais da UFRPE e Bolsista PIBIC-CNPq da FUNDAJ.
3
Bacharelando em Ciências Sociais da UFRPE e Bolsista PIBIC-CNPq da FUNDAJ.
2
Disposição e esquemas de classificação: uma sistematização
das trocas simbólicas em Pierre Bourdieu
RESUMO
Para pensar uma economia dos bens simbólicos deve-se considerar que o real é
relacional. Isso porque não existe uma dimensão natural das coisas, mas um conjunto
de forças (política, financeira, comunicacional etc.) que dinamizam o mundo social. É
assim que podemos adentrar no debate sobre os capitais (social, cultural e
econômico), os quais atuam na formação dos esquemas de disposições duráveis e
intransponíveis dos indivíduos: o habitus. Este trabalho objetiva analisar, assim, a
economia das trocas simbólicas, em Bourdieu, a fim de sistematizar a forma pela qual
são estruturados os sistemas de classificação e de disposição nas sociedades
contemporâneas. Os resultados indicam que o diálogo entre o pensamento daquele
autor e algumas metodologias voltadas à recomposição das trajetórias sociais pode
proporcionar novas inquietações sobre as dimensões subjetivas da realidade social.
Introdução
A contribuição da teoria de Pierre Bourdieu se inicia na tentativa da
resolução do problema do objeto epistemológico na sociologia contemporânea,
que é a relação do objetivismo/subjetivismo como ponto estruturador. As
correntes da sociologia até então, ou davam uma ênfase ao estudo da agência
(dimensão subjetiva) ou da estrutura (dimensão objetiva). Diferentemente
dessas abordagens, a sociologia desenvolvida por Bourdieu a partir do
conceito de habitus procura sistematizar esse debate tendo em vista a
mediação simbólica entre esses dois pólos distintos. Esse conceito atua como
organizador prático na dualidade do mundo social.
Nesse interim, o presente artigo pretende entrar nesse debate
considerando a teoria da “economia simbólica” de Pierre Bourdieu. Para o
autor, a teoria econômica clássica e a neoclássica incorrem no reducionismo
de uma explicação objetivista do mundo social. Assim como a teoria
voluntarista do ator racional recai em um subjetivismo ingênuo. Com isso o
autor incorpora variantes antropológicas e sociológicas na formação de uma
3
teoria econômica não economicista, que leva em conta outros capitais além do
econômico, no processo de constituição das ações práticas dos sujeitos sociais
que ocorre diretamente relacionada com a sua construção da realidade social.
Assim sendo, o nosso texto está organizado em três tópicos que
procuram explicar esse processo. No primeiro, procuramos demonstrar as
limitações da teoria econômica neoclássica, defendendo que existem vários
capitais além do econômico e que determinam a vida social. Assim fazendo,
criticamos as limitações de uma teoria do ator racional, que não leva em
consideração a construção social desse ator, o que para Bourdieu é essencial
para poder entender a gênese da sua prática.
Uma vez feito isso, é possível entrar na discussão do segundo tópico,
destacando justamente os problemas associados às abordagens que conferem
à dimensão econômica, o elemento determinante da vida social. Isso permite
entrar no debate sobre os vários capitais que formam uma economia simbólica,
se aproximando do campo de estudos sócio-culturais. Nessa perspectiva
adotamos
a
defesa
de
uma
sociologia
relacional,
mostrando
a
interdependência dos campos (econômicos, sociais, culturais e simbólicos).
Por fim, o terceiro e último tópico argumenta que para além dos
determinantes econômicos, existem os determinantes sociais e culturais que
formam uma economia simbólica, essa se inscreve no habitus que serve como
uma estrutura que gera disposições e classificações dos grupos sociais e das
classes, criando uma história incorporada a partir da trajetória social que
fornece as bases para todas as práticas cotidianas e a formação dos gostos.
De modo que, ao final, poderemos articular justamente os conceitos
fundamentais da sociologia de Bourdieu, onde a partir de uma economia
simbólica se tem uma economia das práticas inscrita e organizada pelo habitus.
A inversão do mundo econômico racional
Para a economia neoclássica o mercado é a manifestação da
coordenação entre os agentes interdependentes. Com esse pensamento se
tem os pressupostos de base liberal que constituem a teia das nossas relações
sociais. De um lado, as várias economias que circulam livremente no espaço
social visando à maximização do lucro e, do outro lado um ator que age
4
racionalmente, visando à maximização dos resultados de sua ação. Tem-se
essa dupla relação enraizada na doxa4 do senso comum (BOURDIEU, 2006):
livre mercado e ação racional.
A primeira posição, que tem em Adam Smith o teórico fundador,
influencia a segunda. Nela o mercado age livremente, independente do Estado,
que se auto-regula a partir das demandas e ofertas econômicas. Na segunda, o
ator social também organiza sua ação racionalmente com o intuito de
maximizar seus resultados. Com isso o que se tem é uma noção infantil de
liberdade, onde assim como o mercado, o ator social está agindo livremente na
sociedade a partir de cálculos racionais que otimizam as suas ações.
A análise de Pierre Bourdieu, por outro lado, reconhece que os
mercados são fatos sociais (CHALITA, 2011). Mas para entender a sua lógica
de funcionamento, tem-se que ir além dos determinantes econômicos, não
negando esse capital, mas incorporando outros capitais diferentes ao debate.
Vale lembrar a contribuição inicial de Max Weber que articulou uma análise ao
mesmo tempo da economia e da sociologia 5, e nesse mesmo sentido, Bourdieu
vem propor uma “nova sociologia econômica”, a partir das fronteiras relacionais
entre mercado e indivíduo; agência e estrutura; habitus e campo.
Para o sociólogo é preciso se afastar de premissas subjetivistas que
encaram o sujeito como um ser puro na sociedade, onde não tem nenhum
determinante social que guia ou predisponha as suas ações. A fundamentação
dessa filosofia da ação está em Sartre (2005), onde o sujeito não tem nenhum
precedente no mundo e nada determina a sua essência antes da entrada na
sociedade. Segundo Bourdieu (2009) essa imaginação ultra-subjetivista se
encontrou superada pelo voluntarismo defendido pela ideologia do “ator
racional”, que reduz ao absurdo a antropologia imaginária do subjetivismo
4
O conceito de “doxa” foi utilizado primeiramente por Platão, para expressar a opinião
cotidiana na esfera pública. Ela, no sentido em que Bourdieu emprega, é entendida como um
sistema de pensamento e ação ajustados a norma social cotidiana. Sua etimologia vem do
grego orto – pensamento; doxo - correto. É o pensamento correto que reina como verdade no
senso comum. Para maiores detalhes ver: ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de
Janeiro: Contraponto, p. 265-278, 1996.
5
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF:
Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 1999.
5
liberal, onde assim como a livre circulação do mercado, o sujeito consciente e
racional guia a sua ação prática nos mercados específicos. Nota-se, portanto,
que há uma concordância entre as construções formais da economia, já que é
o sujeito com seu gosto e estratégias subjetivas, que movimentam o mercado
na compra de bens variados.
Essa noção de ator racional busca sua origem nos atos estritamente
economicistas, onde a consciência se associa a racionalidade das práticas que
buscam a partir de uma lógica econômica das ações orientadas pela vontade
de obter um custo mínimo (econômicos) e o máximo de benefícios
(econômicos). Mas encarar essa situação de ação prática apenas como um ato
livre e natural é esquecer que somos constituídos a partir de relações sociais
existentes (MARX, 2011), que nos interpelam desde a nossa entrada na
sociedade. Desde a primeira socialização, tem-se a constituição do “Eu”
enquanto sujeito social (socializado), mediante a internalização da sociedade
(BERGER e LUCKMANN, 2009). Até mesmo os mercados econômicos são
construções sociais e históricas, e não uma criação natural ou divina, eles tem
que ser analisados, usando a terminologia hegeliana, como uma relação “para
si”, relacional e dependente da construção sócio-histórica, e não como uma
relação “em si” que existe independente de sujeitos e relações sociais no seu
sentido ôntico.
Nessa abordagem o homo economicus e a ação racional não passam de
mitos (CHALLITA, 2011), pois as práticas, de um modo geral, como a
econômica, são constituídas socialmente segundo esquemas de percepção de
mundo (classificação) e por esquemas de ação no mundo (disposição). Por
isso que o nosso trabalho insiste nessa construção, considerando a economia
simbólica que se inscreve nas estruturas sociais e nas estruturas cognitivas
que formam o habitus.
O mercado é determinado pela economia das condições de produção e
reprodução dos agentes e das instituições de reprodução econômica, social e
cultural. Essa relação se dá a partir da “mediação simbólica” (BOURDIEU,
2008) ao mesmo tempo objetiva (disposições econômicas socialmente
6
constituídas) e subjetiva (dos desejos e gostos), entre o sujeito e a estrutura
social. Esse processo paradoxal de troca que ocorre numa determinada cultura
é o que lança as bases da estruturação da prática social, e formam, o que
Bourdieu (2009b) chama de “economia das trocas simbólicas”.
Essa economia ao mesmo tempo sociológica,
antropológica e
econômica, não se dá sobre uma negação dos pressupostos economicistas,
mas sim num movimento de avanço e inversão, em relação a esses
pressupostos. Discute-se uma economia dos bens simbólicos formadas,
conforme uma construção social do sujeito, mediante a internalização
significante de vários capitais simbólicos (capital: econômico, cultural e social)
que atuam na formação de um esquema de classificação e de ação organizado
pelo habitus. Essa inversão da economia neoclássica para a economia
simbólica pode ser entendida nos termos de Marx, considerando a inversão
das “coisas da lógica, pela lógica da coisa”. Tem-se que ir além da dimensão
economicista codificada objetivamente na sociedade (coisas da lógica) e
descobrir a gênese das práticas sociais constituídas socialmente (lógica das
coisas).
Tendo isso em vista, o nosso trabalho procura mostrar essa lógica das
coisas, ou seja, a “lógica das práticas” que é organizado pelo habitus via
disposições e classificações formadas pela internalização de uma economia
simbólica. O conceito de habitus é aqui entendido como pré-disposição para a
prática social dos agentes (como a prática econômica) socialmente constituída
conforme processos de interiorização dos capitais simbólicos oriundos da
posição social. Para Bourdieu, o habitus é um “principio gerador de práticas
objetivamente classificáveis (disposição) e, ao mesmo tempo, sistema de
classificação (principium divisionis) de tais práticas” (BOURDIEU, 2008, p.
162). (Grifos do autor)
O conceito de habitus, compreendido como estrutura estruturada, prédisposta a agir como estrutura estruturante; possui duas características
essenciais que o definem, a saber: “capacidade de produzir práticas
(disposição) e obras classificáveis (classificação social)”. Bourdieu quer com
7
isso afirmar que é na relação entre essas duas capacidades do habitus que se
constitui o mundo social representado, ou melhor, constitui o “espaço dos
estilos de vida”, oriundos do gosto constituído por essa relação (BOURDIEU,
2008, p.162).
Existe, assim, uma lógica oculta na prática dos agentes que é operada
pelo habitus, superando a noção da teoria de um ator racional que age
livremente, em defesa de uma “teoria da prática social” (BOURDIEU, 2000). E
também o mercado econômico, como já foi discutido, não pode ser entendido
como algo natural, e sim como constituído por jogos e disputas que ocorrem
entre os agentes no campo. Nesse sentido, a análise da dinâmica do mundo
social deve ser feita indo além dos pressupostos da economia neoclássica, que
por si só não dizem muita coisa, apenas reformam a ideologia presente no
senso comum. Agora o que tem que ser entendido é como se forma esta
economia simbólica no seio da sociedade e na constituição dos sujeitos.
Por uma economia simbólica
Em muitos textos de Bourdieu é comum a referência a termos da
economia, segundo Robert Boyer (2005). Alguns como: interesse, lucro, capital
e mercado; são mobilizados em campos que não são da economia
especificamente. Mas esses termos assumem um significado diferente da
economia neoclássica, a sociologia Bourdiana busca captar o interesse
constituído pela lógica do habitus.
O que pode causar confusão é que, como os economistas
neomarginalistas, coloco no princípio de todas as condutas sociais
uma forma específica de interesse, de investimento. Mas somente as
palavras são comuns. O interesse de que falo nada tem a ver com o
self-interest de Adam Smith: interesse anistórico, natural, universal,
que na verdade é apenas a universalização inconsciente do interesse
criado e imaginado pela economia capitalista (BOURDIEU, 1980 apud
BOYER, 2005, p. 272). (Grifos do autor).
Para Bourdieu (2008), cada campo é caracterizado por uma fórmula
particular de interesse, é a lógica do campo, onde tudo depende de sua forma
de organização, e da ação dos agentes em seu interior. Não existe um campo
específico, são na verdade vários campos cada um com o seu funcionamento.
8
Assim como também não existe apenas um capital, o econômico, e sim vários
capitais com seu funcionamento específico. Surge, portanto, uma noção
relacional entre as práticas dos agentes no mundo social e a ligação direta com
seu campo. Por mais que os teóricos neoclássicos queiram adotar uma
concepção de campo econômico, como sendo, por natureza, separado das
outras esferas de atividade social e econômica (o que é exportado para outras
teorias das ciências sociais, como a da ação racional), tudo é perpassado por
uma construção social. A ação dos sujeitos no mercado não pode ser tomada
como natural, e sim uma criação, uma construção social.
Essa construção, também está presente na ontologia do ser social, onde
o indivíduo, no momento mesmo da sua entrada na sociedade, já é constituído
por relações sociais (MARX, 2011), suas ações e gostos são gestos refletidos a
partir da mediação simbólica com a estrutura social de parentesco que o rodeia
desde a socialização primária. As interpretações centradas no marxismo
cometem o mesmo erro das teorias econômicas liberais, elas centram a práxis
do sujeito como reduzida apenas à dimensão econômica.
Nesse sentido, a teoria materialista da economia das trocas simbólicas
de Bourdieu tem por fundamento a negação da práxis centrada unicamente na
economia, em favor de uma noção centrada na hierarquia cultural dos grupos.
Essa aproximação com a antropologia estrutural de Lévi–Strauss, assim como
do interacionismo simbólico, a fenomenologia da consciência de Husserl, a
inversão da gramática lingüística de Saussure em junção com os três clássicos
da sociologia (Marx, Weber e Durkheim), dão a base epistemológica dessa
inversão teórica operada por Bourdieu (2009-b). Nesse sentido:
O desafio que as economias fundadas na negação do econômico
lançam a todas as espécies de economicismo, reside justamente no
fato de que elas só funcionam e só podem funcionar na prática (não
apenas nas representações), ao preço de uma censura constante e
coletiva do interesse propriamente econômico e da verdade das
práticas desveladas pela análise econômica (BOURDIEU, 1977).
Segundo Roger Chartier (2005), existem traços que caracterizam a
economia dos bens simbólicos com os campos que ela rege, que são
diferentes do economicismo. A oposição contrasta não apenas os campos
9
culturais e o campo econômico, mas ela também é o princípio que estrutura os
próprios campos culturais. Mas por mais que essa teoria consista em um
“mundo econômico ao contrário”, a lógica da economia mercantil não está
ausente dele, há na verdade, uma interseção entre os interesses e os vários
capitais, constituindo uma luta de classificações.
Ainda segundo Chartier, ao propor a relação entre economia dos bens
simbólicos e de campo cultural, Pierre Bourdieu pretendia marcar uma tripla
ruptura: com a mitologia idealista do “criador incriado”, encarnação carismática
e anistórica do gênio puro (subjetivismo); com a abordagem estruturalista; e o
reducionismo sociológico que afirma uma correspondência direta entre
posições sociais e tomadas de posição intelectual ou estética. Nesse sentido,
tem-se uma negação da economia pura nas ações do mundo social e a entrada
em cena de uma identidade constituída/criada socialmente.
Na constituição dessa identidade é onde se encontra o peso estrutural
da economia simbólica. O indivíduo desde o seu nascimento se depara com
uma estruturação sócio-familiar, essa não determina apenas o seu nome, mas
inculca nele a partir da mágica mimética da socialização um conjunto de
capitais que vão servir de pré-disposições na constituição do Eu enquanto
sujeito social. São esses o capital cultural, capital econômico, capital social e
capital simbólico.
Essa dança dos capitais é que forma a ciranda da socialização enquanto
construção do ser social. O capital cultural é correspondente, de maneira
relacional, ao campo da cultura legítima: são aptidões para o estudo,
apreciação de obras de arte, gosto pela leitura, etc. Esse capital pode ser
medido pelo título acadêmico do pai e da mãe, e também pelas suas
inclinações em direção as atividades culturais que são reconhecidas como
legítima por todo corpo social. Mesmo que o indivíduo nasça numa família de
baixa hierarquia social em relação ao capital econômico, o capital cultural é
determinante para o sucesso escolar, o que vai proporcionar a esse indivíduo
um bom desempenho nesse campo.
10
Já o capital econômico é medido pelo volume de capital em relação à
renda (embora prevaleça, mas não de maneira hegemônica), ele determina o
poder de compra dos indivíduos no mercado, mas não o seu gosto. O que vai
determinar um mercado econômico não é o volume de capital econômico que
ele dispõe para gastar, e sim a disposição em relação a determinados bens. No
Brasil, por exemplo, por mais que a classe C esteja em crescimento, os seus
bens de consumo não são os mesmos da classe média histórica de nosso país.
Por isso que Jessé Souza (2009), diz que eles não constituem uma “nova
classe média”, porque existe uma série de disposições que marcam a
mentalidade destas, ou seja, não é apenas a renda o fator determinante.
O capital social está diretamente relacionado à teia de relações sociais e
influências em um campo específico. Correspondem às ligações de amizades e
conhecimentos, com outros grupos, famílias e pessoas. Nesse sentido, no
cotidiano social, por mais que um indivíduo não tenha os outros dois capitais
para adquirir um bem ou uma melhor posição no campo, o capital social
influencia esse fator. Ele também é crucial para subir na posição social de um
determinado campo. Por isso que as famílias da elite, por mais que algumas
estejam economicamente falidas, ainda conseguem manter o prestigio social e
a influência.
Por fim o capital simbólico é como uma reconversão dos outros capitais,
principalmente o capital econômico, já que ambos estão inextricavelmente
mesclados (BOURDIEU, 2009). Esse capital corresponde à dimensão do
prestígio social de um agente ou grupo de agentes, ele encarna crédito e
confiança naqueles que o possuem, e esses, segundo Bourdieu, podem
comprar todo o mercado mesmo se saírem de mãos vazias, tendo como única
moeda o seu rosto, seu nome e sua honra. O capital simbólico é uma
credibilidade que somente a crença do grupo pode outorgar, é uma espécie de
garantia para o capital que atrai capital. Geralmente ele está atrelado ao capital
econômico no caso do Brasil, constituindo os grupos da maior hierarquia social.
Mas não existe com isso um capital mais ou menos poderoso, tudo vai
depender do jogo que se estabelece em um determinado campo específico.
11
Portanto, o conjunto de capitais acima se inscrevem no habitus enquanto
princípio organizador da lógica da ação prática, formando uma economia das
práticas a partir de disposições e esquemas de classificações.
Há uma economia das práticas, ou seja, uma razão imanente as
práticas que não encontra sua “origem” nem nas “decisões” da razão
como cálculo consciente, nem das determinações de mecanismos
exteriores e superiores aos agentes. Sendo constitutiva da estrutura
da prática racional, isto é, a mais bem feita para alcançar com custo
mínimo os objetivos inscritos na lógica de um determinado campo,
essa economia pode se definir em relação a todas as espécies de
funções, entre elas a maximização do beneficio do dinheiro, única
reconhecida pelo economismo. [...] não reconhecer outra forma de
ação além da racional ou da reação mecânica, impede-se de
compreender a lógica de todas as ações (BOURDIEU, 2009, p.84).
Ou seja, a ação prática no mundo social não é orientada por uma
objetividade coercitiva do mercado econômico como determinante de nossa
ação, e nem por um cálculo subjetivo de uma ação racional. A teoria de
Bourdieu procura fazer uma síntese entre o objetivismo e o subjetivismo tendo
em vista uma economia simbólica como formação de um habitus que organiza
pré-reflexivamente todas as nossas práticas no mundo social. Opera-se aqui
uma “mediação simbólica” entre o mundo subjetivo do sujeito e o mundo
objetivo da estrutura social, ou usando o vocabulário de Bourdieu (1980), há
uma relação entre a história reificada (estrutura social) e a história incorporada
(disposição), uma influenciando a outra dialeticamente, essas histórias só se
manifestam na dualidade e não no sentido de uma razão pura kantiana.
A dualidade do mundo organizada por essa economia das práticas
influencia
inconscientemente
todas
as
nossas
ações,
até
as
mais
despretensiosas. Elas formam verdadeiros estilos de vida a partir de nossos
hábitos cotidianos, nos inclina para agir de uma determina maneira e orienta
um sistema de crenças. Nesse sentido, essa economia forma uma construção
da realidade no sujeito social a partir do modo como ele percebe o mundo
(classificações) e seu modo de agir no mundo (disposições.)
12
Para entender esse ponto é necessário adotar o pressuposto de que
existe uma construção social da realidade 6, com isso os sujeitos e grupos criam
o seu modo de percepção da realidade e de ação social a partir da
internalização do mundo social ao seu redor. Por isso a afirmação hermética de
que “o real é relacional”. A partir da internalização desse mundo em conjunto
com a internalização da economia simbólica, formam-se os esquemas de
percepção que orientam o nosso modo de ver o mundo, é o que conseguimos
perceber/decodificar da realidade. Nós só conseguimos perceber o mundo,
mediados pela nossa representação, com isso classificamos as coisas do
mundo (e somos classificados) a partir desse esquema de percepção.
Todo esse sistema de classificação nos remete a uma posição no
espaço social, seja na alta ou na baixa hierarquia social e moral, ele nos
remete a um grupo específico. E a mesma economia simbólica que forma
esses esquemas de classificação e percepção, também formam disposições
que orientam nosso senso prático no mundo social. Na verdade, eles estão
intimamente ligados e, de acordo com o modo com que percebemos o mundo,
também orientamos a nossa ação nele. E a junção desses dois pontos nos
remete a uma classe social7.
Para entender sociologicamente como se organiza as classificações e
disposições do sujeito social, é preciso entender sobre o mecanismo que
organiza toda essa economia das práticas que nos remete a uma classe social.
Ou seja, o conceito de habitus enquanto estrutura estruturada (na construção
social), pré-disposta a agir enquanto estrutura estruturante (das práticas).
A economia das práticas do habitus
Bourdieu (2008) coloca em evidência a relação que o conceito de
habitus possui com sua proposta para superação de quaisquer espécies de
6
Para maiores detalhes ver: BERGER, P. e LUCKMANN, T. A construção social da realidade.
Petrópolis Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
7
Classe social no sentido de Bourdieu não é entendida no sentido econômico marxista da
posição que o indivíduo ocupa no espaço produtivo. Ele faz um deslocamento para o plano
cultural, e entende classe mais como a mentalidade do que a renda, o nosso modo de
classificar o mundo e as disposições da nossa ação nesse mundo nos remete a uma classe
social.
13
objetivismo e subjetivismo. É na busca por um “caminho do meio” na prática
sociológica que Bourdieu percebe a melhor forma de análise científica da
sociedade e suas chaves analíticas nascem dessa postura de controle
epistemológico que é, com efeito, ao mesmo tempo, uma liberdade
metodológica.
Desse modo, ele adentra no velho debate sociológico entre a
desigualdade de relação entre duas forças: a estrutura, por um lado, e o
indivíduo, por outro. A localização do sujeito no espaço social é de importância
significativa
para
poder
identificar,
analisar,
interpretar,
explicar
e,
posteriormente, fazer distinções entre as identidades, as relações decorrentes
da convivência em determinado grupo, classe, campo – considerando a
pluralidade dos sujeitos modernos e, consequentemente, evidenciando uma
variedade de habitus. Assim, para identificar o espaço social, os sujeitos
partem de um olhar resultante de seu posicionamento no(s) campo(s) o(s) qual
(ais) transita. Bourdieu, afirma que:
Se, para evocá-lo, bastasse o fato de que ele possa apresentar-se
sob a forma de um esquema, o espaço social tal como foi descrito é
uma representação abstrata, produzida mediante um trabalho
específico de construção e, à maneira de um mapa, proporciona uma
visão panorâmica, um ponto de vista sobre o conjunto dos pontos de
vista a partir dos quais os agentes comuns – entre eles o sociólogo e
o próprio leitor em suas condutas habituais – lançam seu olhar sobre
o mundo social. [...]. No entanto o mais importante é, sem dúvida, que
a questão desse espaço é formulada nesse mesmo espaço; que os
agentes têm sobre este espaço, cuja objetividade não pode ser
negada, pontos de vista que dependem da posição ocupada aí por
eles e em que, muitas vezes, se exprime sua vontade de transformálo ou conservá-lo (BOURDIEU, 2008, p. 162). (Grifos do autor)
A prática dos agentes, por sua vez, são expressões da interiorização de
classificações resultantes dos julgamentos classificatórios, que são gerados
pela posição ocupada pelos agentes no espaço social. Para Bourdieu, o
habitus é um “princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao
mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas”
(BOURDIEU, 2008, p. 162) (Grifos do autor). O de habitus, compreendido
como estrutura estruturante e estruturada, apresenta-se como essencial para
fazer distinções de grupos, classificações e disposições, uma vez que o agente
14
interioriza e exterioriza o mundo social ao seu redor a partir de ações
condicionadas e em práticas sociais condicionantes.
Cada indivíduo possui uma história particular, possui um conjunto de
referenciais que direcionam seus desejos, suas emoções, suas motivações,
formando assim suas identidades e as identidades do grupo em que é
posicionado.
Determinadas
condições
permitem
a
constituição
de
determinados habitus, assim como a classificação em um determinado grupo
ou classe social a partir dele. O sentimento de pertencimento de um sujeito a
uma cultura é fruto da vivência no cerne dos valores, das normas, das
tradições e dos costumes que o rodeiam, daí sua moral é configurada na
relação desses valores, considerados pelo indivíduo como legítimos por serem
aprovados pelo grupo social, tendo como referência a economia simbólica
localizada no campo, ao qual sua posição no espaço social representa.
Bourdieu, afirma que:
Pelo fato de que as condições diferentes de existência produzem
habitus diferentes, sistemas de esquemas geradores suscetíveis de
serem aplicados, por simples transferência, às mais diferentes áreas
da prática, as práticas engendradas pelos diferentes habitus
apresentam-se como configurações sistemáticas de propriedades que
exprimem as diferenças objetivamente inscritas nas condições de
existência sob a forma de sistemas de distâncias diferenciais que,
percebidos por agentes dotados dos esquemas de percepção e de
apreciação necessários para identificar, interpretar e avaliar seus
traços pertinentes, funcionam como estilos de vida (BOURDIEU,
2008, p. 164). (Grifos do autor)
Bourdieu, nessa passagem, menciona os pontos de codificação e
decodificação que permitem determinados sujeitos se distinguirem de outros,
segundo disposições que orientam a sua prática do mundo social, e das
classificações que fazem e sofrem desse mundo. Vale ressaltar que Durkheim
(1951)
nesse
ponto,
quando
afirma
que
os
fatos
sociais
formam
representações morais e julgamentos das práticas tidas como normais, o que
direciona a nossa relação com a realidade. A diferença desse autor é que para
Bourdieu essa dimensão classificativa da representação social é dada segundo
15
a mediação entre agência e estrutura operada pelo habitus, e não apenas uma
coerção moral objetiva e exterior ao individuo8.
É nesse sentido que o ponto central desse texto é que a inversão do
mundo econômico realizada pela teoria materialista da economia das trocas
simbólicas forma uma economia das práticas constituídas socialmente, e essas
se inscrevem no habitus, que é o “princípio gerador de todas as práticas”. Essa
afirmativa bourdieusiana coloca o conceito ora apresentado em posição central
para compreensão do espaço social representado. O meio com suas
especificidades, lógica própria, elementos físicos que o compõe, o qual
determinado grupo “frequenta”, condiciona, em maior ou menor grau, a
constituição do habitus dos indivíduos que compõem esse grupo. E esse grupo
tem a sua representação a partir das disposições e classificações que fazem
no espaço social.
Conclusão
As idéias desenvolvidas por Bourdieu em A economia das trocas
simbólicas, conforme discutidas ao longo do texto, permite verificar que os
indivíduos que agem no mercado não são resultado exclusivo das
determinações econômicas e muito menos mônodas que agem livremente,
tendo em vista apenas a otimização da ação e a maximização dos lucros. As
interpretações que ora centralizam a sua visão sobre o indivíduo ou sobre a
estrutura, formando o par subjetivismo/objetivismo, padecem do mesmo
problema,
ou
seja,
não
conseguem
articular
os
dois
momentos
–
indivíduo/sociedade, agência/estrutura – que permite a existência do social.
É na percepção dessa deficiência que o autor constrói uma sociologia
relacional, procurando suprir os espaços que não são cobertos por uma
sociologia do ator ou uma sociologia da estrutura. Esse passo é dado, no
momento mesmo em que Bourdieu afirma que as práticas são constituídas
socialmente, conforme esquemas de percepção do mundo e por esquemas de
8
Assim como o economicismo e o marxismo, a teoria sociológica de Durkheim também
encontra-se no plano do objetivismo, a única diferença é que ele dá ênfase para a função moral
enquanto fator determinante, e não a economia. Mas a intersecção com Marx é que ele
também centraliza essa prática no trabalho.
16
ação no mundo. Estaria aí, portanto, o pressuposto fundamental de uma
sociologia relacional, que reconhece o papel da estruturas, mas também da
ação motivada.
O habitus, conceito fundamental da sociologia de Bourdieu, é o
momento articulador desse processo relacional a que os indivíduos estão
submetidos no mundo social. Não seria diferente no caso do mercado, na
medida em que a economia, enquanto tal, não se constitui em uma esfera
independente e muito menos os indivíduos aí inseridos agem soltos, sem
nenhuma outra motivação que não seja a da maximização do lucro. Muito pelo
contrário, os indivíduos ao entraram no mercado carregam consigo as
disposições socialmente constituídas e tais disposições geram, por sua vez, os
sistemas classificatórios que permitem ao pesquisador observar suas escolhas
pela via de uma economia das trocas simbólicas e não somente pelo poder de
compra.
É no habitus, como dito ao longo do texto, que os esquemas
classificatórios e da ação são organizados. Permitindo verificar o processo de
produção das práticas e, ao mesmo tempo, das obras classificáveis, isto é, o
espaço dos estilos de vida decorrente do gosto constituído por essa relação.
Esse conceito ganha dinâmica e capacidade de entendimento das práticas
sociais quando inserido em outro conceito da sociologia de Bourdieu, ou seja, o
de campo.
O campo enquanto conceito remete ao lugar das práticas sociais o
mercado, por exemplo, e, nesse sentido, caracterizado por uma fórmula
particular de interesse que, por sua vez, depende da sua forma de organização
e da ação dos agentes no seu interior. De modo que, no caso do mercado, não
há apenas o capital econômico como supõe as concepções economicistas,
mas sim vários capitais. Os capitais – cultural, econômico, social e simbólico,
são socialmente construídos, como não poderia deixar de ser, na medida em
que na sociologia de Bourdieu não há espaço para ação que não seja resultado
do habitus. E são, os capitais, socialmente distribuídos formando disposições e
sistemas de classificação.
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Para os efeitos a que o presente trabalho se dispõe, estamos de acordo
que a sociologia de Bourdieu permite avançar em muitas áreas do social, que
não são cobertas pelas interpretações subjetivistas e objetivistas, conforme
demonstrado ao longo do texto. O mais importante, e que esse trabalho é
apenas um esboço, é saber em que medida a contribuição do autor pode nos
ajudar a entender a dinâmica do social de países periféricos como é o caso do
Brasil. Mas esse será assunto para outro momento.
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