BI - Cristina Sales

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Cristina Sales
vida inteligente
‘Saber
comer
’
é pura informação
ENTREVISTA DE célia rosa
fotografias DE pedro granadeiro/global imagens
E se o seu organismo não reconhecer aquilo que o
leitor come como um alimento? Defende-se, inflama-se, fica doente. A médica Cristina Sales garante
que na origem da maioria das doenças que afetam
o homem do século xxi está o que comemos.
Precisamos de mudar a forma como nos alimentamos?
_ É obrigatório que o façamos porque a alimentação que a popu-
lação dos países ocidentais, incluindo Portugal, passou a fazer nos
últimos cinquenta anos é o que está na origem da maior parte das
doen­ças endócrinas, metabólicas, autoimunes, degenerativas e
alérgicas. As novas epidemias devem-se sobretudo aos estilos de vida e à alimentação que fazemos desde o pós-guerra.
A alimentação é decisiva para a saúde e o bem-estar mas está a provocar doenças e a aumentar a mortalidade precoce?
alimentar conduzem a uma desnutrição em nutrientes fundamentais e ingerimos uma grande quantidade de calorias vazias.
Segundo, são muito diferentes dos alimentos originais e o organismo não sabe lidar com eles, não os reconhece como alimentos. Depois, há uma sobrecarga tóxica inerente à alimentação
que provém dos agroquímicos [da produção], dos conservantes,
corantes e adoçantes que são adicionados para preservar os produtos durante mais tempo e para os manter bonitinhos.
São alimentos para ver…
_A geração dos nossos filhos terá uma esperança de vida mais re- _Os produtos que nos chegam ao prato foram feitos para vender e
duzida do que a nossa por causa dos estilos de vida e da alimentação. Primeiro, os produtos altamente processados pela indústria
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não para comer. Não têm nada que ver com os alimentos que ingerimos e que nos fizeram viver e sobreviver ao longo de milhões de
anos. Esta mudança ocorreu tão depressa que o organismo não está adaptado para gerir, digerir e assimilar estes produtos, pelo contrário, vê-os como substâncias estranhas e reage, inflamando-se.
Como é que podemos livrar-nos dessa teia?
_As escolhas alimentares são condicionadas pela publicidade, as
pessoas não são ensinadas a escolher. Quem é que é ensinado a consumir maçãs ou laranjas? Ninguém. A informação que passa de
forma subliminar através dos anúncios da TV e dos jornais é que
se deve beber sumo de maçã e de laranja. Mas se alguém ler os rótulos das embalagens verifica que contém imenso açúcar, frutose,
acidificantes, etc., e o que falta é a maçã e a laranja. É preciso informar, ensinar e consciencializar a população.
A atitude da indústria alimentar tem de mudar?
_No global sim, mas também depende do que a indústria faz.
A conservação de alimentos através da congelação, por exemplo, é perfeita. Os legumes congelados são uma ótima opção,
por vezes mais económica, e chegam ao consumidor mais frescos e com mais nutrientes do que os que são mantidos durante
cinco ou seis dias nas cadeias de distribuição. Já quando falamos de alimentos que têm de levar uma quantidade enorme de
aditivos para serem consumidos – é o caso das carnes de muito
má qualidade e dos aproveitamentos que se fazem dos restos dos
mariscos – é diferente. Sempre que tivermos de dobrar a língua
muitas vezes para conseguir ler o que está escrito nos rótulos é
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porque não é comida. Não compre. Será qualquer coisa que do
ponto de vista nutricional, químico e metabólico está muito longe do alimento original.
Está a falar de alimentos que duram ad eternum?
_ Por exemplo. Como é que duram? Fizeram-se estudos com hambúrgueres e batatas fritas – uns feitos em casa, com carne picada, e batatas
que foram descascadas, outros com produtos processados e embalados – e verificou-se que ao fim de trinta ou quarenta dias alguns hambúrgueres se mantinham iguaizinhos. Não se degradaram, ao contrário dos que foram feitos em casa, que estavam estragados três dias depois. Ora alguém acha que uma coisa daquelas pode ser comida?
Quando ingerimos produtos desse tipo como é que o organismo reage?
_Defende-se e inflama-se ou agarra naquelas coisas que não consi-
dera importantes e arruma-as nos depósitos de lixo, as células gordas. Estas, além de serem o nosso reservatório de energia, são também o depósito de substâncias tóxicas que o organismo não metaboliza ou não utiliza para impedir que entrem nos circuitos mais nobres.
Esta acumulação de lixo cria bloqueios bioquímicos e alterações metabólicas que impedem as células de trabalhar em condições. Hoje
ninguém sabe que consequências isto tem para o cérebro e o sistema
imunitário e para o bom trabalho hepático e digestivo. Os circuitos da
toxicidade são cruzados – se comer de vez
em quando um gelado, um iogurte ou um
sumo que tem um determinado corante é
uma coisa, mas se o fizer com regularidade,
ao fim de seis meses já ultrapassou as doses
suportáveis e entra em sobrecarga tóxica.
E o que é que acontece?
aos sensores do tubo digestivo aciona imediatamente uma ordem de libertação de glucagon ou de insulina. Se a indicação é libertar glucagon, o organismo vai usar a gordura acumulada, se
a ordem for para libertar insulina, vai armazenar gordura. Isto
é pura informação.
Quem quer perder peso tem de saber isso, certo?
_Se a pessoa tiver consciência da informação que dá ao corpo tem
muito mais capacidade para o modular. Outro exemplo: a leptina,
a hormona que sinaliza o apetite, que depende sobretudo do
ritmo solar. Uma pessoa equilibrada, que durma de noite e
trabalhe de dia, produz mais leptina de manhã (e tem apetite) e ao fim do dia produz menor quantidade (o apetite
diminui). Se uma pessoa comer muito à noite estraga este
equilíbrio e a certa altura está sempre com fome porque inutilizou os sensores da leptina. O nosso corpo
tem a sabedoria para sinalizar o apetite em função
da hora do dia – comer muito à noite estraga essa
sinalização, faz ter apetite a toda a hora.
A alimentação é bioquímica?
_Os alimentos são veículos de comunicação. Se
fizer uma refeição de gordura saturada – sopa com chouriço e
um cozido à portuguesa – dá um sinal à cárdia (esfíncter entre o estômago
e o esófago) para alargar e é assim que ocorre o refluxo gastroesofágico e aparece a azia.
A gordura saturada é um
sinal que se dá à cárdia para se
manter aberta. Se no dia seguinte a mesma pessoa só comer azeite ou gorduras de
peixe não terá azia – o azeite ajuda a fechar a cárdia. Pessoas mais esclarecidas fazem escolhas mais acertadas.
«Se tivermos
de dobrar a língua
para ler os rótulos
é porque aquilo
não é comida.»
_Veja-se o ácido fosfórico, um aditivo que
está presente em alimentos de consumo
diário, como os cereais de pequeno-almoço e os refrigerantes. Quem ingere estes
produtos todos os dias, além de ficar com
o sistema acidificado e perder cálcio (uma compensação do organismo que depois predispõe à osteoporose), também fica numa excitação – o ácido fosfórico é um estimulante cerebral e é óbvio que uma
criança que de manhã come um prato de cereais aditivados chega à
escola e não para quieta. O ácido fosfórico altera o comportamento
e em determinadas concentrações é neurotóxico.
A forma como nos alimentamos dita o comportamento das células?
mais glucagon e induzir o metabolismo a ir buscar gordura acumulada para disponibilizar às células, ou seja, vai desarmazenar. Mas se comer mais arroz, massa ou batatas vai dar uma ordem em sentido contrário, vai dizer que é precisa mais insulina e vai acumular gordura.
_Quando ingeridas, as gorduras saturadas e
as gorduras ómega 6 (provenientes essencialmente dos animais e dos ce­reais, sobretudo da soja) são a estrutura a partir da qual as células fazem substâncias pró-inflamatórias. As
gorduras ómega 3 – provenientes das algas e dos peixes – são
as que permitem que produzam
substâncias anti-inflamatórias.
Se uma pessoa tem uma doença
inflamatória (por exemplo, uma
alergia, artrite ou doença autoimune) e come muita gordura saturada, esta vai funcionar como substrato para a fogueira e agravar o processo
inflamatório da doença que já tem. Ao contrário, se ingerir gorduras
ómega 3, vai ser capaz de construir extintores de incêndio para que
as suas células produzam anti-inflamatórios.
Mas se as pessoas forem ativas podem queimar essa energia…
Há outros exemplos?
dratos de carbono/proteínas a quantidade de açúcar que chega
gue produzir serotonina em quantidade suficiente, deve comer
Como é que os alimentos atuam no organismo?
_Os alimentos servem para construir tecido, osso, órgãos, etc., e pa-
ra nos darem energia, mas o que as ciências da nutrição têm vindo
a mostrar é que os alimentos são essencialmente moduladores do
comportamento celular – são informadores das células, dizem-lhes
como devem funcionar. Imagine que tem um prato com uma determinada quantidade de proteínas (peixe ou carne) e outra de hidratos de carbono. Só a proporção entre a quantidade de carne e batatas ingeridas vai informar o organismo da necessidade de produzir
uma hormona ou outra, neste caso insulina (que é a hormona do armazenamento) ou glucagon (a hormona do desarmazenamento).
Explique lá melhor…
_ Se comer mais proteínas do que hidratos de carbono vai produzir
_Isso é outra coisa, o que importa reter é que na proporção hi- _Se uma pessoa tem tendência depressiva porque não conse56 NOTÍCIAS Magazine
travis rathbone
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os alimentos que têm os aminoácidos precursores da serotonina
– a carne de peru, por exemplo, é extremamente rica em
triptofano, que é um precursor da serotonina.
Se a pessoa souber isto, no outono, quando
o tempo fica mais escuro, porque é que
não há de comer mais carne de peru em
vez de carne de vaca?
A alimentação e o processo digestivo podem agravar ou controlar certas doenças?
_ Sim, se uma pessoa tem uma predisposição
genética para a diabetes, Alzheimer, etc., a doença só
vai manifestar-se se o gene for ativado. Mas o que as pessoas precisam de saber é que os genes também podem
ser desativados – é a modulação genética através da nutrigenética. Como? O que ativa ou suprime a expressão
dos genes é a presença de determinados fitoquímicos,
substâncias que também se encontram nos alimentos.
Podemos dizer que há alimentos anti-inflamatórios?
_Claramente. Os que têm ómega 3 – sardinha, cavala
e os peixes das águas frias do Norte. Algumas substâncias vegetais dos legumes (tomate), frutos (quivi) e especiarias (a curcuma, que confere a cor amarela ao caril) também têm efeito modulador de alguns genes pró-inflamatórios.
Mas alimentos anti-inflamatórios devem ser consumidos, independentemente de se ter doença ou não. Hoje sabe-se que um
cérebro com Alzheimer já está inflamado vinte anos antes da
manifestação da doença. Todas as doenças degenerativas começam com processos inflamatórias, as autoimunes também. Não conhecemos é as causas.
Há substâncias que devem mesmo ser eliminadas da
alimentação?
_Os aditivos químicos. Falo das substâncias quí-
micas que não são alimentos, que são usadas pela indústria alimentar e podem ser geradoras de
inflamação em contacto com o organismo. A vida
corrente não nos permite evitar todos os aditivos,
mas se estivermos despertos para esta realidade
teremos mais atenção, faremos escolhas mais saudáveis e ingeriremos menores quantidades.
E as gorduras?
_ As gorduras ómega 6, que se encontram nas marga­
rinas e nos óleos e que são provenientes da soja, do milho e do amendoim, são claramente pró-inflamatórias. Precisamos de ómega 6 no organismo, mas em
quantidades muito reduzidas. O problema é que a
cadeia alimentar atual é geradora de uma alimentação extraordinariamente rica em ómega 6 e pobre
em ómega 3. Basta pensar que, dantes, as galinhas e
as vacas comiam erva, agora comem rações provenientes da soja; os peixes comiam algas, agora comem rações
também com soja. Os produtos alimentares que usamos
são essencialmente da linha produtora de ómega 6.
Nos supermercados temos centenas de alimentos à escolha.
Precisamos de tanta coisa?
_ Não, necessitamos é de maior diversidade alimentar. Essas cen-
tenas ou milhares de produtos que vemos nas prateleiras são provenientes de quatro ou cinco alimentos – cereais, lácteos, açúcares
e gorduras – e da indústria de processamento. Se olharmos para a
quantidade de legumes, frutos, oleaginosas e peixe que as pessoas
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A medicina que
Cristina Sales exerce
chama-se «medicina
funcional integrativa» e reúne diferentes disciplinas,
profissionais e
recursos terapêuticos. É centrada na
pessoa e procura
entender onde estão
os desequilíbrios
que desencadeiam
a doença. Para
uns, trata-se de uma
abordagem vanguardista, mais adaptada
aos pacientes,
ao tratamento
e ao controlo das
chamadas doenças
da civilização. Para
outros, ainda gera
alguma desconfiança. Quem não receia
são os doentes
que a procuram
comem no dia a dia verificamos que comem quase sempre o mesmo.
Já pensou na variedade de saladas que é possível fazer? Mas se perguntar a alguém qual é a que come diz-lhe alface e tomate.
Fazemos escolhas condicionadas pela publicidade e o marketing.
Como podemos fugir a isso?
_ Só vai mudar com a informação dos cidadãos. Nos países do Norte
da Europa, onde a população é muito mais esclarecida, não encontramos nos supermercados esta quantidade enorme de alimentos-lixo – basta verificar que o espaço ocupado por refrigerantes, ce­
reais de pequeno-almoço e óleos alimentares é muito reduzido.
Exatamente o oposto do que se passa em Portugal.
De que produtos podemos e devemos mesmo prescindir quando vamos às compras?
_ Devemos tirar os refrigerantes, cereais com açúcar, pastelaria,
óleos e margarinas – para cozinhar devemos usar o azeite, só azeite. Todos os refrigerantes são um estrago de dinheiro – as pessoas
devem beber água. Os cereais com açúcar (os de pequeno-almoço e
as bolachas) também são prescindíveis – devemos escolher cereais
completos, integrais, que até são mais baratos. Compare-se o preço
de uma caixa de cereais de pequeno-almoço com o de um pacote de
flocos de aveia, que são altamente nutritivos. A aveia é muito mais
barata e muito nutritiva.
Mas comprar carne magra e peixe gordo, frutos e hortaliças é muito
mais dispendioso…
_ Mas há estratégias que podem ser implementadas. Uma é com-
prar carne de melhor qualidade e comer menos quantidade e menos
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– sobretudo pessoas
com doenças
crónicas (alergias,
enxaquecas, fadiga
crónica, doenças
inflamatórias,
endócrinas, metabólicas e autoimunes)
e que não encontraram resposta
satisfatória para os
problemas que as
afetam até chegarem ao seu consultório no Porto. Uma
consulta com a
médica dura hora e
meia e não se marca
de um dia para o
outro. Porque os
pacientes já são
muitos e porque as
palestras e conferências em que
Cristina Sales é
oradora convidada
são frequentes.
vezes. É preferível comer carne três vezes por semana em vez de comer carne gorda todos os dias. Além disso, toda a gente ganha se fizer uma alimentação vegetariana dois dias da semana e em vez da
carne comer, por exemplo, arroz de feijão ou grão-de-bico com massa. Se se acrescentar hortaliças, ervas aromáticas e azeite, podemos
dizer que são refeições perfeitas. Menos carne, mas de melhor qualidade; mais peixe (incluindo cavala e sardinhas, frescas ou em conserva de azeite) e ovos (podem ser consumidos três ou quatro por semana) são opções a privilegiar.
Não retira massa, arroz ou batatas ao seu carrinho de compras?
_ Não, mas reduzo as quantidades ingeridas. No prato devemos ter
pequenas porções de massa, arroz ou batatas e maior quantidade de
hortaliças, legumes e leguminosas.
Fala-se muito na responsabilidade social da indústria farmacêutica,
que ganha dinheiro à custa do tratamento dos doentes. E quanto à
responsabilidade social da indústria alimentar, que ganha dinheiro
atirando-nos para a doença?
_ A indústria alimentar está a fazer maus alimentos, mas a ver-
dade é que as pessoas só compram o que querem. Sei que quanto menor é a informação maior é a permeabilidade ao marketing,
mas o caminho também se faz através da informação dos cidadãos e da sua responsabilização. Custa-me imenso ver nas caixas de supermercado que as pessoas aparentemente mais pobres
também são as que levam os carrinhos repletos de produtos inúteis e nefastos para a sua saúde. É preciso repensar a política alimentar e inovar.
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