PROCESSO DE ESCOLHA UNIFICADO DOS CONSELHEIROS TUTELARES VIA DIRETA ou INDIRETA ?1 Maria Izabel do Amaral Sampaio Castro2 O Estatuto da Criança e do Adolescente, antes da reforma trazida pela Lei nº 12.696/2012, em seu art. 132, dispunha que em cada Município haveria, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução. Com a reforma provocada pela Lei Federal nº 12.696/12, o mesmo art. 132 do ECA passou a ter a seguinte redação: “Em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal haverá, no mínimo, 1 (um) Conselho Tutelar como órgão integrante da administração pública local, composto de 5 (cinco) membros, escolhidos pela população local para mandato de 4 (quatro) anos, permitida 1 (uma) recondução, mediante novo processo de escolha” (destaquei). O art. 139 do ECA, por sua vez, determina que “o processo de escolha será estabelecido em lei municipal e realizado sob a responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do 1 2 Texto escrito em 26/04/2015. 3ª Promotora de Justiça Cível do Ipiranga (São Paulo-Capital), com atribuição na Infância e Juventude, e, atualmente, assessorando nessa mesma área o CAO Infância e Juventude e Idoso do Ministério Público de São Paulo. Membro do Ministério Público Democrático (MPD) e do PROINFANCIA – Fórum Nacional de Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Adolescente, e a fiscalização do Ministério Público”, estabelecendo data unificada em todo o território nacional a cada 4 (quatro) anos, sempre no primeiro domingo do mês de outubro do ano subsequente ao da eleição presidencial (§ 1º), com posse no dia 10 de janeiro do ano subsequente ao processo de escolha (§ 2º). A Resolução CONANDA nº 139/10, que tratava do processo de escolha dos Conselheiros Tutelares, foi expressamente revogada pela Resolução CONANDA nº 170/14 (art. 55), a qual prevê as regras desse certame nos arts. 5º a 16. Considerando que após a vigência da Lei nº 12.696/12, a eleição presidencial aconteceu em 2014, em 04 de outubro deste ano de 2015, acontecerá o primeiro processo unificado de escolha dos Conselheiros Tutelares de todo o território nacional. Por conta disso, uma das discussões que se tem travado em torno desse tema está relacionada a forma com que tal processo de escolha deve acontecer, ou seja, se pela via direta ou pela indireta. Isso porque, conforme acima apontado, o art. 132 do ECA, antes da reforma provocada pela Lei nº 12.696/12, estabelecia que a escolha seria feita pela comunidade local, enquanto que a atual redação desse dispositivo legal fala em população local. Por outro lado, muitas Leis Municipais preveem a via indireta para escolha dos Conselheiros Tutelares3, sendo certo que o ECA, em seu art. 139, atribui à legislação municipal a regulação desse processo. 3 O CAO Infância e Juventude e Idoso (área infância e juventude), no correr do mês de abril de 2015, fez um breve levantamento por meio de um questionário dirigido às Promotorias de Justiça da Infância e Juventude do Estado de São Paulo, a fim de saber quantos municípios preveem em sua Lei local o processo de escolha indireto, apurando-se, aproximadamente, 80 (oitenta) deles num universo de 645 (seiscentos e quarenta e cinco), ou seja, cerca de 12,5% (doze e meio por cento). Assim, pretende-se, por meio desse texto, fazer algumas reflexões a respeito da polêmica acima lançada, a fim de levar ã reflexão os(as) Promotores(as) de Justiça da Infância e Juventude, que têm por atribuição imposta pelo ECA a fiscalização do processo de escolha dos Conselheiros Tutelares. I-) PROCESSO DE ESCOLHA PELO VOTO DIRETO DA POPULAÇÃO LOCAL Como apontado acima, o art. 132 do ECA dispôs que os Conselheiros Tutelares serão escolhidos pela população local, expressão que substituiu comunidade local, por força da alteração trazida pela Lei nº 12.696/12. A Lei nº 8.060/90, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente, não foi expressa quanto à forma pela qual a população local deverá escolher os membros do Conselho Tutelar de seu município. Foi a Resolução CONANDA nº 170/14, em seu art. 5º, inciso I, que determinou expressamente que o processo de escolha se dará mediante sufrágio universal e direto, pelo voto facultativo e secreto de eleitores do respectivo município ou do Distrito Federal....”. Diante dessa normatização, pergunta-se: atualmente, é admissível que o processo de escolha dos Conselheiros Tutelares aconteça pela via indireta, ou seja, que a “população local” delegue essa tarefa a uma parcela dela - geralmente a representantes de entidades ligadas às áreas da infância e juventude e assistência social ? Nosso entendimento é de que a via indireta não está em sintonia com o ordenamento jurídico atual e passaremos a seguir a explicitar as razões dessa conclusão por meio da interpretação sistemática da legislação constitucional e infraconstitucional que está em vigor. O art. 227, “caput”, da Constituição Federal, assim dispõe: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (destaquei). O legislador infraconstitucional, então, com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao observar o disposto no mencionado art. 227 da Carta Magna, não só reproduziu no art. 4º os mesmos direitos fundamentais e constitucionalmente garantidos às crianças e adolescentes brasileiros, como também concretizou o dever da sociedade para com a observância de tais direitos à essa parcela da população que está em pleno desenvolvimento, por meio da participação dela nos Conselhos de Direitos e no Conselho Tutelar. Nesse sentido, temos o art. 88, inciso II, do ECA, que aponta dentre as diretrizes da política de atendimento, “a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais” (destaquei). Criou-se, também, o Conselho Tutelar, “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos nesta Lei”(art. 131 do ECA – com destaques). Quando da implantação dos Conselhos Tutelares, “o Estado transfere para a sociedade parte da responsabilidade no controle e na promoção da política de atendimento à infância4” e adolescência. É importante destacar que o Conselho Tutelar decorre da concepção de democracia participativa, regime político que inspirou o legislador constituinte e segundo o qual todo poder emana do povo e em seu nome será exercido (Constituição Brasileira, art. 1º, parágrafo único). É na democracia que, no dizer de José Afonso da Silva, há vinculação entre o povo e o poder5. “Governo do povo significa que este é fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o princípio da soberania popular que é, pelo visto, o princípio fundamental de todo regime democrático. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade popular, que se apoia no consentimento popular; governo democrático é o que se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva pela técnica da representação política (o poder é exercido em nome do povo). Governo para o povo há de ser aquele que procure libertar o homem de toda imposição autoritária e garantir o máximo de segurança e bem-estar”6. A democracia é o regime político em que o povo participa na formação do governo e no processo político7, sendo certo que essa 4 SOUZA NUCCI, Guilherme de. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado; 2014; Rio de Janeiro-RJ, Editora Forense, p. 468 - destaquei. 5 Curso de Direito Constitucional; 34ª Edição; São Paulo-SP, Editora Malheiro; p. 133. 6 Ibid, p. 135. 7 Ibid, p. 138. soberania popular, nos termos do 14 da Constituição Federal, acontece por meio do sufrágio universal e pelo voto direto e secreto dos eleitores. Embora os termos “sufrágio” e “voto” sejam empregados como sinônimos, apresentam significados diferentes. O “sufrágio” é um direito público subjetivo democrático, ou seja, é um direito político inerente a todo regime democrático. Ele é universal, quando direcionado a “todos os nacionais de um país, sem restrições derivadas de condições de nascimento, de fortuna ou de capacidade especial”8. Já o voto é a manifestação prática do sufrágio, ou seja, é o ato fundamental do exercício do sufrágio, sua manifestação no plano prático 9. Pode ser direto ou indireto. Será direto, quando “os eleitores escolhem, por si, sem intermediários, seus representantes e governantes. É indireto quando estes são escolhidos por delegados dos eleitores. A eleição direta deve assegurar o caráter imediato da representação, enquanto na indireta a designação dos verdadeiros representantes se realiza através de uma especial entidade intermediária10”. Pois bem. Nos termos do art. 88, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme descrito acima, a sociedade participa da composição do Conselho de Direitos delegando a organizações a atribuição de escolher seus representantes nesse órgão colegiado, ou seja, não é a sociedade que diretamente escolhe os seus representantes, mas, sim, organizações, 8 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição; 5ª Edição; São Paulo-SP, Malheiros Editores,; 2008; p. 215. 9 Ibid, p. 218. 10 Ibid, p. 220. associações ou entidades que a representam. A sociedade indiretamente escolhe os integrantes do Conselho de Direitos (voto indireto). Tratamento diferente foi dado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ao acesso da sociedade na composição do Conselho Tutelar, posto que seus integrantes serão escolhidos pela população local, a teor do disposto no art. 132. Aqui, o legislador infraconstitucional não sinalizou a forma indireta de escolha dos Conselheiros Tutelares, atribuindo a organizações representativas da sociedade essa escolha. Ao contrário, o ECA foi expresso no sentido de atribuir à população a atribuição de escolher diretamente quem representará a sociedade na composição desse órgão colegiado. Isto posto, fica muito claro para nós que, se de fato o legislador infraconstitucional desejasse que os integrantes do Conselho Tutelar fossem escolhidos indiretamente, isto é, por meio de entidades representativas da sociedade e não diretamente por esta, teria reproduzido o disposto no art. 88, inciso II, do ECA no art. 132 deste Diploma Legal, no tocante a esse tópico. Se deu tratamento diferenciado é porque desejou que assim o fosse, ou seja, que os integrantes do Conselho de Direitos, no quórum que representa a sociedade civil, sejam escolhidos indiretamente, o que quer dizer, por meio de entidades representativas, ao passo que para o Conselho Tutelar, a escolha dos representantes da sociedade civil deve se dar diretamente pela população local. Essa conclusão, a nosso ver, encontra respaldo na razão de ser do Conselho Tutelar que “deve representar a vontade dos cidadãos em colocar um ‘basta’ na situação de crianças e adolescentes desprotegidos” 11 e se assim o é, seus integrantes devem ser escolhidos por aqueles cuja vontade irão representar. 11 FONSECA, Antonio Cezar Lima. Direitos da Criança e do Adolescente; 2ª Edição; São Paulo-SP; Atlas; 2012; p. 207. Entendemos pertinente reproduzir as palavras de Judá Jessé de Bragança Soares, lembradas por Patrícia Silveira Tavares12: “Conselho Tutelar não é apenas uma experiência, mas uma imposição constitucional decorrente da forma de associação política adotada, que é a Democracia participativa (...) O Estatuto, como lei tutelar específica, concretiza, define e personifica, na instituição do Conselho Tutelar, o dever abstratamente imposto na Constituição Federal, à sociedade. O Conselho deve ser como mandatário da sociedade, o braço forte que zelará pelos direitos da criança e do adolescente”. Assim, se o Conselho Tutelar é um dos órgãos que efetiva o dever da sociedade no zelo pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e, a teor do art. 132 do ECA, seus integrantes devem ser escolhidos pela população local, do que se infere ser ele uma das formas da democracia participativa se “corporificar”, forçoso concluir que essa escolha deve se dar por meio de voto direto dessa população, sob pena de estarmos tolhendo o direito da sociedade civil não ser amplamente representada nesse colegiado, uma vez que ele expressará a sua voz na busca da concretização dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, ou seja, no cumprimento do dever a ela imposto pelo art. 227 da Constituição Federal. Essa conclusão é acompanhada por Antonio Cezar Lima da Fonseca, quando afirma que a “forma de ingresso, o processo de escolha para compor o Conselho também devem ser definidos na lei municipal, na via da eleição pelo voto direto da comunidade (art. 132 do ECA)......13”. 12 Apud TAVARES, Patrícia Silveira; MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos; 6ª Edição; São Paulo-SP; Saraiva, 2013; p. 461. 13 Obra citada, p. 212, com destaques por mim efetuados. Daí a razão pela qual, inspirando-se no art. 14 da Constituição Federal, a Resolução CONANDA nº 170/14, em seu art. 5, inciso I, explicita o teor do art. 132 do ECA, estabelecendo que a escolha dos membros do Conselho Tutelar se dará por meio do sufrágio universal e direto. Destaca-se que o Conselho Nacional do Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) , nos termos da Lei Federal nº 8.242/91, tem dentre suas atribuições elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069/90 (ECA). Não se pode questionar sobre o caráter vinculativo das Resoluções do CONANDA e a respeito faço referência ao excelente artigo escrito pelo Promotor de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Dr. Renato Barão Varalda14, que nos dá uma lição a respeito da obrigatoriedade do Poder Executivo cumprir as deliberações desse órgão colegiado da esfera nacional, encarregado da formulação das políticas que concretizarão os direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiros: “ (...) A Constituição Federal, em seu artigo 204 e § 7º do artigo 227, prevê a descentralização político-administrativa das ações governamentais e a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis no atendimento dos direitos da criança e do adolescente. A par disso, o Estatuto da Criança e do 14 Responsabilidade do Estado pela omissão do cumprimento das normas gerais do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ano 07, nª 26, Brasília-DF, janeiro/março 2008; p. 11. Adolescente, regulamentado pela Lei Federal n. 8.242, de 12 de outubro de 1991, que criou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, exigiu em sua estruturação uma composição paritária de representantes do Poder Público e da sociedade civil, que direta ou indiretamente estejam relacionados à área infanto-juvenil. (...) O Conanda, ao deliberar e controlar as políticas públicas em âmbito federal, escolhe e decide a política de atendimento infantojuvenil. (...) A resolução do Conanda, deliberada regulamente pelo órgão colegiado, vincula o administrador público, que não mais poderá discutir seu mérito, sua oportunidade ou conveniência, cabendo-lhe tão-somente adotar as medidas necessárias ao seu cumprimento.... (...) A vinculação da Administração Pública aos princípios citados acima se sustenta em razão do princípio da juridicidade, já que a atividade administrativa não pode contrariar a lei, os princípios gerais do Direito e as diretrizes traçadas pelo Conanda, diante do princípio da democracia participativa, uma vez que o Conanda, órgão da própria administração, tem representatividade paritária de sociedade civil e do poder público. Tem-se, pois, que, no campo do Direito da Criança e do Adolescente, cabe à Administração Pública respeitar as normas gerais delineadas justamente pelo órgão deliberativo e controlador das ações do Poder Executivo Federal (Conanda), que resguarda o cumprimento da doutrina da proteção integral e, em especial, o princípio garantista do interesse superior da criança e do adolescente nas opções de implementação de políticas públicas. Dessa forma, nos assuntos relacionados com a implementação de políticas públicas destinadas à infância e àjuventude, torna-se impossível ao administrador o exercício da discricionariedade para a omissão na concretude de direitos fundamentais delineados pelo Conanda e constitucionalmente assegurados, já que tais diretrizes desse órgão o vinculam. (...) A sociedade representação civil paritária organizada na do Poder composição Público do e da Conanda, possibilitando assim legitimidade democrática às suas deliberações, confere legitimidade à elaboração das normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente e fiscalização das ações de execução, garantindo assim construção democrática e participativa da sociedade nas políticas públicas a serem executadas pelos órgãos estatais. Disso decorre a vinculação do Poder Executivo à execução das diretrizes traçadas pelo Conanda, bem como a possibilidade de controle judicial da ação ou omissão das políticas públicas à criança e ao adolescente devidamente normatizadas pelo referido Conselho (...)”. Diante disso, fica evidente que a Resolução CONANDA nº 170/14, ao determinar no art. 5º, inciso I, que a escolha dos Conselheiros Tutelares se dará por meio de sufrágio universal e voto direto (da população local – art. 132 do ECA), o fez com a autoridade conferida pela Constituição Federal (arts. 204, inciso II c/c art. 227, § 7º, ambos da C.F.), pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 88, inciso II) e pela Lei Federal nº 8.242/91 (art. 2º, inciso I), de deliberar sobre normas gerais de atendimento dos direitos da criança e do adolescente. Por fim, reafirmando que o voto direto é o que deve ser empregado para a escolha dos integrantes do Conselho Tutelar, sustentamos que, na hipótese da Lei Municipal prever o voto indireto para a escolha dos membros do Conselho Tutelar, deve prevalecer o determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 132) e na Resolução CONANDA nº 170/14 (art. 5º, inciso I), que apontam que o processo de escolha deve se dar pelo sufrágio universal e voto direto da população local. Isso porque o art. 24, inciso XV, da Constituição Federal, ao especificar a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal na proteção à infância e juventude, em seu § 1º, deixou de fora a competência do Município nessa seara, ao mesmo tempo em que estabelece que a União tem competência para legislar sobre normas gerais na área da infância e adolescência. Logo, no conflito entre a Lei Municipal e a Lei Federal, no tocante às normas gerais da infância e adolescência, esta é que deve prevalecer. A competência do Município, nos termos do art. 30, inciso II, da Constituição Federal, é suplementar a legislação federal e estadual, no que couber. “A clareza cristalina do permissivo constitucional acima transcrito não deixa dúvidas que, em havendo legislação federal (ou estadual) específica acerca de determinada matéria, a competência legislativa do município será sempre suplementar, e ocorrerá apenas ante a omissão do texto legal respectivo, não podendo altear o conteúdo ou a essência da matéria regulada. O dicionário define o verbo suplementar como sendo o ato de “acrescer algum a coisa a, suprir ou compensar a deficiência de”, não significando em hipótese alguma, substituir ou alterar a matéria suplementada. Juridicamente falando, por óbvio, também não é possível que o município, usando de sua competência legislativa suplementar, modifique disposições expressas ou mesmo tácitas contidas n a legislação federal ou estadual respectiva ou subverta seus fundamentos e objetivos, somente podendo a regulamentação suplementar atingir aquilo nela não previsto. Em outras palavras, a Constituição Federal não confere ao município competência para legislar em desacordo com a legislação federal ou estadual, sendo inadmissível que a legislação municipal suplementar venha a revogar, expressa ou tacitamente, aquela regulamentação original ou de qualquer modo venha a afrontar os princípios que a inspiram ou norteiam. Assim sendo, é elementar que a legislação municipal que trata dos Conselhos Tutelares deve ser fiel à legislação federal correspondente, no caso a Lei Federal nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, somente podendo incidir naquilo por ela não regulado e sem contrariar qualquer de suas disposições e princípios, sob pena de nulidade absoluta 15”. Fica claro, então, que não se pode admitir o voto indireto para escolha dos membros do Conselho Tutelar, pois, diferentemente do que consta do art. 88, inciso II, do ECA, que assegura a participação popular por meio de organizações representativas para composição dos Conselhos dos Direitos, o art. 132 do Estatuto da Criança e do Adolescente, fala em “escolhidos pela população local”, ou seja, pelo conjunto de habitantes de um território, de uma região, de uma cidade16. Finalizo essa conclusão, com a fala do consultor/advogado Dr. Wanderlino Nogueira, um dos comentaristas do Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado17, que embora se valha do termo 15 DIGIÁCOMO, Murillo José. Algumas considerações sobre a composição do Conselho Tutelar. Artigo publicado na página do CAOPIJ-Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Paraná. Disponível em http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_ct_doutrina_11.php . Acesso em 26/04/15. 16 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa; 5ª Edição; Curitiba-PR; Editora Positivo; 2010, p. 1677. 17 CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado; 12ª Edição, São Paulo-SP; Malheiros Editores, 2013; p.734. “eleição ao invés de processo de escolha, bem como da palavra “sociedade” ao invés de população local, reforça o entendimento de que o processo de escolha dos Conselheiros Tutelares deve ser direto e não por meio da escolha efetivada por associações, organizações ou entidades: “... A eleição dos conselheiros se dará dentre os cidadãos locais, por seus pares, indeterminadamente e sem caracterização de sua legitimidade por sua pertença a uma instância organizada da sociedade civil. Assim, são eles mandatários do povo em geral. Exercem o poder por outorga da própria sociedade, como um todo: no interior da “sociedade política” como “governo dos funcionários” e não como manifestação ou intervenção direta da “sociedade civil organizada”” (destaquei). II-) PROCESSO DE ESCOLHA PELO VOTO INDIRETO DA POPULAÇÃO LOCAL Como dito, os arts. 132 e 139, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, não explicitaram a forma como os integrantes do Conselho Tutelar deverão ser escolhidos, tarefa esta levada a efeito pelo CONANDA, por meio da Resolução nº 170/14 (art. 5º, inciso I). O meu entedimento foi amplamente defendido no item I deste texto, mas é certo que há pessoas que defendem não haver inconstitucionalidade alguma a realização da escolha dos Conselheiros Tutelares por meio do voto de entidades representativas da população local, isso porque a Resolução CONANDA nº 170/14, ao estabelecer a via direta, utiliza-se do advérbio “preferencialmente” (art. 5º, caput e inciso I). Segundo esse entendimento, o conceito “população” é demográfico, ou seja, relativo à demografia, “estudo estatístico das populações no qual se descrevem as características de uma coletividade, sua natalidade, migrações, mortalidade etc.18”. Não se trata, pois, de um conceito jurídicopolítico tal qual o conceito de “eleitor”, que “é a pessoa a quem se atribui a aptidão ou faculdade jurídica de participar da escolha de uma pessoa para exercer um cargo público ou desempenhar uma função pública 19”. Assim, pelo texto literal do art. 139 do ECA, a escolha dos Conselheiros Tutelares deverá se dar pelo voto das pessoas que residem em determinado município e não pelos seus eleitores, uma vez que uma pessoa pode morar em um local e votar em outro, quando tiver mais de um domicílio eleitoral, tal qual apontado pela Lei Federal nº 4.737/1965, que dispõe que para inscrever-se eleitor deve-se observar o domicílio eleitoral assim considerado o “lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á qualquer delas” (art. 42 e parágrafo único). Por outro lado, a democracia pode também ser exercida de maneira indireta, ou seja, quando o povo/eleitor delega a terceiros o exercício de seu poder, ou seja, há um intermediário na expressão da vontade popular. Assim, se a via indireta proporcionar a representatividade da população local, não há o porquê de se considerar que a Lei Municipal que prevê esse tipo de processo de escolha esteja afrontando a Constituição Federal e a Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). III-) LEI MUNICIPAL: previsão de escolha pelo voto indireto. O que fazer, então? 18 19 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Obra cidata; p. 653. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico; 12ª Edição; Rio de Janeiro-RJ; Editora Forense; p. 140. Respeitando o posicionamento daqueles que defendem os argumentos apresentados no item II acima, reafirmamos que defendemos o voto direto para a escolha dos Conselheiros Tutelares, posto que, conforme José Afonso da Silva em sua obra “Comentário Contextual à Constituição 20”, que chega a citar Meirelles Teixeira: “Se é como óbvio, na eleição direta a ação dos eleitores se faz sentir mais eficazmente, e de um modo imediato, na escolha dos governantes, é fácil concluir-se que a eleição direta constitui um processo mais democrático que a indireta. A eleição indireta, especialmente, especialmente quando feita por Colégio Eleitoral não eleito exclusivamente para proceder a ela - .... - , certamente favorece (a) a deformação da vontade dos eleitores populares; aliás, nem se pode dizer que se estará exprimindo essa vontade, porque se tratará de determinações pura e simplesmente dos eleitores de segundo grau; (b) a insinceridade e inautenticidade do sufrágio universal, que assim, fica reduzido a verdadeiro restrito e qualificado; (c) o suborno, as combinações políticas de bastidores, o conchavo, as pressões nas eleições de segundo grau. E tudo isso contraria o princípio democrático”. No nosso entender, deve-se optar pela via direta, visto que a indireta não se coaduna com os princípios da democracia participativa que inspiraram o legislador federal quando da concepção do Conselho Tutelar, órgão colegiado que é encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (art. 131 do ECA). A Lei Federal, no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente deve sobrepor-se à Lei Municipal e o processo de escolha de 2015 deve se dar pela escolha direta da POPULAÇÃO local. 20 5ª Edição; São Paulo-SP, Malheiros Editores,; 2008; p. 221. Todavia, caso a Lei Municipal preveja a via indireta para a escolha dos Conselheiros Tutelares, apresentamos, em especial aos membros do Ministério Público que são os fiscais desse processo, a teor do art. 139, “caput”, do ECA, como sugestão, os seguintes direcionamentos: 1) Na eventualidade do edital de abertura do processo de escolha dos integrantes do Conselho Tutelar ainda não ter sido publicado, seja tentada a articulação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) com os Poderes Executivo e Legislativo local, buscandose a modificação da Lei Municipal, a fim de adequá-la a normativa vigente, em especial quanto à escolha direta pela população local. É certo que a Resolução CONANDA nº 170/15 estabelece a antecedência de seis meses da data da escolha dos Conselheiros Tutelares que acontecerá em 04/10/15 (art. 139, § 1º, do ECA) - para a publicação do edital de abertura desse processo (art. 7º, “caput”), de modo que a não publicação pode gerar infringência ao comando do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Todavia, mesmo compactuando do entendimento segundo o qual as deliberações do CONANDA vinculam o Poder Executivo, conforme defendido no item I deste texto, acreditamos que publicar o edital de abertura do processo de escolha com prazo menor aos seis meses de antecedência de 04/10/15, não ofende a supremacia das normativas desse órgão colegiado nacional. Isso porque a não observância da antecedência mínima de 06 (seis) meses não implica em restrição de direitos, tal qual acontece na hipótese de se subtrair da população local, amplamente considerada, o direito de escolher diretamente os integrantes do órgão colegiado que a representará no exercício de seu dever estampado no art. 227, “caput”, da Constituição Federal, qual seja, o de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (art. 131 do ECA). Assim, entendemos que o edital de abertura do processo de escolha pode, sim, ser publicado em prazo inferior ao recomendado pelo CONANDA, sugerindo-se, porém, que tal publicação aconteça, no máximo, com antecedência de 03 (três) meses de 04/10/15, a fim de que haja tempo hábil para que esta data fixada como única pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 139, § 1º) seja devidamente observada pelo município. Nesse tópico, sim, há lei federal determinando data unificada para a escolha dos membros do Conselho Tutelar e a normativa do CONANDA não poderá jamais contrariar tal determinação. 2) Na eventualidade do edital de abertura do processo de escolha dos integrantes do Conselho Tutelar já ter sido publicado por força do art. 7º, “caput”, da Resolução CONANDA nº 170/14, prevendo a Lei Municipal a via indireta, ou seja, escolha por meio de entidades representativas da sociedade local, há duas posições a seguir: a) Para os que admitem os argumentos lançados no item II deste texto, sugere-se que os membros do Conselho Tutelar sejam escolhidos pelo maior número possível de associações, organizações ou entidades representativas da população local, devendo o Ministério Público, como fiscal desse processo (art. 139, “caput”, ECA), encete esforços para que essa representação seja a mais ampla possível, a fim de se garantir, na medida do possível, a democracia participativa, visto que esta, segundo nosso entendimento, só é plenamente alcançada por meio do voto direto da população local, como amplamente defendido no item I deste texto. A respeito, discorrendo sobre o Conselho de Direitos, mas perfeitamente aplicável à via indireta de escolha dos Conselheiros Tutelares, André Pascoal da Silva afirma que “Ainda que indireta a forma do processo de escolha, deve ser preservado uma possibilidade ampla de participação do maior número possível de programas e entidades, visando a assegurar a natureza da participação popular ou da democracia participativa, intrinsecamente ligada à própria ideia dos Conselhos” 21. Desta forma, garantindo-se a ampla representatividade popular, seria admissível que o esse processo de escolha dos Conselheiros Tutelares possa vir a acontecer pela via indireta e os argumentos a sustentá-las constam do item II deste texto. Todavia, entendemos que tão logo seja finalizado o processo de escolha de 2015, deve ser iniciado trabalho pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente na busca da modificação da Lei Municipal, infraconstitucional a fim de garantidora adequá-la da à normativa democracia constitucional participativa nos e órgãos representativos da sociedade de zelar pelo seu dever de dar efetividade aos diretos das crianças e adolescentes. 3) Caso o edital de abertura do processo de escolha dos integrantes do Conselho Tutelar já tenha sido publicado, pode-se pensar no seu cancelamento, fundamentando-se nos argumentos lançados no item I deste texto, a fim de se tentar a modificação da Lei Municipal para previsão do voto direto da população local na escolha dos integrantes do Conselho Tutelar. IV-) Conclusão Considerando que por meio da democracia o povo exerce o seu poder e expressa a sua vontade pelo sufrágio universal e voto direto; 21 CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado; 12ª Edição, São Paulo-SP; Malheiros Editores, 2013; p. 380. Considerando que o Conselho Tutelar é um órgão representativo da sociedade, por meio do qual ela exercerá o seu dever de zelar pelos direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiros, Conclui-se que, se o Conselho Tutelar é a instância representativa da sociedade, é ela própria, por meio do voto direto, que deve escolher os integrantes desse colegiado, a fim de garantir a sua ampla representatividade, reafirmando por esse processo de escolha, os princípios da democracia participativa que inspiraram o legislador infraconstitucional na criação desse órgão colegiado. Afinal: “A escolha dos membros do Conselho Tutelar pela via indireta é manifestamente inconstitucional. Com efeito, embora seja uma prática bastante comum, a verdade é que a Lei nº 8.069/90 não dá margem para tal método de escolha, que é flagrantemente contrário aos princípios democráticos que norteiam não apenas o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, mas a própria República Federativa do Brasil (...) A escolha dos membros do Conselho Tutelar por meio de um "colégio eleitoral", portanto, não é permitida pela Lei nº 8.069/90 e se mostra mesmo inconstitucional, não podendo assim ser prevista pela legislação municipal. E se tal "colégio eleitoral" for pretensamente composto por "entidades de atendimento", então, a coisa toma uma feição ainda mais absurda, pois uma das atribuições do Conselho Tutelar (cf. art. 95, do ECA) é justamente fiscalizar tais entidades, sendo desnecessário falar da impropriedade (para dizer o menos) de permitir que o "fiscalizado" escolha quem será seu "fiscal". Um processo democrático de escolha dos membros do Conselho Tutelar, com ampla participação da população (que deve ser estimulada a comparecer às urnas), desde que bem conduzido (e cabe ao CMDCA, com o apoio do Ministério Público zelar para que isto ocorra), constitui-se num momento único para debater os problemas que afligem a população infanto-juvenil do município, apresentando-se os candidatos como agentes públicos que irão lutar para melhoria das condições de atendimento como um todo (...) Um Conselho Tutelar escolhido por um número significativo de eleitores, sem dúvida, terá muito mais legitimidade para o exercício de suas funções políticas, e seguramente terá melhores condições de reivindicar a citada melhoria das condições de atendimento à população. É claro que um processo de escolha amplo e democrático é mais complexo que uma escolha realizada por um "colégio eleitoral", composto por meia dúzia de entidades, muitas das quais já "cooptadas" pelo poder político e econômico, mas tanto sob o mencionado ponto de vista legal/jurídico quanto ideológico, é o único caminho possível (...) Com uma adequada regulamentação, tanto por parte da lei quanto por parte da resolução do CMDCA relativa ao processo de escolha ... é possível neutralizar a maioria, senão todas as situações problemáticas usualmente verificadas, como o abuso do poder político e econômico na campanha, a compra de votos, o transporte de eleitores etc. (...)22“. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado; 12ª Edição, São Paulo-SP; Malheiros Editores, 2013. 22 Digiácomo, Murillo José. Processo de Escolha - É admissível a escolha dos membros do Conselho Tutelar pela via indireta, por meio de uma "assembléia de entidades" que atendem crianças e adolescentes ou algum outro colegiado? Disponível em http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo= 1082#escolha . Acessado em 26/04/15. HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa; 5ª Edição; Curitiba-PR; Editora Positivo; 2010. DIGIÁCOMO, Murillo José.. Artigo publicado na página do CAOPIJ-Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Paraná. Disponível em http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_ct_doutrina_11.php . _____ Processo de Escolha - É admissível a escolha dos membros do Conselho Tutelar pela via indireta, por meio de uma "assembléia de entidades" que atendem crianças e adolescentes ou algum outro colegiado? Disponível em http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo= 1082#escolha . FONSECA, Antonio Cezar Lima. 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