CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E URBANÍSTICA E INTEGRAÇÃO DE POLÍTICAS SOCIAIS – EXPERIÊNCIAS CONCRETAS NA ROCINHA, VIDIGAL E COLÔMBIA Ana Paula Carvalho1 Desde a sua criação, em 2003, a grande bandeira do Ministério das Cidades tem sido ampliação do acesso sustentável à terra urbanizada no Brasil, de modo a transformar a cultura de exclusão territorial das cidades brasileiras. Nesse sentido, uma de suas principais frentes de ação está no estabelecimento de parcerias com setores da sociedade civil, com governos estaduais e municipais e com os órgãos operadores do direito no sentido de promover a regularização urbanística e fundiária em áreas de ocupação irregular. Em 2004, o Ministério firmou uma parceria com a Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião com vistas a iniciar um processo de regularização fundiária na favela da Rocinha. Tal processo se iniciou no bairro Barcellos. Desde o ano passado, trabalhando junto com a Fundação, a Secretaria Municipal de Urbanismo começou a elaborar decretos, reconhecendo ruas do bairro Barcellos e seu traçado urbanístico. A segunda etapa de regularização fundiária foi iniciada nos bairros de Vila Laborioux, Vila Verde e Vila Cruzado. A terceira fase objetiva garantir os títulos de propriedade a mais 5 mil moradores da favela. Com o intuito de tratar dessa e de outras experiências concretas semelhantes, a Fundação Bento Rubião, o Ministério da Justiça e o Ministério das Cidades, em parceria com a Ambiental Engenharia e com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, e com o apoio da OAB-RJ e da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, realizaram nos dias 18 e 19 de junho de 2007 o Seminário Regularização Fundiária e Urbanística e Integração de Políticas Sociais – Experiências concretas na Rocinha, Vidigal e Colômbia. Partindo-se, pois, da experiência concreta dos projetos de regularização fundiária e urbanística em curso nas favelas da Rocinha e do Vidigal na cidade do Rio de Janeiro e na cidade de Bogotá, Colômbia, discutiu-se o papel da inclusão das áreas de ocupação irregular à cidade legal. Além disso, buscou-se tratar das relações de interdependência entre processos de regularização fundiária e urbanística e outras 1 Doutoranda em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e pesquisadora do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES). 1 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 políticas de intervenção social, destacando-se as ações de urbanização e ações de segurança cidadã. O evento teve também um caráter propositivo importante, na medida em que se expuseram os grandes empecilhos legais à materialização da regularização fundiária, notadamente nas áreas de favela, e se aventaram algumas formas de facilitar a aplicação da lei da usucapião, tanto individual quanto coletiva, instrumentos legais fundamentais para o processo de regularização. Nesse sentido, o juiz Cláudio Dell´Orto, vice-presidente de Comunicação Social da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, afirmou que, para que o processo de regularização fundiária tenha o seu caminho facilitado, faz-se necessário o desenvolvimento de uma nova cultura de interpretação das leis relacionadas ao tema por parte dos magistrados. Essa pareceu também ser a posição da juíza Andréa Pachá, membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que afirmou não serem imprescindíveis grandes mudanças no nível das leis. Segundo a juíza, é preciso que haja um trabalho de sensibilização do judiciário no sentido de se promover uma mudança na prática, buscando-se uma diminuição da teia burocrática que atravanca notadamente os processos referentes à usucapião. Este seminário, que reuniu operadores do direito, urbanistas e representantes de órgãos públicos federais, estaduais e municipais, ONGs, entidades da sociedade civil e acadêmicas, movimentos sociais, associações comunitárias de favelas, institutos de pesquisa e estudantes, foi marcado por um forte discurso de defesa da posse e da moradia em detrimento do direito à propriedade. Foram feitas duras críticas ao processo de especulação imobiliária que marcou a urbanização de quase todas as grandes cidades brasileiras. Reforçou-se assim a idéia de que a questão fundiária – tanto no campo quanto na cidade – é ainda hoje um dos problemas mais difíceis de serem enfrentados, constituindo-se em fonte de grandes desigualdades e impossibilidade de acesso a direitos sociais das mais diversas ordens. É importante mencionar que o discurso dos convidados à mesa estava em grande medida permeado pela linguagem dos direitos, de modo que a regularização urbanística e fundiária foi tratada não raro na chave da ampliação dos direitos sociais. Aliás, essa é clave que pauta toda a discussão sobre a reforma urbana no Brasil: é preciso garantir a todos o direito à cidade, e isso só se alcança se a função social da propriedade for respeitada. 2 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 Ainda que a regularização urbanística e fundiária tenha sido tratada por todos como fundamental ao processo de reforma urbana, Héctor Riveros, representante do PNUD e que tratou da experiência da Colômbia, bem como Benny Schasberg, secretário Nacional de Programas Urbanos, ressaltaram a necessidade de se criarem meios de prevenir a contínua ocupação irregular das cidades. Para ambos, remoções, salvo em casos extremos, devem estar fora da agenda dos planejadores urbanos. É preciso, entretanto, evitar o crescimento desordenado das cidades, e isso só é possível com um planejamento pensado no sentido de se garantir moradia às classes economicamente mais pobres. O Plano Diretor aparece, nesse contexto, como ferramenta imprescindível para o crescimento sustentável das cidades, ao passo que ele deve conter as diretrizes para que se garanta a função social da propriedade urbana, o que implica necessariamente em garantir habitação de qualidade para toda a população e impedir a especulação imobiliária. Sobre o tema do Plano Diretor debruçou-se também Adauto Lúcio Cardoso, professor do Instituto de Pós-Graduação em Planejamento Urbano – IPPUR/UFRJ. A fala de Cardoso se constituiu em um alerta sobre o processo de revisão do Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o professor, o projeto de lei referente ao Plano Diretor que está prestes a ser aprovado pela Câmara de Vereadores se constitui num profundo retrocesso em relação ao Plano aprovado em 1992. No projeto, que está em processo de aprovação, os instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade para conter a especulação imobiliária não são adequadamente mobilizados, o que pode gerar conseqüências graves para a cidade em um futuro próximo. A falta de envolvimento da sociedade civil com esse processo é para Cardoso um fato alarmante. A ausência de um associativismo autônomo também é uma preocupação de Luiz Werneck Vianna, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ. Werneck Vianna apontou para as dificuldades de realização dos princípios republicanos numa cidade em que grande parte das conquistas da sociedade civil se deu através de acordos clientelistas. Diante de tal nível de heteronomia, é difícil assistir à emergência de valores civis. O professor reconhece que se conquistaram boas instituições e vê com ânimo a transformação do Direito em um instrumento de defesa do interesse público. Ainda assim, ele acredita que mudanças significativas na organização do espaço urbano só são possíveis diante da existência de um movimento associativo forte e autônomo. 3 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/MAIO DE 2007 Não cabe aqui fazer qualquer avaliação sobre os efeitos práticos de tal seminário. É preciso dizer, entretanto, que ele sinaliza para a importância que a agenda da reforma urbana tem ganhado no atual cenário político. Além disso, não é injustificado assumir que o envolvimento do Judiciário com a questão urbana, que parece ser uma tendência forte no momento, pode ser muito produtivo no que se refere à garantia dos direitos sociais mais básicos. 4