A questão racial no Brasil e as relações de gênero – ST 18 Waldemir Rosa Palavras chaves: masculinidade, homem negro, racismo. Observando uma Masculinidade Subalterna: homens negros em uma “democracia racial” Todos os indivíduos estão inseridos em categorias de gênero que enquadram corpos nas necessidades sociais dos grupos humanos. O gênero, a raça e a classe, são categorias classificatórias que atuam como moderadoras no processo de distribuição de poder na sociedade. Nesta perspectiva, elas compõem a tríade necessária para se pensar os mecanismos da distribuição do poder como argumenta Oliveira (1998). Assumindo como verdadeiro este ponto de vista, quando um ser humano é inserido numa categoria de gênero, baseada em atributos anatômicos, isso é feito para controlar quais “poderes” e, em que medida, serão permitidos a esse indivíduo. Desta forma, existe uma diferenciação de poder inerente à diferença de gênero, de raça e de classe social. O que apresento aqui é um exercício de articulação entre gênero e raça na constituição da masculinidade do homem negro heterossexual em um país racista como o Brasil. A primeira afirmação que se faz aqui é que a sociedade brasileira distribui de forma diferenciada o poder tendo por base critérios de raça e gênero logo, entre homens e mulheres por um lado, e entre brancos e não-brancos por outro e suas possibilidades de acesso / restrição aos mecanismos de poder. Kimmel e Messner sugerem que os mecanismos de diferenciação e de prestígio privilégio confere ao grupo hegemônico o benefício da invisibilidade retirando desses a possibilidade de serem identificados em termos de classe e de gênero e raciais. Assim, os homens brancos de classe média quando se olham no espelho se vêem como um ser humano universalmente generalizável. Eles não estão capacitados a enxergar como o gênero, a raça a classe afetam suas experiências. Não é o que ocorre com os negros, pobres, mulheres, gays e todos os que de uma forma ou de outra vêem-se como “diferentes”. O que torna os sujeitos marginais e/ou oprimidos são os mecanismos mais visíveis em nós, porque são os que nos causam dor em nossas vidas cotidianas. (Kimmel & Messner apud Oliveira, op. cit. p. 91) A dor cotidiana na vida de um indivíduo, causada pela opressão, pode manifestar-se de diferentes formas. A negação do elemento que possibilita ser identificado e motivador da opressão é uma forma. Ou ainda constituir relações despóticas e discriminatórias com outros grupos que possuem marcas diferenciadas de discriminação. Formar uma identidade política positivando o estigma e lutando para a aquisição de direitos é outra terceira forma. Em texto sobre o pensamento de Frantz Fanon e como este pensa à relação colonial, Honi Bhabha escreve que “o estereótipo do nativo é fixado nas fronteiras deslizantes entre barbárie e civilização; o medo e desejo insaciável pelo negro: ‘nossas mulheres estão a mercê dos pretos... Sabe Deus como eles fazem amor’; o profundo medo cultural do negro figurado no temor psíquico da sexualidade ocidental” (Bhabha, 2001: 71). O estereótipo como uma “identidade caricata” impregna a representação que se faz do negro no discurso psíquico-sexual. Tudo no negro é sexualizado ao extremo, suas aptidões intelectuais são inseridas no contexto da sexualidade. Seus movimentos são interpretados como uma encenação eterna do ato sexual. A sua sexualidade é animalizada retirando dela a racionalidade cultural que caracteriza os integrantes da sociedade. Fanon percebe um esquema corporal que possibilita compreender a sua situação enquanto negro e estrangeiro na França. Sua existência enquanto negro se dá em três dimensões: no corpo, na raça e na ancestralidade. O olhar do branco colonizador o enquadra nessas três dimensões, objetivando sua subjetividade em um corpo transformando-o em objeto do discurso colonial subjugador (Fanon, 1983: 93). Pensando nos termos de Kimmel e Messner a dor de Fanon vem de uma prisão cotidiana que conjugava em sua corporeidade as marcas de gênero e de raça. Os homens possuem gênero, mesmo que isso seja invisível para muitos deles. Mas, o homem negro não consegue fugir de sua marca de gênero mesmo que ele queira torná-la invisível para si próprio. Os dilemas vividos por Fanon no seu enfrentamento com a sociedade metropolitana francesa indicam para nós o contato do homem negro com um nível de sua subjetividade mais intima: a construção de sua masculinidade. A masculinidade é construída a partir de um referencial social. Existem diversas masculinidades e a do homem negro é apenas uma1. O escravismo gerou uma profunda objetificação do corpo negro – tanto de homens quanto das mulheres – no imaginário social brasileiro. As teses do luso-tropicalismo e da confluência sexual voluntária no processo colonial português refletem em grande media a força explicativa dessa naturalização das relações de poder. A objetificação, como processo cognitivo da masculinidade hegemônica, retira a capacidade do outro de inserir-se na estrutura de poder. Carrigan, Connell e Lee afirmam que a masculinidade hegemônica representa a estrutura de poder das relações sexuais, buscando excluir qualquer variação de comportamento masculino que não se adeqüe as seus preceitos. Nesta empreitada subjaz um processo de luta contínuo que envolve mobilização, marginalização, contestação, resistência e subordinação das modalidades de ser masculino não sancionadas pela matriz hegemônica (Carrigan, Connell & Lee apud Oliveira, op. cit p. 104.). Quando se pensa a masculinidade hegemônica essa não inclui a maioria dos homens, mas sim aquela parcela cuja masculinidade seja generalizável como concepção do que é ser homem em uma sociedade. A virilidade é um componente importante da masculinidade hegemônica. Os valores da virilidade são associados à posição de comando e de controlo. Lia Zanotta Machado (1998) em artigo sobre a construção da masculinidade entre presos apenados por estupro argumenta que a virilidade nem sempre é remetida a qualquer desempenho de atividades sexuais. Ora é pensada como o desempenho de um comportamento social vinculado à coragem, ao destemor, à independência e a iniciativa. Compreendemos a virilidade como um das dimensões fundamentais da masculinidade, e essa estando ligada à idéia de independência como é possível se falar de uma masculinidade negra, uma vez que, o homem negro está preso a uma objetificação que o priva de sua racionalidade cultural e nega-lhe independência? A naturalização e animalização da sexualidade negra não representam em si uma negação da condição de independência ao homem negro e por conseqüência sua masculinidade? Apesar de Lia Zanotta Machado e Pedro Paulo de Oliveira não considerarem a questão racial como central em seus trabalhos estes indicam para a questão da construção da masculinidade se liga à noção de controle. Controle é a categoria central do escravismo e do sexismo. Nesta perspectiva, podemos nos referir a masculinidade negra como uma masculinidade subalterna, pois lhe é negada, ou parcialmente negada, a capacidade de controle sobre si e sobre o social. Pedro Paulo Oliveira afirma que a masculinidade é um dos caminhos possíveis para os segmentos subalternos de conquistar o poder (Oliveira, op. cit, p. 109). Enfatizando a articulação entre classe e gênero ele diz que a constituição de masculinidades nãohegemônicas é comprometida com a posição de comando do homem de classe média, e em última instância o que se busca é participar desta posição de status. No caso dos apenados por estupros apresentados no texto de Lia Zanotta Machado o que se percebe é uma grande intenção de culpabilizar as mulheres vítimas da violência sexual pelos seus atos criminosos. A noção de virilidade nos pode dizer sobre o estupro e o que a representação de estupro nos pode dizer sobre a virilidade são perguntas que orientam nossas reflexões. O imaginário da “sexualidade feminina como aquela que se esquiva para se oferecer” parece ser a contrapartida do imaginário da “sexualidade masculina como aquela que tem a iniciativa e que se apodera unilateralmente do corpo do outro” (Zanotta Machado, op cit, p. 235). Existe uma confluência entre os pensamentos de Zanotta Machado e Oliveira no que se refere a um discurso da “atitude ativa” na construção da masculinidade. Como pensar o princípio da “atitude ativa” na constituição da masculinidade negra, sendo a animalização sexual o extremo dessa “atitude ativa” associando a sua representação à idéia de violência “criminalizando” a sexualidade do homem negro. A argumentação apresentada nesses dois artigos é insuficiente para atingir essa problematização acerca da masculinidade negra. Parece-nos que esta não é tratada como menor ou incompleta, como as masculinidades homossexuais, que são a base para o trabalho de Oliveira (op. cit), e nem pelo imperativo criminal apresentado por Zanotta Machado (op. cit.). A “desarmonia” da masculinidade negra está em confluência com a distribuição de poder prevista nos padrões hegemônicos, ela não ameaça a reprodução da família hegemônica2. A perduração do estereotipo ligado ao homem negro parece estar para além da díade hegemônica e não-hegemônica. O que está em disputa não é paternidade ou o caráter reprodutivo (Fachel Leal, 1998; Costa, 1998), não é a heterossexualidade e nem o mercado de trabalho (Machado, 1998; Carvalho, 1998). Parece-nos o que se encontra em disputa no caso da masculinidade negra é a posição de fala sobre si e sobre a sociedade, a possibilidade de construir um discurso sobre sua condição subalterna na sociedade racista e sexista. Podemos pensar na existência de cadeias de “ações discriminatórias” na sociedade brasileira: homens brancos oprimem as mulheres brancas que vão nutrir uma objetificação sexual do homem negro que vai oprimir a mulher negra que não lhe atribui nenhum status social. Mas como se opera a adesão individual a essa cadeia de “ações discriminatórias”? Pode-se dizer em adesão voluntária? Não basta dizer que essa adesão se dá em busca de status social. O “individualismo social” não é capaz de explicar a reprodução das relações de gênero e raciais na sociedade brasileira. Essa cadeia de “ações discriminatórias” operacionaliza a reprodução da sociedade. Não nos é suficientemente nítido em que nível ocorre essa operacionalização. Pedro Paulo de Oliveira (op. cit.) apresenta a restrição da possibilidade de busca de poder em outras esferas da vida social para justificar a adesão a essa cadeia de “ações discriminatórias” como busca de poder na esfera das relações de gênero. Outro elemento que ele apresenta é a eficácia da reprodução simbólica dos estereótipos e na sua capacidade de modelar a face social dos indivíduos. Essa argumentação parece encerrar a capacidade explicativa da adesão do homem negro a um sistema que o priva da autonomia na medida em que essa busca da autonomia enquanto homem. A idéia de “círculo vicioso” é bastante apropriada para a situação. No entanto, não acreditamos que esse seja mantido pela busca da autonomia e sim pela busca de exercício do poder sobre outros segmentos, no caso, o das mulheres negras e dos homossexuais. Nesta perspectiva, a subalternização da masculinidade negra se dá em dois sentidos: no do grupo hegemônico representado pelo homem branco de classe média e no do grupo não hegemônico representado pela mulher branca3. O principio da apropriação e subjugação do corpo feminino apresentado por Zanotta Machado (op. cit.) no caso da construção da masculinidade dos estupradores nos parece em princípio insuficiente para explicar esse duplo sentido da subalternização da masculinidade negra. A imposição da relação sexual é um fato extremo onde se manifesta muitos dos códigos da masculinidade e com certeza pode-se relacionar a animalização do impulso sexual. Mas a não apresentação dos caracteres raciais dos apenados por estupro nos impede de ir além dessa visualização inicial relacionando o que se espera da masculinidade negra e o que é considerado como crime pelo discurso hegemônico. A objetificação do corpo negro permanece como um enigma para a compreensão da articulação entre gênero e raça no processo de construção da masculinidade negra. O discurso da masculinidade é antes de mais nada um discurso sobre a condição da existência social e o conhecimento sobre o homem negro brasileiro ainda é incipiente e novas pesquisas se fazem necessárias para esclarecer este dilema. Referência Bibliográficas BHABHA, Homi K. (2001) Interrogando a Identidade: Frantz Fanon e a Prerrogativa PósColonial. Im_______. O Local da Cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG. CARVALHO, Marília Pinto de. (1998) Vozes Masculinas numa Profissão Feminina. Im Estudos Feministas Vol. 06 n. 1 Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ. COSTA, Rosely Gomes. (1998) De Clonagens e de Paternidades: as entrecruzilhadas do gênero. Im Cadernos Pagu. n° 11 Trajetórias de gênero, masculinidades... Campinas, Ed. da Unicamp. FANON, Frantz. (1983) Peles Negras, Mascaras Brancas. Rio de Janeiro. Fator. FECHAL LEAL, Ondina. (1998) Cultura Reprodutiva e Sexualidade. Im Estudos Feministas Vol. 06 n. 1 Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ. MACHADO, Maria das Dores Campos (1998) Conversão Religiosa e a Opção pelam Heterossexualidade em Tempos de AIDS. Im Cadernos Pagu. n° 11 Trajetórias de gênero, masculinidades... Campinas, Ed. da Unicamp. OLIVEIRA, Pedro Paulo. (1998) Discursos Sobre a Masculinidade. Im Estudos Feministas Vol. 06 n. 1 Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ. ZANOTTA MACHADO, Lia. (1998) Masculinidade, Sexualidade e Estupro: as construções da virilidade. Im Cadernos Pagu. n° 11 Trajetórias de gênero, masculinidades... Campinas, Ed. da Unicamp. Notas Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Professor de antropologia e sociologia no Instituto de Ensino Superior de Samambaia (IESA). Este artigo é uma revisão do trabalho de final da disciplina Antropologia do Gênero oferecida pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília no primeiro semestre de 2004 e ministrada pela professora Rita Laura Segato. 1 Estamos considerando neste trabalho masculinidade negra como masculinidade heterossexual negra. 2 A argumentação que Pedro Paulo de Oliveira (op. cit) apresenta é que as masculinidades homossexuais poriam em perigo a reprodução da família burguesa. 3 Não faz sentido definir uma feminilidade hegemônica referindo-se a posição da mulher branca de classe média, pois a condição feminina nunca é tida como hegemônica na nossa sociedade. A argumentação mais plausível é sobre a articulação de “variáveis discriminatórias” para de definir a diferenciação entre as mulheres brancas e negras.