O CONCEITO DE GÊNERO Por Lindamir Salete Casagrande De mulher a gênero A preocupação com a situação da mulher na sociedade vinha se acentuando gradativamente até explodir no movimento feminista das décadas de 60 e 70. Um dos objetivos das feministas era tornar a mulher visível para a sociedade que, até então, era vista apenas como mãe amorosa e esposa dedicada. A história era (ou ainda é) construída sem levar em conta a participação da mulher, suas conquistas e anseios, sua forma de ver o mundo e de interagir com ele. Não se pode negar a importância do movimento feminista para as vitórias alcançadas pelas mulheres nos últimos anos. Gradativamente foi-se substituindo o termo "mulher" por "gênero". O termo gênero surgiu no mundo acadêmico no momento em que pesquisadoras feministas, buscavam, através dos chamados estudos sobre mulheres, desnaturalizar a condição da mulher na sociedade (SIMIÃO, 2000). Veja o que o autor diz a respeito: [...] nesse sentido era preciso encontrar conceitos que permitissem diferenciar aquilo que as mulheres tinham de natural, permanente, e igual em todas as épocas e culturas (o sexo) daquilo que dava base para a discriminação e, por ser socialmente construído, variava de sociedade para sociedade e podia mudar com o tempo (o gênero) (2000, p.4-5). Para Scott, "esse uso do termo 'gênero' constitui um dos aspectos daquilo que se poderia chamar de busca de legitimidade acadêmica para os estudos feministas, nos anos 80" (1990, p.75). Houve certa resistência por parte de algumas pesquisadoras em relação à utilização do termo gênero por se entender que "[...] o termo 'despolitizou' a ação do movimento feminista, trocando um sujeito político construído a duras penas 'A Mulher' por uma palavra bonita e pouco ameaçadora 'Gênero'"(SIMIÃO, 2000, p. 4). O autor diz que, por ter uma carga semântica mais leve, o termo "gênero" conseguiu adentrar em campos onde o termo "mulher" encontrava resistência (SIMIÃO, 2000). Assim, enfrentando oposição de alguns segmentos e angariando apoio de outros, "gênero" foi se popularizando dentro do mundo acadêmico e fora dele. Hoje amplamente difundido, é de complexa conceituação. O termo gênero vem sendo amplamente utilizado nos estudos acadêmicos, porém, existe uma corrente de teóricas/os, dentre as quais pode-se citar Butler (1998) e Costa (1998) que defendem a necessidade do feminismo falar para e em prol das mulheres. Esta corrente defende a recriação da categoria mulher e teme pelo futuro dos estudos de gênero ao ver a proliferação dos estudos da masculinidade. Nas palavras de Costa, “[...] não fosse suficiente a mulher ter virado gênero nos anos 80, vejo o gênero virando masculinidade no final dos anos 90. Temo que tenhamos voltado ao ponto de partida” (1998, p. 136). A autora sugere o retorno ao uso da categoria mulher de forma provocativa, considera a mulher “[...] entendida não como essência ontológica, nem mesmo no sentido restrito de mulher como essencialismo estratégico, mas na acepção ampla de posição política” (COSTA, 1998, p. 137). O retorno ao uso da categoria mulher evitaria o mau uso do termo gênero bem como o desaparecimento da mulher nos estudos sobre gênero. Esta corrente de pensadoras/es preocupa-se também com o esvaziamento da categoria mulher o que iria contra os interesses do movimento feminista. Esta discussão vem ocorrendo entre estudiosos/as de gênero nos últimos anos. A seguir apresentam-se algumas das formas de se entender o significado do termo e do que trata os estudos de gênero. Os diferentes conceitos de gênero Inicialmente "gênero" era utilizado praticamente como sinônimo de "mulher". Como dissemos anteriormente, o termo teve sua origem no universo acadêmico e foi incorporado por diversas disciplinas recebendo nuances diferentes em cada uma delas. "Assim, antropólogos, sociólogos, psicólogos, cientistas políticos foram dando cores diferentes ao conceito, conforme a bagagem conceitual específica que suas disciplinas traziam" (SIMIÃO, 2000, p.1). Neste sentido, COSTA (1994), cita diferentes leituras que se faz da interpretação de gênero: gênero como variável binária; gênero como papéis sexuais dicotomizados; gênero como uma variável psicológica, gênero como tradução de sistemas de culturas e gênero como relacional. Gênero como uma Variável Binária A interpretação de gênero como uma variável binária (Homem X Mulher) enfoca a diferença sexual como determinante na forma como homens e mulheres se comunicam, pois, segundo essa visão, homens e mulheres têm essências diferentes, coisa que refletiria na sua forma diferente de utilizar a linguagem os homens tenderiam a se expressar de forma mais direta e autoritária e as mulheres dominariam uma linguagem mais cheia de nuances (SIMIÃO, 2000). Ao se assumir essa conceituação estamos entendendo que todos os homens e todas as mulheres são iguais, sem levar em consideração a multiplicidade de masculinos e femininos. Não se está considerando ainda que os indivíduos (homens e mulheres) fazem uso diferente da linguagem, dependendo da situação em que se encontrem e de acordo com suas necessidades. Ao limitar a conceituação de gênero nas diferenças sexuais estamos deixando à margem todo o contexto sócio-histórico-cultural em que os indivíduos estão inseridos. Vejamos o que Costa diz a respeito: O enfoque um tanto obsessivo dos pesquisadores sobre diferenças sexuais, acrescido de uma confiança teórica numa conceitualização estática e dualista de gênero (que por sua vez está profundamente incrustada numa mistura de pressuposições biológicas e culturais sobre categorias sexuais), impediu-os de enxergar aqueles mecanismos sociais e estruturais que ao mesmo tempo impõem e abalam divisões e limites entre homens e mulheres (1994, p.146-147). Ao se prenderem nas diferenças sexuais, os pesquisadores deixam de considerar os demais fatores que contribuem na formação das identidades femininas e masculinas. Gênero como Papéis Dicotomizados Essa interpretação parte do pressuposto que "[...] a sociedade impõe certos papéis para os homens e outros para as mulheres e que vão determinar a forma como homens e mulheres se veem e como se relacionam uns com os outros" (SIMIÃO, 2000, p.1). Mais uma vez a diferença entre os sexos é ressaltada ao estabelecer papéis femininos e masculinos sem procurar entender como esses são definidos e quem os determina. Essa visão deixa de fora da análise as relações de gênero e poder e também pode criar estereótipos de homem e de mulher. Considera "[...] a mudança como algo que ocorre nos papéis de cada gênero [...] não como algo que surge dentro das relações entre os gêneros em consequência da interação dialética entre a prática social e a estrutura social" (COSTA, 1994, p. 149). Apesar da visão de gênero como papéis dicotomizados representar um avanço na forma de compreendê-lo por abandonar o fator biológico como determinante das ações e reações de homens e mulheres, continua a enfatizar dualismos que desviam o olhar das complexas relações sociais e não leva em consideração outros fatores que também contribuem para a definição de comportamentos como, por exemplo, raça, credo, etnia, etc. Gênero como uma Variável Psicológica Esta é uma outra opção que os teóricos (a maioria psicólogos) utilizam para conceituar gênero. Para esses teóricos, a diferença entre masculinidade e feminilidade se constituiria uma questão de grau. Os mesmos sugeriam a construção de uma escala onde o mais masculino ficaria em um dos extremos e o mais feminino no outro e todos os indivíduos se localizariam entre os mesmos. Os indivíduos que se localizassem no centro da escala, o que era considerado ideal, seriam os Andróginos. Porém, "[...] o exame cuidadoso da validade do constructo da escala não era capaz de determinar o que exatamente estava sendo mensurado, nem o que significava" (COSTA, 1994, p.151). O que é ser mais masculino? E ser mais feminino? Como definir o grau de masculinidade ou de feminilidade? Como se localizar dentro dessa escala? São algumas perguntas que podem ser feitas ao analisar esse método de interpretação de gênero. Costa conclui que: "[...] o gênero como força ou orientação psicológica, continuou fundamentando noções tradicionais de masculinidade e feminilidade e terminou por reificar ainda mais esta mesma distinção a que se propunha dissolver" (1994, p.152). Gênero como Tradução de Sistemas Culturais Outro grupo de teóricos sustenta a definição de gênero como sistemas culturais. Vejamos o que Carvalho e Nascimento dizem: Esse marco ressalta as diferenças entre homens e mulheres sustentados por dois sistemas imensuráveis que moldam, respectivamente, desde a infância, homens e mulheres. Essas trajetórias é que seriam as responsáveis pelas diferenças entre homens e mulheres a partir do fortalecimento de valores culturais, formando subculturas na sociedade (2001, p.4). Para esse grupo de teóricos homens e mulheres vivem em mundos separados. Já na infância, meninos e meninas são educados para agir e se comunicar de forma diferenciada. A eles são ensinados direitos e deveres diferentes, criando assim as subculturas e quando tentam comunicar-se entre si geralmente são malsucedidos (COSTA, 1994). Há que se tomar cuidado com a noção de mundos diferentes. Ela pode obscurecer a visão e impedir que se perceba de forma clara a dominação de um sobre o outro. Segundo Costa, "[...] o discurso sobre 'mundos separados' põe demasiada ênfase na diferença, negligenciando as importantes semelhanças entre os seres humanos" (1994, p.155). Essa perspectiva vê a cultura feminina como sendo homogênea, como se todas as mulheres fossem iguais, não levando em consideração classe, raça, etnia, idade, etc. Gênero como Relacional Essa visão de gênero tem como ponto de partida o sistema social de relacionamento em que os indivíduos estão inseridos, abandonando a visão binária e da divisão de papéis e permitindo uma concepção dinâmica de masculinidade e feminilidade de acordo com a situação social em questão. Também permite ver a pluralidade de homens e mulheres dentro de seu contexto social, levando em consideração os vários fatores que influenciam na formação da personalidade dos sujeitos (COSTA,1994). Ao privilegiar a pluralidade entende como categorias de gênero, além de homens e mulheres, também homossexuais, bissexuais e transexuais. Segundo Costa, "[...] os gêneros passam a ser entendidos como processos também moldados por escolhas individuais e por pressões situacionais compreensíveis somente no contexto da interação social" (1994, p. 161). Essa visão de gênero representa um avanço, pois leva em conta o contexto em que os indivíduos estão inseridos, as relações de poder, as crenças, as etnias, etc. fatores esses que são parte constituinte da identidade dos indivíduos e que contribuem para a compreensão de como homens e mulheres fazem suas opções e as comunicam ao mundo. Entender que o gênero expressa a relação entre pessoas, de sexos diferentes ou do mesmo sexo, significa perceber que “[...] o feminino só existe enquanto em relação ao masculino” (COSTA, 1998, p. 135) e vice-versa. Este posicionamento ou forma de compreender o gênero “[...] permite que se contemple uma gama maior de objetos de estudos, que se ouçam as múltiplas vozes de homens e mulheres e que se obtenha resultados mais próximos da realidade” (CASAGRANDE, 2005, p. 30). A visão do Núcleo de Gênero e Tecnologia (GeTec) O GeTec busca entender e elucidar como os múltiplos homens e as múltiplas mulheres se relacionam entre si e com a tecnologia. Busca também entender como os indivíduos fazem suas escolhas e como se dão as relações de poder entre os gêneros. Assume uma visão relacional de gênero por entender que as relações de gênero são construídas com base na interação social. Os gêneros são moldados por escolhas individuais e por pressões situacionais (COSTA, 1994). Não se pode esquecer que tanto mulheres quanto homens exercem inúmeros papéis em sua vida cotidiana. Participam da dinâmica social das mais diversas formas, transformam-se de acordo com diferentes situações vividas, não se comportam da mesma maneira o tempo todo e também o que é motivo para discriminação em uma situação não o é em outra. Referências BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pósmodernismo”. Cadernos Pagu, 11, Campinas, p. 11-42, 1998. CARVALHO, Marilia Gomes; NASCIMENTO, Tereza Cristina. Sensibilização do público masculino para discutir, compreender e modificar as relações tradicionais de gênero. Relatório apresentado a ADITEPP. 2002. MIMEO. CASAGRANDE, Lindamir Salete. Quem mora no livro didático? Representações de gênero nos livros de Matemática na virada do milênio. 2005, 190f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia), Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Centro Federal e Educação Tecnológica do Paraná, Curitiba, 2005. COSTA, Claudia de Lima. O leito de procusto: Gênero, linguagem e as teorias femininas. Cadernos Pagu, vol. 2, 1994. p.141-174. COSTA, Claudia de Lima. O tráfico de gênero. Cadernos Pagu, 11, Campinas, p. 127140, 1998. SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. 1995. p. 71-99. SIMIÃO, Daniel Schroeter. Gênero no mundo do trabalho: variações sobre um tema. Cadernos de Gênero e Tecnologia, v. 5, ano 2, 2005, p. 9-20.