Tipos Naturais ou Indivíduos? Primeiras Aproximações ao Problema do Estatuto Ontológico das Espécies Biológicas Celso Antônio Alves Neto, [email protected] Mestrando em Filosofia, UFMG Resumo: Um dos problemas mais persistentes em Filosofia da Biologia diz respeito à natureza ontológica das espécies biológicas. Tradicionalmente as espécies foram concebidas como classes (tipos) naturais, definidos por traços essenciais e uma estreita similaridade fenética e/ou genética. Entretanto, rupturas do pensamento darwinista impulsionaram uma reavaliação dessa categorização, dentre as quais podemos citar a crítica ao essencialismo e ao apelo à ideia mesma de similaridade na classificação biológica. Nesse contexto, surge a nova proposta de categorizar as espécies como indivíduos, isto é, entidades individuadas no espaço-tempo (entidades históricas) e dotadas de coesão (HULL, 1976). Qual é o apelo dessa proposta? Será que ela realmente se sustenta? Nosso texto pretende discutir essas questões, apresentando, ainda que de modo preliminar, determinada direção para sua investigação: o contraste com a teoria dos tipos clusters de propriedades homeostáticas (BOYD, 1999). Procuraremos mostrar que uma posição adequada acerca do estatuto ontológico das espécies – seja tomando-as como tipos ou indivíduos – envolve uma apreciação acerca dos ganhos explicativos que a adoção de cada uma das categorias em jogo oferece. 1. O estatuto ontológico das espécies na Biologia Evolutiva David Hull (1977:79) afirma que “espécie” é um termo teórico. Os aspectos semânticos, epistêmicos e ontológicos atrelados a esse termo estariam imersos no arcabouço teórico-científico do evolucionismo1, de modo a atenderem a sua demanda teórica e serem reformulados caso ele o exija. Nesse sentido, o filósofo atesta que desenvolvimentos recentes da teoria da evolução teriam não apenas gerado certas mudanças na definição do conceito de espécie biológica, mas também modificado o “estatuto ontológico das entidades por ele referido”. Por “estatuto ontológico” David Hull entende a categoria ontológica na qual certa entidade teórica se enquadra, determinando assim o tipo de entidade que ela é. Essa categorização reflete sua estrutura, organização e comportamento segundo um dado escopo teórico-científico, além de indicar os compromissos ontológicos que ela traz consigo. Desse modo, o problema do estatuto ontológico aplicado às espécies consiste genericamente em saber qual categoria ontológica melhor se aplica a elas, segundo a teoria da evolução pós-darwiniana. Que categorização dessas entidades é implicada pelo desenvolvimento do evolucionismo contemporâneo (HULL, 1977:80)? Esse problema se relaciona com a questão epistemológica sobre o papel das espécies na teoria da evolução, ou seja, sobre a função que essas entidades 1 Como afirma Hull (1978: 366), não existe um conjunto teórico fechado que possa ser chamado de “a teoria da evolução”. Ao falarmos de “teoria da evolução pós-darwiniana”, ou contemporânea, referimo-nos aqui simplesmente a princípios gerais, entendendo-os - como Hull - em um contexto de genética mendeliana. desempenham dentro da estrutura explicativa da teoria evolucionista. Para determinar que tipo de entidade as espécies são, deve-se considerar, antes de mais nada, o papel que exercem e como são descritas nessa estrutura explicativa. A partir de tais considerações procura-se esclarecer os compromissos ontológicos que o evolucionismo contemporâneo assume no tocante a elas. O grande interesse filosófico do problema tratado neste projeto é justamente tal esclarecimento. 2. Pensamento tipológico e pensamento populacional Ernst Mayr (1975:326-328; 1982:46-47) afirma que uma das principais contribuições do darwinismo para a compreensão do mundo biológico foi substituir o pensamento tipológico, ou essencialista, pelo chamado pensamento populacional. De acordo com o primeiro, agrupamentos biológicos (populações, espécies, classes e etc.) seriam definidos a partir de caracteres morfológicos e/ou genéticos essenciais. A posse desses caracteres seria necessária e suficiente para que organismos pertencessem a um determinado grupo, além de influenciar outros caracteres que eles poderiam ter. Por exemplo, a essência da espécie Canis Familiaris (cachorro doméstico) poderia ser certa composição de DNA, de modo que essa composição explicaria então o que faz de algo um cachorro doméstico. Isso corresponde ao papel explicativo da essência (SOBER, 1980:332). Além disso, essa essência influencia causalmente outras características dos organismos da espécie, como quando aquela composição de DNA dos cachorros domésticos determina a cor de suas pelagens. O pensamento tipológico assume ainda que para cada agrupamento haveria um “espécime-tipo” (RIDLEY, 2006:391), isto é, um organismo portador de todos os seus caracteres mais comuns. As variações morfogenéticas presentes no interior do grupo seriam justamente aqueles caracteres desviantes à constituição do espécime-tipo. Assim sendo, entende-se a variabilidade como uma mera distorção daquilo que seria mais “representativo” do grupo, de tal modo que ela não tenha importância alguma na sua explicação desse grupo. Mayr (1975:326) nota que o pensamento populacional enfatizou a preponderância empírica e a importância teórica da variabilidade orgânica, mostrando que o pensamento essencialista seria inadequado. Ao levar-se em conta a forte presença da variabilidade morfogenética no mundo biológico, os organismos poderiam ser descritos coletivamente apenas em termos estatísticos. Essa descrição não representaria a incapacidade humana de definir os limites precisos dos grupos, mas, ao contrário, refletiria a condição natural de sua formação. Agrupamentos biológicos se constituiriam a partir, e não a despeito, de diferenças individuais reais. Com isso, as variações não seriam meros desvios do espécime-tipo, mas sim fenômenos naturais que estão na base de explicação dos próprios grupos. Segundo Mayr (1975:328), só a partir do pensamento populacional seria ainda possível compreender corretamente o mecanismo evolutivo da seleção natural: este não operaria selecionando ou rejeitando novos tipos de espécie como um processo de tudo ou nada, mas atuaria sobre cada caractere particular dos organismos, determinando em termos estatísticos a “superioridade seletiva” desses organismos para as próximas gerações da população. Destacam-se dois pontos cruciais no pensamento populacional. Em primeiro lugar, a variabilidade passa a ser encarada como um fenômeno importante do mundo orgânico a partir do qual os agrupamentos serão formados e o processo evolutivo será compreendido. Em segundo lugar, o tipo de essencialismo descrito por Mayr mostra-se empírica e teoricamente implausível, exigindo que a caracterização dos agrupamentos seja repensada. Qualquer boa teoria sobre o estatuto ontológico das espécies na atualidade deverá acomodá-las. 3. A tese individualista das espécies biológicas de David Hull Não é nenhuma novidade para os filósofos da Biologia que as espécies tenham figurado tradicionalmente na categoria ontológica dos tipos naturais (RUSE, 1987) . Esta categoria denota agrupamentos naturais, em oposição a artificiais, definidos por uma estreita similaridade. Cada tipo seria dotado de uma essência determinada, tal que, presente necessária e suficientemente em seus membros, faria com que estes fossem similares entre si. Aplicada às espécies biológicas, essa concepção de tipos naturais filia-se ao pensamento tipológico, assumindo que essências morfogenéticas subjazem as espécies. Essas essências explicam porque a similaridade de tais entidades não seria mera invenção humana. Outro aspecto da referida categoria ontológica torna-se importante para David Hull. Segundo o filósofo, tipos naturais seriam individuados independentemente de condições espaço-temporais, mostrando-se “espaço-temporalmente irrestritos” (1978:364). Isso poderia ser ilustrado no caso dos elementos químicos, considerados exemplos paradigmáticos de tipos naturais: se não existisse mais nenhum átomo de número atômico 79, dir-se-ia que o tipo natural ouro teria desaparecido. Não obstante, poderia ser dito que o espaço da tabela periódica relativo a esse elemento continuaria reservado a ele. Bastaria então surgir um novo átomo de número atômico 79 para que o mesmo tipo químico ouro fosse instanciado, independente das condições espaçotemporais que levaram ao surgimento daquele átomo (1978:375). Em suma, o que individua o tipo natural ouro, permitindo a identificação de seus membros, é um caractere qualitativo (número atômico) e não sua localização no espaço e no tempo. Esse também é o caso das espécies biológicas, se elas são categorizadas como tipos naturais. Considerando os problemas já aludidos do pensamento tipológico, a concepção tradicional de tipos naturais não parece plausível quando aplicada ao caso das espécies. Importantes dificuldades vêem à tona não apenas da relação entre essa concepção e o essencialismo, mas, sobretudo, quando se compreende o papel teórico que as espécies passam a desempenhar na teoria evolucionista pós-darwiniana. Segundo Hull (1976:181), as espécies biológicas funcionam nessa teoria como unidades da evolução. Elas são as entidades que “evoluem” no mundo biológico, ou seja, que acumulam transformações substantivas ao longo de sua existência em uma grande escala de tempo medida em milhões de anos e dando origem a novas espécies. Afirma-se que as transformações evolutivas de uma espécie resultam da alteração na frequência de caracteres individuais (morfogenéticos e/ou comportamentais) no seu interior ao longo de inúmeras gerações. Para Hull, este processo ocorre majoritariamente segundo o mecanismo de seleção natural, tal que pressupõe o princípio de hereditariedade: só poderão influenciar na adaptação da espécie e, por conseguinte, ser selecionados aqueles caracteres que puderem ser passados adiante em linhagens genealógicas (ERESHEFSKY, 2001:110). Assim, a exigência da hereditariedade traz consigo a exigência de que espécies sejam necessariamente compostas por organismos causalmente conectados. A seleção só é efetiva e resulta na evolução das espécies caso os organismos estejam ligados por uma cadeia de ancestralidade. Embora esteja presente nelas, a similaridade não é um aspecto determinante para as espécies entendidas como unidades de evolução. O que realmente as caracteriza ontologicamente é o fato de serem linhagens genealógicas. Cada espécie possui um percurso de evolução próprio, tal que resulta da ação da seleção natural e de outros fatores evolutivos ao longo da cadeia de ancestralidade. Com isso, é justamente a relação histórico-causal entre os organismos da espécie que permite sua individuação, bem como define o que é para um organismo pertencer à determinada espécie. O que faz de algo um componente da espécie Canis Familiaris é sua inserção em uma dada cadeia histórica pela qual ele está conectado com os outros componentes dela. A similaridade entre os exemplares de Canis Familiaris é possível a partir da relação histórica entre eles, no sentido de que os mesmos caracteres serão disseminados nas sucessivas gerações da espécie. A historicidade das espécies biológicas é o argumento decisivo contra sua categorização enquanto tipos naturais. Como foi dito, aspectos espaço-temporais não desempenham papel na individuação de tipos, enquanto as espécies são necessariamente individuadas por um aspecto espaço-temporal: sua história evolutiva. Mas se não são tipos naturais, que tipo de entidade são as espécies? Hull (2006:365) afirma que as espécies biológicas são indivíduoS. Esta categoria ontológica refere-se a entidades particulares “localizadas no espaço e tempo, individuadas espaço-temporalmente e compostas de partes espaço-temporalmente organizadas” (HULL, 1976:177, tradução nossa). Indivíduos estão situados no quadro espaço-temporal e persistem de maneira particular nele, existindo ininterruptamente no ínterim de eventos que marcariam seu início e fim, nascimento e morte. Além disso, indivíduos seriam compostos por partes (co-existentes) organizadas nesse espaçotempo, de tal modo que se estabeleceria uma relação “parte-todo” entre a entidade e seus componentes. Se tipos naturais possuem membros ou instâncias, indivíduos possuem partes. Exemplos modelares dessa categoria ontológica seriam os próprios organismos, já que eles existem concreta e ininterruptamente no espaço-tempo desde o nascimento até sua morte. Organismos são compostos de partes organizadas e podem ser individuados por sua localização precisa naquele espaço-tempo. A natureza histórica das espécies sugere que elas se enquadrem na categoria de indivíduos, pois elas são individuadas espaço-temporalmente graças à sua história evolutiva. Entretanto, um argumento adicional corrobora para essa proposta: as espécies possuem unidade evolucionária (HULL, 2006:370), no sentido de que elas evoluem como um corpo coeso e suficientemente uniforme em seus caracteres (morfogenéticos e/ou comportamentais). Segundo o autor, essa unidade resulta de, pelo menos, dois mecanismos evolutivos bem conhecidos pelos biólogos, a saber: fluxo gênico e pressões seletivas comuns. O primeiro consiste na transferência de genes em uma população, transferência esta que resulta do intercruzamento e/ou migração. Trata-se de um mecanismo interno, dado que ele é estabelecido a partir da própria dinâmica das espécies. Já as pressões seletivas são pressões ambientais que influenciam na seleção dos genes e na adaptação dos organismos. A natureza externa desse mecanismo é evidente. Embora diferentes entre si, ambos os mecanismos tenderiam a uniformizar as transformações evolutivas no interior de uma espécie e população, tornando-a uma unidade coesa e distinta das demais a cada etapa de sua trajetória evolutiva. Os componentes (co-existentes) da espécie sofreriam a ação comum dos mesmos mecanismos evolutivos, resultando em uma mesma tendência evolucionária para a maior parte da espécie. Para o filósofo, essas considerações justificariam a ideia de que os organismos co-existentes de uma espécie estão em relação de parte-todo com ela. O apelo da proposta de categorizar as espécies como indivíduos está, antes de qualquer coisa, nos ganhos explicativos que ela pode oferecer. Isso fica patente na exposição de David Hull, na medida em que o filósofo afirma que sua proposta e os compromissos ontológicos que ela suscita são uma decorrência necessária de concepções evolucionistas atuais (HULL, 2006:365). Ao se apoiar sobre noções como a de “unidades de evolução” e “unidade evolucionária”, a tese de Hull reivindica ganhos importantes na explicação das espécies na Biologia Evolutiva. Um exemplo desses ganhos é justamente a recusa do pensamento tipológico e a acomodação da variabilidade orgânica. Ora, se as espécies são indivíduos compostos de “partes”, individuá-las com base na similaridade e evocar o essencialismo para isso não faz mais sentido. O que caracteriza ontologicamente uma espécie é a existência de certas relações histórico-causais. Assim, caracteres morfogenéticos não são capazes de definir o que é para algo pertencer à determinada espécie e ter as características que tem. Em contrapartida, a variabilidade é aceita como um dado natural importante e não como desvios indesejados. A unidade coesa que caracteriza tais entidades surge a partir de mecanismos evolutivos que pressupõem essa variabilidade. Além do mais, “partes” - os organismos de uma espécie - não precisam ser idênticas ou ter uma essência em comum. 4. A teoria dos tipos naturais de Richard Boyd Richard Boyd (1991, 1999a, 1999b) trouxe à tona uma nova concepção de tipos naturais denominada teoria dos Tipos Clusters de Propriedades Homeostáticas (HPC) que é importante nos debates atuais acerca do estatuto ontológico das espécies biológicas. Segundo Boyd (1999a:142), muitos tipos naturais relevantes para a Filosofia e para a Ciência seriam definidos por “uma família de propriedades (F) que estão contingentemente agrupadas (clustered) na natureza, no sentido que elas são coinstanciadas (co-occur) em um importante número de casos” (grifo nosso, tradução nossa). Não se trata aqui de assumir que o conjunto (F) seja formado por caracteres essenciais que embasam a individuação dos tipos naturais e estejam presentes em cada um de seus membros. Ao contrário, o conjunto (F) é formado por caracteres contingentes que não são nem necessários e nem isoladamente suficientes para a individuação do tipo. O que torna algo um membro do tipo natural é, em parte, o fato de co-instanciar apenas alguns caracteres relevantes do conjunto. Em outras palavras, cada membro deve possuir um subconjunto de (F) que seja representativo do tipo. Não é necessário que eles instanciem o mesmo subconjunto de propriedades de (F), mas na maioria dos casos eles terão muitas dessas propriedades em comum. Isso se deve à tendência das propriedades do tipo de serem instanciadas conjuntamente. Enfim, qualquer subconjunto de (F) pode ser instanciado por qualquer membro do tipo natural, contanto que suas propriedades possuam um determinado nível de importância para o tipo, o que é estabelecido mediante investigação empírica. A teoria de Boyd explica a co-instanciação das propriedades ao assumir que elas estão em uma relação de homeostase, ou seja, de equilíbrio auto-regulativo. Segundo o filósofo, tanto a presença de algumas propriedades em (F) favorece o aparecimento de outras, quanto a existência de certos mecanismos causais garante que elas ocorram conjuntamente. As propriedades - denominadas propriedades homeostáticas - estão reguladas umas com as outras no interior de cada membro do tipo. Tal regulação refletese ainda na similaridade desses membros, dado que eles possuem muitas propriedades de (F) em comum e estão sujeitos a ação dos mesmos mecanismos causais. É importante notar que esses mecanismos figuram na definição dos tipos naturais, sendo também responsáveis por sua individuação. O que torna algo um membro de determinado tipo é, além da mencionada instanciação de certas propriedades de (F), o fato de ele estar sujeito a mecanismos causais recorrentes aos outros membros do tipo. A partir dessas considerações, pode-se entender o próprio tipo natural como um fenômeno homeostático: trata-se de um agrupamento cujos membros exibem um padrão estável de propriedades e que, por isso, é ele mesmo estável. Boyd (1999a:164) considera as espécies biológicas como fenômenos dessa natureza. O equilíbrio e a regulação mútua existente entre as propriedades dos organismos biológicos produziriam uma estabilidade ao nível da espécie, de modo que estas se apresentem como corpos coesos. É interessante perceber que essa colocação de Boyd se aproxima do que David Hull entende por “unidades evolucionárias”. Ambas retratam a razoável uniformidade das espécies. Nesse sentido, nota-se particularmente que os mecanismos causais apontados por Richard Boyd como geradores da homeostase são os mesmos mecanismos que David Hull havia citado como responsáveis pela unidade evolucionária da espécie: fluxo gênico e pressões seletivas comuns. Esses mecanismos favorecem a co-instanciação de caracteres e, desde que atuem de modo comum sobre largas populações da espécie, tendem a uniformizá-la. Se quisermos comparar as propostas de Boyd e Hull neste ponto, deveremos esclarecer a diferença entre as noções de espécies enquanto “fenômenos homeostáticos” e “unidades evolucionárias”. Caberá investigar se essa diferença, se é que existe, influi no poder explicativo de cada uma das teorias, justificando assim a preferência de uma em relação à outra. Boyd (1999a: 167) afirma que a ancestralidade é um mecanismo de homeostase, pois por meio dela propriedades seriam transmitidas correlativamente ao longo de gerações e seriam co-instanciadas pelos organismos da espécie. Isso leva a crer que “ao permitir aspectos relacionais como ancestralidade comum, o HPC se conforma ao fato da história ser um fator importante para a identidade dos Taxa” (BRIGANDT, 2009:7, tradução nossa). Entretanto, admitir que a ancestralidade seja apenas mais um dos mecanismos da homeostase não implica que ela seja necessária à definição e individuação das espécies em geral. Outros mecanismos poderiam mostrar-se mais importantes a alguma espécie em particular. Segundo Ereshefsky e Matthen (2005), a historicidade das espécies importa ao HPC apenas como uma maneira de explicar a distribuição uniforme de caracteres no seu interior. Os autores afirmam que, em determinados contextos, por exemplo, Boyd daria preferência a uma individuação pautada na similaridade morfogenética em detrimento à ancestralidade. Se este é realmente o caso, então a teoria de Richard Boyd e a tese individualista discordam quanto à importância da história evolutiva para a determinação do que é ser uma espécie. Boyd estaria disposto a abrir mão dessa história em alguns casos. Neste ponto, mais uma vez, caberá investigar a diferença entre ambas as propostas. Interessa saber se, no que tange a compreensão da historicidade das espécies, essa diferença se reflete no poder explicativo de cada uma delas, corroborando para a preferência de uma em relação à outra. É importante notar que os mecanismos de homeostase não inibem as transformações evolutivas ao longo da história evolutiva da espécie. À primeira vista poder-se-ia argumentar que, ao favorecerem a uniformidade de caracteres, esses mecanismos dificultam a fixação de variações no interior da espécie, variações estas que são base de toda mudança evolutiva. Como discute Brigandt (2009), entretanto, alguns dos próprios mecanismos causais se encarregarão de transmitir essas variações às próximas gerações. Por exemplo, o fluxo gênico dissemina as variações vantajosas ao longo da história evolutiva da espécie, contribuindo para a paulatina incorporação de novos caracteres a ela. Assim sendo, a proposta de Boyd parece compatível com o próprio ponto de partida da tese de Hull, isto é, o fato das espécies serem entidades que acumulam substanciais transformações evolutivas ao longo do tempo a ponto de favorecerem o surgimento de novas espécies. Boyd parece assumir aqui o fundamento teórico mais básico da tese individualista - o papel teórico das espécies enquanto unidades de evolução - sem derivar dele uma ontologia individualista. Enfim, por que preferir a tese de Hull em oposição à teoria de Boyd? Uma decisão a esse respeito depende da análise do poder explicativo de cada tese e dos supostos ganhos que elas têm a oferecer em contraposição à sua rival. A recusa do pensamento tipológico não é, por exemplo, uma exclusividade da tese individualista. Para a teoria de Boyd também não existem caracteres essenciais cuja posse seja necessária e suficiente para que um organismo pertença à determinada espécie. Segundo esse filósofo, os organismos variam em sua composição, pertencendo à mesma espécie ao apresentarem alguns dos elementos do conjunto (F) – o conjunto de caracteres frequentes na espécie - e sofrerem a ação dos mesmos mecanismos de homeostase. A variação orgânica é incorporada na própria definição cluster do tipo natural, pois esta permite que os organismos tenham propriedades variadas sem deixarem de ser do mesmo tipo. A recusa do essencialismo e a acomodação da variabilidade não são mais ganhos explicativos para a tese de Hull do que para a tese de Boyd. 5. Compromissos ontológicos: seriam as espécies indivíduos ou tipos naturais? A diferença entre as duas propostas em questão deve ser rigorosamente traçada. Só assim a comparação entre elas tornará possível a mensuração do quanto cada uma é capaz de explicar o comportamento das espécies no contexto evolucionista contemporâneo. Só assim é possível questionar se a força explicativa da tese individualista justifica sua adoção e, consequentemente, a aceitação de seus compromissos ontológicos. Talvez devamos assumir essa ontologia individualista se, ao olharmos para a teoria da evolução atualmente, ela nos parecer vantajosa na explicação e compreensão dos fenômenos apresentados por esta teoria. Caso não favoreça essa compreensão, a tese de David Hull se mostrará de pouco ou nenhum interesse. BIBLIOGRAFIA BOYD, R. Homeostasis, species, and higher taxa. In: WILSON, R. (ed.) Species: New interdisciplinary essays. Cambridge: MIT Press, 1999a. p.141-185. BOYD, R. Kinds, complexity and multiple realization: comments on Millikan's historical kinds and the special sciences. Philosophical Studies, v.95, p.67- 98, 1999b. BRIGANDT, I. Natural kinds in evolution and systematics: metaphysical and epistemological considerations. 2009. 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