John Maynard Keynes e o ajuste fiscal no Brasil

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VALOR, 5/10/2015
John Maynard Keynes e o ajuste fiscal
no Brasil
Por Fábio Terra e Fernando Ferrari Filho
Diferente do que se julga, John Maynard Keynes não propunha déficits públicos a
qualquer preço: este era um instrumento de última instância, usado apenas se os
esforços de estabilização automática do ciclo econômico falhassem. Aliás, como para
Keynes as expectativas cumprem papel central na decisão de investimento, uma política
fiscal equivocada fomenta expectativas pessimistas e, logo, torna-se incapaz de
dinamizar a economia.
A partir dessa ideia, duas reflexões sobre a política fiscal do primeiro governo Dilma
Rousseff emergem: primeiro, a chamada "nova matriz macroeconômica",
contrariamente ao que costumam afirmar, não possui raiz keynesiana, principalmente
porque a política fiscal foi pragmaticamente expansionista, resultando na redução do
resultado primário/PIB de 3,1%, em 2011, para - 0,6% em 2014; segundo, a obra de
Keynes fornece insights à realização de uma reforma fiscal no Brasil que vá além do
ajuste temporário das contas públicas via contenção de gastos e aumento de impostos. É
sobre isso que discorremos a seguir.
Pensando na reconstrução econômica do Reino Unido no pós-Segunda Guerra, Keynes
propôs o orçamento público dividido em duas contas: corrente e de capital. A primeira
conteria despesas de custeio para o fornecimento de serviços públicos. A segunda
elencaria os investimentos públicos, que seriam 1- o estabilizador automático do ciclo e
2- notadamente contracíclicos. Assim, estas inversões diminuiriam em booms e
aumentariam aos primeiros sinais de esfriamento da economia.
É preciso desvinculação de receitas no âmbito corrente para que haja mais recursos
para os investimentos públicos.
Ademais, os investimentos públicos deveriam criar a infraestrutura necessária para
sustentar o investimento privado, não devendo com ele competir nem tampouco gerar
qualquer privilégio, sob pena de criar ineficiência - assim, algo diferente de subsidiar
setores via desoneração. Empresas públicas também não eram o norte de Keynes e se
fosse preciso criá-las, joint ventures entre as iniciativas pública e privada eram a opção,
tais quais as parcerias público-privadas.
Questão central no orçamento keynesiano é a necessidade de superávits constantes na
conta corrente e equilíbrio na de capital. Logo, responsabilidade fiscal é uma premissa
da política fiscal para Keynes. Déficits públicos gerariam pressões sobre os juros,
elevariam os riscos de o Estado ter que lançar dívida nova para rolar dívida passada fragilizando-se financeiramente - e poderiam despertar desconfiança sobre os rumos da
política econômica.
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Além disso, Keynes argumenta que o padrão de vida no longo prazo depende do
estoque de capital acumulado - por isso, sua proposta de orçamento preocupa-se com os
investimentos. Logo, o orçamento de capital deve oferecer condições para que a
iniciativa privada invista, requerendo, inclusive, gastos que melhorem a eficiência
produtiva, isto é, gerem maior produtividade.
As receitas públicas viriam majoritariamente dos impostos, que também deveriam
perseguir uma melhor distribuição de renda, sendo mormente cobrados sobre ganhos
dos rentistas e heranças. Com o tempo, as receitas dos investimentos públicos do
orçamento de capital trariam dividendos para o setor público, permitindo-o, assim,
reduzir impostos ou construir fundos parafiscais para a estabilização da economia.
Pois bem, o que resgatamos de Keynes para a política fiscal no Brasil? Inicialmente,
seria interessante ocorrer uma reforma fiscal que, de fato, segregasse o orçamento em
duas contas, uma de gastos correntes e outra de despesas de capital com investimentos,
mas diferentes dos moldes atualmente vigentes. É necessária a desvinculação de receitas
no âmbito corrente para destinarem-se mais recursos aos investimentos públicos. Assim,
impede-se que estes sejam os gastos de contingenciamento mais fácil e rápido, como é o
caso no atual ajuste.
Segundo, os investimentos deveriam ser decididos com uma ampla participação de
entidades empresariais e, como o plano plurianual, eles deveriam se estender além de
um mandato presidencial. Assim, reduz-se a influência do ciclo político nos
investimentos públicos e cria-se uma natureza de longo prazo para esta política pública.
Com maior participação em sua definição, a transparência e a comunicação da política
fiscal melhoram, tornando-a mais crível, atenuando os seus riscos de default e reduzindo
os juros de longo prazo, que são o custo de oportunidade dos investimentos produtivos.
Terceiro, em tempos de bonança constroem-se fundos de recursos para se evitar
recessões. Assim, a responsabilidade fiscal é constante e não é preciso medidas de
ajuste no afogadilho. Como a responsabilidade fiscal é uma premissa, a dívida pública
sob controle é uma resultante natural da condução fiscal keynesiana. Basta inexistir uma
onerosa política monetária para que a dívida pública não tenha dinâmica explosiva, o
oposto do que ocorre atualmente. No caso específico do Brasil, isso requer a reforma do
mercado Selic para se eliminar o mercado monetário anômalo que vem desde 1980.
Quarto, qualquer gasto do Estado envolve recursos públicos. Logo, deve haver
comprometimento do gestor para com o bem público e a irrestrita fiscalização de órgãos
independentes.
Esperando crescimento constante, porém estável, sem booms muito menos recessões,
Keynes confiava que empregos seriam criados e as pessoas dependeriam menos do
Estado e, então, da política fiscal. Longe de propor um Estado interventor, ele queria
que o Estado criasse um ambiente institucional propício ao investimento, condição
necessária para uma dinâmica estável de curto prazo e também para a expansão da
capacidade e da qualidade produtiva no longo prazo.
Para tanto, Keynes acreditava que a elaboração do orçamento e a ação do Estado
fundamentam-se na racionalidade humana, tanto do Executivo, que propõe e age,
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quanto do Legislativo, que sanciona. Infelizmente, o debate do ajuste fiscal no segundo
governo da presidente Dilma Rousseff nada parece ter dessa racionalidade.
Fábio Terra é professor da Universidade Federal de Uberlândia.
Fernando Ferrari Filho é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e pesquisador do CNPq
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