MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA Osvaldino Marra Rodrigues1 Resumo: Maurice Merleau-Ponty foi um filósofo que teve um profícuo diálogo com a tradição cartesiana e kantiana. Foi no embate entre essas duas tradições de pensamento que emergiram os traços centrais que compõem a obra merleaupontyana. Merleau-Ponty procurou, pelo método fenomenológico, demonstrar que não podemos compreender a vida humana simplesmente em termos de sujeitos individuais que vêm o mundo a partir de representações e, muito menos, que a compreensão do mundo poderia emergir da análise científica. A razão não é antes do mundo. Ao contrário, a razão emerge do mundo, está radicada no mundo. Palavras-chave: Merleau-Ponty, ontologização, Tradição filosófica. 1. INTRODUCAO A história da filosofia pode ser dividida, grosso modo, em três períodos: a) o metafísico; b) o epistemológico (ou transcendental; c) o semântico hermenêutico.2 A cada período correspondem questões especificas. No primeiro, o problema está circunscrito pela pergunta: O que há? No segundo, o conceito chave é a verdade, a objetividade e a validez, ou seja, o interesse filosófico passa a ser o conhecimento, e a disciplina fundamental, a epistemologia. A passagem da metafísica à epistemologia está ligada à questão: antes de nos perguntarmos pelo que há, devemos perguntar se podemos conhecer o que há. Por conseguinte, a filosofia passa a não ser mais um discurso sobre o que há, mas sobre as condições de possibilidade do conhecimento sobre o que há. O terceiro período é caracterizado pela distinção entre analítica e hermenêutica. Nossa proposta neste artigo estará voltada para o segundo e terceiro momentos, pois para compreender melhor o reposicionamento das questões filosóficas no século XX, especificamente os problemas levantados por Merleau-Ponty sobre a proeminência das ciências sobre o senso comum, será necessário reposicionar 1 Mestrando em Filosofia/UFPI. Publicações recentes:1. GONDIM, E., RODRIGUES, O. M. RAWLS E A HERANÇA DE HOBBES: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS – UM ESBOÇO. Revista Intuitio. , v.01, p.19 - 34, 2008. GONDIM, E. ; RODRIGUES, O. M. . John Rawls entre Kant e Hegel: um Esboço. A Parte Rei: Revista Internacional de Filosofia, v. 63, p. 1-13, 2009. 2 Cf. Porta, 2002, pp. 159 ss. Essa divisão carece, a depender do ponto de vista, de uma precisão maior. A ‘metafísica’, em Heidegger, é a palavra sinônima para Modernidade. Metafísica, pois, seria sinônimo de teoria do conhecimento que radica nas reflexões de Descartes. 1 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ os problemas oriundo da filosofia moderna. Mais especificamente, a centralidade do conhecimento científico que advém das filosofias de Descartes e Kant. Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) foi um filósofo que teve um profícuo diálogo e debate com a tradição cartesiana e kantiana. Sua formação lhe permitiu construir uma ponte entre a tradição francesa e a alemã como, aliás, ocorreu com alguns de sua geração, como Sartre e Lévinas. Foi no embate entre essas duas tradições de pensamento que emergiram os traços centrais que compõem a obra merleaupontyana. Seu diálogo com a tradição cartesiana e kantiana tornou-se muito mais profícuo na medida em que foi paulatinamente percebendo os problemas suscitados pela herança moderna. Dentre eles, e que mais nos interessará neste artigo, está a dicotomia entre sujeito do conhecimento e mundo, como se fossem duas realidades absolutamente distintas, base para a fundamentação do pensamento científico Ocidental, a metodologia por análise. Essa dicotomia, ou dualismo epistêmico, sustenta a tese de que o sujeito do conhecimento é distinto do conhecimento que, de certa forma, está submetido a aquele. Esse sujeito desprendido do conhecimento, oriundo da tradição epistemológica moderna, levou, gradativamente, a uma desqualificação do senso comum, desqualificando-o como sustentáculo epistêmico. Essa mudança levou à crença que a própria referência ao ser humano passou a ser a razão. Mas dizer que a razão passou a ser a tipologia humana ainda diz pouco. A epistemologia moderna vai mais longe, na medida em que o sentido, a compreensão acerca do mundo passa a ser da ordem do subjetivo. Na subjetividade, expressa nas ciências, o conhecimento é estabelecido pela razão. A instrumentalidade daí advinda relega como elemento de menor importância o nosso “ser no mundo”. Merleau-Ponty procurou, pelo método fenomenológico, demonstrar que não podemos compreender a vida humana simplesmente em termos de sujeitos individuais que vêm o mundo a partir de representações e, muito menos, que a compreensão do mundo poderia emergir da análise científica. A razão não é antes do mundo. Ao contrário, a razão emerge do mundo, está radicada no mundo. Numa clara referência e crítica a essa redução epistêmica, Merleau-Ponty afirmou, numa palestra radiofonada em 1943, que é “um traço não só dos filósofos franceses, mas ainda do que, um tanto vagamente, se chama o espírito francês, reconhecer à ciência e aos conhecimentos científicos um valor tal que toda a nossa experiência vivida do mundo se encontra, de uma penada, desvalorizada.”3 De acordo com a visão científica vigente, o “verdadeiro mundo” não é este que nos é oferecido pelos nossos sentidos, não. O mundo, o verdadeiro mundo, é aquele descrito pelas ciências. Conhecimento tem a ver com ciência, não com nossos sentidos. Para se entender como chegamos a essa perspectiva epistêmica do mundo deveremos, pois, refazer o caminho, procurando a fonte da modernidade, da subjetividade que 3 Merleau-Ponty, 2003, p. 21. 2 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ reduz o mundo à razão. A partir daí poderemos entender melhor qual é a crítica que Merleau-Ponty levanta contra a preponderância do projeto da modernidade. Ernesto Sabato certa feita afirmou que os “tempos modernos se edificaram sobre a ciência, e não há ciência senão sobre o geral. Porém como a prescindibilidade do particular é a aniquilação do concreto, os tempos modernos se edificaram aniquilando filosoficamente o corpo.”4 Ainda vivemos sob a vigência da epistemologia moderna, que pode ser entendida, de acordo com Lima Vaz, como o “universo simbólico formado por razões elaboradas e codificadas na produção intelectual do Ocidente nestes últimos quatro séculos e que se apresentam como racionalmente justificadas.”5 Ainda de acordo com Lima Vaz, essas razões elaboradas e codificadas “constituem o domínio das referências normativas do pensar e do agir para a imensa maioria dos chamados intelectuais do nosso tempo.”6 Uma das conseqüências dessa herança e vigência da epistemologia moderna é a ontologização da perspectiva desprendida, que “pode ser considerado a libertação da perspectiva da experiência corporificada.”7 Essa ontologização da razão é a raiz a partir da qual o “ser no mundo” foi invertido. A chamada “filosofia continental”, sobretudo a herdeira do Idealismo Alemão, desenvolveu, a partir da metade do século XIX, uma forte crítica ao dualismo operado pala perspectiva moderna. Herder e Hegel foram, sem dúvida alguma, figuras centrais para o reposicionamento da perspectiva do homem no mundo, dado que apontaram para os problemas oriundos da subjetividade, sobretudo a profunda dicotomia operada por Descartes e Kant em relação ao “mundo vivido”. A hermenêutica oriunda de Herder e Hegel influenciou significativamente as gerações posteriores na Alemanha e na Áustria. Figuras como Husserl, Heidegger, Wittgenstein e Merleau-Ponty só podem ser devidamente compreendidas quando entendemos melhor o campo do qual emergem suas críticas ao projeto filosófico da Modernidade. 2. A subjetividade 2.1. Descartes e Kant. Em que pesem as críticas, as questões suscitadas por Descartes e Kant não poderiam, contudo, serem descartadas como “sem sentido”. Mas deveriam ser reposicionadas dentro de novas exigências teóricas. A perspectiva teórica do conhecimento oriunda de Descartes fundou a metafísica moderna. Melhor, fundou, inclusive, a nova 4 Sabato, p. 144. Lima Vaz, 2002, p. 7. 6 Lima Vaz, 2002, p. 7. 7 Taylor, 1995, p. 66. 5 3 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ perspectiva do conhecimento acerca das coisas, acerca do mundo. Heidegger é enfático ao afirmar que na Metafísica, para ele sinônimo da modernidade, há uma ruptura no quadro de compreensão do mundo. Nesse aspecto, pois, não teria qualquer sentido opinar que a ciência moderna é mais exata que a da antiguidade. Assim, também não se pode dizer que a doutrina de Galileu da queda livre dos corpos é verdadeira, e que a de Aristóteles, que ensina que os corpos leves tendem para cima, é falsa; pois a concepção grega da essência do corpo, do lugar, assim como a relação entre ambos assenta numa outra interpretação do ente e condiciona, por isso, um modo correlativamente diferente de ver e de questionar os processos naturais.8 De acordo com Taylor, a perspectiva epistêmica cartesiana está na origem do quadro metafísico do desprendimento da razão, ou seja, gerou “uma visão de nós mesmos como consciência pura independente”9. Essa perspectiva epistemológica “supõe erroneamente ser possível ir ao cerne do que é conhecimento ser recorrer à nossa compreensão nunca plenamente articulável da vida e da experiência humana”10. Por conseqüência, “a certeza é algo que a mente tem de gerar por si mesma”11. Portanto, na filosofia de Descartes está explícito um dualismo hierárquico, no qual coisa pensante (res cogitans) e coisa extensa (res extensa) não compartilham uma e mesma natureza, mas pertencem à natureza distinta: o sujeito cognoscente não participa da esfera do mundo dos objetos e este não participa daquele, duas esferas teórico-referenciais distintas e não convergentes e no qual a razão tem primazia sobre a coisa extensa, puro objeto passivo. Descartes, pois, engendrou a “razão moderna”, a subjetividade. Por razão moderna deve-se entender a mudança operada na perspectiva da própria razão: esta se eleva como fonte e critério da verdade. Enquanto a verdade passa a ser compreendida a partir do critério da certeza. Em outras palavras: a razão moderna passa a ser a fonte e o critério constitutivo da verdade, elevando-se atomisticamente em relação ao mundo e o submetendo aos critérios por ela estabelecidos; ou seja, o critério de verdade emana e é constituído pela razão. Descartes é claro quando afirma: “Ainda que nosso espírito não seja a medida nem das coisas, nem da verdade, ele deve seguramente ser a medida do que afirmamos ou negamos.” 12 Em outras palavras, o critério da verdade é gerado pela razão mesma. Sob esse aspecto, podemos afirmar que o fundamento da verdade passa a ser da ordem do subjetivo, ou seja, é o critério oriundo da certeza posta pela coisa pensante que passa a determinar, sobe o prisma do método que exige certeza, o que é ou não verdade. Heidegger, 2002, pp. 98 – 99. Taylor, 1997, p. 225. 10 Taylor, 1995, pp. vii-viii. 11 Taylor, 1995, p. 4. 12 Descartes, 1952, p. 1317. 8 9 4 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ Essa metafísica do estranhamento entre razão e mundo, na qual este passa a ser mediado por aquela, atinge o ápice na interdição kantiana quanto ao conhecimento do objeto, do nôumeno, o problema da “coisa em si”. A interdição kantiana nada mais expressa senão a conseqüência da subjetividade oriunda da filosofia cartesiana. Mesmo sendo, prima facie, um crítico de Descartes, Kant permaneceu na esfera de influência cartesiana; mais ainda, aprofundou substantivamente a dicotomia entre sujeito e objeto. O próprio conceito de conhecimento, que podemos denominar inversão copernicana do conhecimento, nada mais expressa que a fonte do conhecimento procede do sujeito transcendental. Conhecimento, pois, é produzido pelo sujeito transcendental, o sujeito do conhecimento. Na lógica transcendental da filosofia kantiana, por exemplo, é colocado um conceito de ser que é definido através dos juízos sintéticos a priori, ou seja, é o homem quem impõe as suas categorias e intuições aos objetos. Ao contrário da filosofia grega, que não elaborou com precisão de que forma as coisas seriam determinadas, apenas deliberando que a constituição ontológica dos entes seria dada pela constituição dos juízos, Kant, através de sua “revolução copernicana” do conhecimento procurou suprir a lacuna deixada pelos gregos. Com isto, o modo de acessar os entes recebeu uma formulação que se tornou, posteriormente, paradigmática para a epistemologia. Em conseqüência, após a filosofia kantiana, o sujeito ocupa o centro de tudo e é ele quem imprime as condições de possibilidade para toda experiência possível através das suas formas de maneira a priori e transcendental13. Outro aspecto que merece especial atenção dentro desse novo quadro teórico estabelecido por Descartes e Kant: a linguagem não possui um critério intrínseco, mas está submetida ao serviço do empreendimento da certeza sobre a verdade, ou seja, a linguagem possui um status puramente instrumental. Por esses motivos, na perspectiva da Metafísica moderna o mundo se torna imagem, é objetivado como imagem. Nas palavras de Heidegger, “A era, que se determina a partir deste acontecimento, não é nova apenas numa consideração retrospectiva relativamente ao já passado, mas é ela que se coloca a si mesma propriamente como nova. Ser novo faz parte do mundo que se tornou imagem.”14 2.2. Husserll Se fosse perguntado a Merleau-Ponty qual o filósofo que mais influenciou seu percurso, quase certamente teríamos Edmund Husserl (1859-1938) como resposta, sobretudo as reflexões que este desenvolveu a partir do segundo decênio do século 13 14 Cf. Heidegger, 2008, pp. 189-214. Heidegger, 2002, p. 115. 5 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ XX. Em particular o conceito de “mundo vivido”, o Lebenswelt15. Se não compreendermos, pelo menos em linhas gerais, os problemas enfrentados pelo morávio, teremos dificuldade de abordar a obra merleaupontyana. Talvez o elemento que mais encantava a Merleau-Ponty fosse a intuição de Husserl de vincular teoria e prática, dado que, para os gregos, a filosofia tinha um cunho prático. Noutras palavras, a teoria deve servir para a vida, não o contrário – como ocorreu com a filosofia moderna. Husserl buscou, através da Fenomenologia, demonstrar que o conhecimento tem implicações práticas e que a redução ao “naturalismo” predominante na Modernidade é um desvio com sérias conseqüências: “é um contra-senso olhar a natureza circum-mundana como em si mesma alheia ao espírito e, em consequência, alicerçar as Ciências do Espírito nas Ciências da Natureza de modo a, pretensamente, tomá-las exatas”16. Ele procurava, pois, “uma clarificação das razões mais fundas da origem do funesto naturalismo, ou também, coisa que se mostrará como equivalente, do dualismo na interpretação do mundo que é característico da Modernidade.”17 O filósofo morávio elaborou a Fenomenologia com o intento de demonstrar que a filosofia é uma ciência rigorosa, procurando o rigor do raciocínio filosófico em relação às coisas do mundo real. Para tanto, ela deveria referir-se às coisas como se apresentam na experiência de consciência, estudadas em seus eidos (essências), despojadas das contingências do mundo empírico objeto da ciência. Husserl procurou, ainda, elaborar uma teoria do conhecimento que englobasse as ciências, como a matemática e a física. O que ele objetivava residia naquilo que se passa na experiência de consciência, através de uma descrição precisa do fenômeno. Assim, a fenomenologia, inicialmente, seria uma ciência descritiva, para, posteriormente, ser uma teoria transcendental da experiência, o seja, para além do método cientifico. O método fenomenológico de Husserl objetiva, em linhas gerais, ir às próprias coisas; melhor, retirar a coisa da interdição de Kant, o nôumeno. Esta é a regra primeira e fundamental do método fenomenológico. Por coisa entende-se, simplesmente, o dado, aquilo que se vê diante da consciência. Este dado chama-se fenômeno, no sentido de phainetai, que aparece diante da consciência. A análise fenomenológica husserliana é composta de reduções chamadas de eidética, transcendental e constituinte: a) redução eidética: distinção entre fatos e essências, onde estas são o sentido daqueles. No entanto, a essência não se revela independentemente do fato. 15 Cf. Husserl, 2006, pp. 73-82. Husserl, 2008, p. 15. 17 Husserl, 2008, p. 16. 16 6 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ b) redução transcendental: por ela o mundo é visto como correlato da consciência. Não há o em-si; ela se situa no nível da intencionalidade noética (operação consciente) noemático (objeto significativo). c) redução constituinte ou produtiva: nela o sujeito se reconhece como fonte dos fenômenos, como responsável do seu sentido, como liberdade. Como a investigação se ocupa apenas com as operações realizadas pela consciência, é necessário uma epoché, isto é, colocar em suspensão toda a existência efetiva do mundo exterior. Na prática da fenomenologia efetua-se o processo de redução fenomenológica o qual permite atingir a essência do fenômeno. De acordo com Husserl, existiriam dois pólos da experiência: noema e noesis. Noesis é o ato de perceber, enquanto noema é aquilo que é percebido18. Através desse método, a pessoa pode perfazer uma redução eidética, ou seja, os noemas podem ser reduzidos à sua forma essencial ou essência. Como resultado, alcança-se a consciência pura através da intencionalidade. A consciência é caracterizada pela intencionalidade, que é sempre a consciência de alguma coisa19. Essa intencionalidade é a essência da consciência e é representada pelo significado, o nome pelo qual a consciência se dirige a cada objeto. A consciência não é um sujeito real: seus atos são relações intencionais e o objeto é um ser dado a este sujeito lógico. Portanto, só existe consciência de alguma coisa, isto é, só existe um sujeito para o objeto e vice-versa. Com isto, a dicotomia do pensamento científico, inaugurada por Descartes20, que instanciam como coisas distintas o sujeito e o objeto, é superada: ao restringir o cogito como condição única de existência do mundo, o cartesianismo engessa-o em uma subjetividade. Quanto a Kant, ao distinguir fenômeno (aquilo que se conhece) de nôumeno (aquilo que não se conhece, a coisa em si, mas que pode ser pensado), mantém a idéia da metafísica tradicional da realidade como “Ser enquanto Ser”. Em contrapartida, Husserl afirma que não há nôumeno, não há o incognoscível, pois o que efetivamente existe é fenômeno, a presença das coisas diante da consciência, aquilo que se apresenta diretamente à consciência. Husserl conduz a experiência mundana para a atividade do sujeito transcendental, demonstrando que a sua atividade é constituidora de sentido e estabelecendo em sua experiência o aparecer do mundo e dos outros. Desta forma, o pensamento deixa de ser algo abstrato e passa a ser um pensamento engajado no mundo da existência. Portanto, ao se filosofar é pressuposto algo: uma existência aqui e agora. 2.3. Merleau-Ponty 18 Cf. Husserl, 2006, pp. 201-221. Cf. Sartre, 2003, pp. 87-89. 20 Cf. Heidegger, 1980, pp. 96-98. 19 7 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ Merleau-Ponty deixou como herança um pensamento que, numa primeira abordagem, poderá parecer sem nenhuma unidade sistemática. Percepção essa provocada e deliberadamente acentuada pelo próprio filósofo. Mas essa percepção não é de todo infundada, dado que a insuficiência das categorias tradicionais do pensamento parece vetar qualquer tentativa de construção de sistemas. Mas essa aparente assistematicidade encobre outra realidade. O pensamento de Mearleau-Ponty desdobrou-se de uma implacável consequência lógica, se se pode assim expressar, do método por ele utilizado, a fenomenologia. Seu objetivo, nada modesto, foi constituir uma filosofia que superasse a dicotomia herdada do projeto filosófico da modernidade, ou seja, “joint l’extrême subjectivisme et l’extrême objectivism dans sa notion du monde ou de la rationalité”21. Além desse modesto projeto, buscou ultrapassar a herança de seus dois mestres, Husserl e Heidegger: “Par cette notion élargie de l’intentionnalité, la ‘compréhension’ phenomenologique se distingue de ‘l’intellection’ classique, qui est limitée aux ‘vraies et immuables natures’, et la phénomenologie peut devenir une phénoménologie de la gênese”22. Uma coisa, todavia, parece clara na trajetória intelectual de Merleau-Ponty: a crítica ao projeto da Modernidade, que desqualifica a dimensão do Lebenswelt. Merleau-Ponty negava veementemente a negação do enraizamento do homem no mundo, como se a razão fosse capaz de configurar-se e configurar o mundo, desprezando o próprio mundo do qual ela emerge e radica: É diante de nós, na coisa onde somos colocados por nossa percepção, no diálogo em que somos lançados por nossa experiência do outro, num movimento cujas molas não são conhecidas por nós em sua totalidade, que se encontra o germe da universalidade ou a ‘luz natural’, sema as quais não haveria conhecimento. 23 Sua filosofia caracteriza-se, pois, por um procedimento metodológico de conhecimento que procura compreender o homem como ser-no-mundo. Entretanto, mundo não tem a conotação realista, como algo que pode ser descrito analiticamente, passivamente. Por este motivo Merleau-Ponty, num tom otimista, numa palestra proferida a 10 de setembro de 1951, em Genebra, chegou a afirmar que “Notre siècle a effacé la ligne de partage du ‘corps’ et de l’‘esprit’ et voit l avie humaine comme spitituelle et corporelle de part a part, toujours appuyée au corps, toujours intéressée, jusque das sés modes les plus charnels, aux rapports des personnes.”24 Afirma ainda que “Le xxe siècle a restaure et approfondi la notion de la chair, c’est-à-dire du corps anime”25. 21 Merleau-Ponty, 1945, p. XV. Merleau-Ponty, 1945, p.XIII. 23 Merleau-Ponty, 1984, p. 187. 24 Merleau-Ponty, 1960, p. 287. 25 Merleau-Ponty, 1960, p. 287. 22 8 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ Talvez hoje não tenhamos a sensibilidade suficiente para avaliar essas palavras, mas são palavras muito fortes e, na realidade, indicam as preocupações que constituíram a obra de maturidade de Merleau-Ponty. Dentre outras conseqüências, podemos sublinhar a crítica ao sujeito monológico da razão desprendida, dado que nossa compreensão de mundo nunca é da ordem do individual. O indivíduo, fruto da razão monológica desprendida não passa de uma miragem, um erro metodológico: Duas abstrações juntas não fazem uma descrição concreta. Não existem, de um lado, essas forças impessoais e, de outro, um mosaico de sensações que elas transformariam, existem unidades melódicas, conjuntos significativos vividos de uma maneira indivisa como pólos de ação e núcleos de conhecimento. 26 Charles Taylor, que recebeu forte influência da obra de Merleau-Ponty, explicou essas consequências de forma magistral, através do conceito de “background” do qual emerge nossa compreensão de mundo, nosso conhecimento: A compreensão advinda de um pano de fundo, que é por nós partilhada, e que está entrelaçada com nossas praticas e maneira de estabelecer relações, não é necessariamente algo que partilhamos como indivíduos. Isto é, ela pode ser parte de uma compreensão desse gênero de uma certa prática ou significado que não são meus porém nossos; e pode de fato ser ‘nossa’ de várias maneiras: como algo intensamente partilhado, que serve de coesão à comunidade; ou algo bem impessoal, em que apenas agimos como ‘todo mundo’. Fazer aflorar o pano de fundo permite-nos articular os modos pelos quais nossa força de adesão é não-monológica, uma forma em que a sede de certas práticas e compreensões é precisamente não o individuo, mas um dos espaços comuns intermediários.27 Quando falamos em corpo, em carne, queremos expressar e reconhecer o nosso enraizamento no mundo, “l’homme est au monde”28. Mais especificamente: “o homem não é um espírito e um corpo, mas um espírito com um corpo, e que só acede à verdade das coisas porque o seu corpo está como que nelas implantado” 29. Por conseguinte, as coisas não são apenas coisas, nôumeno, passividade ante a ciência que disseca e analisa. Ao contrário, mantemos uma relação ambígua como nosso entorno: o percebido tem uma relação vital conosco, constitutivos da nossa existência. É do e no corpo que nos situamos e situamos o mundo, mundo enquanto Lebenswelt. Se se pode falar apropriadamente de conhecimento, este somente pode emergir no mundo, mundo este que existe antes das nossas análises ou reflexões, que é a fonte de todos os nossos pensamentos e de todas as nossas percepções. Por isso mesmo nao é aceitável a interdição kantiana, dado que as coisas não são... diante de nós simples objetos neutros, que contemplaríamos; cada uma delas simboliza para nós uma certa conduta, lembra-no-la, provoca em nós 26 Merleau-Ponty, 2006, p. 258. Taylor, 1995, pp. 76-77. 28 Merleau-Ponty, 1945, p. v. 29 Merleau-Ponty, 2006, p. 32. 27 9 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ reações favoráveis ou desfavoráveis; é por isso que os gostos de um homem, o seu caráter, a atitude que tomou a respeito do mundo e do ser exterior, se lêm nos objetos com que escolheu rodear-se, nas cores que prefere, nos lugares de passeio que escolhe.30 Essa perspectiva fica ainda mais clara quando Merleau-Ponty afirma que “Nosso objetivo é compreender as relações entre a consciência e a natureza orgânica, psicológica ou mesmo social”31 Essa exigência merleaupontyana aponta para os limites das ciências que tendem a desqualificar o mundo como sentido, a não ser que se entenda que a ciência se desenvolve a partir de fenômenos, no sentido kantiano, da natureza32. Esta não é passiva ante a objetificação sonhada pela ciência. Ao contrário, o “concreto e o sensível indicam à ciência a tarefa de uma elucidação interminável; por isso, ele não pode ser considerado, à maneira clássica, como uma simples aparência destinada a ser ultrapassada pela inteligência científica”33. Aqui, pois, caberia a questão proposta por Merleau-Ponty: “Trata-se de saber se a ciência ofereceu ou oferecerá uma representação do mundo que seja completa, que se baste a si mesma, que de algum modo se feche sobre si própria de tal maneira que, além dela, já não tenhamos nenhuma questão válida a levantar”34. Essa crítica à ciência é reiterada na Fenomenologia da Percepção, onde Merleau-Ponty afirma: Tout l’univers de la science est construtit sur lê monde vécu et si nous voulons penser la science elle-même avec rigour, en apprécier exactement les sens et la portée, il nous faut réveiller d’abor cette expérience du mond dont elle est l’expression seconde. La science n’a pas et n’aura jamais le meme sens d’être que lê monde perçu pou la simple raison qu’elle en est une détermination ou une explication. 35 É plausível afirmar que o objetivo central das reflexões de Merleau-Ponty fosse “ultrapassar definitivamente a dicotomia clássica do sujeito e do objeto” 36. Para isso, teve de evitar os métodos tradicionais que redundavam nessa dicotomia, muitas vezes acentuando-a, como Descartes e Kant o fizeram magistralmente: Descartes et surtout Kant ont délié le sujet ou la conscience en faisant voir que je ne saurais saisir aucune chose comme existante si d’abord je ne m’éprouvais existant das l’act de la saisir, ils ont fait paraître la conscience, l’absolue certitute de moi pour moi, 30 Merleau-Ponty, 2003, p. 35. Merleau-Ponty, 2006, p. 1. 32 Cf. Kant, CRP, A 114. 33 Merleau-Ponty, 2003, p. 24. 34 Merleau-Ponty, 2003, p. 23. 35 Merleau-Ponty, 1945, pp. ii-iii. 36 Merleau-Ponty, 1945, p. 203. 31 10 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ comme la condition sans laquelle il n’y aurait rien du tout et l’act de liason comme le fondement du lié.37 Merleau-Ponty chama a atenção para um fato decorrente da postura de Descartes e Kant: “l’acte de liaison n’est rien sans le spectacle du monde qu’il lie”38. Este ponto é nevrálgico: tanto o cogito quanto o sujeito transcendental impõe ao mundo uma ligação. Mas esta é artificial, pois a medida imposta reduz o mundo a pura representação. Por este motivo, para atingir seu intento, Merleau-Ponty procurou uma metodologia que evite pensar o mundo e o sujeito como relações bilatérias, como coisas ontologicamente distintas. Se as relações entre sujeito e mundo forem inconciliáveis, duas realidades ontológicas distintas, “la certitute du monde serait d’emblée, chez Descartes, donnée avec celle du Cogito et Kant ne parlerait pas de ‘reversement copernicien’”39, o que não é o caso, dado que o “monde est là avant toute analyse que je puísse en faire et serait artificiel de le faire dériver d’une série des synthèses qui relieraint les sensations”40. É a essa “ligação artificial” do sujeito de representação e o mundo que podemos denominar o “calcanhar de Aquiles” da epistemologia moderna. Uma metodologia que acentua a dicotomia entre sujeito e mundo como realidades distintas, pressupõe a relação de causa e efeito, a causalidade como ponto de partida para a inquirição. Ora, onde pode ser constatado um efeito deve-se buscar a causa. Mas essa circularidade pressupõe um sujeito que seja capaz de analisar tanto a causa quanto o efeito. Esse sujeito torna-se um sujeito transcendental que confere sentido ao fenômeno analisado. Entretanto, esse sujeito torna-se coisa distinta dos fenômenos analisados. Logo, coisa pensante e coisa pensada são ontologicamente distintas, dois pólos irredutíveis, que encaminha o perquiridor fundamentar o real ora no sujeito do conhecimento ora do objeto, mantendo, assim, o dualismo. Em outras palavras, essa via remete aos incontornáveis problemas suscitados pelo realismo, naturalismo e idealismo quanto ao conhecimento. Por conseguinte, as vias que levam às conclusões materialistas, realistas e espiritualistas estão interditadas, dado que é “preciso na realidade entender a matéria, a vida e o espírito como três ordens dos significados”41. Essas realidades são irredutíveis entre si, constituem conjuntos significativos que não podem ser reduzidos nem ao “mundo exterior” nem à “vida interiror”. O critério, se podemos assim chamar, é da ordem da intersubjetividade radicada na percepção. Portanto, isso deve ser feito sem recorrer a “um critério exterior”, seja ele um cogito cartesiano ou o sujeito transcendental kantiano. 37 Merleau-Ponty, 1945, p. iii. Merleau-Ponty, 1945, p. iii. 39 Merleau-Ponty, 1945, p. iv. 40 Merleau-Ponty, 1945, p. iv. 41 Merleau-Ponty, 2006, p. 213. 38 11 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ O “verdadeiro cogito”, afirma Merleau-Ponty, “não define a existência do sujeito pelo pensamento que ele tem de existir”, como, igualmente, “não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo, e enfim não substitui o próprio mundo pela significação do mundo”42. Ora, essa tese nada mais reafirma senão a anterioridade do mundo sobre o pensamento que pensa o mundo, dado que o “mundo é anterior a qualquer análise que eu possa fazer dele”43. Por este motivo, continua Merleau-Ponty, “seria artificial o fazer derivar de uma série de sínteses que religariam as sensações”44. Artificialidade esta utilizada pela metafísica clássica, na medida em que relega a experiência perceptiva do mundo pela descrição deste. Logo, afirma Merleau-Ponty, “Le réel est à décrire, et non pas à construire ou à constituir”45. Descrição do real, não construção, eis o mote central do método fenomenológico. Essa afirmação ganha relevo quando Merleau-Ponty afirma que Je ne suis pas le résultat ou l’entrecroisement des multiples causalités qui déterminent mon corps ou mon ‘psychisme’, je ne suis pas me penser comme une partie du monde, comme le simple objet de la biologie, de la psychologie et de la sociologie, ni fermer sur moi l’univers de la science. Tout ce que je sais du monde, même par science, je lê sais à partir d’une expérience du monde sans laquelle les symboles de la science ne voudraient rien dire.46 O sujeito confere, sim, sentido ao mundo, mas não um sujeito epistemológico. Melhor, o mundo é sentido e percebido como unidade de sentido pela percepção. Em conseqüência, o sentido não é um dado a priori; é, ao contrário, fruto de um processo qualitativo dessa minha radicalidade no mundo. Como corpo, estou radicado no mundo e pelo corpo, enquanto corpo, o sentido de mundo vai sendo constituído: tudo que sei do mundo eu o seu a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual não consigo conferir unidade ao mundo. Este, explica MerleauPonty, “n’est pas un objet dont je possède par devers moi la loi de constituition, il est le milieu naturel et le champ de toutes mes pensées et de toutes mes perceptions explicites”47. Considerações finais Em linhas gerais, a unidade de sentido no e do mundo é possibilitada pela percepção é o centro da fenomenologia merleaupontyana. A percepção “não é uma ciência do mundo, nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada”, mas o “fond sur lequel tous les actes se détachents et elle est préssupposée par eux”48. É 42 Merleau-Ponty, 1945, p. viii. Merleau-Ponty, 1945, p. iv. 44 Merleau-Ponty, 1945, p. iv. 45 Merleau-Ponty, 1945, p. iv. 46 Merleau-Ponty, 1945, p. ii. 47 Merleau-Ponty, 1945, p. v. 48 Merleau-Ponty, 1945, p. v. 43 12 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ sobre esse pressuposto que Merleau-Ponty afirma que a “unidade da coisa não está atrás de cada uma de suas qualidades”, mas, ao contrário, “por cada uma delas é reafirmada, cada uma delas é a coisa inteira”49 Em contrário, as qualidades descritas analiticamente pela ciência não conseguem constituir essa inteireza da coisa, reduzindo-as a análises meramente descritivas. Essa descritividade, inclusive, só tem sentido se há uma percepção capaz de transformar o quantitativo em qualitativo, dado que cada qualidade da coisa é reveladora do seu ser. Coisas, portanto, não são meros objetos passivos diante de nós, mas constitutivos do nosso mundo. Essas coisas provocam e engendram o qualitativo que tece nosso mundo e “cada qualidade abre-se às qualidades dos outros sentidos”50. Ou, para reforçar essa relação dialética, os “sens communiquent entre eux em s’ouvrant à la structure de la chose”51. Portanto, como afirmou Merleau-Ponty: A nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada uma delas fala ao nosso corpo e à nossa vida, são revestidas de caracteres humanos e, inversamente, vivem em nós como outros tantos emblemas das condutas que apreciamos ou detestamos. O homem está investido nas coisas e as coisas estão nele investidas.52 Eis a insuficiência e a crítica à interdição kantiana, ou ao cogito cartesiano: ambos não conseguem lidar com essa facticidade ontológica. Tanto o cogito cartesiano quanto o sujeito transcendental kantiano toma a imagem pelo mundo. O mundo se torna imagem, imagem esta sobreposta artificialmente ao mundo do qual emergem o sujeito transcendental e o cogito. É sobre esse mundo como imagem que a ciência é construída. Por esta razão a ciência não consegue conferir sentido ao mundo. Este não pode ser reduzido a fórmulas ou conceitos, dado que eu “não poderia apreender a unidade do objeto sem a mediação corporal”53. Por conseguinte, a síntese do sentido do mundo não é pode ser dada a priori pelo cogito cartesiano ou o sujeito transcendental kantiano. Ao contrário, há uma anterioridade ontológica, não lógica, do sujeito da percepção que é corpo, corpo este no mundo. Sob este aspecto, pois, a “vérité n’‘habite’ pas seulement l’‘homme intérieur’, ou plutôt il n’y a pas d’homme interior, l’homme est au monde, cést dans le monde qu’il se connaît”54. Aqui, pois, há uma clara inversão do processo cartesiano e kantiano do conhecimento: o primado da percepção. Por este motivo Merleau-Ponty afirmou, categoricamente, que o “mundo é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas”. O verdadeiro cogito, 49 Merleau-Ponty, 2003, p. 35. Merleau-Ponty, 2003, p. 34. 51 Merleau-Ponty, 1945, p. 265. 52 Merleau-Ponty, 2003, p. 36. 53 Merleau-Ponty, 1945, p. 235. 54 Merleau-Ponty, 1945, p. v. 50 13 _________________________________________________________________ © Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169 © Osvaldino Marra Rodrigues. MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA. Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009 __________________________________________________________________________________ (a) – “não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem”; (b) – “não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo”; (c) – “não substitui o mundo mesmo pela significação mundo”55 Em outras palavras, o mundo é, conforme adjetivo merleaupontyano, “inépuisable”56. O mundo não é constituído por mim, mas é o meio e origem de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções. Por este motivo, apenas o percepciono e o descrevo. Em última instância, o homem é o que é porque está no mundo e é neste que ele se conhece. O mundo emerge como a fonte das minhas percepções e nunca o contrário: “Le monde est tout au dedans et je suis tout hors de moi”57. Essa característica é reveladora: não há, nem poderá haver teorias que consigam reduzir essa inesgotabilidade de sentido do mundo. O conhecimento, pois, é sempre transitório e insuficiente. Não há uma perspectiva de horizonte último que consiga exaurir o sentido do mundo. Este é pura abertura, horizonte de possibilidade inexaurível. Talvez seja por este motivo que Merleau-Ponty afirmou: “Na casa onde uma criança nasce, todos os objetos mudam de sentido, começam a esperar dela um tratamento ainda indeterminado, há um outro ali, uma nova história, breve ou longa, vem a ser fundada, um novo registro é aberto”58. Aqui reside, supomos, o cerne da crítica merleaupontyana à ciência. Para fechar o périplo, podemos agora retomar uma questão apresentada por Merleau-Ponty em suas preleções no rádio, no programa “Hora da cultura francesa”, em 1948 – mas o faremos transformando a frase numa pergunta: ... a ciência oferece ou oferecerá uma representação do mundo que seja completa, que se baste a si mesma, que de algum modo se feche sobre si própria de tal maneira que, além dela, já não tenhamos nenhuma questão válida a levantar 59? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, I L. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola, 2004. BONACCINI, J. A. Kant e o problema da coisa em si no Idealismo alemão. 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