Artículo en Word - Realidad y ficción

Propaganda
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA
Osvaldino Marra Rodrigues1
Resumo: Maurice Merleau-Ponty foi um filósofo que teve um profícuo diálogo com a tradição
cartesiana e kantiana. Foi no embate entre essas duas tradições de pensamento que
emergiram os traços centrais que compõem a obra merleaupontyana. Merleau-Ponty
procurou, pelo método fenomenológico, demonstrar que não podemos compreender a vida
humana simplesmente em termos de sujeitos individuais que vêm o mundo a partir de
representações e, muito menos, que a compreensão do mundo poderia emergir da análise
científica. A razão não é antes do mundo. Ao contrário, a razão emerge do mundo, está
radicada no mundo.
Palavras-chave: Merleau-Ponty, ontologização, Tradição filosófica.
1. INTRODUCAO
A história da filosofia pode ser dividida, grosso modo, em três períodos: a) o
metafísico; b) o epistemológico (ou transcendental; c) o semântico hermenêutico.2 A
cada período correspondem questões especificas. No primeiro, o problema está
circunscrito pela pergunta: O que há? No segundo, o conceito chave é a verdade, a
objetividade e a validez, ou seja, o interesse filosófico passa a ser o conhecimento, e a
disciplina fundamental, a epistemologia. A passagem da metafísica à epistemologia
está ligada à questão: antes de nos perguntarmos pelo que há, devemos perguntar se
podemos conhecer o que há. Por conseguinte, a filosofia passa a não ser mais um
discurso sobre o que há, mas sobre as condições de possibilidade do conhecimento
sobre o que há. O terceiro período é caracterizado pela distinção entre analítica e
hermenêutica.
Nossa proposta neste artigo estará voltada para o segundo e terceiro
momentos, pois para compreender melhor o reposicionamento das questões
filosóficas no século XX, especificamente os problemas levantados por Merleau-Ponty
sobre a proeminência das ciências sobre o senso comum, será necessário reposicionar
1
Mestrando em Filosofia/UFPI. Publicações recentes:1. GONDIM, E., RODRIGUES, O. M.
RAWLS E A HERANÇA DE HOBBES: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS – UM ESBOÇO.
Revista Intuitio. , v.01, p.19 - 34, 2008. GONDIM, E. ; RODRIGUES, O. M. . John Rawls entre Kant e
Hegel: um Esboço. A Parte Rei: Revista Internacional de Filosofia, v. 63, p. 1-13, 2009.
2
Cf. Porta, 2002, pp. 159 ss. Essa divisão carece, a depender do ponto de vista, de uma precisão maior. A
‘metafísica’, em Heidegger, é a palavra sinônima para Modernidade. Metafísica, pois, seria sinônimo de
teoria do conhecimento que radica nas reflexões de Descartes.
1
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
os problemas oriundo da filosofia moderna. Mais especificamente, a centralidade do
conhecimento científico que advém das filosofias de Descartes e Kant.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) foi um filósofo que teve um profícuo
diálogo e debate com a tradição cartesiana e kantiana. Sua formação lhe permitiu
construir uma ponte entre a tradição francesa e a alemã como, aliás, ocorreu com
alguns de sua geração, como Sartre e Lévinas. Foi no embate entre essas duas
tradições de pensamento que emergiram os traços centrais que compõem a obra
merleaupontyana. Seu diálogo com a tradição cartesiana e kantiana tornou-se muito
mais profícuo na medida em que foi paulatinamente percebendo os problemas
suscitados pela herança moderna. Dentre eles, e que mais nos interessará neste artigo,
está a dicotomia entre sujeito do conhecimento e mundo, como se fossem duas
realidades absolutamente distintas, base para a fundamentação do pensamento
científico Ocidental, a metodologia por análise.
Essa dicotomia, ou dualismo epistêmico, sustenta a tese de que o sujeito do
conhecimento é distinto do conhecimento que, de certa forma, está submetido a
aquele. Esse sujeito desprendido do conhecimento, oriundo da tradição
epistemológica moderna, levou, gradativamente, a uma desqualificação do senso
comum, desqualificando-o como sustentáculo epistêmico. Essa mudança levou à
crença que a própria referência ao ser humano passou a ser a razão.
Mas dizer que a razão passou a ser a tipologia humana ainda diz pouco. A
epistemologia moderna vai mais longe, na medida em que o sentido, a compreensão
acerca do mundo passa a ser da ordem do subjetivo. Na subjetividade, expressa nas
ciências, o conhecimento é estabelecido pela razão. A instrumentalidade daí advinda
relega como elemento de menor importância o nosso “ser no mundo”. Merleau-Ponty
procurou, pelo método fenomenológico, demonstrar que não podemos compreender
a vida humana simplesmente em termos de sujeitos individuais que vêm o mundo a
partir de representações e, muito menos, que a compreensão do mundo poderia
emergir da análise científica. A razão não é antes do mundo. Ao contrário, a razão
emerge do mundo, está radicada no mundo. Numa clara referência e crítica a essa
redução epistêmica, Merleau-Ponty afirmou, numa palestra radiofonada em 1943, que
é “um traço não só dos filósofos franceses, mas ainda do que, um tanto vagamente, se
chama o espírito francês, reconhecer à ciência e aos conhecimentos científicos um
valor tal que toda a nossa experiência vivida do mundo se encontra, de uma penada,
desvalorizada.”3
De acordo com a visão científica vigente, o “verdadeiro mundo” não é este que
nos é oferecido pelos nossos sentidos, não. O mundo, o verdadeiro mundo, é aquele
descrito pelas ciências. Conhecimento tem a ver com ciência, não com nossos sentidos.
Para se entender como chegamos a essa perspectiva epistêmica do mundo deveremos,
pois, refazer o caminho, procurando a fonte da modernidade, da subjetividade que
3
Merleau-Ponty, 2003, p. 21.
2
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
reduz o mundo à razão. A partir daí poderemos entender melhor qual é a crítica que
Merleau-Ponty levanta contra a preponderância do projeto da modernidade.
Ernesto Sabato certa feita afirmou que os “tempos modernos se edificaram
sobre a ciência, e não há ciência senão sobre o geral. Porém como a prescindibilidade
do particular é a aniquilação do concreto, os tempos modernos se edificaram
aniquilando filosoficamente o corpo.”4
Ainda vivemos sob a vigência da epistemologia moderna, que pode ser
entendida, de acordo com Lima Vaz, como o “universo simbólico formado por razões
elaboradas e codificadas na produção intelectual do Ocidente nestes últimos quatro
séculos e que se apresentam como racionalmente justificadas.”5 Ainda de acordo com
Lima Vaz, essas razões elaboradas e codificadas “constituem o domínio das referências
normativas do pensar e do agir para a imensa maioria dos chamados intelectuais do
nosso tempo.”6
Uma das conseqüências dessa herança e vigência da epistemologia moderna é
a ontologização da perspectiva desprendida, que “pode ser considerado a libertação
da perspectiva da experiência corporificada.”7 Essa ontologização da razão é a raiz a
partir da qual o “ser no mundo” foi invertido.
A chamada “filosofia continental”, sobretudo a herdeira do Idealismo Alemão,
desenvolveu, a partir da metade do século XIX, uma forte crítica ao dualismo operado
pala perspectiva moderna. Herder e Hegel foram, sem dúvida alguma, figuras centrais
para o reposicionamento da perspectiva do homem no mundo, dado que apontaram
para os problemas oriundos da subjetividade, sobretudo a profunda dicotomia
operada por Descartes e Kant em relação ao “mundo vivido”. A hermenêutica oriunda
de Herder e Hegel influenciou significativamente as gerações posteriores na Alemanha
e na Áustria. Figuras como Husserl, Heidegger, Wittgenstein e Merleau-Ponty só
podem ser devidamente compreendidas quando entendemos melhor o campo do qual
emergem suas críticas ao projeto filosófico da Modernidade.
2. A subjetividade
2.1. Descartes e Kant.
Em que pesem as críticas, as questões suscitadas por Descartes e Kant não poderiam,
contudo, serem descartadas como “sem sentido”. Mas deveriam ser reposicionadas
dentro de novas exigências teóricas. A perspectiva teórica do conhecimento oriunda
de Descartes fundou a metafísica moderna. Melhor, fundou, inclusive, a nova
4
Sabato, p. 144.
Lima Vaz, 2002, p. 7.
6
Lima Vaz, 2002, p. 7.
7
Taylor, 1995, p. 66.
5
3
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
perspectiva do conhecimento acerca das coisas, acerca do mundo. Heidegger é
enfático ao afirmar que na Metafísica, para ele sinônimo da modernidade, há uma
ruptura no quadro de compreensão do mundo. Nesse aspecto, pois, não teria
qualquer sentido opinar que a ciência moderna é mais exata que a da antiguidade.
Assim, também não se pode dizer que a doutrina de Galileu da queda livre dos corpos
é verdadeira, e que a de Aristóteles, que ensina que os corpos leves tendem para cima,
é falsa; pois a concepção grega da essência do corpo, do lugar, assim como a relação
entre ambos assenta numa outra interpretação do ente e condiciona, por isso, um
modo correlativamente diferente de ver e de questionar os processos naturais.8
De acordo com Taylor, a perspectiva epistêmica cartesiana está na origem do quadro
metafísico do desprendimento da razão, ou seja, gerou “uma visão de nós mesmos
como consciência pura independente”9. Essa perspectiva epistemológica “supõe
erroneamente ser possível ir ao cerne do que é conhecimento ser recorrer à nossa
compreensão nunca plenamente articulável da vida e da experiência humana”10. Por
conseqüência, “a certeza é algo que a mente tem de gerar por si mesma”11.
Portanto, na filosofia de Descartes está explícito um dualismo hierárquico, no
qual coisa pensante (res cogitans) e coisa extensa (res extensa) não compartilham uma
e mesma natureza, mas pertencem à natureza distinta: o sujeito cognoscente não
participa da esfera do mundo dos objetos e este não participa daquele, duas esferas
teórico-referenciais distintas e não convergentes e no qual a razão tem primazia sobre
a coisa extensa, puro objeto passivo. Descartes, pois, engendrou a “razão moderna”, a
subjetividade.
Por razão moderna deve-se entender a mudança operada na perspectiva da
própria razão: esta se eleva como fonte e critério da verdade. Enquanto a verdade
passa a ser compreendida a partir do critério da certeza. Em outras palavras: a razão
moderna passa a ser a fonte e o critério constitutivo da verdade, elevando-se
atomisticamente em relação ao mundo e o submetendo aos critérios por ela
estabelecidos; ou seja, o critério de verdade emana e é constituído pela razão.
Descartes é claro quando afirma: “Ainda que nosso espírito não seja a medida nem das
coisas, nem da verdade, ele deve seguramente ser a medida do que afirmamos ou
negamos.” 12 Em outras palavras, o critério da verdade é gerado pela razão mesma.
Sob esse aspecto, podemos afirmar que o fundamento da verdade passa a ser da
ordem do subjetivo, ou seja, é o critério oriundo da certeza posta pela coisa pensante
que passa a determinar, sobe o prisma do método que exige certeza, o que é ou não
verdade.
Heidegger, 2002, pp. 98 – 99.
Taylor, 1997, p. 225.
10
Taylor, 1995, pp. vii-viii.
11
Taylor, 1995, p. 4.
12
Descartes, 1952, p. 1317.
8
9
4
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
Essa metafísica do estranhamento entre razão e mundo, na qual este passa a
ser mediado por aquela, atinge o ápice na interdição kantiana quanto ao conhecimento
do objeto, do nôumeno, o problema da “coisa em si”.
A interdição kantiana nada mais expressa senão a conseqüência da
subjetividade oriunda da filosofia cartesiana. Mesmo sendo, prima facie, um crítico de
Descartes, Kant permaneceu na esfera de influência cartesiana; mais ainda, aprofundou
substantivamente a dicotomia entre sujeito e objeto. O próprio conceito de
conhecimento, que podemos denominar inversão copernicana do conhecimento, nada
mais expressa que a fonte do conhecimento procede do sujeito transcendental.
Conhecimento, pois, é produzido pelo sujeito transcendental, o sujeito do
conhecimento. Na lógica transcendental da filosofia kantiana, por exemplo, é colocado
um conceito de ser que é definido através dos juízos sintéticos a priori, ou seja, é o
homem quem impõe as suas categorias e intuições aos objetos.
Ao contrário da filosofia grega, que não elaborou com precisão de que forma as
coisas seriam determinadas, apenas deliberando que a constituição ontológica dos
entes seria dada pela constituição dos juízos, Kant, através de sua “revolução
copernicana” do conhecimento procurou suprir a lacuna deixada pelos gregos. Com
isto, o modo de acessar os entes recebeu uma formulação que se tornou,
posteriormente, paradigmática para a epistemologia. Em conseqüência, após a filosofia
kantiana, o sujeito ocupa o centro de tudo e é ele quem imprime as condições de
possibilidade para toda experiência possível através das suas formas de maneira a
priori e transcendental13.
Outro aspecto que merece especial atenção dentro desse novo quadro teórico
estabelecido por Descartes e Kant: a linguagem não possui um critério intrínseco, mas
está submetida ao serviço do empreendimento da certeza sobre a verdade, ou seja, a
linguagem possui um status puramente instrumental. Por esses motivos, na
perspectiva da Metafísica moderna o mundo se torna imagem, é objetivado como
imagem. Nas palavras de Heidegger, “A era, que se determina a partir deste
acontecimento, não é nova apenas numa consideração retrospectiva relativamente ao
já passado, mas é ela que se coloca a si mesma propriamente como nova. Ser novo faz
parte do mundo que se tornou imagem.”14
2.2. Husserll
Se fosse perguntado a Merleau-Ponty qual o filósofo que mais influenciou seu
percurso, quase certamente teríamos Edmund Husserl (1859-1938) como resposta,
sobretudo as reflexões que este desenvolveu a partir do segundo decênio do século
13
14
Cf. Heidegger, 2008, pp. 189-214.
Heidegger, 2002, p. 115.
5
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
XX. Em particular o conceito de “mundo vivido”, o Lebenswelt15. Se não
compreendermos, pelo menos em linhas gerais, os problemas enfrentados pelo
morávio, teremos dificuldade de abordar a obra merleaupontyana. Talvez o elemento
que mais encantava a Merleau-Ponty fosse a intuição de Husserl de vincular teoria e
prática, dado que, para os gregos, a filosofia tinha um cunho prático. Noutras palavras,
a teoria deve servir para a vida, não o contrário – como ocorreu com a filosofia
moderna.
Husserl buscou, através da Fenomenologia, demonstrar que o conhecimento
tem implicações práticas e que a redução ao “naturalismo” predominante na
Modernidade é um desvio com sérias conseqüências: “é um contra-senso olhar a
natureza circum-mundana como em si mesma alheia ao espírito e, em consequência,
alicerçar as Ciências do Espírito nas Ciências da Natureza de modo a, pretensamente,
tomá-las exatas”16. Ele procurava, pois, “uma clarificação das razões mais fundas da
origem do funesto naturalismo, ou também, coisa que se mostrará como equivalente,
do dualismo na interpretação do mundo que é característico da Modernidade.”17
O filósofo morávio elaborou a Fenomenologia com o intento de demonstrar
que a filosofia é uma ciência rigorosa, procurando o rigor do raciocínio filosófico em
relação às coisas do mundo real. Para tanto, ela deveria referir-se às coisas como se
apresentam na experiência de consciência, estudadas em seus eidos (essências),
despojadas das contingências do mundo empírico objeto da ciência.
Husserl procurou, ainda, elaborar uma teoria do conhecimento que englobasse
as ciências, como a matemática e a física. O que ele objetivava residia naquilo que se
passa na experiência de consciência, através de uma descrição precisa do fenômeno.
Assim, a fenomenologia, inicialmente, seria uma ciência descritiva, para,
posteriormente, ser uma teoria transcendental da experiência, o seja, para além do
método cientifico.
O método fenomenológico de Husserl objetiva, em linhas gerais, ir às próprias
coisas; melhor, retirar a coisa da interdição de Kant, o nôumeno. Esta é a regra
primeira e fundamental do método fenomenológico. Por coisa entende-se,
simplesmente, o dado, aquilo que se vê diante da consciência. Este dado chama-se
fenômeno, no sentido de phainetai, que aparece diante da consciência.
A análise fenomenológica husserliana é composta de reduções chamadas de
eidética, transcendental e constituinte:
a) redução eidética: distinção entre fatos e essências, onde estas são o sentido
daqueles. No entanto, a essência não se revela independentemente do fato.
15
Cf. Husserl, 2006, pp. 73-82.
Husserl, 2008, p. 15.
17
Husserl, 2008, p. 16.
16
6
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
b) redução transcendental: por ela o mundo é visto como correlato da
consciência. Não há o em-si; ela se situa no nível da intencionalidade noética
(operação consciente) noemático (objeto significativo).
c) redução constituinte ou produtiva: nela o sujeito se reconhece como fonte
dos fenômenos, como responsável do seu sentido, como liberdade.
Como a investigação se ocupa apenas com as operações realizadas pela consciência, é
necessário uma epoché, isto é, colocar em suspensão toda a existência efetiva do
mundo exterior. Na prática da fenomenologia efetua-se o processo de redução
fenomenológica o qual permite atingir a essência do fenômeno.
De acordo com Husserl, existiriam dois pólos da experiência: noema e noesis.
Noesis é o ato de perceber, enquanto noema é aquilo que é percebido18. Através desse
método, a pessoa pode perfazer uma redução eidética, ou seja, os noemas podem ser
reduzidos à sua forma essencial ou essência.
Como resultado, alcança-se a
consciência pura através da intencionalidade. A consciência é caracterizada pela
intencionalidade, que é sempre a consciência de alguma coisa19. Essa intencionalidade
é a essência da consciência e é representada pelo significado, o nome pelo qual a
consciência se dirige a cada objeto. A consciência não é um sujeito real: seus atos são
relações intencionais e o objeto é um ser dado a este sujeito lógico. Portanto, só existe
consciência de alguma coisa, isto é, só existe um sujeito para o objeto e vice-versa.
Com isto, a dicotomia do pensamento científico, inaugurada por Descartes20, que
instanciam como coisas distintas o sujeito e o objeto, é superada: ao restringir o cogito
como condição única de existência do mundo, o cartesianismo engessa-o em uma
subjetividade.
Quanto a Kant, ao distinguir fenômeno (aquilo que se conhece) de nôumeno
(aquilo que não se conhece, a coisa em si, mas que pode ser pensado), mantém a idéia
da metafísica tradicional da realidade como “Ser enquanto Ser”. Em contrapartida,
Husserl afirma que não há nôumeno, não há o incognoscível, pois o que efetivamente
existe é fenômeno, a presença das coisas diante da consciência, aquilo que se
apresenta diretamente à consciência.
Husserl conduz a experiência mundana para a atividade do sujeito
transcendental, demonstrando que a sua atividade é constituidora de sentido e
estabelecendo em sua experiência o aparecer do mundo e dos outros. Desta forma, o
pensamento deixa de ser algo abstrato e passa a ser um pensamento engajado no
mundo da existência. Portanto, ao se filosofar é pressuposto algo: uma existência aqui
e agora.
2.3. Merleau-Ponty
18
Cf. Husserl, 2006, pp. 201-221.
Cf. Sartre, 2003, pp. 87-89.
20
Cf. Heidegger, 1980, pp. 96-98.
19
7
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
Merleau-Ponty deixou como herança um pensamento que, numa primeira abordagem,
poderá parecer sem nenhuma unidade sistemática. Percepção essa provocada e
deliberadamente acentuada pelo próprio filósofo. Mas essa percepção não é de todo
infundada, dado que a insuficiência das categorias tradicionais do pensamento parece
vetar qualquer tentativa de construção de sistemas.
Mas essa aparente assistematicidade encobre outra realidade. O pensamento
de Mearleau-Ponty desdobrou-se de uma implacável consequência lógica, se se pode
assim expressar, do método por ele utilizado, a fenomenologia. Seu objetivo, nada
modesto, foi constituir uma filosofia que superasse a dicotomia herdada do projeto
filosófico da modernidade, ou seja, “joint l’extrême subjectivisme et l’extrême
objectivism dans sa notion du monde ou de la rationalité”21. Além desse modesto
projeto, buscou ultrapassar a herança de seus dois mestres, Husserl e Heidegger: “Par
cette notion élargie de l’intentionnalité, la ‘compréhension’ phenomenologique se
distingue de ‘l’intellection’ classique, qui est limitée aux ‘vraies et immuables natures’,
et la phénomenologie peut devenir une phénoménologie de la gênese”22.
Uma coisa, todavia, parece clara na trajetória intelectual de Merleau-Ponty: a
crítica ao projeto da Modernidade, que desqualifica a dimensão do Lebenswelt.
Merleau-Ponty negava veementemente a negação do enraizamento do homem no
mundo, como se a razão fosse capaz de configurar-se e configurar o mundo,
desprezando o próprio mundo do qual ela emerge e radica:
É diante de nós, na coisa onde somos colocados por nossa percepção, no diálogo em
que somos lançados por nossa experiência do outro, num movimento cujas molas não
são conhecidas por nós em sua totalidade, que se encontra o germe da universalidade
ou a ‘luz natural’, sema as quais não haveria conhecimento. 23
Sua filosofia caracteriza-se, pois, por um procedimento metodológico de
conhecimento que procura compreender o homem como ser-no-mundo. Entretanto,
mundo não tem a conotação realista, como algo que pode ser descrito analiticamente,
passivamente. Por este motivo Merleau-Ponty, num tom otimista, numa palestra
proferida a 10 de setembro de 1951, em Genebra, chegou a afirmar que “Notre siècle
a effacé la ligne de partage du ‘corps’ et de l’‘esprit’ et voit l avie humaine comme
spitituelle et corporelle de part a part, toujours appuyée au corps, toujours intéressée,
jusque das sés modes les plus charnels, aux rapports des personnes.”24 Afirma ainda
que “Le xxe siècle a restaure et approfondi la notion de la chair, c’est-à-dire du corps
anime”25.
21
Merleau-Ponty, 1945, p. XV.
Merleau-Ponty, 1945, p.XIII.
23
Merleau-Ponty, 1984, p. 187.
24
Merleau-Ponty, 1960, p. 287.
25
Merleau-Ponty, 1960, p. 287.
22
8
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
Talvez hoje não tenhamos a sensibilidade suficiente para avaliar essas palavras,
mas são palavras muito fortes e, na realidade, indicam as preocupações que
constituíram a obra de maturidade de Merleau-Ponty. Dentre outras conseqüências,
podemos sublinhar a crítica ao sujeito monológico da razão desprendida, dado que
nossa compreensão de mundo nunca é da ordem do individual. O indivíduo, fruto da
razão monológica desprendida não passa de uma miragem, um erro metodológico:
Duas abstrações juntas não fazem uma descrição concreta. Não existem, de um lado,
essas forças impessoais e, de outro, um mosaico de sensações que elas
transformariam, existem unidades melódicas, conjuntos significativos vividos de uma
maneira indivisa como pólos de ação e núcleos de conhecimento. 26
Charles Taylor, que recebeu forte influência da obra de Merleau-Ponty, explicou essas
consequências de forma magistral, através do conceito de “background” do qual
emerge nossa compreensão de mundo, nosso conhecimento:
A compreensão advinda de um pano de fundo, que é por nós partilhada, e que está
entrelaçada com nossas praticas e maneira de estabelecer relações, não é
necessariamente algo que partilhamos como indivíduos. Isto é, ela pode ser parte de
uma compreensão desse gênero de uma certa prática ou significado que não são meus
porém nossos; e pode de fato ser ‘nossa’ de várias maneiras: como algo intensamente
partilhado, que serve de coesão à comunidade; ou algo bem impessoal, em que apenas
agimos como ‘todo mundo’. Fazer aflorar o pano de fundo permite-nos articular os
modos pelos quais nossa força de adesão é não-monológica, uma forma em que a sede
de certas práticas e compreensões é precisamente não o individuo, mas um dos
espaços comuns intermediários.27
Quando falamos em corpo, em carne, queremos expressar e reconhecer o nosso
enraizamento no mundo, “l’homme est au monde”28. Mais especificamente: “o
homem não é um espírito e um corpo, mas um espírito com um corpo, e que só acede
à verdade das coisas porque o seu corpo está como que nelas implantado” 29. Por
conseguinte, as coisas não são apenas coisas, nôumeno, passividade ante a ciência que
disseca e analisa. Ao contrário, mantemos uma relação ambígua como nosso entorno:
o percebido tem uma relação vital conosco, constitutivos da nossa existência. É do e
no corpo que nos situamos e situamos o mundo, mundo enquanto Lebenswelt.
Se se pode falar apropriadamente de conhecimento, este somente pode
emergir no mundo, mundo este que existe antes das nossas análises ou reflexões, que
é a fonte de todos os nossos pensamentos e de todas as nossas percepções. Por isso
mesmo nao é aceitável a interdição kantiana, dado que as
coisas não são... diante de nós simples objetos neutros, que contemplaríamos; cada
uma delas simboliza para nós uma certa conduta, lembra-no-la, provoca em nós
26
Merleau-Ponty, 2006, p. 258.
Taylor, 1995, pp. 76-77.
28
Merleau-Ponty, 1945, p. v.
29
Merleau-Ponty, 2006, p. 32.
27
9
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
reações favoráveis ou desfavoráveis; é por isso que os gostos de um homem, o seu
caráter, a atitude que tomou a respeito do mundo e do ser exterior, se lêm nos objetos
com que escolheu rodear-se, nas cores que prefere, nos lugares de passeio que
escolhe.30
Essa perspectiva fica ainda mais clara quando Merleau-Ponty afirma que “Nosso
objetivo é compreender as relações entre a consciência e a natureza orgânica,
psicológica ou mesmo social”31
Essa exigência merleaupontyana aponta para os limites das ciências que
tendem a desqualificar o mundo como sentido, a não ser que se entenda que a ciência
se desenvolve a partir de fenômenos, no sentido kantiano, da natureza32. Esta não é
passiva ante a objetificação sonhada pela ciência. Ao contrário, o “concreto e o
sensível indicam à ciência a tarefa de uma elucidação interminável; por isso, ele não
pode ser considerado, à maneira clássica, como uma simples aparência destinada a ser
ultrapassada pela inteligência científica”33. Aqui, pois, caberia a questão proposta por
Merleau-Ponty: “Trata-se de saber se a ciência ofereceu ou oferecerá uma
representação do mundo que seja completa, que se baste a si mesma, que de algum
modo se feche sobre si própria de tal maneira que, além dela, já não tenhamos
nenhuma questão válida a levantar”34.
Essa crítica à ciência é reiterada na Fenomenologia da Percepção, onde
Merleau-Ponty afirma:
Tout l’univers de la science est construtit sur lê monde vécu et si nous voulons penser
la science elle-même avec rigour, en apprécier exactement les sens et la portée, il nous
faut réveiller d’abor cette expérience du mond dont elle est l’expression seconde. La
science n’a pas et n’aura jamais le meme sens d’être que lê monde perçu pou la simple
raison qu’elle en est une détermination ou une explication. 35
É plausível afirmar que o objetivo central das reflexões de Merleau-Ponty fosse
“ultrapassar definitivamente a dicotomia clássica do sujeito e do objeto” 36. Para isso,
teve de evitar os métodos tradicionais que redundavam nessa dicotomia, muitas vezes
acentuando-a, como Descartes e Kant o fizeram magistralmente:
Descartes et surtout Kant ont délié le sujet ou la conscience en faisant voir que je ne
saurais saisir aucune chose comme existante si d’abord je ne m’éprouvais existant das
l’act de la saisir, ils ont fait paraître la conscience, l’absolue certitute de moi pour moi,
30
Merleau-Ponty, 2003, p. 35.
Merleau-Ponty, 2006, p. 1.
32
Cf. Kant, CRP, A 114.
33
Merleau-Ponty, 2003, p. 24.
34
Merleau-Ponty, 2003, p. 23.
35
Merleau-Ponty, 1945, pp. ii-iii.
36
Merleau-Ponty, 1945, p. 203.
31
10
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
comme la condition sans laquelle il n’y aurait rien du tout et l’act de liason comme le
fondement du lié.37
Merleau-Ponty chama a atenção para um fato decorrente da postura de Descartes e
Kant: “l’acte de liaison n’est rien sans le spectacle du monde qu’il lie”38. Este ponto é
nevrálgico: tanto o cogito quanto o sujeito transcendental impõe ao mundo uma
ligação. Mas esta é artificial, pois a medida imposta reduz o mundo a pura
representação. Por este motivo, para atingir seu intento, Merleau-Ponty procurou uma
metodologia que evite pensar o mundo e o sujeito como relações bilatérias, como
coisas ontologicamente distintas.
Se as relações entre sujeito e mundo forem inconciliáveis, duas realidades
ontológicas distintas, “la certitute du monde serait d’emblée, chez Descartes, donnée
avec celle du Cogito et Kant ne parlerait pas de ‘reversement copernicien’”39, o que
não é o caso, dado que o “monde est là avant toute analyse que je puísse en faire et
serait artificiel de le faire dériver d’une série des synthèses qui relieraint les
sensations”40. É a essa “ligação artificial” do sujeito de representação e o mundo que
podemos denominar o “calcanhar de Aquiles” da epistemologia moderna.
Uma metodologia que acentua a dicotomia entre sujeito e mundo como realidades
distintas, pressupõe a relação de causa e efeito, a causalidade como ponto de partida
para a inquirição. Ora, onde pode ser constatado um efeito deve-se buscar a causa.
Mas essa circularidade pressupõe um sujeito que seja capaz de analisar tanto a causa
quanto o efeito. Esse sujeito torna-se um sujeito transcendental que confere sentido
ao fenômeno analisado. Entretanto, esse sujeito torna-se coisa distinta dos fenômenos
analisados. Logo, coisa pensante e coisa pensada são ontologicamente distintas, dois
pólos irredutíveis, que encaminha o perquiridor fundamentar o real ora no sujeito do
conhecimento ora do objeto, mantendo, assim, o dualismo. Em outras palavras, essa
via remete aos incontornáveis problemas suscitados pelo realismo, naturalismo e
idealismo quanto ao conhecimento.
Por conseguinte, as vias que levam às conclusões materialistas, realistas e
espiritualistas estão interditadas, dado que é “preciso na realidade entender a matéria,
a vida e o espírito como três ordens dos significados”41. Essas realidades são
irredutíveis entre si, constituem conjuntos significativos que não podem ser reduzidos
nem ao “mundo exterior” nem à “vida interiror”. O critério, se podemos assim chamar,
é da ordem da intersubjetividade radicada na percepção. Portanto, isso deve ser feito
sem recorrer a “um critério exterior”, seja ele um cogito cartesiano ou o sujeito
transcendental kantiano.
37
Merleau-Ponty, 1945, p. iii.
Merleau-Ponty, 1945, p. iii.
39
Merleau-Ponty, 1945, p. iv.
40
Merleau-Ponty, 1945, p. iv.
41
Merleau-Ponty, 2006, p. 213.
38
11
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
O “verdadeiro cogito”, afirma Merleau-Ponty, “não define a existência do sujeito
pelo pensamento que ele tem de existir”, como, igualmente, “não converte a certeza
do mundo em certeza do pensamento do mundo, e enfim não substitui o próprio
mundo pela significação do mundo”42. Ora, essa tese nada mais reafirma senão a
anterioridade do mundo sobre o pensamento que pensa o mundo, dado que o
“mundo é anterior a qualquer análise que eu possa fazer dele”43. Por este motivo,
continua Merleau-Ponty, “seria artificial o fazer derivar de uma série de sínteses que
religariam as sensações”44. Artificialidade esta utilizada pela metafísica clássica, na
medida em que relega a experiência perceptiva do mundo pela descrição deste. Logo,
afirma Merleau-Ponty, “Le réel est à décrire, et non pas à construire ou à constituir”45.
Descrição do real, não construção, eis o mote central do método fenomenológico.
Essa afirmação ganha relevo quando Merleau-Ponty afirma que
Je ne suis pas le résultat ou l’entrecroisement des multiples causalités qui déterminent
mon corps ou mon ‘psychisme’, je ne suis pas me penser comme une partie du monde,
comme le simple objet de la biologie, de la psychologie et de la sociologie, ni fermer
sur moi l’univers de la science. Tout ce que je sais du monde, même par science, je lê
sais à partir d’une expérience du monde sans laquelle les symboles de la science ne
voudraient rien dire.46
O sujeito confere, sim, sentido ao mundo, mas não um sujeito epistemológico. Melhor,
o mundo é sentido e percebido como unidade de sentido pela percepção. Em
conseqüência, o sentido não é um dado a priori; é, ao contrário, fruto de um processo
qualitativo dessa minha radicalidade no mundo. Como corpo, estou radicado no
mundo e pelo corpo, enquanto corpo, o sentido de mundo vai sendo constituído: tudo
que sei do mundo eu o seu a partir de uma visão minha ou de uma experiência do
mundo sem a qual não consigo conferir unidade ao mundo. Este, explica MerleauPonty, “n’est pas un objet dont je possède par devers moi la loi de constituition, il est
le milieu naturel et le champ de toutes mes pensées et de toutes mes perceptions
explicites”47.
Considerações finais
Em linhas gerais, a unidade de sentido no e do mundo é possibilitada pela
percepção é o centro da fenomenologia merleaupontyana. A percepção “não é uma
ciência do mundo, nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada”, mas o
“fond sur lequel tous les actes se détachents et elle est préssupposée par eux”48. É
42
Merleau-Ponty, 1945, p. viii.
Merleau-Ponty, 1945, p. iv.
44
Merleau-Ponty, 1945, p. iv.
45
Merleau-Ponty, 1945, p. iv.
46
Merleau-Ponty, 1945, p. ii.
47
Merleau-Ponty, 1945, p. v.
48
Merleau-Ponty, 1945, p. v.
43
12
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
sobre esse pressuposto que Merleau-Ponty afirma que a “unidade da coisa não está
atrás de cada uma de suas qualidades”, mas, ao contrário, “por cada uma delas é
reafirmada, cada uma delas é a coisa inteira”49
Em contrário, as qualidades descritas analiticamente pela ciência não conseguem
constituir essa inteireza da coisa, reduzindo-as a análises meramente descritivas. Essa
descritividade, inclusive, só tem sentido se há uma percepção capaz de transformar o
quantitativo em qualitativo, dado que cada qualidade da coisa é reveladora do seu ser.
Coisas, portanto, não são meros objetos passivos diante de nós, mas constitutivos
do nosso mundo. Essas coisas provocam e engendram o qualitativo que tece nosso
mundo e “cada qualidade abre-se às qualidades dos outros sentidos”50. Ou, para
reforçar essa relação dialética, os “sens communiquent entre eux em s’ouvrant à la
structure de la chose”51. Portanto, como afirmou Merleau-Ponty:
A nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada uma delas fala ao
nosso corpo e à nossa vida, são revestidas de caracteres humanos e, inversamente,
vivem em nós como outros tantos emblemas das condutas que apreciamos ou
detestamos. O homem está investido nas coisas e as coisas estão nele investidas.52
Eis a insuficiência e a crítica à interdição kantiana, ou ao cogito cartesiano: ambos não
conseguem lidar com essa facticidade ontológica. Tanto o cogito cartesiano quanto o
sujeito transcendental kantiano toma a imagem pelo mundo. O mundo se torna
imagem, imagem esta sobreposta artificialmente ao mundo do qual emergem o sujeito
transcendental e o cogito. É sobre esse mundo como imagem que a ciência é
construída. Por esta razão a ciência não consegue conferir sentido ao mundo. Este não
pode ser reduzido a fórmulas ou conceitos, dado que eu “não poderia apreender a
unidade do objeto sem a mediação corporal”53.
Por conseguinte, a síntese do sentido do mundo não é pode ser dada a priori pelo
cogito cartesiano ou o sujeito transcendental kantiano. Ao contrário, há uma
anterioridade ontológica, não lógica, do sujeito da percepção que é corpo, corpo este
no mundo. Sob este aspecto, pois, a “vérité n’‘habite’ pas seulement l’‘homme
intérieur’, ou plutôt il n’y a pas d’homme interior, l’homme est au monde, cést dans le
monde qu’il se connaît”54. Aqui, pois, há uma clara inversão do processo cartesiano e
kantiano do conhecimento: o primado da percepção. Por este motivo Merleau-Ponty
afirmou, categoricamente, que o “mundo é o meio natural e o campo de todos os
meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas”.
O verdadeiro cogito,
49
Merleau-Ponty, 2003, p. 35.
Merleau-Ponty, 2003, p. 34.
51
Merleau-Ponty, 1945, p. 265.
52
Merleau-Ponty, 2003, p. 36.
53
Merleau-Ponty, 1945, p. 235.
54
Merleau-Ponty, 1945, p. v.
50
13
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
(a) – “não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele
tem”;
(b) – “não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do
mundo”;
(c) – “não substitui o mundo mesmo pela significação mundo”55
Em outras palavras, o mundo é, conforme adjetivo merleaupontyano, “inépuisable”56.
O mundo não é constituído por mim, mas é o meio e origem de todos os meus
pensamentos e de todas as minhas percepções. Por este motivo, apenas o percepciono
e o descrevo. Em última instância, o homem é o que é porque está no mundo e é neste
que ele se conhece. O mundo emerge como a fonte das minhas percepções e nunca o
contrário: “Le monde est tout au dedans et je suis tout hors de moi”57. Essa
característica é reveladora: não há, nem poderá haver teorias que consigam reduzir
essa inesgotabilidade de sentido do mundo. O conhecimento, pois, é sempre
transitório e insuficiente. Não há uma perspectiva de horizonte último que consiga
exaurir o sentido do mundo. Este é pura abertura, horizonte de possibilidade
inexaurível. Talvez seja por este motivo que Merleau-Ponty afirmou: “Na casa onde
uma criança nasce, todos os objetos mudam de sentido, começam a esperar dela um
tratamento ainda indeterminado, há um outro ali, uma nova história, breve ou longa,
vem a ser fundada, um novo registro é aberto”58. Aqui reside, supomos, o cerne da
crítica merleaupontyana à ciência.
Para fechar o périplo, podemos agora retomar uma questão apresentada por
Merleau-Ponty em suas preleções no rádio, no programa “Hora da cultura francesa”,
em 1948 – mas o faremos transformando a frase numa pergunta:
... a ciência oferece ou oferecerá uma representação do mundo que seja completa, que
se baste a si mesma, que de algum modo se feche sobre si própria de tal maneira que,
além dela, já não tenhamos nenhuma questão válida a levantar 59?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, I L. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo:
Parábola, 2004.
BONACCINI, J. A. Kant e o problema da coisa em si no Idealismo alemão. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003.
COSTA, C F. Estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
55
Merleau-Ponty, 1945, p. viii.
Merleau-Ponty, 1945, p. xii.
57
Merleau-Ponty, 1945, p. 467.
58
Merleau-Ponty, p. 466.
59
Merleau-Ponty, 2003, p. 23.
56
14
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
DAVIDSON, D, “Três variedades de conhecimento”. Disponível no sítio:
http://portal.filosofia.pro.br/fotos/File/davidson_tresvariedades.pdf
DESCARTES, René. Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1953.
DUTRA, L H A. Pragmática da investigação científica. São Paulo: Loyola, 2008.
EISLER, R. Kant-Lexicon. Paris: Gallimard, 1994.
GIANNOTTI, J A. Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig
Wittgenstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. Petropolis: Vozes, 2008.
_____. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
_____. Sein und Zeit. 4 aufl. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 2001.
_____. Holzwege. 6 aufl. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1980.
_____. Qu’est-ce qu’une chose? Paris: Gallimard, 1971.
HUSSERL, E. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida: Idéias e Letras, 2006.
IMAGUIRE, G; SCHIRN, M. Estudos em filosofia da linguagem. São Paulo: Loyola, 2008.
KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Hamburg: Meiner, 2003.
_____. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
LIMA VAZ, H., Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.
MERLEAU-PONTY, M. A estrutura do comportamento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_____. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
_____. Palestras. Lisboa: Edições 70, 2003.
_____. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
_____. Textos selecionados. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
_____. Signes. Paris: Gallimard, 1960.
_____. Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.
MOUTINHO, L. D. S. Razão e experiência: ensaio sobre Merleau-Ponty. Rio de Janeiro:
Edunesp, 2006.
MORENO, A R. Introdução a uma pragmática filosófica. Campinas: Edunicamp, 2005.
OLIVEIRA, M A. Reviravolta lingüística-pragmática da filosofia contemporânea. São
Paulo: Loyola, 1996.
PESCADOR, J H S. Princípios de filosofia del lenguaje. Madrid: Alianza, 1986.
PORTA, M A. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Loyola, 2002.
RICOEUR, P. A região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.
RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
SABATO, E., El escritor y sus fantasmas. 5 ed. Barcelona: Seix Barral, 2002.
SARTRE, J-P. La transcendance de l’Ego e autres textes phénomenologigues. Paris: Vrin,
2003.
_____. L’être et néant. Paris: Gallimard, 1943.
STEGMÜLLER, W. A filosofia contemporânea, vol. 1. São Paulo: EPU, 1977.
TAYLOR, C. Philosophical arguments. Cambridge: Harvard University Press, 1995.
15
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
MERLEAU-PONTY E A ONTOLOGIZAÇÃO: UMA INQUIRIÇÃO FENOMENOLÓGICA.
Osvaldino Marra Rodrigues. Revista Lindaraja, Número 23, agosto de 2009
__________________________________________________________________________________
_____. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997.
WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. 3 ed. Oxford: Blackwell Publishing, 2003.
16
_________________________________________________________________
© Revista Lindaraja. Número 23, agosto de 2009. www.realidadyficcion.es
http://www.realidadyficcion.es/Revista_Lindaraja/revistalindaraja.htm
Revista de estudios interdisciplinares. ISSN: 1698 - 2169
© Osvaldino Marra Rodrigues.
Download