Se a verdadeira filosofia é re-aprender a ver o mundo, então é preciso reexaminar a tradição e, a partir dela, abrir caminho para a reflexão. No decorrer de nossas leituras vamos percebendo que o seu interesse, entre tantos outros, é entrelaçar o sensível ao inteligível, entrelaçamento este que, mais do que simplesmente juntar, provoca uma tensão. Ainda, o de “lapidar” o conhecimento perceptivo para a visão (como o mais nobre dos sentidos filosóficos), já que ver é também uma maneira de descobrir as coisas, e, portanto uma outra maneira de trazê-las à expressão. “É uma forma bem fenomenológica de proceder, descobrir nas relações de conhecimento fundamentais a que falta a estrutura do saber propriamente dita – não porque esses fundamentos se imponham sem certeza, mas porque, anteriores e condicionantes, eles são mais certos do que a certeza, mais racionais do que a razão”4 Trazendo as palavras de Emmanuel Lévinas5 , vamos descobrindo de que forma MerleauPonty conduz seu pensamento. A via fenomenológica difere do que ele percebia como as duas posições supostamente antitéticas do realismo e do idealismo, ou, como ele mesmo dizia, dos “erros gêmeos”6. A filosofia de Merleau-Ponty parte da afirmação de que estamos no mundo e que este é mais velho que nós. Ele diz: “O que nos importa saber é precisamente o sentido de ser do mundo; a este propósito nada devemos pressupor, nem a idéia ingênua do ser em si, nem a idéia correlata de um ser de representação, de um ser para a consciência, de um ser para o homem: todas essas são noções que devemos repensar a respeito de nossa experiência do mundo, ao mesmo tempo em que pensamos o ser do mundo. Cabe-nos reformular os argumentos céticos fora de todo preconceito ontológico, justamente para sabermos o que é ser-mundo, o ser-coisa, o ser imaginário e o ser consciente”7. Merleau-Ponty não propõe desvincular a filosofia de toda uma tradição, mas sim, pensar e propor ao leitor um outro ponto de partida. Sendo, pois, uma filosofia que não possui uma origem nem no sujeito, nem no objeto, nem nas representações, nem na consciência, nosso filósofo pretende partir do fato de que, se tudo o que vemos está ao nosso alcance, é porque tanto o meu movimento de ver quanto o mundo visível fazem parte do mesmo Ser. Reformular os argumentos céticos é, pois, assumir que é preciso dar privilégio ao mundo percebido pelo homem concreto que vive a sua vida. Não é preciso buscar questões fora de nossa situação de ser no mundo, como antes era investigado. Tanto o pensamento racionalista, quanto a filosofia empirista tratam o sujeito perceptivo como “um lugar” que, percebendo o mundo, o descreve ora em termos de puras sensações, ora como estados mentais. Sobre a percepção, Merleau-Ponty diz: “Em primeiro lugar, ela não se apresenta como um acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar a categoria de causalidade, mas a cada momento como uma re-criação ou uma re-constituição do mundo. (...) Todo o campo do saber se instala nos horizontes abertos da percepção.”8 Nesta citação, Merleau-Ponty se opõe à noção tradicional de “percepção”. Podemos pensar a percepção, a partir de Merleau-Ponty, como um “movimento primordial” que situa o ser no mundo, 4 LÉVINAS, Emannuel. Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, p. 146. 5 6 Para facilitar nossa compreensão, gostaríamos de explicitar estes “erros gêmeos”. Entende-se por idealismo a tendência filosófica que consiste em reduzir toda existência ao pensamento que se tem dela. No caso de Descartes, este vincula a existência das coisas do mundo exterior à sua “existência” enquanto objeto do pensamento, isto é, enquanto passíveis de uma representação clara e distinta. Isto é dizer que o idealismo admite que o mundo exterior não existe “em si”. Por outro lado, entende-se por realismo, a tendência filosófica segundo a qual o ser é, por natureza, diferente do pensamento e não pode ser nem tirado do pensamento, nem exprimir-se em termos lógicos. A via fenomenológica trabalhada por Merleau-Ponty difere da forma de pensar dessas duas doutrinas na medida em que ambas evidenciam, cada uma à sua maneira, uma tentativa de anulação da interdependência que existe entre o mundo e o sujeito. 7 MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível, op.cit, p. 18. 8 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção, op.cit., p. 280.