O GESTOR MUNICIPAL DE SAÚDE – A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE E A RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ANA LUÍSA SOARES DE CARVALHO Procuradora do Município de Porto Alegre Introdução O presente trabalho tem por finalidade a análise da incidência da responsabilidade civil do Estado na execução de serviços médicos, ligados à prestação da saúde pública, considerando a exegese do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal. Em razão da amplitude do tema e da dificuldade de sistematização doutrinária ou científica da responsabilidade civil, utilizou-se da investigação das teorias da responsabilidade civil para enfocar a atuação do gestor municipal de saúde. O trabalho detém-se na exegese do artigo 37, parágrafo 6º., da Constituição Federal diante dos aspectos da responsabilidade civil dos serviços médicos e hospitalares. Deduzidas tais considerações, impende destacar determinadas peculiaridades do instituto da responsabilidade civil, com a finalidade de por em evidência sua característica mais marcante: buscar a fórmula de reparação dos prejuízos causados pela atuação do Gestor Municipal de Saúde na realização dos serviços médicos. A idéia de reparação A idéia de reparação é uma das mais velhas idéias morais da humanidade, dizia Ripert, citado por Caio Mário.1 A responsabilidade civil busca restaurar o equilíbrio desfeito, quer seja moral quer seja patrimonial, em razão da lesão de um direito tutelado. A responsabilidade civil constitui um dos temas de maior relevância jurídica da atualidade por sua surpreendente evolução e disseminação em todas as áreas das relações humanas e sociais, e, por isso, sua repercussão em 1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 4a. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979, Vol. III, p. 500. 2 todos os ramos do direito. Diante da sua abrangência ilimitada e capacidade de mutação em consonância com as novas demandas sociais, não é possível estabelecer um entendimento uniforme doutrinário e jurisprudencial quanto à definição de seu alcance, à enunciação de seus pressupostos e à sua própria textura, “tornando-se um dos árduos e complexos problemas jurídicos e de mais difícil sistematização”2. Por isso, a partir da idéia de reparação que sempre preponderou nas relações pessoais, o sistema jurídico cria um instrumento de garantia dos direitos subjetivos, fundamentado na idéia de culpa e, por decorrência, de penalidade. É a teoria subjetiva da responsabilidade civil. A responsabilidade civil modifica-se no seu fundamento, baseando o dever de reparar o prejuízo não só na culpa, hipótese em que será subjetiva, mas no risco, no qual passará a ser objetiva, ampliando-se as hipóteses de indenização. A objetivação da responsabilidade é fenômeno que começa na Idade Moderna, em plena revolução industrial, frente à introdução das máquinas, produção de bens em larga escala, progresso científico, maior circulação de pessoas e veículos, perigos à vida e à saúde humana, etc, concomitantemente com a necessidade de despersonalização da responsabilidade civil. Por este enfoque que não se fundamenta na culpa, mas na existência de uma lesão a um direito tutelado por uma atividade que impõe riscos, não se questiona mais quem é o responsável? A pergunta é: quem deve ressarcir?3 A exegese do artigo 37, §6º, da Constituição Federal A Constituição Federal de 1988 disciplinou a extensão da responsabilidade civil do Estado, no seu parágrafo 6° do artigo 37: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. A primeira conclusão que pode ser extraída do texto constitucional em exame é a adoção expressa da teoria do risco administrativo como fundamento da responsabilidade do Estado, ao condicionar a responsabilidade objetiva ao dano 2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 2a. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, vol. 71, p. 4. 3 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995 Vol. I, p. 3 decorrente da sua atividade administrativa. Ao determinar que o Estado só responde pelos danos que os seus agentes, nessa qualidade causarem a terceiros, evidenciou a necessária relação de causa e efeito entre a atividade pública e o dano, ou seja, a teoria do risco administrativo, para os que adotam as distinções da teoria do risco. Daí que o Estado não responderá pelos danos causados a outrem pelos seus servidores quando não estiverem no exercício de sua função ou agindo em razão dela. Não responderá, também, quando o dano decorrer de fato exclusivo da vítima, caso fortuito ou força maior e fato de terceiro4, quando tais causas excluírem o nexo de causalidade entre o dano e a atividade pública. Hely Lopes Meirelles, definindo a teoria do risco administrativo, identifica-a com a adotada na Constituição Federal, que pressupõe o nexo de causalidade entre a atividade pública e o dano, razão pela qual, fica excluída ou atenuada a responsabilidade, conforme o caso, com a constatação de causa diversa da atividade administrativa ou concorrência de causas, respectivamente. O citado jurista resume a orientação adotada pela nossa Constituição: “Aqui não se cogita da culpa da Administração ou de seus agentes, bastando que a vítima demonstre o fato danoso e injusto ocasionado por ação ou omissão do Poder Público. Tal teoria, como o nome está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compensar essa desigualdade individual, criada pela própria Administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, através do erário, representado pela Fazenda Pública. O risco e a solidariedade social são, pois, os suportes desta doutrina, que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz à mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194, da Constituição Federal de 1946. “Advirta-se, contudo, que a teoria do risco administrativo embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir ou atenuar a indenização. Isto, porque o risco administrativo não se confunde com o risco integral. O risco administrativo não 4 CAVALIEIRI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed., São Paulo. Malheiros, 2000, p. 166. 4 significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa, apenas e tão-somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização”5. A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público A redação do parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal alargou, incomensuravelmente, o campo de apreciação da responsabilidade objetiva por conta do Estado, estendendo-as às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público6. A análise do dispositivo constitucional, na obra de Hely Lopes Meirelles, sob a ótica das prestadoras de serviços públicos revela que o constituinte estabeleceu para todas as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus servidores, independentemente da prova de culpa no cometimento da lesão. “Firmou, assim, o princípio objetivo da responsabilidade sem culpa pela atuação lesiva dos agentes públicos. Em edições anteriores, influenciados pela letra da norma constitucional, entendemos excluídas da aplicação desse princípio as pessoas físicas e as pessoas jurídicas, que exerçam funções públicas delegadas, sob a forma de entidades paraestatais, ou de empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Todavia, evoluímos no sentido de que também estas respondem objetivamente pelos danos que seus empregados , nessa qualidade, causarem a terceiros, pois, como dissemos precedentemente (Cap. II, item I), não é justo e jurídico que a só transferência da execução de uma obra ou de um serviço originariamente público a particular descaracterize a sua intrínseca natureza estatal e libere o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente, criando maiores ônus de prova ao lesado”7. 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16a. ed., São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1991, p. 547-548. 6 BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, in Interesse Público, n. 6, 2000, p. 41. 7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16a. ed., São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1991, p. 551. 5 Todo o procedimento relativo às formas de delegação do serviço público, de bem ou de serviço, pode-se divisar a presença de dois atos conceitualmente distintos: deliberativo que é unilateral e autoritativo da Administração Pública e o ato de aceitação da entidade privada, em decorrência do qual vinculam-se reciprocamente, fixando-se os direitos e deveres das partes8. Este vínculo transfere às entidades privadas a obrigação da prestação do serviço público, e, com ele, os ônus da atividade, por força do dispositivo constitucional. Essas entidades de direito privado, enquanto prestadoras de serviços públicos, respondem em nome próprio, com o seu patrimônio, pelos danos causados a terceiros, e não o Estado por elas e nem com elas. Ou seja, não há responsabilidade solidárias entre os prestadores de serviços públicos e o ente público ao qual estão ligadas. Estão as entidades privadas prestadoras de serviços públicos submetidas ao regime jurídico público no que tange à responsabilidade civil perante terceiros, consoante a redação do dispositivo constitucional em apreço. Aliás, adita Cavalieri Filho, que o objetivo da norma constitucional foi estender aos prestadores de serviços públicos a responsabilidade objetiva idêntica a do Estado, atendendo reclamo da doutrina ainda sob o regime anterior que invocava a máxima: quem tem o bônus deve suportar o ônus9. A lógica de tal imputação deve-se ao fato de que a atividade é estatal e apenas foi transferida por ato de delegação ou concessão, por exemplo, porém conservando seu caráter originário. Além disso, o serviço público tem orientação definida pela Constituição, sendo o usuário o detentor do direito subjetivo ao recebimento de um serviço público ideal, com todas as garantias e benefícios inerentes à atuação pública. Nesta linha, tanto faz se a prestação do serviço é realizada direta ou indiretamente, por entidade privada, a garantia constitucional do parágrafo 6º do artigo 37 é pela prestação do serviço público em si. O referido dispositivo definiu que somente aqueles atos praticados no exercício da função pública seriam objeto de responsabilidade objetiva, até porque a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público não está vinculada apenas ao cometimento do Estado, podendo estabelecer negócios de natureza privada, decorrente de suas relações particulares e, por 8 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2a. ed., São Paulo, ed. Malheiros,1996, p. 148. 9 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed., São Paulo. Malheiros, 2000, p. 173. 6 isso, não podendo ser obrigada a se submeter a um regime de direito público10. Este só incide na realização da função pública. Não é possível, também, falar-se em responsabilidade solidária entre as entidades prestadoras de serviços públicos e o Estado, porque a solidariedade, como salienta Cavalieri Filho, só pode advir de lei ou do contrato, não existindo norma legal atribuindo solidariedade ao Estado com os prestadores de serviços públicos11. Entretanto, exauridos os recursos da entidade prestadora de serviço público, o Estado responde, subsidiariamente, pelos danos causados a terceiros. Porque, em se tratando de uma sociedade organizada sob o primado do Estado Democrático de Direito, não há como negar o dever do Estado responder pelo dano, de forma subsidiária. Acrescenta Romeu Bacelar de que se o dano existiu em função do munus público, e se seu caráter é anormal e especial, a responsabilidade objetiva persiste e o Estado responde subsidiariamente, com base nos mesmos fundamentos que o levam a responder quanto se trata de ato derivado de atuação direta do Poder Público12. Mais ainda, Cahali entende que, em razão do disposto no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal, o Poder Público concedente responde objetivamente pelos danos causados pelas empresas concessionárias, em razão da presumida falha da Administração na escolha da concessionária ou na fiscalização de sua atividade, desde que a concessão tenha por objeto atividade diretamente constitutiva do desempenho do serviço público.13 Responsabilidade civil nos serviços médicos A responsabilidade civil dos médicos, farmacêuticos, enfermeiros e dentistas está regulamentada pelo artigo 1.54514 do Código Civil, inserido no capítulo 10 BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, in Interesse Público, n. 6, 2000, p. 144. 11 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed., São Paulo. Malheiros, 2000, p. 174. 12 BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, in Interesse Público, n. 6, 2000, p. 46. 13 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2a. ed., São Paulo, ed. Malheiros,1996, p. 148. 14 Código Civil, art. 1545: “Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a 7 dos atos ilícitos. Como adverte Cavalieri Filho, a natureza de uma relação jurídica depende da sua essência, e não apenas da topologia da norma que a disciplina.15 Segundo o citado autor, trata-se de responsabilidade contratual se houver convenção, relação jurídica preexistente entre o médico e o paciente, mesmo que não escrita. Inexistindo contrato, a responsabilidade somente poderá ser aquiliana ou delitual: “Resta, todavia, uma vasta área para a responsabilidade médica extracontratual, como, por exemplo, nos casos de atendimento de emergência, estando o paciente inconsciente, ou quando o médico se recusa a atender ao paciente neste estado emergencial; tratamento desnecessário, cirurgia sabidamente indevidas, experiências médicas arriscadas etc.” 16 A responsabilidade do médico é contratual, não obstante a sua colocação no capítulo dos atos ilícitos. Aliás, segundo José guiar Dias, quando as duas ações, contratual e extracontratual, conduzem ao mesmo resultado, a confusão entre as duas espécies do mesmo gênero é falta meramente venial17, ainda que, mesmo sendo contratual a responsabilidade civil dos médicos, prescinde de estipulação escrita. O atendimento ao chamado do paciente já estabelece o contrato. E mais, considera como delitual a responsabilidade do médico na atuação sem prévia estipulação, como na relação com os familiares, e no procedimento contrário ao seu dever legal. Define como delitual, também, a ação quando, na ausência de qualquer contato, o médico age com imperícia ou negligência no tratamento, ou o recusa a pessoa em perigo iminente. Todavia, o caráter delitual da responsabilidade, no caso, não impede a invocação das regras contratuais, o que é sustentado por Savatier, em relação ao direito francês, salvo quando à prescrição e competência.18 A responsabilidade civil do médico é contratual, dominada pelos pressupostos clássicos da culpa, dano e nexo de causalidade. Somente nos casos de descumprimento de dever legal, a responsabilidade do médico terá natureza satisfazer o dano sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.” 15 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2ª ed., SP. 2000, ed. Malheiros, p. 272. 16 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 272. 17 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, p.253. 18 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, vol. I, p. 255. 8 extracontratual, ou delitual. E mais, mesmo tratando-se de responsabilidade contratual, não tem o condão de gerar a presunção da culpa, devendo esta ser comprovada pelo paciente ou familiares como forma de auferimento da indenização.19 Em realidade, não há divergência sobre a natureza da responsabilidade médica se admitido que, por sua peculiaridade, não obedece um sistema unitário, como observa Ruy Rosado de Aguiar: “Devemos admitir que a responsabilidade médica não obedece a um sistema unitário. Ela pode ser contratual, derivada de um contrato estabelecido livremente entre paciente e profissional, a maioria das vezes de forma tácita, e compreende as relações restritas ao âmbito da medicina privada, isto é, do profissional que é livremente escolhido, contratado e pago pelo cliente. Será extracontratual quando, não existindo o contrato, as circunstâncias da vida colocam frente a frente o médico e doente, incumbindo àquele o dever de prestar assistência, como acontece no encontro de um ferido em plena via pública, ou na emergência de intervenção em favor de incapaz por idade ou doença mental”.20 A relação da qual participa o médico servidor público, que atende em instituição de saúde pública, e também o médico contratado pela empresa para prestar assistência a seus empregados, é extracontratual, estando ambos obrigados a prestar o atendimento médico aos segurados em decorrência da relação jurídica de direito administrativo, no primeiro caso, de direito civil, no segundo, entre o médico e a instituição pública, ou empresa, respectivamente. 21 A distinção da natureza contratual ou extracontratual da responsabilidade médica não tem qualquer significado, segundo Ruy Stoco, pois o artigo 14, parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor22, ampliou, para o médico, o espectro probatório, cabendo ao reclamante provar-lhe a culpa, mesmo que o serviço tenha sido prestado em decorrência de contrato previamente estabelecido.23 O médico goza de independência na execução do contrato, que lhe dá 19 FRADERA, Vera Maria Jacob. Responsabilidade Civil dos médicos. In Ajuris, n. 55, 1992, p. 116- 139. 20 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. Revista dos Tribunais n. 718, p. 33. 21 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. Revista dos Tribunais n. 718, p. 33. 22 Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 14, § 4º: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa.” 23 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 68. 9 a possibilidade de empregar a sua liberdade na escolha dos meios técnico-científicos no tratamento do paciente. O contrato de prestação de serviços médicos é visto, por Alfredo Araújo Lopes da Costa e Flamínio Fávero24, como de locação de serviços, pois não há diferença entre o médico e outra categoria profissional. Caracterizar a natureza contratual da prestação de serviços médico de forma diferente é uma reminiscência da antiga concepção de que a medicina é um sacerdócio e, pois, a paga uma homenagem (honorários). A outra parte da doutrina25 recebe o contrato com a feição especial da assistência médica, que envolve proteção, cuidados, conselhos, exigindo do prestador uma consciência profissional ímpar e distinta do locador de serviços. Diz Cavalieri Filho que tendo em vista que o médico não se limita a prestar serviços estritamente técnicos, mas acaba sendo colocado numa posição de conselheiro, de guarda e protetor do enfermo e de seus familiares, parece correto o entendimento daqueles que sustentam ter a assistência médica natureza de contrato sui generis, e não de mera locação de serviços, consoante orientação adotada pelos Códigos da Suíça e da Alemanha.26 Natureza da obrigação. Sobre a responsabilidade profissional do médico, Nélson Hungria, em seus Comentários ao Código Penal, ilustra a orientação histórica do instituto: “Na Idade Média, penas severas eram aplicadas aos médicos que ocasionavam eventos letais. E não raras vezes imputava-se como culpa o que era apenas atestado de precariedade da arte de curar. Foi Montesquieu quem iniciou uma nova corrente de idéias no sentido de afastar de sobre a cabeça dos médicos a espada de Dâmocles da sanção penal. Desde então começou a ser reconhecida uma certa liberdade de iniciativa dos médicos e a necessidade de tolerância para com os erros devidos à própria imperfeição da ciência hipocrática”. 27 O objeto do contrato médico não é a cura, obrigação de resultado, mas 24 Conforme DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Vol. I, Forense, RJ, 1995, 10ª ed., p. 254 . 25 Conforme DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Vol. I, Forense, RJ, 1995, 10ª ed., p.254; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2ª ed., SP. 2000, ed. Malheiros, p. 273. 26 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2ª ed., SP. 2000, ed. Malheiros, p. 273. 27 Citado por CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2ª ed., SP. 2000, ed. Malheiros, p. 275. 10 a prestação de tratamento e cuidados conscienciosos e atentos às aquisições científicas, quanto à atualidade e eficácia das condutas adotadas. O que se quer dizer é que não se pode aceitar como satisfatória a conduta do médico que trata processo infeccioso com sangria, procedimento adotado até o século XIX. A obrigação de meio, formulada por Demogue28, encerra a promessa de emprego de procedimento diligente reputado, em princípio, como capaz de proporcionar determinado resultado. Implica em dever de atenção e diligência, visando a um fim que, todavia, não entra necessária e imperativamente nesse dever, podendo deixar de verificar-se, não obstante desempenhados satisfatoriamente os deveres do devedor. O resultado é abstraído, embora seja elemento orientador da conduta objeto do contrato. Os meios empregados tem o sentido de perseguição a um resultado desejado, embora a sua realização não seja a obrigação principal, mas o seu exaurimento. Ou seja, ainda que empregados todos os meios para a obtenção do resultado, com toda a técnica, diligência e atenção exigíveis, ele pode não ocorrer sem que isto implique em um inadimplemento contratual, pois a obrigação é instrumental (de meio), e não de resultado. Mesmo assim, pela condição humana, está o homem destinado a sofrer e morrer e, por isso, o fracasso na realização dos objetivos médicos não implica, por si mesmo, causa de dano ao enfermo. O médico, no exercício de sua profissão, luta incessantemente contra esta condição; os seus atos com relação ao paciente, visam a melhorar seu estado de saúde, empregando, neste objetivo, todos os seus conhecimentos e máxima diligência.29 Da mesma forma, devem ser ponderados os casos de agravamento do estado do doente após intervenção cirúrgica ou tratamento orientado pelo médico. Este fato, por si só, não constitui causa de responsabilidade para o médico, porquanto, além de constituir-se a obrigação do médico em obrigação de meios, há que se levar em consideração as condições do paciente, tanto as preexistentes ao ato cirúrgico, como as pós-operatórias, quando cada paciente reage de maneira distinta a uma intervenção ou tratamento. 28 Conforme DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, Vol. I, Forense, p. 284. 29 FRADERA, Vera Maria Jacob. Responsabilidade Civil dos médicos. In Ajuris, n. 55, 1992, p. 116-139. 11 O fato do ser humano estar predestinado a morrer não exime, contudo, o médico de responsabilidade, pois, ocorrendo falhas nestes cuidados, tem o paciente o direito de obter indenização pelo prejuízo sofrido. Para tanto, deverá demonstrar a culpa do médico e seu caráter determinante no fracasso do tratamento ou do ato cirúrgico, ou seja, que o dano sofrido tenha resultado de culpa do facultativo.30 A obrigação que o médico assume é a de proporcionar diagnóstico e tratamento de acordo com as regras e os métodos da profissão, incluindo aí os cuidados e conselhos, não se comprometendo a curar. Nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá-lo, mormente quando em estado grave ou terminal.31 Como obrigação de meios, exige do paciente a prova da inexecução da obrigação profissional. Excepciona-se o caso da cirurgia estética, que impõe uma obrigação de resultado em face da finalidade a que se propõe – de corrigir o que é entendido como uma imperfeição sob a ótica da beleza. É de ser ressaltado que, com relação à cirurgia estética, encerra esta especialidade duas atividades distintas entre si, quais sejam a cirurgia estética, propriamente dita, e a cirurgia reparadora, estando o cirurgião, no primeiro caso, sujeito a uma obrigação de resultado e, no segundo, a uma obrigação de meios. Se o médico não tiver condições de assegurar, ao paciente de uma cirurgia puramente estética o resultado almejado, deverá abster-se de realizar o ato cirúrgico. Em se tratando desta especialidade, portanto, os deveres de informação e de vigilância tem sua observância exigida de forma rigorosa.32 Culpa A responsabilidade civil do médico pelo insucesso do tratamento só ocorrerá mediante a prova de negligência, imperícia ou imprudência do profissional nos procedimentos adotados, cujo ônus é do paciente ou familiares. A prova da culpa é pressuposto essencial para o direito da vítima ao ressarcimento diante da natureza da obrigação do médico, como foi visto até então. Nesta ótica, cumpre destacar a distinção entre erro profissional e culpa. Segundo Cavalieri Filho, a culpa médica supõe uma falta de diligência ou de 30 FRADERA, Vera Maria Jacob. Responsabilidade Civil dos médicos. In Ajuris, n. 55, 1992, p. 116-139. 31 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed., São Paulo. 2000, ed. Malheiros, p. 273. 32 FRADERA. Vera Maria Jacob. Responsabilidade Civil dos médicos. In Ajuris, n. 55, 1992, p. 116-139. 12 prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, “conseqüência inelutável da falibilidade humana. E, embora não se possa falar em um direito ao erro, será este escusável quando invencível à mediana cultura médica, tendo em vista circunstâncias no caso concreto”.33 Sobre a necessária distinção entre erro profissional e culpa, Carvalho Santos faz a seguinte advertência: “os Tribunais não têm o direito de examinar, (...) se o médico afastou-se das regras de sua profissão, abordando a questão de ordem científica, de apreciação e de prática médica, não lhes sendo lícito, tampouco, decidir coisa alguma sobre a oportunidade de uma intervenção cirúrgica, sobre o método preferível a empregar, ou sobre o melhor tratamento a seguir. As questões puramente técnicas escapam à sua competência e devem se limitar a indagar-se, da parte do médico, se houve imprudência, negligência ou imperícia, notória e manifesta, consistente em erro grosseiro capaz de comprometer a reputação de qualquer profissão”.34 Não se deve punir a falta de inteligência, que é uma infelicidade e não um pecado. Entretanto, o profissional tem obrigação de dispor de conhecimentos adequados ao exercício de seu ofício, e que é justo que a lei defenda o povo contra a sua possível inabilidade, consoante José Aguiar Dias, citando Guálter Lutz35. Portanto, não é considerado como culpa o erro profissional. É que a imperfeição da ciência é uma realidade e, conseqüentemente, a escusa que tolera a falibilidade profissional, conforme ressalta Ruy Stoco.36 Responsabilidade civil do médico através dos serviços de saúde pública A análise da responsabilidade civil dos médicos que prestam serviços em postos e hospitais públicos por José Aguiar Dias consta do seguinte parágrafo: “Os médicos e demais funcionários dos hospitais e asilos públicos são considerados fora das regras do direito privado. Sua responsabilidade se aprecia, então, em função da 33 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed., São Paulo, ed. Malheiros, 2000, p. 275. 34 CARVALHO SANTOS. Código Civil Brasileiro Interpretado. 7ª ed., ed. Freitas Bastos, v. XXI, p. 260- 261. 35 DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, Vol. I, p. 283. 36 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 67. 13 responsabilidade civil do Estado”37. Para Cavalieri Filho, se o erro ou falha médica ocorrer em hospital ou outro estabelecimento público, a responsabilidade será do Estado (Administração Pública), com base no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, respondendo o médico, se provada a sua culpa, em ação regressiva que contra ele mover a Administração. Em recente decisão proferida no recurso extraordinário RE 217.389-SP38, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à indenização por danos decorrentes de cirurgia oftalmológica realizada em hospital público com base na responsabilidade objetiva, preceituada no parágrafo 6° do artigo 37 da Constituição Federal, ainda que reconhecendo a natureza fortuita da conseqüência por não ter havido culpa da equipe médica na perda da visão esquerda da paciente por desvio ocular em decorrência do ato cirúrgico. Tal entendimento alcança paradigma distinto da natureza da obrigação para o estabelecimento da responsabilidade civil decorrente. A personalidade jurídica do prestador do serviço passa a ser o elemento de definição da responsabilidade, independentemente da realidade fática, da adequação do tratamento dispensado ou das excludentes da responsabilidade pela imprevisão das conseqüências, como é o caso da força maior e caso fortuito. “São fatos imprevisíveis aqueles eventos que constituem o que a doutrina tem denominado de ‘força maior’ e de ‘caso fortuito’. Não distinguiremos, porém, essas categorias, visto que há grande divergência doutrinária na caracterização de cada um dos eventos. Alguns autores entendem que a força maior é o acontecimento originário da vontade do homem, como é o caso da greve, por exemplo, sendo o caso fortuito o evento produzido pela natureza, como terremotos, tempestades, os raios e trovões. Outros dão caracterização exatamente contrária...Pensamos que o melhor é agrupar a força maior e o caso fortuito como fatos imprevisíveis, também chamados de ‘acaso’, porque são idênticos seus efeitos”39. Abordando o tema da assistência médica e os hospitais públicos, especificamente, Ruy Rosado questiona sobre a incidência da responsabilidade objetiva 37 DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, vol. I, p. 262. 38 Publicado no DJU de 24/05/2002 – Ata n° 16/2002 39 BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, in Interesse Público, n. 6, 2000, p. . 39 14 do Estado, independente mente da regularidade do serviço prestado, quando a atividade é exercida para benefício do cidadão, que recebe do serviço público o tratamento para sua doença. 40 Para não fugir do sistema adotado pelo texto constitucional, propõe solução através do exame do requisito da causa do dano: “Na hipótese em que há o resultado danoso, apesar dos esforços do serviço público para o tratamento do doente, elimina-se a responsabilidade do Estado sempre que a Administração pública demonstrar o procedimento regular dos seus serviços, atribuída a causa do resultado danoso a fato da natureza”.41 A solução amparada na doutrina de Yussef Said Cahali, para quem a exclusão da responsabilidade da Administração decorre da não-identificação de nenhum nexo de causalidade entre o evento danoso e a atividade ou omissão do Poder Público42, é conciliadora, buscando seus próprios argumentos dentro da estrutura da teoria da responsabilidade objetiva. E, por este caminho, também se chega na exclusão da responsabilidade civil do Estado pela assistência médica prestada à contento, ainda que o resultado da prestação do serviço não alcance a cura. Mas, estando no âmbito da responsabilidade civil objetiva, o ônus da prova da regularidade da prestação do serviço público é da instituição pública, enquanto se trata de excludente de direito subjetivo.43 Em sentido diferente quanto a causa de exclusão da responsabilidade da instituição pública de saúde e o ônus da prova da culpa, Ruy Stoco invoca a natureza 40 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. Revista dos Tibunais n. 718, p. 45: “Pode ser indenizado o dano produzido pela morte de um paciente internado em hospital público, para o qual a ciência recomendava a realização de cirurgia, efetuada com todos os cuidados e de acordo com as prescrições médicas, mas que mesmo assim se revelou inexitosa causando a morte? Melhor incluir tal hipótese no âmbito restrito da responsabilidade pela culpa do serviço, pois não parece razoável impor ao Estado o dever de indenizar dano produzido por serviço público cuja ação, sem nenhuma falha, tenha sido praticada para beneficiar diretamente o usuário”. 41 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. Revista dos Tibunais n. 718, p. 45. 42 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 2ª ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 1996, p. 55. 43 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. Revista dos Tibunais n. 718, p.46: “A melhor solução está no meio: não se atribui ao Estado a responsabilidade pelo dano sofrido por paciente que recorre aos serviços públicos de saúde, ainda quando provada a regularidade no atendimento dispensado, nem se exige da vítima a prova da culpa do serviço: em princípio, o Estado responde pelos danos sofridos em conseqüência do funcionamento anormal de seus serviços de saúde, exonerando-se dessa responsabilidade mediante a prova de regularidade do atendimento médicohospitalar prestado, decorrendo o resultado de fato inevitável da natureza”. 15 contratual da assistência à saúde, esclarecendo, em primeiro, que a restação de serviço tem sentido polissêmico e abarca grande gama de situações. Para o referido jurista: “será prestação de serviço tudo aquilo que não envolva o fornecimento de mercadoria, mas apenas o desenvolvimento de habilidades humanas, com aplicação de métodos e sistemas de trabalho”44. É inquestionável que a responsabilidade do prestador de serviço é, sempre, contratual, estando em antinomia45 com a teoria da responsabilidade objetiva, quer ela esteja assegurada pela Constituição Federal (art. 37, § 6º), quer pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 14). No caso dos estabelecimentos hospitalares e clínicas de prestação de serviços de saúde, e, por analogia, todos os serviços de saúde conveniados pelo gestor municipal, cuja responsabilidade é classificada como nitidamente contratual, por Ruy Stoco46, compreende os deveres de assistência médica, e, nos casos dos hospitais, ainda os de hospedagem, estes estabelecimentos são responsáveis pelos danos que seus funcionários causarem a terceiros, em aplicação à surrada e vetusta regra do artigo 1521, inciso III, do Código Civil47. Entretanto, em se tratando de serviço médico, cuja obrigação é de meios, não estão obrigados a curar efetivamente o paciente, ou, utilizando o exemplo de Ruy Stoco, assegurar que um ancião, “ próximo a alcançar um século de vida, em péssimas condições gerais, decrépito pela ação do tempo, continue vivendo”48. Por isso, se o dano ao paciente é imputado à instituição de saúde em face da atuação de seu preposto decorrer do exercício de sua atividade específica e típica 44 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 69. 45 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 72: “Daí porque a antinomia acima verberada está justamente em que a responsabilidade objetiva alonga o espectro do dever de indenizar, transcendendo os limites e as barreiras estabelecidas pelas partes na avença contratual”. 46 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 71. 47 Código Civil, Art. 1521, inciso III: “Art. São também responsáveis pela reparação civil: (...) III – o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou por ocasião dele (art. 1522)”. 48 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 71. 16 da área médica, então incidirá o §4º do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor.49 Ou seja, somente através da prova da culpa que se identificará a responsabilidade da instituição de saúde e do médico pelo evento danoso produzido. As pessoas jurídicas de Direito Público não estão ceifadas desta análise aplicativa da responsabilidade civil na prestação de serviços de saúde, concluindo Ruy Stoco que “se as pessoas jurídicas de direito público ou as de direito privado, prestadoras de serviços públicos, colocarem-se como prestadoras de serviço através de vínculo contratual e, em decorrência, da relação contratual causarem danos ao particular, sua responsabilidade decorrerá do contrato e não por força do preceito contido no art. 37, § 6º, da Constituição Federal que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado”.50 Da saúde pública conforme a ordem constitucional A nova ordem constitucional, diferenciando-se dos textos anteriores, estabeleceu catálogo dos direitos fundamentais, inserindo o direito à saúde (art. 6.º) e conjugando com a informação de programas pelo Poder Público para a implementação da finalidade do interesse social. O artigo 19451 da Constituição Federal conceitua a seguridade social, abrangendo ações para assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social, e o artigo 19552 do texto constitucional estabelece a forma de financiamento da seguridade social, envolvendo recursos dos três entes federativos, efetivando a cooperação financeira para garantia do direito à saúde. 49 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 71. 50 STOCO, Ruy. Responsabilidade civil dos profissionais liberais e prestadores de serviços. Tribuna da Magistratura, n. 96, p. 65. 51 Constituição Federal, Art. 194. “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.” 52 Constituição Federal, Art. 195. “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - dos empregadores, incidente sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro; II - dos trabalhadores; III sobre a receita de concursos de prognósticos. 1 11 - As receitas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinados à seguridade social constarão dos respectivos orçamentos, não integrando o orçamento da União. 1 21 - A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integradas pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos”. 17 Como escreve José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo53, a “saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”, regendo-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços. Estabelece o artigo 198 da Constituição elementos para a integração dos entes públicos federativos para a prestação dos serviços e ações na área da saúde, alterando o sistema então vigente, concentrado na União.54 As diretrizes fixadas na Constituição Federal são orientadoras das definições de competência e organização dos serviços de saúde, regulamentados pela Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre ações e serviços públicos de saúde e serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde – SUS, atendendo aos princípios da universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência e a descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo. No capítulo referente à competência e atribuições dos entes públicos, está definida a atuação comum da União, Estados e Municípios, bem como a de cada um deles, separada e supletivamente, na organização da política de saúde pública. A repartição das obrigações dos três entes federativos para a implementação dos serviços de saúde determinada na legislação infraconstitucional supracitada decorre de norma constitucional expressa nos já citados artigos 195 e parágrafo único do art. 198. Não bastasse isto para definir a responsabilidade da União, Estados e Municípios na estruturação das ações e serviços de saúde, o artigo 30, inciso VII, da Constituição Federal confere ao Município a competência para “prestar, com cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população.” 53 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14.a.ed., SP, 1997, Ed. Malheiros, p. 761. 54 Constituição Federal, Art. 198.”As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I descentralização com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal, além de outras fontes. 18 Existindo, por previsão constitucional, o Sistema Único de Saúde, em que participam as três esferas da federação, estabelecida como forma de descentralização do serviço antes prestado pela União, exclusivamente, claro está que o regramento da matéria atende a uma definição político-administrativa dos papéis dos entes federativos e da programação de repasse de competência e custeio dos serviços de saúde aos outros entes da administração pública, quantificado através da tabela do SUS, elaborada pelo Ministério da Saúde no uso da atribuição fixada pelo art. 16, inciso XIV, da Lei 8.080/9055. Nesta conjuntura planejada já no texto constitucional, a descentralização dos serviços de saúde transita, necessariamente, pela cooperação de recursos técnicos e científicos e pelo repasse financeiro necessário ao aporte das despesas, com a finalidade única de garantir a todos os cidadãos o acesso à assistência social, nela inserida a assistência médica e hospitalar. É pela estruturação desse sistema que garante o bem da vida – a saúde – que o Estado responde na condição de administrador do bem comum. É o desenvolvimento e a realização do SUS, tal como concebido pela Constituição Federal, que caracteriza a atividade essencial do Estado no âmbito da saúde. A prestação do serviço médico em si mesmo encerra uma obrigação de meios e como tal deve ser enfrentada a responsabilidade civil do prestador, quer seja público ou privado, quer seja pessoa jurídica ou física. Somente a prova da deficiência do serviço que enseja a responsabilidade civil. Não se pode prescindir da culpa na responsabilidade civil dos serviços médicos e hospitalares diante da natureza da obrigação. CONCLUSÃO Acertada a orientação no sentido de que a distinção entre responsabilidade contratual ou extracontratual nos serviços de assistência à saúde é, na prática, irrelevante para a definição da responsabilidade do Gestor Municipal de Saúde e das instituições de saúde pública. Em se tratando de obrigação de meios, e quanto a isso não há qualquer controvérsia, a prestação de serviços de saúde não pode ser tratada de forma distinta 55 Lei n. 8.080, 19.09.90, Art. 16.”À direção nacional do Sistema Único de Saúde - SUS compete: (...) XIV - elaborar normas para regular as relações entre o Sistema Único de Saúde - SUS e os serviços privados contratados de assistência à saúde”. 19 apenas pela qualificação de seu prestador; se público, aplica-se a teoria da responsabilidade objetiva; se privado, a teoria da responsabilidade subjetiva, necessitando a demonstração da culpa por parte do reclamante. A insubsistência desta fórmula esbarra na noção de justiça refletida pelos exemplos de Cavalieri e Ruy Rosado, referidos acima. Em realidade, o que deve orientar a aplicação das teorias da responsabilidade civil é a natureza da obrigação envolvida. As obrigações essenciais do Estado, contidas na Constituição Federal, estão ao abrigo, inquestionavelmente, do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. O Estado, aí, aparece como garantidor de um sistema de saúde que proporcione a assistência médica e hospitalar a todos os cidadãos. Mas não é essência da atividade do Estado a prestação direta do serviço médico e hospitalar. E quando prestado pelo Estado tal serviço, não fica transfigurada a obrigação. Permanece sendo a mesma obrigação de meios, o que enseja a responsabilidade civil somente se demonstrada a falha da prestação do serviço. A demonstração, pelo Estado, da adequação da prestação do serviço de saúde, tanto em relação ao diagnóstico como ao tratamento dispensado, envolvendo todas as condições de eficiência do serviço, afasta a responsabilidade civil relativa às conseqüências daí decorrentes, que podem ser enquadradas como de evolução previsível ou imprevisível. É indispensável, pois, a demonstração da falha do serviços de saúde, quer sejam eles públicos ou privados. BIBLIOGRAFIA BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, in Interesse Público, n. 6, 2000, p. 11-47. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2a. ed., São Paulo, ed. Malheiros,1996. CANOTILHO, J.J. 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