Desafios da Sociologia Clássica ao Legislativo Brasileiro e

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BOLETIM CEDES – ABRIL-JUNHO 2013 – ISSN 1982-1522
Desafios da Sociologia clássica ao Legislativo brasileiro e possíveis saídas buscadas no
legado de Ronald Dworkin
Igor Suzano Machado*
Introdução
O texto que segue é um artigo sobre a divisão das funções políticas do governo, cuja
expressão clássica na separação e inter-relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário é focada
aqui, especificamente, no que tange ao caso brasileiro. Mesmo tendo como ponto de partida a
formulação dessa divisão de poderes nos escritos clássicos da teoria política do Barão de
Montesquieu e dos federalistas, o texto segue, no entanto, caminho menos ortodoxo ao trazer à
tona reflexões políticas dos clássicos da Sociologia, como base teórica para auxiliar a
compreensão de uma recorrente “sensação de mal-estar” relativa ao funcionamento
contemporâneo do poder Legislativo no Brasil. Dessa incursão nas obras de Weber, Marx e
Durkheim, serão derivados marcos de atuação política que, na visão desses clássicos do
pensamento sociológico, deveriam nortear a ação do poder Legislativo para, com isso,
pensarmos criticamente o papel do Legislativo brasileiro, especificamente.
Contudo, uma exegese de textos europeus clássicos para a formulação de um modelo de
análise de contexto brasileiro e contemporâneo não é algo cuja justificativa seja auto-evidente.
Portanto, em busca dessa justificativa, o texto retoma debate de tema contemporâneo para então
ligar essa reflexão a outra mais atual. Assim, busca na polêmica da “judicialização da política”
destacar as teorizações sobre as relações entre o direito e a política e entre Legislativo e
Judiciário na teoria política e jurídica de Ronald Dworkin, cujo recente falecimento configura
contexto propício de avaliação de seu legado, inclusive, em dimensões não diretamente
imaginadas pelo autor. Nesse caso, especificamente, o presente texto busca em Dworkin não
ferramentas conceituais para a compreensão da adequação, ou não, da atuação do poder
Judiciário, mas sim da atuação do poder Legislativo.
*
Doutor em sociologia, colaborador do CEDES e professor de Teoria Social na Universidade Federal de Viçosa.
28
1 – A separação de poderes no Brasil
Falar na famosa tripartição de poderes nos remete, sem dúvida, à clássica obra O espírito
das leis, do Barão de Montesquieu.1 É aí que se encontra o germe da tese de separação entre as
atividades do governo de legislação, administração e jurisdição. A ideia foi posteriormente
retomada e retrabalhada pelos escritos federalistas, que buscavam fundamentar experimento
político inovador na parte norte do novo mundo, criando nos Estados Unidos uma república
federativa baseada na separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que se
tornou altamente influente nos rumos que a organização política tomou posteriormente ao redor
do mundo, inclusive no Brasil.
A ideia básica e fundamental da divisão de poderes calcada nas ideias de Montesquieu e
dos Federalistas é a possibilidade de controle mútuo entre os diferentes ramos do governo, num
sistema de freios e contrapesos (checks and balances) evitando, assim, a concentração de
poderes de governo em torno de uma mesma pessoa ou grupo. Mas dessa ideia básica derivam
formas das mais diversas, que configuram peculiaridades dos sistemas de governo de cada país,
que, assim, se mostram bastante diferentes, mesmo compartilhando o núcleo basilar da
tripartição de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Essas diferenças entre os vários sistemas faz com que, mesmo com a separação de
poderes, seja possível, caso a caso, verificar que a soberania política penda mais para uma ou
para outra das três dimensões de governo. No caso brasileiro, por exemplo, uma série de
prerrogativas do presidente da República atesta que, mesmo em nossa ordem políticoinstitucional mais recente, inaugurada pela Constituição de 1988, perdura a tradição de um
Executivo forte. Contudo, prescrições dessa nova ordem constitucional também trazem à tona
quadro novo em que um Ministério Público bastante exótico, quando comparado aos de outros
países, aparece quase que como um “quarto poder” e um Judiciário bastante robustecido, por
vezes, disputa com Executivo o protagonismo da cena política nacional. Mas e quanto ao papel
do Legislativo nessa nova ordem, o que pode ser dito?
Do ponto de vista institucional, a consequência do fortalecimento do Executivo e do
Judiciário é, por suposto, uma relevância menor do Legislativo. Por mais que talvez seja
exagerada a afirmação de Renato Lessa de que esse poder caminharia rumo à verdadeira
1
MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. 3 ed. São Paulo: Marins Fontes, 2005.
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irrelevância,2 não é impróprio seguir o raciocínio de Luiz Werneck Vianna de que a nova ordem
constitucional comportou velada descrença da capacidade de animação da vida republicana pela
via da representação popular no parlamento.3 Contudo, para além da dimensão institucional,
também não se deve perder de vista uma dimensão situacional, que implica possível descrença
no papel do Legislativo causada por situações específicas de determinado contexto,
independentes de sua estrutura institucional. Esse é o caso da descrença no Legislativo causada,
por exemplo, por escândalos de corrupção, que, igualmente, abundam no cenário político
brasileiro contemporâneo, de que é exemplo o, recentemente julgado, esquema do “mensalão”.
Nessas duas dimensões, portanto, tanto institucional, quanto situacional, o Legislativo
brasileiro se vê diminuído de importância para a República, num cenário um tanto desolador se
se tem em mente que, na tripartição de poderes de uma república democrática, seria o poder
Legislativo justamente o mais capacitado a representar o “povo”, fundamento último de
legitimidade de ação do governo. O quadro pode se apresentar ainda mais dramático quando, em
vez dos clássicos da teoria política, como Montesquieu e os Federalistas, trazemos à tona os
clássicos da teoria sociológica, Weber, Marx e Durkheim, que preocupados com a dimensão de
governo na organização da sociedade, também produziram reflexões importantes que podem, ao
menos na tese que esse texto sustenta, ajudar-nos a pensar a situação atual do Legislativo
brasileiro.
2 – Reflexões sobre o poder Legislativo com base nos clássicos da Sociologia
Em suas reflexões sobre o parlamento alemão,4 por exemplo, Max Weber destaca como
das trincheiras dos debates políticos parlamentares poderiam emergir líderes políticos
tarimbados, capazes de guiar a eficientíssima e altamente racional, porém desprovida de
capacidade inovadora e versatilidade, burocracia administrativa. Nesse sentido é interessante e
entristecedor, quanto a nosso Legislativo, ter em mente que o principal partido do país tem
optado pelo recrutamento de postulantes a cargos executivos não nos parlamentos, mas, num
2
LESSA, Renato. A constituição brasileira de 1988 como experimento de filosofia pública: um ensaio. In:
OLIVEN, Ruben George; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, Gildo Marçal. A Constituição de 1988 na vida
brasileira. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 390.
3
VIANNA, Luiz Werneck. O terceiro poder na carta de 1988 e a tradição republicana: mudança e conservação. In:
OLIVEN, Ruben George; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, p. 93.
4
WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política da burocracia e da natureza dos
partidos. Petrópolis: Vozes, 1997.
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sentido completamente anti-weberiano, nas próprias burocracias, dentro das quais esses novos
líderes acabam blindados, justamente, de um possível desgaste político que os debates
parlamentares poderiam causar.
Já Karl Marx, em sua crítica à Filosofia do Direito de Hegel, 5 irá se opor frontalmente à
noção hegeliana de um poder Legislativo continuador de uma Constituição que se torna assim,
ao mesmo tempo, termo constituinte desse poder e constituída por ele mesmo, em situação na
qual o povo deixaria de ser sujeito para se tonar objeto da determinação constitucional. Dessa
forma, o Legislativo, através da representação estamental, não poderia, em Hegel, ser lugar da
expressão da vontade geral, que para Marx só seria possível na superação da distinção entre
Estado e sociedade civil. Superação essa que não permitiria o ofuscamento causado pela filosofia
do direito de Hegel sobre a ideia de que a Constituição é o povo e, portanto, em termos
rousseaunianos, expressão da vontade geral de singulares que agem como todos e não de
vontades particulares de todos que agem como singulares.
Claro que o Legislativo brasileiro mantém a dicotomia entre Estado e sociedade civil,
mas sequer é necessário se chegar a esse ponto mais radical da crítica marxista à filosofia do
direito de Hegel para se pensar em seu déficit democrático. Assumindo a bagagem
roussseauniana que embasa a crítica marxista, pode-se questionar como o poder Legislativo vem
se furtando à representação da vontade geral, tanto no ponto em que se guia pela representação
de bancadas que são expressão da mais crua das representações de todos que agem como
singulares e não de singulares que agem como todos, quanto nas constantes tensões entre o poder
Legislativo e o poder Judiciário, quando o último se coloca como guardião de uma constituição
que, justamente, se pretende representativa de uma vontade geral que se sobreporia às vontades
de indivíduos e grupos de interesse.
Em suas Lições de Sociologia,6 por sua vez, Émile Durkheim, contrariamente a Marx, é
partidário de uma separação nítida entre Estado e sociedade, entendendo que o primeiro polo
dessa relação pode ter atuação orientadora sobre o segundo, ao filtrar por seus próprios meios os
interesses difusos – e confusos – que se expressam na sociedade externa ao governo. Com isso,
Durkheim, considerando a democracia uma forma de governo e, por conseguinte,
necessariamente uma situação em que poucos comandarão muitos, encontrará como principal
5
6
MARX, Karl. Crítica da filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
31
característica de um governo democrático não o número de governantes, mas as possibilidades
de comunicação entre o Estado governante e os indivíduos governados: seria democrático,
segundo ele, um governo que ouça as demandas de seus cidadãos e permita que esses cidadãos
tenham o mais amplo conhecimento das razões das ações governamentais.
Mesmo que Durkheim pense em instituições intermediárias para a comunicação entre
governo e sociedade civil que precedem a própria formação do Legislativo – que assim,
recrutaria seus membros, por exemplo, em associações profissionais – é possível se pensar no
papel do parlamento nessa função de mediação comunicativa, colocando-se entre a máquina
administrativa do Executivo e aqueles cujo sufrágio os elegeu representantes. Nesse sentido, é
licito perguntar: será que o Legislativo brasileiro tem contribuído para fomentar esse diálogo
entre governantes e governados, ou para tornar essa comunicação mais difícil ou obscura?
Não obstante as diferenças de perspectivas e abordagens de Weber, Marx e Durkheim, as
lições desses clássicos da sociologia podem nos ajudar a pensar possíveis problemas que
mitigam a importância política do Legislativo brasileiro, tendo em vista o lugar do poder
Legislativo num governo democrático. Nesse sentido, pode-se ter em mente as dificuldades do
poder Legislativo brasileiro para 1. suscitar a emergência de novas lideranças políticas (tese
derivada das reflexões sobre a política de Weber), para 2. se colocar como representante de uma
vontade geral (tese derivada das reflexões sobre a política de Marx) e para 3. funcionar como
canal de comunicação entre governo e sociedade civil (tese derivada das reflexões sobre a
política de Durkheim).
3 – A judicialização da política e o legado de Ronald Dworkin
Esses três problemas pensados em bases teóricas pelas reflexões dos clássicos mais
incontestes da Sociologia, podem ser ainda melhor trabalhados se pensados em bases mais
práticas dentro de uma situação que se tornou fonte perene de controvérsias nas ciências sociais:
o fenômeno da judicialização da política, isto é, o fenômeno da gradativa expansão das funções
judiciais, tomando espaço que, até então, era locus de ação exclusiva de outros poderes políticos,
como o Legislativo. Sendo assim, conforme já ressaltado anteriormente, tomo esse fenômeno
como ponto de partida para desenvolver o restante do raciocínio.
32
A grande controvérsia que ronda a abordagem do tema da judicialização da política nas
ciências sociais diz respeito ao fato de qual seria a fonte de legitimidade democrática das
decisões de um grupo de juízes, capaz de justificar que tal decisão possa se sobrepor às decisões
de um poder Legislativo eleito pelo povo – e assim, de fonte de legitimidade democrática
explícita – como ocorre nos casos de controle de constitucionalidade das leis feito pelo
Judiciário. Apesar de alguns teóricos mais radicalmente contrários à judicialização da política
afirmarem que essa fonte de legitimidade democrática das decisões judiciais contrárias ao
Legislativo simplesmente não existe,7 retomarei aqui a argumentação de um autor que, pelo
contrário, pode ser considerado uma das vozes mais eloquentes a respeito de como seria possível
sim, legitimar essas decisões: o filósofo do direito e da política, recentemente falecido, Ronald
Dworkin.
O quê, para Dworkin, justificaria possíveis interferências do Judiciário – ou outro órgão
de controle de constitucionalidade – em decisões tomadas pelo Legislativo, já que este último
poder seria formatado por lógica aparentemente mais democrática, embasada na representação
do eleitorado por meio do voto? Para Dworkin, a interferência do Judiciário na política se
justificaria pelo Judiciário poder se apresentar como um “fórum de princípios”.8 Portanto, por
mais que Dworkin seja crítico da noção de “ativismo judicial”, para ele o poder Judiciário
poderia interferir mais ativamente na política quando agisse em nome de princípios que
pudessem ser compreendidos como o substrato moral da comunidade política na qual os juízes
atuam.
Esses princípios seriam extraídos da interpretação do conjunto de decisões políticas
pretéritas dessa comunidade – sua constituição, suas leis, sua jurisprudência, etc. – e atuariam
diretamente a favor de uma dimensão da moralidade política que Dworkin batiza de integridade.
Essa virtude política da integridade, que Dworkin considera o cerne da correção de uma
argumentação moral, seria, grosso modo, a compreensão de que, assim como um sujeito deve
agir com integridade, mantendo seus compromissos morais na regulação de sua própria conduta,
o mesmo deve ser feito pelo Estado, que deve se manter fiel aos princípios morais que vem
endossando por meio do seu direito.9
7
BELLAMY, Richard. Political Constitutionalism: a republican defense of the constitutionality of Democracy.
Cambridge: Cambridge University Press. 2007.
8
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
9
__________. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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Com base nisso, Dworkin não só justifica a interferência do poder Judiciário na política,
como também diferencia a lógica das atuações políticas dos tribunais e dos parlamentos,
ressaltando, por conseguinte, sua possível complementaridade. Segundo Dworkin, sendo a
integridade uma virtude política geral, tanto o Legislativo, quanto o Judiciário, devem se guiar
por tal princípio. Acontece que, enquanto o poder Judiciário precisaria manter sua argumentação
concentrada no que ele chama de argumentos de princípio, o Legislativo poderia dispor de
argumentos não apenas relacionados a princípios, mas também argumentos relacionados a
políticas (policy).
Isso quer dizer que o Judiciário não poderia se imiscuir na política para decidir sobre
preferências acerca de um possível melhor futuro para aquela comunidade. Se o orçamento
governamental deve ser dedicado à construção de uma escola ou de um hospital, de uma ciclovia
ou uma praça, por exemplo, são questões que dizem respeito ao que se imagina como melhor
futuro para aquela comunidade e, consequentemente, não se trata de uma questão de princípio,
mas de política, só podendo ser decidida pelas regras majoritárias das votações do Legislativo.
No entanto, se o que está em jogo, por outro lado, diz respeito ao direito de livre manifestação ou
livre associação, fazendo tais direitos parte do conjunto de fundamentos morais daquela
sociedade, pode o Judiciário se contrapor ao Legislativo e anular decisão sua se entende que tais
direitos foram mitigados por determinada lei.
Isso faz com que Dworkin deixe nas mãos do poder Judiciário a decisão final sobre
determinados pontos sensíveis da política, mas, ainda assim, faz com que, na mesma medida, a
atuação política do Judiciário seja, em certo sentido, mais limitada do que a do Legislativo.
Afinal, enquanto o Judiciário deve se ater à defesa de argumentos baseados em princípios que
formatam determinados direitos individuais, o Legislativo também poderia mobilizar, para além
desses argumentos baseados em princípios, argumentos baseados em políticas, que dizem
respeito à concretização de melhores futuros possíveis para aquela comunidade. E o “também” é
termo importante do período anterior, haja vista que a utilização dos argumentos de política não
exclui a utilização, também no Legislativo (mesmo que não seja seguro delegar a esse poder a
última palavra sobre tais questões), de argumentos de princípio.
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Conclusão
A relação do exposto acima com o ponto motivador da discussão, que disse respeito à
atuação problemática do Legislativo brasileiro, é que: espremido entre dois outros poderes que se
reforçam na nova ordem política, o Legislativo brasileiro corre o risco de se diminuir, ao reduzirse a argumentos de barganhas para favorecimentos pessoais ou partidários – em casos extremos,
inclusive, fazendo isso por meios à margem do processo político, amesquinhando-se em
condutas criminosas. Com isso, são justamente os dois tipos de argumentos políticos, tomando
em sentido amplo o termo político, ressaltados por Dworkin, isto é, argumentos de princípios e
argumentos de política, que correm o risco de serem “esquecidos” pelo Legislativo dentro dessa
lógica: de um lado, a defesa de direitos via uma argumentação por princípios é totalmente
delegada ao judiciário, por via da judicialização, e, por outro, a defesa de melhorias coletivas
futuras por meio de argumentos de política (em sentido estrito) é delegada ao Executivo e sua
máquina burocrático-administrativa.
Como consequência, abrindo mão de abraçar princípios morais universalizáveis e
projetos de futuro que formatam políticas públicas específicas, o Legislativo corre o risco de
abrir mão também de fomentar a ascensão de novas lideranças políticas, como pretendido por
Weber, de exercer uma representação universal, como pretendido por Marx, e de funcionar como
mediador comunicativo entre Estado e sociedade civil, como se pode teorizar com base em
Durkheim.
Quanto à queixa de inspiração weberiana, atuando subalternamente ao poder Executivo,
os legisladores adotam perfil mais burocrático do que político. Assim sendo, assumir para si a
pauta de argumentos políticos, propondo ideias alternativas de futuro, assim como endossar
princípios gerais, que se aproximam da linguagem sempre potencialmente revolucionária dos
direitos naturais – naquilo em que podem se opor a qualquer direito positivo – poderiam ser
formas de sustentar, no Legislativo, o surgimento de uma liderança propriamente política, que,
em contraponto ao típico quadro burocrático que se baseia na repetição de ordens superiores,
destaca-se justamente pela sua capacidade de inovação e de condução em direção ao novo.
Já quanto a uma crítica de embasamento marxista, centrado em bancadas particularistas
que lutam por interesses próprios, o Legislativo se concentraria em barganhas que têm como
consequência a individualização das demandas políticas que, assim, passam ao largo de qualquer
35
vontade geral. Logo, repensar a si mesmo em termos de princípios morais universais e políticas
significativas de rupturas em direção a outro futuro possível, poderia fazer do Legislativo
instância governativa menos distante da sociedade civil que, mesmo não anulando a
diferenciação entre esses dois polos, daria maior significação às ideias marxistas de que o povo
tem sempre direito de se dar uma nova constituição, pois se a constituição deixa de ser a
expressão da vontade popular – e, logo, vontade geral – ela se torna uma ilusão prática.
Por fim, no que tange a um lamento de base durkheimiana, tem-se, por suposto, que não
auxilia na comunicação entre Estado e sociedade civil um Legislativo centrado em suas próprias
normas autóctones de funcionamento, por vezes, necessariamente “às escuras”, por se encontrar,
inclusive, à margem da lei. Nesse sentido, a retomada de uma vocação pela representação geral,
via argumentos de princípio, e a luta por novos futuros, via argumentos de política, poderiam
restaurar um canal de comunicação perdido entre o parlamento e seus representados, passível de
ser recuperado pela linguagem do respeito aos direitos de cada um e da proposição das melhorias
a serem usufruídas por todos.
Logo, da defesa que Dworkin faz da atuação política do Judiciário, em contraponto a
críticos da judicialização da política que, em princípio, depositariam mais fé do que ele na
instância legislativa, não deixa de ser possível derivar reflexões úteis sobre como aquele poder
que possui a forma de legitimação mais popular poderia restaurar sua importância no chamado
governo do povo. Isto é, a lição deixada por esse pensador que, tornando-se célebre por uma
crítica interna ao campo jurídico em seu contraponto ao positivismo, ampliou a recepção de sua
obra à reflexão na filosofia política e moral, ajuda-nos a pensar também o caminho inverso e
refletir sobre as debilidades morais e políticas que levam a uma possível supremacia do
Judiciário.
A fé no sistema de tripartição de poderes pensado para o experimento político idealizado
pelos Federalistas nos Estados Unidos, foi a tradição que Dworkin buscou de alguma forma
defender em seus escritos, defendendo, segundo ele, “o jeito norte-americano de fazer política”.10
Se, para se manter esse ideal de governo democrático que não ignora o respeito às minorias, num
certo contexto, fez-se preciso reconhecer e ressaltar a importância do Judiciário nesse jogo
político, é possível que em contexto diferente seja necessário repensar o papel, na manutenção de
10
__________. Direito da Liberdade: a Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 463.
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mesma maneira de fazer política, do Legislativo. E se para o primeiro caso, as contribuições de
Dworkin sobre a organização moral da comunidade política se mostraram tão frutíferas, a
sugestão do presente texto, com o auxílio das ideias dos clássicos da Sociologia, é a de que isso
seria igualmente verdadeiro para o segundo caso. Isto é, se a virtude política da integridade e o
realce da importância dos princípios morais que ligam fraternalmente determinada comunidade
política, cernes da obra de Dworkin, permitiram repensar a importância da atuação política do
Judiciário, para além de uma compreensão convencionalista ou pragmática da prática judicial,
talvez permitam também repensar a importância da atuação política do Legislativo, para além de
uma lógica particularista, eleitoreira, de barganha e, em casos extremos, de usurpação da
representação pública para o ganho econômico privado.
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