Regular, supervisionar e acompanhar pacientes internados em

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Regular, supervisionar e acompanhar pacientes internados em Clínicas
Psiquiátricas do SUS: passos importantes para a desinstitucionalização
responsável no Município do Rio de Janeiro
Andréa da Luz Carvalho12
Hugo Marques Fagundes3
Rosane Frota4
Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio
Resumo
O atual consenso sobre o tratamento em Saúde Mental recomenda que a
assistência se realize em uma rede de serviços de base comunitária. Para que a
Cidade do Rio de Janeiro alcance este objetivo, são necessárias diversas ações que
exerçam controle sobre sua herança manicomial. O artigo apresenta as estratégias
atualmente lançadas pelo Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro: regulação dos leitos psiquiátricos e supervisão contínua das
clínicas contratadas ao SUS.
Palavras-chave: regulação, supervisão, desinstitucionalização
Um pouco de História: a herança manicomial na Cidade do Rio de Janeiro
A década de 90 e o início do século XXI são os marcos históricos para o
processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica no Brasil: em 2001, após 11 anos
de tramitação no Congresso Nacional do Projeto original do Deputado Paulo Delgado
(Delgado,1989), aprova-se a Lei 10.216 (Brasil, 2002a), que estabelece direitos para
os portadores de transtornos mentais e sobretudo redireciona a assistência
psiquiátrica indicando que o lugar de tratamento para quem tem sofrimento psíquico
grave é a rede de serviços comunitários. A pluralidade de recursos comunitários deve
substituir o hospital psiquiátrico.
Chamamos a atenção para o fato de que a Lei regulamenta um dos maiores
abusos na assistência psiquiátrica - a internação involuntária (Delgado, 2001). Ao
permitir que o paciente possa se pronunciar sobre a necessidade de sua internação
avançamos no sentido de que esta deva ser adequada ao seu projeto terapêutico,
deve-se ter clareza quanto à sua necessidade e duração, como também se torna
obrigatória a comunicação da internação involuntária e da alta ao Ministério Público
no prazo de até 72 horas. (Brasil, 2002a).
1
Psicóloga Sanitarista; Gerente de Programas de Desospitalização da SMS/RJ.
2
[email protected]
3
4
Psiquiatra; Coordenador de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Psiquiatra responsável pela Central de Regulação de Internação em Psiquiatria.
A Lei é aprovada após uma década em que a experiências clínicas, de serviços
e agenciamentos que, direcionados à assistência em saúde mental na comunidade,
foram disseminadas por todo o país. O CAPS, enquanto um modo operacional de
enfrentar o modelo de exclusão que o hospício sintetiza, foi largamente reproduzido
e recriado nacionalmente. No seu rastro vieram também as experiências de moradia,
as oficinas terapêuticas, os projetos de geração de renda, as associações de usuários
e familiares, etc. Inclusive a internação foi ressignificada para o sentido de
hospitalidade diurna e noturna como recomenda a III Conferência Nacional de Saúde
Mental (Brasil, 2002b). A internação passa a ser uma das possibilidades de
tratamento.
A Cidade do Rio de Janeiro inaugura a história brasileira do marco da fusão
pineliana entre o saber psiquiátrico e o lugar hospitalocêntrica de tratamento. Aqui,
nesta cidade, foi criado o primeiro Hospício por D. Pedro II, em 1852. Aqui foram
fundados os manicômios que foram referências para o Brasil, como a Colônia Juliano
Moreira, o Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII) e o Hospital Philippe Pinel:
concentração de tecnologias de exclusão e abrigo para pessoas que deveriam ser
afastadas do convívio social. Aqui também o Governo Federal fez a opção,
principalmente nas décadas de 60 e 70, de comprar serviços hospitalares privados,
ampliando sem critérios claros de necessidade a contratação de leitos hospitalares
psiquiátricos.
De fato, também foram nestes locais que houve, no final da década de 70, a
criação de um imperativo a favor da humanização da assistência e de outras maneiras
de tratar que não fossem dentro dos hospícios. Antes mesmo da existência dos CAPS
enquanto modos de operação da inclusão de pacientes psiquiátricos, experiências
foram construídas nestes locais a favor de tratamentos que levassem em
consideração a singularidade e a liberdade dos pacientes que ali se encontravam.
A tomada de responsabilidade do Município do Rio de Janeiro
A mudança política ocorrida a partir da implantação do SUS em todo o país, a
partir da década de 90, significou para os Municípios a obrigação de cuidar da saúde
de sua população, administrando o dinheiro que passaria a vir diretamente do Fundo
Nacional de Saúde ao Fundo Municipal como também o repasse estadual e a
contrapartida municipal. A partir da implantação da NOB 01/93, os Municípios
passaram a herdar os contratos dos estabelecimentos antes gerenciados pelo
INAMPS que não levava em consideração critérios epidemiológicos.
Em 1993, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, através da
Gerência de Saúde Mental passa a realizar vistorias e supervisões nos hospitais
psiquiátricos contratados.
O parque manicomial se configurava com cerca de 5636 leitos (Fagundes
&Libério,1997) distribuídos entre 20 hospitais públicos e privados contratados ao
SUS. Não havia nenhum hospital psiquiátrico municipal, os hospitais públicos
pertenciam ao Governo Federal, bem como os ambulatórios especializados (PAMs).
As unidades próprias da SMS Rio de Janeiro eram constituídas por uma rede básica
formada por psicólogos advindos da Secretaria Municipal de Educação, voltados para
as ações de prevenção em saúde mental.
Em 1996, ocorre a municipalização de 15 PAMs e de 4 maternidades. No
mesmo ano, a Gerência de saúde Mental realiza o I Censo dos pacientes internados
nos hospitais psiquiátricos do SUS. Cerca de 3235 pacientes internados são
entrevistados, seus prontuários analisados e as equipes responsáveis pela assistência
são convocadas a responder sobre seus projetos terapêuticos. Verifica-se a grande
concentração de pacientes psiquiátricos em hospitais, sem nenhuma efetividade no
seu tratamento. A oferta se configurava distorcida: há leitos para todos, tratamento
para poucos. Mesmo nos hospitais psiquiátricos públicos que se apresentavam como
melhores do que os privados contratados, as experiências extra-hospitalares que
neles existiam como ambulatórios e hospitais-dias tinham dificuldades de trabalhar
na lógica do território, na lógica de que é preciso que estas pessoas ocupem e façam
diferenças na nossa cidade.
Neste momento também foi feito o levantamento dos pacientes “crônicos”,
que não contavam com ninguém e se encontravam abandonados nestes
estabelecimentos (cerca de 666). O Censo colocou na cena a necessidade de
discussão sobre a nossa cronicidade (Desviat, 1999), ou melhor, incapacidade de
oferecer outras opções para estes pacientes que não fossem o hospital psiquiátrico.
A Municipalização da Colônia Juliano Moreira em 1996 e a criação do primeiro Centro
de Atenção Psicossocial (CAPS Rubens Correia) em Irajá, começaram a redefinir o
papel da Secretaria Municipal de Saúde, na construção de serviços substitutivos,
desde CAPS a serviços residenciais terapêuticos para a Cidade.
Regulação da internação psiquiátrica e Supervisão das Clínicas contratadas
ao SUS: experiências de acompanhamento dos hospitais psiquiátricos
Em que pese a ampliação da rede extra-hospitalar na Cidade do Rio de Janeiro
priorizando a implantação de Centros de Atenção Psicossocial em áreas descobertas
de assistência a pessoas que possuem transtornos mentais graves e persistentes, a
oferta de leitos psiquiátricos ainda é expressiva, cerca de 3100, concentrados em 18
hospitais.
Em 10 anos, 4 hospitais psiquiátricos privados contratados foram
descredenciados do SUS, havendo uma diminuição de cerca de 47% no número de
internações por ano no período (de 23588 em 1993 para 12476 em 2003). E apesar
das dificuldades e problemas trazidos pelos processos de municipalização da Colônia
Juliano Moreira, em 1996, e dos hospitais psiquiátricos Centro Psiquiátrico Pedro II e
o Instituto Philippe Pinel em 2000, a incorporação destas Unidades fez com que a
SMS Rio de Janeiro tivesse que alocar recursos humanos e financiar projetos para a
desinstitucionalização de pacientes.
Considerando, portanto, a história já relatada de oferta de leitos psiquiátricos,
a construção da rede substitutiva comunitária passa pelo controle, regulação,
supervisão e acompanhamento dos pacientes internados nestas Clínicas.
Desinstitucionalizar significa enfrentar todos os significados que a cultura manicomial
criou na nossa cidade e a estratégia de desmontagem deste aparato requer ações
diretas nos hospícios.
Uma destas ações compreende visitas anuais a estas Clínicas, coordenadas
pelas Secretarias Estaduais de Saúde e Vigilância Sanitária com a finalidade
desclassificar os hospitais através da aplicação de um questionário que verifica desde
as instalações físicas dos estabelecimentos ao projeto terapêutico de cada paciente.
A aplicação do Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar (PNASH)
regulamentado pela Portaria 251/02 (Brasil, 2002 a) representou uma atualização
nos parâmetros que um hospital psiquiátrico deve cumprir e inovou incluindo uma
avaliação que feita pelos pacientes. A ação anual do PNASH, no município do Rio de
Janeiro, a partir de 2002, também ajudou na qualificação da assistência psiquiátrica
e na redução de leitos.
Outra ação fundamental foi a entrada dos leitos psiquiátricos na Central de
Regulação da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Desde 2002, a SMS
Rio de Janeiro iniciou o processo de pré-autorização de alguns procedimentos
hospitalares, começando no surto da Dengue seguido por alguns procedimentos
cardiológicos. Em 05/05/2003, os leitos psiquiátricos de 14 hospitais (cerca de 1700)
começaram a ser regulados utilizando a ferramenta SISREG do DATASUS. As 4
Emergências Psiquiátricas (IM Nise da Silveira, Instituto Philippe Pinel, Centro
Psiquiátrico Rio de Janeiro e o Hospital Jurandyr Manfredini) centralizam a porta de
entrada para as internações psiquiátricas na Cidade, avaliando a necessidade de
internação e solicitando através do preenchimento de um laudo eletrônico via Web
um leito à Central de Regulação. Na Central, o médico regulador é que vai autorizar
a internação e disponibilizar a vaga que pode ser no mesmo hospital, em outro
público ou no contratado ao SUS.
A equipe de reguladores psiquiatras é formada por quatro médicos que
regulam de segunda a sexta, de 9 às 18 horas. Nos demais dias e horários a regulação
é feita por médicos clínicos treinados. Esta ação é coordenada por uma médica
psiquiatra. A regulação trouxe o controle melhor dos leitos psiquiátricos. Desde a
década de 80, os 4 Hospitais Psiquiátricos Públicos acima citados já se configuravam
como as únicas portas de entrada da internação psiquiátrica e dividiam os leitos
contratados entre si. Esta ação significou um controle importante na época contra os
abusos na utilização de leitos psiquiátricos contratados. No entanto, hoje, a regulação
trouxe ao debate a necessidade do estabelecimento de critérios mais equânimes
pactuados entre os hospitais públicos na utilização dos leitos públicos: prioridade na
internação de pacientes de primeira internação, de pacientes acompanhados nos
hospitais públicos e pacientes dos Centros de Atenção Psicossocial.
Em outubro de 2003, a Coordenação de Programas de Saúde Mental da
Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro começou um processo de supervisão
permanente nas Clínicas Contratadas através de equipes constituídas por 9
psiquiatras e 8 psicólogos. Além da renovação da AIH, a finalidade principal desta
supervisão é acompanhar os projetos terapêuticos dos pacientes junto às equipes
das Clínicas, efetuar a conexão deste sujeito com os serviços extra-hospitalares
interferir nas situações de abandono dos pacientes de longa permanência,
identificando os pacientes que podem se beneficiar por bolsas de desospitalização.
Mais do que acelerar os processos de alta, a atuação dos supervisores tem feito com
que os destinos de muitos pacientes não sejam retornar às emergências psiquiátricas
para uma nova internação. Temos conseguido acompanhar mais de perto a
ocorrência de óbitos nestas instituições bem como sua assistência.
Ainda um longo caminho a percorrer...
Os controles das internações psiquiátricas através das ações apresentadas
como PNASH, a regulação, a supervisão e, é claro, a avaliação dos pacientes nas 4
portas de entrada são fundamentais para um melhor dimensionamento da
necessidade de leitos psiquiátricos na cidade. Atualmente há uma concentração de
50% destes leitos na área de planejamento 4 (eixo de Jacarepaguá-Barra). Há
necessidade de redefinição da oferta, já que há o dobro de leitos masculinos em
relação aos femininos, além de que muitos destes leitos têm sido utilizados para
alcoolistas e usuários de drogas, que poderiam ser melhor atendidos em hospitais
clínicos.
A supervisão contínua tem apontado para o fato da dificuldade destes
pacientes se tratarem nos serviços extra-hospitalares, não só por falta de CAPS em
muitas regiões da cidade, como também pela concentração de oferta de serviços,
recursos nos Hospitais Públicos da Cidade, que ainda é grande. Esta concentração
cria uma “rede centrípeta” que não se articula com a Cidade, mas sim com os
dispositivos do próprio Hospital.
Por fim, a construção de uma rede comunitária substitutiva ao hospital
psiquiátrico implica o planejamento e execução de ações contínuas dentro dos
hospitais melhorando a qualidade de vida daqueles que ali permanecem e o
redirecionamento da oferta de leitos para hospitais Gerais e Centros de Atenção
Psicossocial, desafios que devem estar presentes na Agenda do Programa de Saúde
Mental do Município do Rio de Janeiro.
Referência Bibliográfica
1. BRASIL. Ministério da Saúde. Legislação em Saúde Mental –
1990/2002.Brasília: Ministério da Saúde, 2002a, 3ª Edição atualizada.
2. BRASIL. Ministério da Saúde. III Conferência Nacional de Saúde Mental.
Cuidar sim, excluir não. Relatório Final. Brasília: Conselho Nacional de
Saúde/Ministério da Saúde, 2002b.
3. DELGADO, Paulo. Projeto de Lei nº 3.657/89. Brasília: Câmara dos
Deputados, 1989.
4. DELGADO, Pedro Gabriel Godinho. No litoral do vasto mundo: lei 10.216
e a amplitude da reforma psiquiátrica. In: Venâncio, Ana Teresa A. (orgs)
& Cavalcanti, Maria Tavares. Saúde Mental – Campo, Saberes e
Discursos. Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001.
5. DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
1999.
6. FAGUNDES, Hugo & LIBÉRIO, Madalena. A reestruturação da Assistência
na Cidade do Rio de Janeiro: estratégias de construção e
desconstrução. In: Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro,
Revista Saúde em Foco, ano VI, nº 16, novembro/1997.
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