Entrevista na íntegra de Paula Adamy

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Paula Adamy
Psicóloga, pós-graduada em Residência Integrada em Saúde pela Escola de Saúde
Pública do RS e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Trabalha
atualmente em um Serviço Residencial Terapêutico no município de Viamão.
Quais são os princípios norteadores da política de saúde mental construída em
2014? Esse documento é público? Pode nos indicar como é possível ter acesso a
ele?
São princípios fundamentais da Política Estadual de Saúde Mental, álcool e outras
drogas:
 Direito à atenção integral e em liberdade, com equidade e universalidade do
acesso;
 Atenção à saúde centrada na necessidade do usuário, levando em conta
seu contexto social e modo de vida, para além do foco na remissão dos
sintomas;
 Promoção da cidadania e da participação social, com garantia dos direitos
humanos;
 Desinstitucionalização e a reinserção social dos usuários na comunidade.
 Redução de danos como ética e estratégia de cuidado a pessoas com
problemas relacionados ao uso de drogas;
 Garantia do acesso ao cuidado a populações específicas,
Sendo diretrizes norteadoras da Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas:
 Constituição de uma rede de atenção psicossocial sólida, com diferentes
equipamentos com funções distintas, que efetivem processos de cuidado
com acolhimento, vínculo, corresponsabilização e acompanhamento
longitudinal;
 Atenção ofertada nas regiões de saúde, de forma articulada em rede e em
linha de cuidado, a partir dos possíveis itinerários singulares de cuidado
constituídos nos territórios de vida das pessoas.
 Superação do modelo centrado no hospital e na doença, que reproduz um
ciclo de internações sucessivas (hospital como porta giratória), buscando
promover o vínculo com equipe de referência e o acompanhamento
territorial no retorno à comunidade;
 Apoio institucional e educação permanente como ferramentas de
qualificação da Rede de Atenção Psicossocial nas regiões de saúde.
Este documento foi aprovado no Conselho Estadual de Saúde em plenária
realizada em 11 de dezembro de 2014 e aguarda trâmites burocráticos para posterior
publicização.
Em que contexto esse documento foi elaborado? Qual era a política de saúde
mental do estado adotada durante a construção e aprovação desse documento? E
como você vê a política adotada hoje pelo novo governo?
A política estadual de saúde mental, álcool e outras drogas, aprovada pelo
Conselho Estadual de Saúde em 2014, foi sistematizada neste ano, porém é fruto de um
trabalho de fortalecimento da rede de atenção psicossocial no território iniciado ainda em
2011.
No Rio Grande do Sul, as políticas públicas de saúde mental implementadas pelo
Governo do Estado priorizaram, de 2007 a 2010, investimentos em meios de internação –
leitos hospitalares e vagas em Comunidades Terapêuticas. A partir de 2011, a Política
Estadual de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas redirecionou os recursos do tesouro do
estado em torno dos seguintes eixos estratégicos: Linha de Cuidado como estruturante do
redirecionamento do modelo de atenção; Fortalecimento da Atenção Básica; Expansão e
Qualificação da Atenção Psicossocial Estratégica; Qualificação do componente Atenção
Hospitalar;
Expansão
qualificada
do
componente
Moradia
Transitória;
Desinstitucionalização. Isso possibilitou uma ampliação na rede de atenção psicossocial
em 186 CAPS, 288 Oficinas Terapêuticas, 117 Núcleos de Apoio a Atenção Básica, 40
Equipes de Redução de Danos, 1301 leitos de saúde mental integral em hospital geral e 4
Unidades de Acolhimento Transitório (que fazem parte do componente da moradia
transitória; funcionam como casas onde as pessoas que estejam em tratamento nos
CAPS tenham apoio profissional e podem viver por um período até se organizarem, sendo
espaços abertos de acolhimento voluntário – por isso se diferem das Comunidades
Terapêuticas).
A escolha destes eixos está em consonância com a IV Conferência Nacional de
Saúde Mental Intersetorial e a Política Nacional de Saúde Mental que cria a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS), através da Portaria GM/MS nº 3.088, de 23 de dezembro
de 2011, para acolher e acompanhar as pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema
Único de Saúde.
Considerando que a estruturação das Redes de Atenção em Saúde tem a atenção
básica como ordenadora do cuidado e também tendo em conta que 76,6% dos municípios
gaúchos tem população inferior a 15 mil habitantes e, portanto, não podem ser
contemplados com serviço especializado de saúde mental em seu território (CAPS), a
Secretaria de Saúde do Estado criou dispositivos e linhas de financiamento próprios para
potencializar o cuidado em saúde mental na atenção básica. Essa foi uma construção
coletiva a partir da escuta das necessidades dos municípios, tendo participação dos
trabalhadores, gestores e controle social.
Com relação a atual política de saúde mental do Estado, o atual coordenador, Luiz
Coronel, se pronunciou publicamente com relação a reativação do Hospital Colônia
Itapuã, hospital localizado em área rural, criado em 1940 como local de internação
obrigatória de pacientes com hanseníase, e o reinvestimento no Hospital Psiquiátrico São
Pedro, como “hospital de referência para usuários de drogas”. Além disso, também já
rompeu contratos de aluguéis de casas que serviriam como Residenciais Terapêuticos,
mesmo com os 171 moradores que ainda vivem dentro do Hospital Psiquiátrico. Essas
ações são segregadoras e contrárias a tudo o que preconiza a Organização Mundial de
Saúde, o Ministério da Saúde, as Conferências Nacionais de Saúde Mental e as
legislações vigentes. Já se tem acúmulo suficiente para saber das marcas que uma
institucionalização produz nos corpos das pessoas e o estado tem uma dívida histórica
com esses sujeitos que passaram suas vidas institucionalizados. É um outro modelo de
cuidado, chamado hospitalocêntrico, que sempre esteve em disputa com este modelo
preconizado pelo SUS, que estabelece uma rede de atenção psicossocial.
Por que ainda precisamos lutar para garantir que conquistas da Reforma
Psiquiátrica (Lei nº 10.216 de 2001) e diretrizes aprovadas pelas Conferências de
Saúde sejam respeitadas?
Dentro desses marcos históricos, não podemos esquecer que o Estado do Rio
Grande do Sul foi o primeiro Estado brasileiro a ter uma lei de Reforma Psiquiátrica
aprovada (Lei 9.716/92). Mas mesmo que tenhamos percorrido mais de 20 anos do início
do Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul (Lei 9.716/92) e 14 anos no Brasil,
diferentes realidades coexistem. Ainda constatamos em alguns espaços a permanência
da disputa pela manutenção de uma lógica manicomial, pois essa é uma disputa que
carrega muitos interesses econômicos. Mas a disputa não é somente econômica, também
é uma disputa sobre quem é o proprietário do saber desse modelo de ciência que a gente
vive. E como o próprio Foucault nos fala, o saber tem relação com o poder, no poder que
eu tenho sobre o outro.
Ao entender esse contexto, cabe como desafio das políticas públicas
intersetoriais trabalhar na direção da desassociação do estigma, pois quando o tema vem
fortemente colado à moralidade, as possibilidades de tratamento acabam sendo
inspiradas em modelos manicomiais, de exclusão/separação dos usuários do convívio
social. Ainda com relação à moralidade instituída nos modos de pensar saúde, todas as
existências não reconhecidas como saudáveis dentro da normalidade estabelecida pelo
desejo de captura de um sanitarismo higienista são colocadas como anormais. E são
esses os que mais acabam sofrendo com práticas de internações compulsórias, de
segregação e manicomiais.
Estamos em um campo de disputa constante. Neste campo, faz-se necessário
contemplar estratégias para enfrentar esses novos desafios da Reforma Psiquiátrica, ou
mesmo resgatar seus princípios de que não basta fechar os hospitais psiquiátricos e criar
novos serviços, mas fortalecer a rede de atenção psicossocial e, principalmente, incidir
sobre o olhar da sociedade. É preciso, ainda, repensar as formas de cuidar destas
pessoas, contemplando formas de promoção à saúde, em consonância com o que é
preconizado pela Organização Mundial da Saúde e pela Política Nacional de Saúde
Mental do Ministério da Saúde, que colocam o usuário como protagonista de seu projeto
terapêutico e de vida.
Como você vê o movimento da Luta Antimanicomial hoje no estado? Quais são as
principais ameaças?
O movimento da Luta Antimanicomial no Estado tem estado mais articulado em
alguns momentos e em outro menos. Mas, nesse momento, tem se fortalecido devido às
ameaças dessa nova gestão estadual, que são: o discurso equivocado da epidemia do
crack, que foca na questão dos leitos e a interrupção do processo de
desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos, sendo que o Estado tem uma dívida
histórica com esses moradores que permaneceram durante 30, 40, 50 anos de sua vida
institucionalizados. Porém, o movimento ainda precisa ser potencializado com relação à
participação de usuários, estudantes da saúde e da população em geral. Com relação à
população em geral, precisaríamos ter maior inserção nos meios de comunicação, que
não se tem. A verdade é que toda essa construção do movimento da Reforma Psiquiátrica
não tem muito acesso à mídia, pois, por ser uma pauta positiva, acaba não sendo
interessante. Vende-se com muito mais facilidade o discurso de que “falta leitos” do que o
trabalho que já se faz no território. Além disso, não podemos deixar de lembrar que existe
uma criminalização dos movimentos sociais, e o movimento da Luta Antimanicomial é um
movimento social. Talvez por isso ele enfraqueça em alguns momentos.
Também há de se salientar que, com relação a saúde mental, o nosso estado ainda
é muito conservador. Haja vista a pressão que sempre existiu por parte de alguns setores
e categorias profissionais, que não legitimam a Lei de Reforma Psiquiátrica. Mesmo que o
nosso estado tenha sido pioneiro, tendo sido o primeiro estado a aprovar uma Lei de
Reforma Psiquiátrica (Lei 9716/92), ainda existem muitas disputas. Nosso estado ainda
tem 6 hospitais psiquiátricos, e isso diz muito. Isso sem falar nas muitas clínicas
psiquiátricas privadas, nas Comunidades Terapêuticas e nas casas asilares ilegais, que já
estão sofrendo interdição do Ministério Público. Também há uma cultura enorme por
internações, não só para a saúde mental, mas para todos os agravos. Para se ter uma
ideia, o Ministério da Saúde preconiza um leito de saúde mental integral em hospital geral
para cada 15 mil habitantes e a Organização Mundial da Saúde, por sua vez, um leito
para cada 23 mil habitantes. No Rio Grande do Sul, temos em média um leito de saúde
mental integral (para internações psiquiátricas ou de desintoxicação de álcool e outras
drogas) em hospital geral para cada 8 mil habitantes, todos contratualizados pelo SUS,
sendo que cada um deles lucra do Estado ou do Ministério da Saúde de R$ 4.368,00 a R$
5.510,11 mensais, quase o mesmo valor de um leito de Unidade de Tratamento-Intensivo,
que varia de R$ 3.000,00 a R$ 6.000,00 mensais. E em comparação com outras
especialidades, o Estado tem a média de um leito obstétrico contratualizado pelo SUS
para cada 5 mil habitantes – ou seja, tem pouca diferença no número de leitos para
desintoxicação em álcool e outras drogas do que para ganhar bebê. Então, o que está por
trás do discurso que escutamos repetidamente de que faltam leitos?
Mesmo fazendo esses comparativos, há um forte apelo da mídia e de algumas
categorias profissionais, num movimento contra a Reforma Psiquiátrica, que se utilizam
da necessidade de desenvolver estratégias “efetivas” com relação ao abuso e
dependência do crack, ao enfatizarem a falta de leitos em saúde mental e a necessidade
de revisão da legislação que determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais
psiquiátricos por uma rede de atenção integral em saúde mental. Não podemos negar as
questões econômicas que envolvem esse discurso.
Cabe destacar ainda que, no ano de 2014, uma ação civil pública foi movida pela
Sociedade de Apoio ao Doente Mental (SADOM), Sindicato Médico do Rio Grande do Sul
(SIMERS) e Associação Brasileira em Defesa dos Usuários de Sistemas de Saúde
(ABRASUS) contra o processo de desinstitucionalização do Hospital Psiquiátrico São
Pedro. O governo do estado, por meio da Procuradoria Geral do Estado (PGE) e das
áreas técnicas da Secretaria Estadual da Saúde (SES), recorreu e provou que o processo
de desinstitucionalização deveria seguir, sendo que os desembargadores foram unânimes
em seu voto. Cabe aqui destacar na íntegra a decisão proferida no agravo de instrumento
Nº 70062019690, 2ª Câmara Cível, pelo relator Des. Ricardo Torres Hermann, jp. em 26
de novembro de 2014:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. antecipação de tutela. suspensão da eficácia da Portaria
n. 25/2013. impossibilidade.
1. Descabe ao Poder Judiciário adentrar ao mérito do ato administrativo que decidiu pela
desospitalização dos moradores da área asilar do Hospital Psiquiátrico São Pedro, ainda
mais quando tal política pública encontra-se em conformidade ao disposto na Lei Estadual
n. 9.716, de 07 de agosto, de 1992, que dispõe sobre a reforma psiquiátrica no Estado do
Rio Grande do Sul, determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais
psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental, determina regras de proteção
aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações
psiquiátricas compulsórias.
2. Todavia, possível aferir a legalidade do ato e o cumprimento das cautelas por ele
exigidas. Assim, desde que cumpridos os requisitos legais, possível “Determinar a
desospitalização dos moradores da área asilar do Hospital Psiquiátrico São Pedro com a
transformação das unidades de moradia da instituição em 8 (oito) Moradias de Transição
sob gestão da Divisão de Atenção aos Usuários Moradores – DAUM do Departamento de
Coordenação dos Hospitais Estaduais – DCHE”, não restando dúvidas de que a
verificação de tais requisitos demanda dilação probatória. Situação em que, embora ao
início não restasse claro tal implemento das cautelas exigidas, posteriormente foi
comprovada o atendimento dos pressupostos legais.
Agravo desprovido. Revogação da medida ao início concedida.
O relator, ainda argumenta que: "O Estado juntou uma séria de documentos (fls.
138/205) a indicar que as casas, quatro já em funcionamento, e quatro outras, para as
quais se pretende o encaminhamento de 40 pacientes do Hospital São Pedro, receberão
o atendimento de equipe multidisciplinar, contando assim com Terapeutas Ocupacionais,
Fisioterapeutas, Médicos, Enfermeiros, Educadores Físicos, dentre outros profissionais e
técnicos atuantes.
Além disso, ainda segundo a nova informação apresentada, a Central de Benefícios da
Divisão de Atenção aos Usuários e Moradores – DAUM, estaria reforçando o trabalho de
desinstitucionalização dos egressos do Hospital São Pedro, com a substituição das
curatelas, de forma a que cada residencial, com no máximo 10 moradores, contaria com
um curador dativo. Toda essa movimentação seria acompanhada pela 10ª Promotoria
Cível, de forma a acautelar a regularidade desse processo de desinstitucionalização
promovido pelo Estado.
De que forma a Psicologia pode contribuir na implementação de políticas públicas
voltadas à saúde mental e à qualificação do acesso e do cuidado ofertado pelo
Sistema Único de Saúde?
O psicólogo, bem como qualquer outro profissional em saúde mental, deve
trabalhar na direção da transdisciplinaridade, promovendo articulação entre os
profissionais e os serviços na direção do compartilhamento do cuidado, que se difere dos
processos de referência e contra-referência, apesar de inclui-los também. O conjunto de
estratégias é pensado a partir da demanda de cuidado do usuário, com base em uma
avaliação de risco, reorganizando o processo de trabalho, com objetivo de facilitar o
acesso do usuário às Unidades e Serviços aos quais necessita a partir de um Projeto
Terapêutico Singular construído juntamente com o usuário.
É preciso, também, tomar cuidado com a psicologização, justamente para evitar o
enrijecimento em diagnósticos e, assim, trabalhar com o que há de potencialidade em
cada um. Nesse sentido, esse trabalho é voltado à garantia de direitos, ao
empoderamento dos usuários na sua construção de autonomia, corresponsabilidade e
protagonismo. Nesse sentido, a psicologia pode potencializar o trabalho da garantia de
direitos, enfatizando que não há separabilidade entre clínica e política.
É preciso também proporcionar aos trabalhadores espaços de acompanhamento
numa abertura de escuta que possibilite a fala de barreiras subjetivas que também o
constituem como trabalhador, e que fomentam, muitas vezes, intervenções pautadas por
questões morais, que se refere ao que eu acho que é melhor para o outro, e que é
diferente de um posicionamento ético. Mas a moral que nos constitui sempre nos
atravessa, por isso é preciso acolher isso para que isso possa ser trabalhado.
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