Lezinete Regina Lemes (UFMT)

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ANÁLISE LINGUÍSTICA E SUA OPERACIONALIZAÇÃO NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO MÉDIO
Lezinete Regina Lemes (ICE/ICEC/UFMT)
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1. Introdução
Neste artigo, na tentativa de ampliar as discussões que tomam o livro didático
de Língua Portuguesa (LDP) como objeto de investigação, apresentaremos alguns dados
de nossa pesquisa no que se refere à didatização de atividades referentes à análise
linguística do livro didático Português: Linguagens, escrito por William Roberto Cereja
e Thereza Cochar Magalhães, da editora Atual, volume único, publicado no ano de
2003.
Nosso objetivo de pesquisa foi compreender a constituição da autoria
discursiva em relação à análise linguística. Para esse intento, analisamos o projeto
didático do referido para que pudéssemos escolher as atividades que seriam bases para a
análise como também identificar quais abordagens de gramática perpassavam o LDP
Português: Linguagens.
A compreensão do projeto didático nos exigiu, primeiramente, que
compreendêssemos o conceito análise linguística, proposto por Geraldi (1984) e
assumido pelos documentos oficiais, para que pudéssemos analisar com propriedade o
processo de transposição didática desse conhecimento acadêmico para os livros
didáticos.
Em um segundo momento, apoiamo-nos na teoria enunciativo-discursiva do
Círculo de Bakthin para analisarmos as atividades, a qual nos forneceu conceitos
importantes para entendermos a complexidade do nosso objeto de estudo como também
fundamentar nossa análise. Além disso, assumimos que o livro didático de Língua
Portuguesa é um gênero do discurso, uma vez que se caracteriza como um objeto de
discurso multifacetado (BUNZEN; ROJO, 2005; BUNZEN, 2005, 2007).
Para refletirmos sobre a complexidade do nosso objeto, serão apresentadas
algumas atividades presentes em capítulos/seções destinados à reflexão linguística do
livro Português: Linguagens.
Desse modo, nosso artigo abordará, inicialmente, o conceito análise linguística,
em seguida, apresentaremos nossa compreensão em relação aos documentos oficiais no
que se refere a sua apropriação desse conceito, posteriormente, a análise e nossas
considerações.
2. Análise linguística: proposta de ensino para Língua Portuguesa
O conceito de “prática de análise linguística” apareceu no texto Unidades do
ensino de português, escrito por Geraldi, em 1981. Em 1984, Geraldi reúne diversos
artigos sobre o ensino de Língua Portuguesa, dentre eles, esse texto com algumas
modificações, no livro intitulado O texto na sala de aula. O título é bastante sugestivo,
pois resgata as influências das discussões acadêmicas que estavam ocorrendo nessa
época, em que o texto passa a ser um objeto de ensino tanto para tanto para a leitura e
produção de texto quanto para os tópicos gramaticais.
O pesquisador defende que, no ensino de Língua Portuguesa, deve-se assumir a
concepção de linguagem como interação, articulando as três partes constituintes do
ensino de língua materna: a prática de leitura, a prática de produção de texto e a prática
de análise linguística.
A prática de análise linguística tem como objetivo criar situações didáticas em
que exista um trabalho reflexivo com a língua, tomando como base o eixo de estudo da
linguagem: uso – reflexão – uso. A proposta de Geraldi não desconsidera o ensino
metalinguístico, mas que seja pautado por um olhar reflexivo, a partir de um texto de
um dado contexto de produção e circulação, ou seja, “A perspectiva textual tem a
possibilidade de fazer com que a gramática seja flagrada em seu funcionamento,
evidenciando que gramática é a própria língua em uso” (GERALDI, 1996, p. 109).
Segundo Aparício (2006), na segunda edição do livro, Geraldi acrescentou uma
nota de rodapé a fim de esclarecer para seus leitores o que vem ser a prática de análise
linguística:
O uso da expressão “prática de análise lingüística” não se deve ao
mero gosto por novas terminologias. A análise lingüística inclui tanto
o trabalho sobre questões tradicionais da gramática quanto
questões amplas a propósito do texto, entre as quais vale a pena
citar: coesão e coerência internas do texto: adequação do texto aos
objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos utilizados
(metáforas, metonímias, paráfrases, citações, discursos direto e
indireto, etc.); organização e inclusão de informações; etc.
essencialmente, a prática de análise lingüística não poderá limitar-se à
higienização do texto do aluno sem seus aspectos gramaticais e
ortográficos, limitando-se a “correções”. Trata-se de trabalhar com
o aluno o seu texto para que ele atinja seus objetivos junto aos
leitores a que se destina (GERALDI, 1984, p. 74) [grifo nosso].
Nessa explicação dada pelo linguista, nota-se que ele não exclui o estudo da
gramática nas salas de aula. Aliás, lembramo-nos que, ao ingressar no curso de Letras
em 1998, muito se discutia essa postura que se havia instalado nas aulas de Língua
Portuguesa, pois muitos educadores privilegiaram apenas os dois eixos citados
anteriormente — a prática de leitura e a prática de produção de texto, negando o ensino
da gramática.
Outro dado a assinalar dessa conceituação são as influências de outras
correntes teóricas no estudo de nossa língua, por exemplo, a Linguística Textual, a
Semântica, a Análise do Discurso etc. O propósito é fazer com que os alunos tenham
acesso a diferentes olhares para a sua língua, principalmente, no seu próprio texto,
tomado como foco principal da análise linguística.
Podemos dizer que Geraldi (1996, p. 27) assume a concepção
sociointeracionista para linguagem, “[...] o fenômeno social da interação verbal é o
espaço da realidade da língua, pois é nele que se dão as enunciações enquanto trabalho
dos sujeitos envolvidos nos processos de comunicação social”. Essa concepção baliza
toda sua obra, pois acredita que a escola não pode desconsiderar a realidade social dos
seus alunos, tendo em vista que os processos interlocutivos se fazem presentes nas
diferentes e complexas esferas da atividade humana.
Entendemos que a concepção assumida por Geraldi é o revozeamento da
concepção bakhtiniana para linguagem, precisamente, quando o linguista diz que a
interação verbal é o espaço real do uso da língua. Nas palavras de Bakhtin/Volochinov
([1929] 2006, p. 27), “a interação verbal constitui assim a realidade fundamental da
língua”. Esse revozeamento nos mostra que Academia estava começando a ter contato
com a teoria do Círculo de Bakhtin, que influenciou as pesquisas e os documentos
oficiais — Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP) na
década de 90 e nos anos 2000, Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio
(PCNEM), PCN+ e as Orientações Curriculares do Ensino Médio (OCEM)
Assim, afirmamos que o eixo proposto por Geraldi (1984) evidencia que há uma
relação estreita entre os diferentes enunciados e os usos da linguagem, e a natureza
social das interações evidencia que o sujeito não é uno, ele faz parte de uma
coletividade, em que a complexidade e a multiplicidade das relações sociais fazem com
que cada um de nós, durante nossas diversas interações, sejamos constituídos pelo
outro.
A concepção bakhtiniana de linguagem, — como interação verbal —, também
pode ser vista em alguns projetos autorais de determinados livros didáticos de Língua
Portuguesa (doravante LDP). Seus autores têm buscado criar condições didáticas que
estejam em diálogo tanto com os critérios de avaliação empregados pelos pareceristas
do Ministério da Educação (MEC) quanto com os documentos oficiais.
Em vista disso, dizemos que o eixo da reflexão sobre a linguagem ou da prática
de análise linguística é uma possível solução para um dos grandes temas da área, o
ensino da gramática. Pensar em gramática é trazer à tona diferentes perspectivas que a
consideram imprescindível para a formação de bons leitores e produtores de textos.
Dominar a gramática, pelo conhecimento da nomenclatura, é, para alguns, sinônimo de
se dominar a língua, pois o usuário competente seria o que “conhece essas normas e as
domina tanto nocionalmente quanto operacionalmente” (FRANCHI, 2006, p. 16). Já
para outros pesquisadores, isso está na contramão do que se pensa sobre ensinoaprendizagem de língua, pois a variedade padrão não é a realidade linguística da grande
maioria dos usuários da nossa língua.
Isso evidencia que didatizar conteúdos gramaticais diante de novos enfoques
no ensino de língua materna é um trabalho árduo, pois, por exemplo, não abordar a
gramática nos livros didáticos é negar uma concepção de ensino que fora instituída
desde o período greco-romano. Nosso ponto de vista é confirmado nesta afirmação de
Franchi (2006, p. 52), quando diz que
A crítica aos estudos gramaticais em nossas escolas só tem razão
porque é crítica a um certo modo de conceber a gramática e de prática
com nossos alunos. Ou melhor, porque na verdade não existe
propriamente uma só concepção servindo de base às noções,
conceitos, relações e funções com que se opera nas análises e
descrições feitas na escola e em nossos livros didáticos. Trata-se de
uma tradição (num sentido quase mecânico de tradição) que foi
acumulando e catalogando questões, problemas, soluções específicas,
definições: um baú de guardados. Alguns trazem marcas de um tempo
que vai lá longe aos Aristóteles e Platões; outros lembram Port-Royal
ou Jespersen ou Martinet ou Sapir ou Saussure ou Soares Barbosa [...]
Essas considerações de Franchi nos mostram que muitas discussões sobre o
ensino de Língua Portuguesa buscam compreensão sobre os diferentes problemas que
cercam esse conteúdo curricular, desde a concepção de gramática à formação de
professores.
3. O que nos dizem os documentos oficiais sobre a análise linguística
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP)
afirmam que a linguagem é tomada “como atividade discursiva, o texto como unidade
de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de
sua linguagem” (PCNLP, 1998, p. 27).
Segundo esse documento, as práticas discursivas devem ser uma prática
contínua, possibilitando aos alunos, “por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos
aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno,
progressivamente, ampliar sua competência discursiva” (PCNLP, 1998, p. 27).
Nesse sentido, o estudo da gramática deve estar articulado às práticas de uso e
reflexão da linguagem, numa tentativa de redimensionar o ensino tradicional, que
privilegia o conhecimento da nomenclatura e não faz um trabalho de reflexão sobre o
uso de determinado elemento gramatical numa dada situação, isso é,
o ensino de Língua Portuguesa deve se dar num espaço em que as
práticas de uso da linguagem sejam compreendidas em sua dimensão
histórica e em que a necessidade de análise e sistematização teórica
dos conhecimentos linguísticos decorra dessas mesmas práticas
(PCNLP, 1998, p. 34).
Segundos os PCNLP, a partir do momento que texto/gênero é tomado como
objeto de ensino, caberá ao professor sistematizar o ensino dos tópicos gramaticais. As
orientações dadas por esse documento revozeam as contribuições de Geraldi (1984), o
qual propôs o eixo para o ensino de Língua Portuguesa. É importante dizer que, nos
procedimentos metodológicos, os PCNLP deixam claro que o professor selecionará o
material que usará em sala de aula. .
Em relação aos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (PCNEM, 1999), os
quais foram elaborados sob a influência do documento anterior (Parâmetros
Curriculares Nacionais), notamos algumas semelhanças com o discurso dos PCNLP, no
que tange ao estudo da linguagem a fim de garantir que os alunos sejam indivíduos
participativos no meio social em que estiverem inseridos:
No mundo contemporâneo, marcado pelo apelo informativo imediato,
a reflexão sobre as linguagens e seus sistemas, que se mostram
articulados por múltiplos códigos, e sobre os processos e
procedimentos comunicativos é mais do que uma necessidade, é uma
garantia de participação ativa na vida social, a cidadania desejada
(PCNEM, 1999, p. 15-16).
Para atingir esse intento, os PCNEM afirmam que serão selecionados alguns
conteúdos que possam garantir sua participação na vida social: “o estudo da língua
materna na escola aponta para uma reflexão sobre o uso da língua na vida e na
sociedade” (PCNEM, 1999, p. 33).
Os PCNEM iniciam o tópico sobre o ensino da gramática, afirmando que até o
momento em que o material foi elaborado, o conhecimento gramatical era o “eixo
principal”, que “descrição e normas se confundem na análise da frase, essa deslocada do
uso, da função e do texto” (PCNEM, 1999, p. 34-35). Na tentativa de propor um melhor
caminho para o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio, adota-se como
concepção de língua(gem) o sociointeracionismo. Segundo o documento,
O processo de ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa deve
basear-se em propostas interativas língua/linguagem, consideradas
em um processo discursivo de construção do pensamento simbólico,
constitutivo de cada aluno em particular e da sociedade em geral
(PCNEM, 1999, p. 37-38) [grifo nosso].
Considerando que, em boa medida, os documentos assumiram a concepção
sociointeracionista para o estudo da língua(gem), o estudo da gramática deverá
privilegiar esse movimento discursivo, em que as questões gramaticais serão estudadas
junto à produção de texto, pois o “estudo da gramática passa a ser uma estratégia para
compreensão/interpretação/produção de textos” (PCNEM, 1999, p. 38). Embora os
PCNEM não abordem a nomenclatura prática de análise linguística, observamos que há
orientações para um ensino direcionado ora a prática reflexiva, ora a prática
“utilitária/estratégica”, o que em nossa opinião desconsidera o propósito do eixo de
ensino criado por Geraldi (1984).
Em 2000, publicaram-se os PCN+ a fim de eliminar algumas contradições
teóricas que foram apontadas nos PCNEM (1999). Nos PCN+, a proposta de ensino
para a língua materna ganha outros eixos: interativa, textual e gramatical. Esses eixos
permitirão que se desenvolvam competências necessárias para que os alunos tenham
uma participação efetiva no meio social do qual fazem parte. Para isso, os textos são o
objeto de ensino os quais possibilitarão o desenvolvimento das competências interativa,
textual e gramatical.
Em relação à competência gramatical, os PCN+ afirmam que o conceito de
gramática que deverá dar sustentação ao ensino na escola não é o de gramática
normativa, devendo ser estendido “para outras linguagens, além da língua. Assim, podese falar numa gramática da linguagem musical, numa gramática da linguagem do corpo
etc.” (PCN+, 2000, p. 42). Além disso, esse documento oficial quer redimensionar o
ensino de gramática, buscando apoio na gramática descritiva como também direciona a
prática do professor para uma base menos normativa, conforme as orientações postas na
tabela 1 (usos da língua) e tabela 2 (ensino de gramática: algumas reflexões1). A
proposta, embora seja inovadora, é conflituosa, na medida em que ao longo do texto,
fala-se da língua(gem) sob óticas diferentes, o que compromete o texto em si.
Dessa forma, notamos um discurso orientado para o desenvolvimento de
competências e habilidades e, em relação às duas tabelas, observamos que as
orientações dadas no que tange às competências gerais são as mesmas: a questão sóciohistórica deve ser levada em consideração no ensino de língua materna.
Já as competências específicas são diferentes no que se referem às unidades
temáticas. Em usos da língua, propõe-se estudar a língua, procurando enfocar seu uso
em diferentes contextos, evidenciando a variedade linguística. E, em ensino de
gramática: algumas reflexões, a proposição é diferenciar a gramática normativa e
descritiva. Inferimos dessas orientações que o trabalho do professor em sala de aula
deverá ser pautado pelo ensino metalinguístico e reflexivo.
Se levarmos em consideração as afirmações de Geraldi (1984) de que a
proposta de reflexão sobre a língua parte do uso dos elementos gramaticais em
diferentes contextos, a proposição dos documentos está, apesar de algumas lacunas,
coerente com as orientações dos estudiosos da linguagem.
Segundo Mendonça (2006, p. 208), o trabalho com a análise linguista é
configurada na
reflexão recorrente e organizada, voltada para a produção de sentidos
e/ou para a compreensão mais ampla dos usos e do sistema
linguísticos, com o fim de contribuir para a formação de leitoresescritores de gêneros diversos aptos a participarem de eventos de
letramento com autonomia e eficiência.
1
Essas tabelas estão, respectivamente, nos anexos 1 e 2.
No ano de 2006, publicou-se um novo documento para o Ensino Médio a fim
de eliminar as falhas diagnosticadas nos documentos anteriores (PCNEM, 1999; PCN+,
2000). O novo documento é denominado Orientações Curriculares para o Ensino Médio
(OCEM). As OCEM mantêm o discurso que permeia todos os documentos anteriores
aqui abordados, tanto do Ensino Fundamental quanto do Ensino Médio, de que o texto é
objeto de ensino a ser trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa como também a
reflexão sobre a língua(gem) deve ser realizada:
[...] as ações realizadas na disciplina Língua Portuguesa, no contexto
do ensino médio, devem propiciar ao aluno o refinamento de
habilidades de leitura e de escrita, de fala e de escuta. Isso implica
tanto a ampliação contínua de saberes relativos à configuração, ao
funcionamento e à circulação dos textos quanto ao desenvolvimento
da capacidade de reflexão sistemática sobre a língua e a linguagem.
(OCEM, 2006, p. 18)
No que tange à concepção de língua(gem) assumida pelas OCEM, fez-se um
resgate de forma encadeada e coerente sobre as diferentes concepções que norteiam o
ensino de língua materna. Entendemos que a intenção é eliminar todas aquelas
contradições teóricas que foram diagnosticadas nos documentos anteriores (PCNEM,
PCN+) e, assim, solidificar a concepção de língua(gem) do documento, o
sociointeracionismo.
Observamos que, nesse documento, o módulo de ensino “prática de análise
linguistica” é abordado no eixo denominado eixos organizadores das atividades de
Língua Portuguesa no Ensino Médio – análise dos fatores de variabilidade das (e
nas) práticas de língua(gem). Nesse eixo, a reflexão sobre a língua levará em conta as
contribuições da Linguística Textual, da Análise do Discurso etc.
As OCEM afirmam que o trabalho com a Língua Portuguesa, em sala de aula,
deverá ser feito de forma planejada, operacionalizando conteúdos em eixos temáticos
que sejam pertinentes para aquela série/aquele ano.
[...] os projetos de intervenção didática [...] tomarão como objeto de
ensino e de aprendizagem tanto as questões relativas aos usos da
língua e suas formas de atualização nos eventos de interação (os
gêneros do discurso) como as questões relativas ao trabalho de análise
lingüística (os elementos formais da língua) e à análise do
funcionamento sociopragmático dos textos (tanto os produzidos pelo
aluno como os utilizados em situação de leitura ou práticas afins)
(OCEM, 2006, p. 36).
Com base no que aqui foi exposto, afirmamos que trabalhar o módulo de ensino
análise linguística em sala de aula não é uma das tarefas mais fáceis, tendo em vista que
o professor possui uma formação que direciona o desenvolvimento de suas atividades
em sala de aula para uma prática tradicional.
Em um livro didático, tal tarefa torna-se mais complicada, pois seus autores
devem articular os três eixos de ensino proposto por Geraldi de forma que haja uma
progressão nos conteúdos selecionados para o livro daquela série/daquele ano como
também seguir as orientações dos documentos oficiais. E a nossa pretensão neste artigo
é apresentar o processo de didatização da análise linguística nos livros didáticos de
Língua Portuguesa.
4. Compreendendo a operacionalização das atividades de análise linguística
A análise a ser apresentada é do livro didático Português: linguagens, dos
autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, publicado em 2003, pela
editora Atual.
Cada unidade temática desse livro é constituída por 4 a 7 capítulos. Os nomes
dos capítulos estão atrelados aos objetos de ensino, previstos para o Ensino Médio:
Língua: uso e reflexão, Literatura e Produção de Texto. Para cada módulo de ensino, foi
destinado um número variável de capítulos: Língua: uso e reflexão (09), Literatura (24)
e Produção de Texto (16). A divisão dos capítulos segue a fragmentação que ocorre no
ensino de língua materna. Cada capítulo está organizado em seções relacionadas ao
estudo dos movimentos literários, à produção de texto e à abordagem de conhecimentos
linguísticos. Para efeito de estudo, nosso foco estará centrado apenas na seção destinada
aos conteúdos gramaticais.
O capítulo destinado ao ensino dos aspectos gramaticais recebe a denominação
Língua: uso e reflexão. Os conteúdos previstos giram em torno da Linguística Textual,
da Semântica, da Análise do Discurso, das regras postuladas pela Gramática Normativa.
Os conhecimentos linguísticos são explorados nestas seções, conforme esta ordem:
Construindo o conceito, Conceituando, Exercícios, A categoria gramatical na
construção do texto, Semântica e interação, Para compreender o funcionamento da
língua, boxes.
Na análise do livro, identificamos quais abordagens de gramática os autores
adotaram para transpor os conhecimentos linguísticos. Em nosso caso, observamos que
foram assumidas duas — descritiva e normativa.
Entendemos que a abordagem normativa é aquela em que o ensino das regras
gramaticais dá-se de forma transmissiva, em que não existe preocupação em apresentar
uma situação de uso para os usuários do livro. Já a abordagem descritiva privilegia o
uso de determinados fatos linguísticos em uma dada situação e procura explicar esse uso
para que os usuários do livro compreendam suas regras.
No que concerne às atividades de análise linguística, localizamos dois tipos de
abordagem e, em boa parte, ocorriam ao mesmo tempo, o que fez com que a
denominássemos de abordagem mesclada, pois era de caráter reflexivo e
metalinguístico.
Caracterizamos a abordagem metalinguística como sendo aquela em que os
usuários do livro serão levados a fazerem exercícios estruturais, de fixação do conteúdo
visto no capítulo. Nesse tipo de atividade, há grande ocorrência destes verbos:
identifique, classifique, reescreva, copie, transcreva, substitua. Já a abordagem
reflexiva é aquela em que o objetivo é fazer com que os usuários apliquem o
conhecimento que já fora dado numa perspectiva reflexiva, isso é, eles deverão
compreender e saber explicar como aquelas ocorrências linguísticas dão-se em um
determinado texto/gênero.
Com base nessa reflexão mesclada (transmissiva e reflexiva), inferimos que
existe certa tensão no que tange à didatização dos conteúdos gramaticais no livro
didático de Língua Portuguesa. Os exemplos a seguir evidenciam nossa afirmação.
Exemplo 1
Exemplo 2
Na proposição dos exercícios do exemplo 1, observamos que os autores partem
das ocorrências linguísticas apresentadas nos anúncios para inserir outras variedades,
além da variedade padrão. A proposta é reconhecer as variantes linguísticas no contexto
de produção e compreender esse uso linguístico nos anúncios:
a) Além da variedade padrão, de que outra variedade lingüística o
anunciante fez uso no anúncio? (Atividade 1)
b) Qual é o modo dessa variedade: oral ou escrito? Justifique com
elementos do texto. (Atividade 2)
c) Quanto ao grau de formalismo, a variedade lingüística empregada
pode ser considerada formal, informal ou coloquial? (Atividade 2)
Segundo as orientações dos PCNEM (1999, p. 47), o trabalho com a variedade
linguística será investigativo, para que os alunos compreendam a diferença existente nos
usos da nossa língua: “Articular as redes de diferenças e semelhanças entre a língua oral
e escrita e seus códigos sociais, contextuais e linguísticos.”
Na proposição dos exercícios supracitados, busca-se essa articulação. Ao
abordar as variedades, os autores tentam responder, em certa medida, também ao
discurso da Sociolinguística. Por um longo período no ensino de Língua Portuguesa, a
variedade padrão era tida como a única e todas aquelas que não estivessem de acordo
com ela eram desprestigiadas.
Nos exercícios do exemplo 1, observamos que o plurilinguismo se faz presente,
na medida em que o gênero LDP traz outro gênero — o anúncio — a fim de abordar
outras variedades linguísticas existentes em nossa língua. Essa idéia está baseada na
afirmação de Bakhtin (1934-35/1975) segundo a qual os gêneros intercalados são
exemplos de plurilinguismo. Conforme Bakhtin ([1934-35/1975] 2002, p. 125), o
romance admite em sua composição diferentes gêneros, os quais “[...] introduzem nele
as suas linguagens e, portanto, estratificam a sua unidade lingüística [...]”. De forma
análoga, dizemos que o plurilinguismo presente na obra didática pode ser resultado da
proposta do projeto autoral ou pode ser que, durante a escritura do livro, os autores
resolveram didatizar as variedades linguísticas, tornando-se um acontecimento
discursivo, integrando-se à obra didática.
No exemplo 2, verificamos que a abordagem foge daquilo que havia sido
apresentado no exemplo 1. Os autores-criadores desconstroem o ensino reflexivo e
apresentam aos seus leitores um enfoque tradicional. Entretanto os autores buscam
procedimentos linguísticos que não identifiquem a abordagem tradicional na proposição
das atividades referentes ao objeto de ensino priorizado nessa seção: plural dos
substantivos e dos adjetivos compostos.
1. Suponha que você tivesse que empregar no plural os substantivos
e adjetivos a seguir. Como ficariam?
2. Como ficariam os seguintes adjetivos compostos no plural?
3. Forme os adjetivos pátrios compostos para os seguintes
substantivos.
Nos dois primeiros enunciados, destacamos que os autores, apesar de tentarem
um viés diferente para abordar a questão gramatical, ainda mantém uma abordagem
normativa para a questão do plural dos substantivos e adjetivos. Os autores, para
fugirem da visão tradicional, fazem uso do período subordinado (exercício 1), em que o
modo subjuntivo colabora para que o enunciado não remonte aos exercícios estruturais.
Entretanto o formato dos exercícios põe em evidência uma prática bastante antiga, cujo
verbo era bastante presente nesse tipo de atividade “Passar”, cujo enunciado pode ser
retomado assim: “Passe para o plural os substantivos e adjetivos”. Sendo assim, há
apenas uma roupagem nova para uma velha prática.
O enunciado do exercício 3 reafirma nosso ponto de vista, embora os autores
tenham buscado outro verbo, neste caso, “Formar”. Podemos dizer que as forças sociais
podem ser inferidas nos enunciados dos exercícios. A força centrífuga é a voz da
mudança, da inovação e a força centrípeta é a voz da tradição.
Em nosso entendimento e de outros pesquisadores (ROJO, 2007; BUNZEN,
2005), no discurso autoral, atuam duas séries de forças, denominadas por Bakhtin de
centrífugas e centrípetas.
As forças centrípetas constituem-se no discurso da tradição, que objetiva a
manutenção de procedimentos didáticos que explorem a Língua Portuguesa apenas pela
perspectiva metalinguística. Isso é, o foco está na apresentação de atividades de
localização, classificação, não há preocupação com o contexto de produção. Bakhtin
afirma que “a categoria da linguagem única é uma expressão teórica dos processos
históricos da unificação e da centralização lingüística, das forças centrípetas da
língua” ([1934-35/1975] 2002, p. 81) [ênfase adicionada].
Já as forças centrífugas estão presentes no discurso dos documentos oficiais,
bem como, em grande parte, dos discursos pesquisadores, dos professores, dos autores
de livros didáticos. Todos querem que haja uma nova perspectiva na didatização dos
conteúdos gramaticais, quer dizer, um olhar reflexivo para os usos linguísticos. Para
Bakhtin ([1934-35/1975] 2002, p. 82),
[...] ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das
forças centrífugas da língua, ao lado da centralização verboideológica e da união caminham ininterruptos os processos de
descentralização e desunificação. [grifo nosso]
Dessa forma, consideramos que os autores inserem seu discurso, sua voz, num
formato que esteja próximo da concepção sociointeracionista da língua, por meio da
estratégia linguístico-textual. Contudo a estrutura dos exercícios refuta toda essa
concepção, pois neles não se consegue apagar a postura conservadora quantas às
questões gramaticais.
Inferimos disso que os autores têm responsabilidade frente ao papel social que
desempenham, pois devem se pautar no que está sendo discutido/posto no cenário
educacional atual, pois, a nosso ver, eles, através de sua obra didática e através do
amplo alcance dela, auxiliam na promoção de uma formação cidadã.
Nossas considerações
Os autores-criadores têm uma tarefa árdua em relação à didatização dos objetos
de ensino que sempre tiveram uma abordagem tradicional. Compreender os caminhos
teóricos e transpô-los para um material didático exige deles uma alteração em suas
concepções de língua(gem) como também encontrar caminhos para uma didatização
satisfatória, tendo em vista que a prática de análise linguística está articulada com outros
módulos de ensino, leitura e produção de texto.
Na análise dos dados de nossa pesquisa e nos exemplos aqui apresentados neste
artigo, observamos que o projeto autoral do livro didático Português: linguagens, bem
como de outros livros que analisamos durante o desenvolvimento de nosso trabalho,
busca uma roupagem diferenciada para abordar os conteúdos gramaticais. Isso pôde ser
visto na medida em que os autores procuraram dialogar com seus diferentes autores-
contempladores (avaliadores do PNLEM, documentos oficiais, professores,
pesquisadores), procurando responder ativamente às suas ideias.
Consideramos, assim, que as forças centrífugas e centrípetas se fazem
presentes nos projetos autorais dos livros didáticos de Língua Portuguesa, demonstrando
que elas são indícios de que o processo de ensino-aprendizagem de língua materna no
que se refere à análise linguística ainda reflete e refrata essas duas forças.
Referências
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1996.
ANEXOS
ANEXO 1
(PCN+, 2000, p. 72)
ANEXO 2
(PCN+, 2000, p. 73)
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