saberes, cultura e química - HCTE

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SABERES, CULTURA E QUÍMICA
Regina Simplìcio Carvalho
Departamento de Química (DEQ)/Universidade Federal de Viçosa (UFV)
[email protected]
Bruna dos Santos Lopes
Departamento de Química (DEQ)/Universidade Federal de Viçosa (UFV)
[email protected]
Resumo: Este trabalho teve como proposta o resgate de saberes populares de
habitantes da Zona da Mata Mineira, utilizando como instrumento de coleta de dados
entrevistas semi-estruturadas. O uso de plantas caseiras como remédio e para
higiene pessoal foram mencionadas assim como o saber fazer do sabão dicuada. A
troca de saberes tem sido incentivada no processo educacional, tanto para a
valorização da cultura popular e dos detentores dos saberes como para a
popularização da própria ciência.
Palavras chaves: Saber popular; saber científico; química.
Desde a chamada revolução científica observa-se a consolidação da ruptura
entre conhecimento popular e o científico e a conseqüente valorização do científico
em detrimento do popular. Esta hegemonia do conhecimento científico foi reforçada
pelo positivismo ao considerar a ciência como neutra, asséptica e detentora da
verdade. No entanto, com o abalo da credibilidade da ciência enquanto provedora
exclusiva do bem social, pelos desastres oriundos do seu mau uso, como as
bombas atômicas e danos ambientais, outras vertentes de pensamentos começaram
a surgir.
Somando-se a isso, a universalização do ensino e o crescente acesso dos
diferentes grupos sociais, gerou uma demanda pela interação entre esses diferentes
grupos e a interlocução entre os saberes, tornou-se imprescindível e urgente
(GONDIN, 2007; GONDIN et al, 2009).
Diversas áreas de saber têm procurado reintegrar os saberes populares.
Esses saberes são diversificados, específicos e geralmente produzidos como prática
social de um pequeno grupo diferindo, pois do senso comum que tem caráter
universal e uniforme (GONDIN et al, 2009; CHASSOT, 1996). A farmácia e
bioquímica tem aprendido muito com os conhecimentos tradicionais dos povos
ameríndios e a agroecologia também tem se beneficiado desse diálogo buscando
uma nova matriz cognitiva, onde os conhecimentos científicos dialogam com os
saberes populares, para recriar processos harmônicos entre os atores sociais
(ANDRADE, 2010). Da mesma forma, a educação tem ampliado seu olhar para
incorporar o diferente e perceber que não há uma só "metodologia" possível
(GONDIN, 2007; GONDIN et al, 2009). Detecta-se, pois a valorização da alteridade
e a ampliação do diálogo entre os saberes.
Desde 1990, os educadores e pesquisadores passaram a questionar a
superioridade do saber científico e começaram a considerar as relações entre
cultura e educação científica. A cultura popular e o conhecimento cultural passaram
a ser considerados nos estudos de ciências (GONDIN, 2007; GONDIN, 2008).
Conforme Chassot (2008) os saberes populares devem ser trabalhados “à luz
dos saberes acadêmicos para então deles se fazerem saberes escolares”
(CHASSOT, 2008, p.09).
As inter-relações entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS) devem ser
exploradas utilizando recursos e problemas locais para as problematizações, para
que, em uma etapa posterior possa se desenvolver currículos em torno de
conteúdos científicos que expliquem técnicas e práticas populares, com o objetivo de
formar cidadãos críticos, capazes de tomar decisões responsáveis diante dos
problemas vividos pela sociedade (GONDIN et al, 2009; CHASSOT, 1996)
Neste trabalho fizemos um resgate de saberes populares com a perspectiva
de transformá-los em saberes escolares. Em um processo de valorização da cultura
popular e dos autores do processo, os detentores do saber.
No curso de sua história, o ser humano acumulou informações sobre o
ambiente que o cerca e, esse acervo baseou-se na observação dos fenômenos e
das características da natureza assim como na experimentação empírica desses
recursos, entre eles os saberes relativos ao mundo vegetal, com ênfase no estudo
das plantas medicinais (JORGE et al, 2009).
Com o desenvolvimento das ciências naturais e da antropologia e a partir de
meados do século XX, a etnobotânica começou a ser compreendida como o estudo
das inter-relações entre povos primitivos e plantas, envolvendo o fator cultural e sua
interpretação, surgindo como mediadora entre os discursos culturais.
No Brasil, o conhecimento das propriedades de plantas medicinais é uma das
maiores riquezas da cultura indígena. O índio conhece em profundidade a flora
medicinal, obtendo dela os mais diversos remédios (GASPAR, 2011).
A diversidade da flora associada à tradição do uso de plantas medicinais são
aspectos que devem ser ressaltados e estimulados, pois o cerrado brasileiro tem
sofrido progressivamente uma destruição antrópica que compromete a sua
biodiversidade e até mesmo em termos econômicos é mais viável investir em
medicamentos com insumos naturais. Nessa perspectiva, em Goiás, os raizeiros
contam com a ajuda de grupos sociais: Pastoral da Saúde e Organização nãogovernamental Pacari para manterem o patrimônio material e imaterial (BORGES,
2009).
Em Mato Grosso, populações tradicionais recorrem ao uso de espécies
vegetais como alternativa terapêutica. O bairro Santa Cruz na cidade de Chapada
dos Guimarães abriga famílias que conservam esses saberes transmitidos por
gerações (ARAUJO, 2009). Os integrantes da comunidade acreditam no benefício e
fazem uso de plantas medicinais, assim como utilizam o remédio caseiro como a
primeira opção de medicamento, disponíveis em seus quintais ou no Cerrado.
Já no norte de Minas Gerais o saber popular foi discutido a partir da tradição e
dos usos das plantas medicinais pelos curandeiros, que diagnosticam, indicam e
orientam o remédio proveniente das plantas medicinais (BORBA & MACEDO, 2006).
Esses curandeiros preparam, a partir das plantas, compostos, garrafadas, xaropes,
pomadas entre outros; e diagnosticam, prescrevem as plantas medicinais de acordo
com a enfermidade.
A população, de um modo geral, adquiriu a tradição de utilizar as ervas com
propriedades medicinais como remédio para enfermidade e terapia para o alívio da
dor.
A investigação farmacológica e fitoquímica das plantas presentes nos biomas
brasileiros pode ser uma alternativa, uma vez que este território possui cerca de
55000 angiospermas, consideradas as mais promissoras quando se trata de
desenvolvimento de novas drogas a partir do Reino vegetal (RODRIGUES &
DUARTE, 2010).
A floresta amazônica apresenta altos índices de biodiversidade e endemismo,
estima-se que possua entre 25000 a 30000 espécies vegetais endêmicas. Em um
levantamento etnofarmacológico a respeito do uso de recursos vegetais, animais e
minerais com fins terapêuticos pelos moradores do isolado Parque Nacional do Jaú
(PNJ), constatou-se o fortalecimento de uma terapêutica própria de seus moradores,
cuja ancestralidade inclui índios, africanos e europeus (RODRIGUES & DUARTE,
2010).
O etnofarmacólogo precisa entender doenças que não se encaixam naquelas
tratadas
pela
medicina
convencional,
denominadas
“síndromes
culturais”
(GUIMARÃES, 2012). Habitualmente, o índio usa uma planta para cada
enfermidade, já, o negro usa misturas e particulariza o tratamento. A farmacopéia de
comunidades ribeirinhas ao longo do rio Unini, no norte do Amazonas foi estudada e
foi constatado que poucos ribeirinhos usam a medicina tradicional, a maioria já tem
acesso à saúde comunitária. Os saberes relacionados às plantas medicinais correm
o risco de extinguir-se na região. Muitas das ervas medicinais vendidas na cidade
não são o que deveriam ser, e os clientes ao ingerilá-las correm o risco de agravar
os problemas de saúde, além disso foram encontrados nas plantas comercializadas
altos teores de contaminação por fungos e bactérias (GUIMARÃES, 2012).
Metodologia da pesquisa
Inicialmente foi realizada a pesquisa bibliográfica do tema, assim como as
melhores estratégias para a pesquisa qualitativa (LUDKE,1986). Foi feita a opção
metodológica de utilização de entrevista semi-estruturada como instrumento de
coleta de dados. Uma pesquisa de campo foi realizada detectando possíveis
entrevistados com faixa etária superior a 60 anos, detentores de saberes. Foram
realizadas entrevistas com quatro pessoas, todas na terceira idade, residindo em
zona urbana, mas que tinham vivido a infância e a adolescência na zona rural da
região da Zona da Mata Mineira.
Com os dados coletados foram estabelecidas correlações entre os saberes
populares e os saberes científicos.
Resultados e discussão
O trabalho de resgate da memória foi realizado através de entrevistas semi
estruturadas pela estudante participante do projeto. Foram quatro os entrevistados,
sendo três senhoras e um senhor. Trataremos aqui os entrevistados pelas iniciais
dos seus nomes.
A entrevistada M.S.L. citou em sua entrevista o uso da babosa e do lírio.
“_______Ao lavar o cabelo, eu punha folhas de babosa socada e folha
de liro, para dar brilho e hidratação”. (M.S.L)
A babosa é de origem africana, pertence à família das Liliáceas e é parecida
com o cacto. Existem cerca de 300 exemplares de sua espécie. A mais conhecida é
a Aloe Vera. Rica em Lignina, minerais, cálcio, potássio, magnésio, zinco, sódio,
cromo, cobre, cloro, ferro, manganês, betacaroteno (pró-vitamina A), vitaminas B6,
B1, B2, B3, E, C, ácido fólico e colina, esta planta pode ser utilizada de diversas
formas e para vários fins.
No tratamento de queimaduras, ferimentos, inflamações queda de cabelo e
espinhas a babosa é utilizada em uso tópico. Sua polpa pode ser utilizada como
vermífugo e digestivo em uso interno, e sua resina pode ser utilizada como laxante.
O lírio é o nome comum dado as flores do gênero do Lilium da familia
Liliaceae, originarias do hemisfério norte com ocorrências na Ásia, Europa e America
do Norte. Não foram encontradas referências quanto ao uso no cabelo, apenas
como adstringente para a pele.
Em outro trecho da entrevista a “folha de mamão” foi citada como alvejante
para roupas brancas, porém, nas referências pesquisadas não foi confirmada essa
utilização.
Os entrevistados M.S.L e G.M. relataram que fazem uso do chá de Hortelã
para fins medicinais.
A Hortelã (Menthapiperita), ou Menta, é uma das plantas medicinais mais
antigas. A hortelã é encontrada em uma ampla variedade e foi verificado ser um
híbrido de duas plantas diferentes. As folhas da planta são usadas medicinalmente e
os princípios ativos incluem um óleo volátil, taninos e substâncias amargas, todos
com valor para a ação carminativa da planta, que aumenta a secreção dos sucos
digestivos e melhora as contrações musculares do estômago, aliviando os gases
intestinais. O óleo volátil dá à hortelã seu aroma característico e contém 50 a 60%
de mentol. Esta é provavelmente a parte mais importante do óleo de hortelã.
A ação espasmolítica da hortelã é útil para qualquer forma de espasmos no
intestino, mas particularmente aos que ocorrem na Síndrome do Intestino Irritável.
A utilização do sabão caseiro foi citada assim como o saber fazer desse
sabão.
“______ Eu uso óleo e soda cáustica, 21 de óleo e 11 de soda e o
resto de água” (M. T. G.)
“_______Eu fazia sabão caseiro preto, feito de dicuada de cinza de
fogão de lenha e fruta de cutieira” (M. S. L.)
O fruto da cutieira é um coquinho com cerca de 7 cm de diâmetro, contendo
em seu interior entre 1 e 3 castanhas.
Foi também citado o uso do chá de erva cidreira como calmante, o chá de
elevante para gripe, chá de alecrim para dor de cabeça, enxaqueca e colesterol, chá
de funcho e chá de boldo para azia e mal estar e chá de Macaé.
O uso do barro branco para pintar fogão à lenha e da fruta-de-gentio para
pintar paredes foram mencionados. O barro branco ou tabatinga era encontrado
abundantemente no fundo dos rios. A fruta-de-gentio é mais conhecida como melãode-são-Caetano, mas não foram encontradas referências sobre o seu uso como
pintura.
Para tintura de roupas foi citado o uso de sementes de urucum.
Chá de arruda para lavar os olhos e chá de gengibre para dor de cabeça e
garganta. O mel e fubá foram citados como esfoliantes dos pés.
Em uma segunda etapa, foi feita uma pesquisa sobre os principais
constituintes das plantas citadas nas entrevistas. Os resultados dessa pesquisa,
dispostos em forma de tabela (MARTINS, 2000), foram levados aos entrevistados
para esclarecê-los sobre os componentes químicos. No entanto, percebemos uma
descrença, quanto àquela informação, ou seja, ficaram incrédulos quanto a
possibilidade dos chás que usavam habitualmente possuírem aqueles compostos.
Logo se percebeu que é preciso traçar estratégias mais eficientes para percorrer o
caminho contrário. Ou seja, o de levar o conhecimento científico já consolidado até
os detentores do saber popular, e principalmente confirmar se é desejo deles
adquirirem esse novo conhecimento.
Considerações finais
É consenso entre os pesquisadores que os ensinamentos que são passados
de geração em geração, além de seu valor cultural, tem também o seu valor
científico. Os remédios que nossos antepassados usavam vão muito além de mitos.
No entanto, observamos pela dificuldade em escolher os entrevistados, que estamos
perdendo os nossos autênticos detentores dos saberes populares. Aqui utilizamos o
termo autêntico para aqueles que receberam os saberes através, exclusivamente,
da memória oral. Quando o meio acadêmico passa a se ocupar com o estudo dos
saberes populares e a registrá-los passamos então a perpetuar o conhecimento de
outra forma, através da memória escrita. Então é provável que as novas gerações o
conhecimento não venha genuinamente apenas da memória oral, resta saber se é
positivo ou não. Teremos o conhecimento registrado, mas estes conhecimentos de
determinado grupo social será perpetuado com o saber fazer daquele grupo ou se
transformará em senso comum, mas não inserido em suas práticas. Ou seja, as
novas gerações irão ler a receita do saber fazer, mas não farão mais, pois o ato de
comprar é muito mais prático e fácil e o saber fazer não é mais valorizado em nossa
sociedade da informação.
Referências
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