Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva
© Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 20 – A Língua Portuguesa e os crioulos de base lexical portuguesa.
Divergência e Convergência no Processo de Aprendizagem do
Português: os Jovens Aprendentes em Cabo Verde e na Suíça
Ana Cristina NEVES 1
RESUMO
Pouca investigação sociolinguística tem sido realizada em contextos formais, tendo em
especial atenção os aprendentes jovens do português língua segunda (PLS) e português
língua materna (LM). Nos casos concretos de Cabo Verde e da comunidade portuguesa
residente na Suíça, não foi encontrada nenhuma publicação até à data.
Este trabalho baseia-se nos desvios produzidos por 521 jovens aprendentes do
Português, frequentadores dos 4º e 6º anos de escolaridade em Cabo Verde e na Suíça.
O objectivo deste estudo é verificar em que medida as hipóteses testadas pelos
aprendentes jovens convergem e divergem entre si em alguns aspectos da sintaxe.
Os resultados da análise das construções desviantes da população alvo revelam
que estas incidem na ordem dos elementos sintácticos e nas palavras de pequena
extensão, tais como, o pronome, a preposição e o determinante. Há uma atribuição de
novos valores de parâmetro quer ao nível da posição do morfema quer através da
transitivização dos verbos preposicionados no português europeu (PE). No entanto, há
igualmente pontos divergentes, tais como o recurso sistemático em CV à reduplicação, a
locuções verbo-nominais paralelas e à atribuição de um valor semântico aos clíticos de
flexão reflexiva.
PALAVRAS-CHAVE: diglossia; bilinguismo; PLS; jovens; sintaxe
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Zurique, Suíça, [email protected]
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Introdução
Os resultados apresentados aqui baseiam-se em desvios produzidos por várias turmas do
4º e do 6º anos em escolas primárias de Cabo Verde (CV), em que o português é a
língua oficial mas não a língua materna dos aprendentes, e em dois cantões suíços (CH),
nomeadamente Zurique e Thurgau, em que o português é a língua materna mas não a
língua oficial, já que se trata de filhos de imigrantes que têm o português como língua
primeira. A população alvo perfaz um total de 521 aprendentes do Português, os quais
redigiram uma composição acompanhada de uma imagem alusiva ao convívio de
crianças do mesmo grupo etário.
Ao contrário do que sucede com o grupo de CV, a situação linguística da maioria
dos aprendentes da CH pressupõe a nativização linguística da língua alvo, um processo
de transmissão normal ainda que apenas num primeiro estádio e um bilinguismo tardio.
Em comum, ambas as situações linguísticas apontam para a coexistência de duas
línguas em que uma delas é o português, o contacto linguístico abrupto com a língua
oficial (LO), um input linguístico limitado e incompleto, uma aprendizagem linguística
negativa porque imposta e uma situação de aprendizagem instrumental e
funcionalmente restritiva. Por um lado, temos uma situação de diglossia em CV, e por
outro, uma situação de bilinguismo geralmente tardio, ou seja, após os 4 anos de idade
(Marques, 1995, 25), e de bilinguismo interdependente, em que a L2 só é adquirida após
uma primeira fase de socialização na língua primeira (Mateus, 1992, 63-64).
Ambos os anos lectivos referidos fazem parte do ensino básico de ambos os
sistemas escolares, coincidindo em CV o 6º ano com o fim da escolaridade obrigatória.
Na Suíça, este é um ano decisivo em termos de continuidade dos estudos, já que são
levados a cabo testes de aferição, segundo os quais os professores decidem qual o tipo
de escola que os alunos devem frequentar de acordo com as suas aptidões e
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conhecimentos. Para além disso, os anos escolares em causa coincidem com o período
das operações concretas tal como proposto por Piaget e Inhelder (1995) que pressupõe o
domínio da relação de causalidade, a capacidade de antecipação e a descentração
cognitiva, social e moral, bem como a noção de espaço baseada na relação de
vizinhança e separação.
Da análise das redacções resultou um variado número de construções desviantes
da norma do português europeu (PE), pelas quais entendemos “todo o tipo de evidência
ou produção linguística mal formada quer do ponto de vista da aceitabilidade quer do da
adequação ao contexto, tendo como ponto de partida a língua portuguesa, e que poderá
levar à fixação de um ou vários novos valores de parâmetro (...), desencadeando uma
série de efeitos de superfície. Uma construção linguística é aceitável ou não-desviante,
ao nível da competência linguística, quando bem formada do ponto de vista superficial
ou material; uma construção linguística é adequada ou não-desviante, do ponto de vista
da performance, quando a escolha paradigmática e sintagmática é apropriada ao
contexto referencial ou social. Em qualquer dos casos, a construção desviante é vista
como uma instância criativa“ (Neves, 2006, p. 29). Os desvios foram categorizados
segundo a classe de palavras em que incidiam e representam ocorrências sistemáticas,
ou seja, pressupõem a coerência nas construções. As variáveis linguísticas aqui tratadas
podem ser tomadas não só como base de trabalho para a investigação sociolinguística
como para a pesquisa educacional.
Quanto à estrutura do trabalho, após uma breve descrição quantitativa do corpus e
tendo em conta a variação horizontal e vertical, segue-se a apresentação e discussão dos
dados sobre a fixação de parâmetros seleccionados no domínio da sintaxe: algumas
locuções verbo-nominais, o verbo pensar seguido de preposição e os clíticos de flexão
reflexiva.
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Descrição do corpus de acordo com a incidência dos desvios
Numa primeira análise e tendo em conta o gráfico 1 (vd. Anexos), verifica-se que os
morfemas mais expostos à produção de construções desviantes em ambos os anos
escolares e as áreas geográficas são o léxico e as palavras de pequena extensão, tais
como os pronomes, os determinantes e as preposições. Alguns exemplos dos desvios
lexicais são: apareceu uma sala a pedir [uma turma], dar bolé [andar de baloiço], no
caso de Cabo Verde, e implantar uma árvore [plantar], no caso da Suíça.
Tendo em conta a variação vertical, ou seja, considerando o número de
construções desviantes de acordo com o progresso escolar do 4º ao 6º ano, há uma
tendência para o aumento dos desvios produzidos no sistema do tempo, modo e aspecto
(TMA), no uso dos pronomes, dos determinantes e na ordem dos elementos sintácticos,
tal como se pode constatar através da análise do gráfico 2. A marcação do número e do
género não sofre alterações significativas com o progresso escolar. Os aprendentes do 4º
ano recorrem mais frequentemente à repetição, reduplicação e perífrase.
No que diz respeito à variação horizontal, o grupo de CV, onde o português
desempenha o papel de língua segunda, mostra ter mais dificuldades na marcação do
número, no domínio dos pronomes, dos determinantes e do léxico, enquanto que para o
grupo da CH, em que o português coincide com a língua materna dos falantes, são as
preposições e a ordem dos elementos da frase que parecem colocar mais obstáculos à
aprendizagem da língua-alvo (vd. Gráfico 3 dos Anexos). Quanto ao número de desvios
produzidos relativamente à marcação do género, do TMA e ao uso dos deíticos, ambos
os grupos geográficos se encontram muito próximos. Note-se que apenas o grupo de CV
produziu desvios no uso do pronome pessoal, tal como comprova o exemplo: (...) e
pediram à professora para levar- lhes outra vez àquele lugar .
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Análise qualitativa de alguns aspectos da sintaxe
Far-se-á em seguida a análise de alguns dos novos valores de parâmetro atribuídos pelos
falantes jovens a alguns aspectos da sintaxe.
Tendo em conta o parâmetro „plantar uma árvore“, os desvios verificados no
grupo da CH remetem para escolhas a nível da ordem paradigmática, escolhas essas que
divergem das usadas pelos falantes nativos do PE:
1) Outro rapaz pensa que ajuda uma pessoa mais grande a enterar uma planta. (4CH)
2) Um Menino pensa que esta com uma Menina à mater uma arvore na erva. (6CH)
3) O Mike deve estar a pensar que ele com uma amig a gavar um boraco par uma Arvoré. (6CH)
O mesmo não se verifica no grupo de CV, onde há uma tendência para o recurso a
construções verbo-nominais paralelas que não se coadunam com o uso do PE:
4) Fazer plantação (4CV)
5) Plantar uma planta/ plantar plantas (4CV)
6) Fizeram plantações (6CV)
7) Plantar plantas/ plantar uma planta (6CV)
É de notar ainda o recurso a palavras da mesma família em ambos os grupos,
ainda que de forma menos sistemática na CH, como se pode verificar nos exemplos (5),
(7) e (8):
8) plantar uma planta (4CH)
Este fenómeno promove a sonoridade advinda da aliteração daí resultante que se
faz sentir mais em CV, onde a ocorrência da reduplicação de lexemas com uma
estrutura silábica CVCV é mais sistemática:
9) Brincar de roda roda (4CV)
10) Brincar/ fazer rodas (4CV)
11) Brincar/ fazer rodas (6CV)
12) Faziam rodas (6CV)
Estrutura argumental dos verbos: o verbo pensar seguido de preposição
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Em relação a alguns verbos preposicionados, tal como é o caso do parâmetro „pensar
em“, verfica-se uma tendência para a transitivização dos verbos na CH que no
Português são regidos por preposição, enquanto que em CV o verbo preposicionado no
PE passa a ser regido pela preposição „a“, assumindo muitas vezes o papel de verbo
auxiliar da conjugação perifrástica, em que esta preposição é seguida do infinitivo:
(13) Os meninos estavom a pensar o que deviam fazer. (4CH)
(14) Pensa ler uma historia (6CH)
(15) Pensa o que fizeram (6CH)
(16) pensar a plantar (4CV)
(17) As criança estão a pensar a jugar a bola. (4CV)
(18) A pensar a jogar a bola (6CV)
(19) e outros amigos esta a persar a estudar (6CV)
Em ambos os discursos ocorrem construções, excluídas pela gramática do PE,
que não são mais do que efeitos sintácticos da modificação de preposição. Tendo em
conta o estudo levado a cabo por P. Gonçalves (2000) sobre o português de
Moçambique, verifica-se que os resultados de ambos os trabalhos apontam para a
transitivização dos verbos preposicionados no PE. Quando se recorre ao uso de uma
preposição, é curioso notar que são os aprendentes da CH que recorrem à mesma
preposição que os falantes moçambicanos, e não os aprendentes de CV, ao contrário do
que se poderia esperar. Repare-se nos seguintes exemplos:
(20) a ponsar das coisas, De andar a balansar nos baloisos. (4CH)
(21) pensar de duas pessoas onde estão a ler (6CH)
Clíticos de flexão reflexiva
Quanto aos critérios de utilização dos clíticos, sobretudo os de flexão reflexiva, estes
apresentam de forma mais sistemática a tendência para a colocação em posição pósverbal, mesmo quando no PE é esperada a colocação pré-verbal:
(22) O Diogo estase a lembrarse como ele leu um livro com uma amiga. (6CH)
(23) Todos os meninos juntaram-se. (6CH)
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Em CV, a reanálise dos critérios de utilização dos clíticos consiste ainda na
criação de um clítico de flexão reflexiva, utilizado com verbos do PE que não requerem
a sua presença e vice-versa. Já nos verbos que no PE podem ser reflexos e transitivos
(por ex.: distrair-se ou distrair alguém; reunir-se ou reunir alguma coisa) o uso do clítico
de flexão reflexiva torna-se supérfluo, verificando-se a sua supressão:
(24) Estava uma linda manha. Para os cnco meninos reunirem (4CH)
(25) Eles reunirão todos. (4CV)
(26) Eles estavam a brincar e a distrair. (6CV)
(27) ficamos de encontrar na escola. (6CV)
Este fenómeno não se verifica entre o grupo alvo do 6º ano da Suíça.
Entre os aprendentes de CV, o clítico de flexão reflexiva parece assumir uma
carga semântica, ou seja, é aplicado a qualquer tipo de „actividade que se faça consigo
próprio“ (parar- se, pensar -se ) sobretudo quando se trata de verbos que podem ser
intransitivos e preposicionados (parar (de), pensar (em)).
(28) ... par aram-se para pensarem. (4CV)
(29) Estavam a pensar-se (6CV)
Conclusão
Há efectivamente pontos convergentes no tipo de desvios produzido pela populaçãoalvo. As palavras de pequena extensão (pronomes, determinantes, preposições) e o
léxico parecem estar mais expostos à produção de construções desviantes.
Considerando a área da sintaxe, os aspectos divergentes remetem para o uso de
estratégias diferentes em ambos os grupos-alvo. Assim, entre os aprendentes da CH,
verifica-se o recurso a escolhas a nível da ordem paradigmática acompanhadas de
perífrase, enquanto que, no grupo de CV, há uma tendência para o uso crescente de
locuções verbo-nominais. A transitivização dos verbos preposicionados do PE é um
fenómeno predominante no grupo da CH, sobretudo quando o verbo é seguido de um
substantivo ou de uma oração subordinada.
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Um outro aspecto divergente que merece uma atenção especial é a atribuição de
uma carga semântica ao clítico de flexão reflexiva do PE por parte dos aprendentes de
CV. É de notar que, no processo de aprendizagem escolar a que este grupo está sujeito,
os materiais escolares não focam o uso deste clítico, descurando as excepções do seu
uso.
Tendo em conta que o corpus se baseia em cerca de 2500 desvios produzidos em
521 redacções com uma média de 10 linhas, o que perfaz uma média de 5 desvios por
redacção, os resultados apresentados evidenciam que ambos os grupos já fixaram
parâmetros que lhes permitem, por exemplo, gerar frases correctas e aplicar
determinados processos morfológicos de acordo com a gramática do PE. Os estádios
pelos quais os aprendentes de português de ambos os grupos progridem parecem ser
assim uniformes. A incidência dos desvios também tem o mesmo
locus , o que nos leva
a questionar a importância do papel atribuído à língua materna, por um lado, bem como
a influência das propriedades da língua coexistente, por outro, pelo menos no que diz
respeito ao tipo de desvios produzidos. Uma distinção entre o português língua segunda
e o português língua materna é irrelevante do ponto de vista da incidência dos desvios
produzidos, o que se não tem consequências em termos da didáctica da língua, deveria
ter pelo menos consequências quanto ao conteúdo dos materiais de apoio.
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Anexos
Gráfico 1
Gráfico 2
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