Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. Ancoragens gramaticais e produção poética do sentido em textos literários Maria Helena Araújo Carreira Universidade Paris VIII Associar a gramática à produção poética do sentido poderá suscitar interrogações quanto à validade de tal aproximação. Com efeito, os paradigmas gramaticais caracterizam-se, por oposição aos paradigmas lexicais, pelo seu fechamento. Quanto à produção poética, é a abertura enunciativa e interpretativa a sua principal característica. Uma abordagem do sentido lexical, procurando estudar não só a componente estabilizada do sentido (semas genéricos, específicos e funcionais), mas também os elementos de sentido mais ou menos partilhados (semas associativos, virtuais)(1), podendo ir até à individualização, afigurar-se-á como mais adaptada ao estudo da produção poética do sentido, muito em particular através do estudo da componente instável do sentido lexical. Convém contudo matizar a oposição comummente estabelecida entre gramática e léxico. Como se sabe – e os numerosos estudos sobre “gramaticalização” em diferentes línguas do mundo o têm demonstrado – ao longo da história das línguas numerosas palavras lexicais se gramaticalizam, tornando-se portanto palavras gramaticais. O inverso também se produz, embora mais raramente, como Bernard Pottier(2) o sublinha ao apresentar uma representação contínua do percurso léxico ↔ gramática. Adaptando ao português, passo a apresentar um exemplo de gramaticalização e outro de lexicalização. A palavra lexical “mente” (do latim mens, mentis) gramaticalizou-se tornando-se um sufixo (ex. lentamente); um verbo “auxiliar”, ligado necessariamente a um verbo “principal” (por ex. dever partir), perde em grau de gramaticalização, tornando-se uma palavra mais fortemente lexical (por ex. o dever). Passo a citar Bernard Pottier que assim sintetiza os dois movimentos do contínuo léxico – gramática (LEX.←→ GRAM.): 1 2 Ver B. Pottier, 2000, p. 109. Ver B. Pottier, 1992, p. 35-36. 39 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. «Au cours de l’histoire d’une langue, de nombreux mots lexicaux se grammaticalisent, par subduction, ou perte de plusieurs sèmes spécifiques. Par exemple, pendre : pendant « qui pend » (« stabilisé ») → pendant « concomitance dans le temps. L’inverse existe également mais est plutôt limité, pouvoir, verbe modal → le pouvoir en place « les personnes qui ont du pouvoir »(3). Bernard Pottier conclui : « Il existe donc un continuum entre les morphèmes lexicaux (lexèmes) et les morphèmes grammaticaux (grammèmes).»(4) Matizada pois a oposição comummente estabelecida entre léxico e gramática e sublinhando o facto de o léxico duma língua ser o resultado de uma combinação de morfemas lexicais e de morfemas gramaticais, procurei abrir algumas perspectivas para o estudo das ancoragens gramaticais da produção poética do sentido. A escolha de um corpus literário não invalida a pertinência de textos / discursos de outro tipo para tal estudo. Bastará evocar a perfeita demonstração que Roman Jakobson(5) fez, há já meio século, da ligação íntima da poética à linguística e da função poética (centrada na mensagem) como uma das funções da linguagem. Escolhi duas passagens chave do estudo de Roman Jakobson, a primeira relativa à articulação entre a poética e a linguística, a segunda sobre a interligação das funções da linguagem: « L’insistance à tenir la poétique à l’écart de la linguistique ne se justifie que quand le domaine de la linguistique se trouve abusivement restreint, par exemple quand certains linguistes voient dans la phrase la plus haute construction analysable, ou quand la sphère de la linguistique est confiné à la seule grammaire, ou uniquement aux questions non sémantiques de forme externe, ou encore à l’inventaire des procédés dénotatifs à l’exclusion des variantes libres».(6) « La diversité des messages réside non pas dans le monopole de l’une ou l’autre fonction, mais dans les différences de hiérarchie entre celle-ci. La structure verbale d’un message dépend avant tout de la fonction prédominante. Mais, même si la visée du référent, l’orientation vers le contexte – bref, la fonction dite « dénotative », « cognitive », « référentielle » est la tâche dominante de nombreux messages, la 3 Id., ib., p. 36. Id., ib., p. 37. 5 R. Jakobson, “Linguistique et Poétique” in Essais de linguistique générale, Paris, Minuit, (1 a edição). 6 Id., ib., p. 212-213. 4 40 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. participation secondaire des autres fonctions à de tels messages doit être prise en considération par un linguiste attentif ».(7) Assim perspectivado, o presente estudo procederá por ilustrações de algumas ancoragens gramaticais, em textos literários, e sua análise. À maneira de preâmbulo, que é simultaneamente uma homenagem à linguista e à amiga Maria Henriqueta Costa Campos, apresento a ode de Ricardo Reis por ela estudada do ponto de vista enunciativo e alguns dos resultados por ela obtidos.(8) A nada imploram tuas mãos já coisas, Nem convencem teus lábios já parados, No abafo subterrâneo Da húmida imposta terra. Só talvez o sorriso com que amavas Te embalsama remota, e nas memórias Te ergue qual eras, hoje Cortiço apodrecido. E o nome inútil que teu corpo morto Usou, vivo, na terra, como uma alma, Não lembra. A ode grava. Anónimo, um sorriso. (Ricardo Reis, 1927) Passo agora a citar algumas análises do estudo modelar de Maria Henriquea Costa Campos: “O tu está presente em numerosos embraiadores, tuas mãos, teus lábios, amavas, teu corpo; o eu revela-se no modalizador lógico adverbial talvez e no apreciativo adjectival inútil. Não há embraiadores de lugar explícitos, mas os de tempo são em grande número, quer formas adverbiais, já, hoje, quer formas verbais do presente. A organização dos tempos é intratextual, a partir de um presente criado no e pelo próprio texto e que é simultaneamente, o presente da escrita e o de cada leitura. O passado é explícito em formas verbais (amavas, eras, usou) e implícito nas negativas no presente que implicam a afirmação contrária, sobretudo 7 Id., ib., p. 214. Ver M. H. Costa Campos, “Aplicação de uma grade enunciativa” in Letras soltas, Universidade Nova de Lisboa, p. 33-40. 8 41 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. ligadas ao advérbio já, que remete para o passado (já coisas - antes não coisas, imploravam; já paradas – antes não paradas, convenciam). Todo o poema se organiza entre um passado que é igual a vida e um presente que é não-vida.“(9) Este pequeno extracto do artigo de Maria Henriqueta Costa Campos é bem revelador da importância do estudo de ancoragens gramaticais (neste caso, embraiadores de pessoa e de tempo) para uma interpretação articulada do texto na sua globalidade. No romance moçambicano de Paulina Chiziane, Niketche. Uma história de poligamia (10), de 2002, o estudo das formas de tratamento, muito em particular o uso de “vocês” reenviando, numa dicotomia nós/vocês a um grupo étnico oposto – “vocês, do sul” “vocês, do norte” – permite seguir o fio condutor das tensões e dos estereótipos étnico – culturais, como os exemplos seguintes bem o revelam: “vocês, mulheres do sul, perdem tempo com essas histórias e preconceitos”(11) “vocês são do norte, e tratem das vossas coisas nas vossas casas que nós, do sul, temos as nossas tradições (...). Não nos venham aqui dar ordens porque vocês, macuas, não são homens.”(12) A oposição introduzida por vocês prefigura não oposições interindividuais, mas sim oposição entre etnias. Já no romance Casas Pardas de Maria Velho da Costa(13) o jogo de pronomes que reenviam ao EU, TU, ELA, faz-se no singular e é a individualidade que se constrói graças a um movimento de imbricação das formas de tratamento das personagens Elvira, Elisa, Mary, ora designadas por eu, ora por tu, ora por ela. No seu estudo, intitulado “Entre nom et pronom:effets de sens dans Casas Pardas”, Matilde Gonçalves faz uma análise fina, cujos resultados projecta numa interpretação da obra na sua globalidade. Passo a citar: 9 Id., ib., p. 39-40. P. Chiziane, Niketche. Uma história de poligamia, Lisboa, Caminho, 2002. 11 Id., ib., p. 84. 12 Id., ib., p. 205. 13 M. Velho da Costa, Casas Pardas, Lisboa, Dom Quixote, 1996, (1ª ed. 1977). 10 42 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. «L’imbrication des pronoms véhicule deux phénomènes: 1) l’individuation créée par chaque pronom et 2) la construction d’un sujet à partir des différents pronoms d’où le fait qu’il n’y a jamais utilisation simultanée du même pronom.»(14) O sentido textual constrói-se graças a ancoragens bem precisas e as formas de tratamento pronominais, tanto em Niketche como em Casas Pardas, são disso bem reveladores. Se prosseguirmos, tenho em conta o estudo de Maria Henriqueta Costa Campos sobre embraiadores de enunciação, e na óptica da nossa reflexão, as ancoragens gramaticais de tempo merecem, tal como as de pessoa, uma atenção particular. Começarei por evocar o título do romance de Augusto Abelaira, Outrora Agora (15), que contém unicamente o que na sincronia actual do português são palavras gramaticais, dois gramemas de tempo que reenviam, a partir do centro deíctico do enunciador, para o passado longínquo intimamente ligado ao hic et nunc da enunciação. A abertura interpretativa tão bem teorizada por Umberto Eco tem, neste caso, unicamente uma ancoragem gramatical. Também no célebre romance de Vergílio Ferreira Para Sempre(16), estudado de modo aprofundado por Fernanda Irene Fonseca(17)do ponto de vista da deixis, do tempo e da narração, o título se reduz a duas palavras gramaticais que são uma prefiguração da temporalidade simultaneamente dilatada, suspensa e centrada no presente. “Para sempre” é retomado no início do romance com a sua ancoragem no “aqui”: «Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta – sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Tu e a vida que em ti foi acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros – é a Hstória que se diz? Abro a porta do quintal.»(18) 14 M. Gonçalves, « Entre nom et pronom:effets de sens dans Casas Pardas », in Travaux et Documents – 40 (Université Paris 8), 2008, p. 186. 15 A. Abelaira, Outrora Agora, Lisboa, Bertrand. 16 V. Ferreira, Para Sempre, Lisboa Bertrand, 2001 (1a edição, 1983). 17 F. I. Fonseca, Deixis,Tempo e Narração, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 1992. 18 Op. cit., p. 9. 43 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. “Para sempre” pontua o romance: «teço o destino enquanto ele me não tece a mim, agora estou quieto para sempre. Estou à varanda para o infinito...»(19) e desdobra-se em “de outrora”, “de sempre”, “de nunca”. «É a voz anónima de outrora, de sempre. De nunca.»(20). Estas ancoragens temporais de natureza gramatical contribuem para a construção do sentido textual e estão numa relação de isossemia com sequências bem representativas do todo textual, tal como a sequência seguinte: «É preciso que eu tenha razão do tempo, para ele a não ter de mim, preenchê-lo a transbordar para e existir ainda depois.»(21) Também o título Momentos de aqui(22), escolhido pelo jovem escritor angolano Ondjaki para o seu livro de contos publicado em 2001, integra uma ancoragem gramatical – “de aqui” -, neste caso espacial, especificadora do lexema de valor temporal «momentos». O título constrói uma dispersão temporal (“momentos”) espacializada e ancorada no aqui e agora ou, por outras palavras, anuncia “contos”, textos centrados no momento presente dum EU. O escritor moçambicano Mia Couto termina o prefácio a Momentos de aqui desdobrando o sentido que o título anuncia: «Essa visitação aos muitos que somos, às múltiplas dimenções da nossa existência, é a razão de ler estes momentos de aqui.» Não «de aqui», mas «de lá» é «A menina de lá», título de uma “estória” de João Guimarães Rosa em Primeiras Estórias(23). Não de um “lá” banal, partilhado, mas de um “lá” que é o “aqui” dos prodígios de Nhinhinha: «Em geral, porém, Nhinhinha, com os seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma [...].»(24) 19 Id., ib., p. 74. Id., ib., p. 79. 21 Id., ib., p. 47. 22 Ondjaki, Momentos de aqui, Lisboa, Caminho, 2008 (1ª edição 2001). 23 J. Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988 (32ª impressão), p. 22-26. 24 Id., ib., p. 22. 20 44 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. «Sei, [porém, que foi por aí] que ela começou a fazer milagres. [...] O que ela queria, que falava, súbito acontecia.»(25) O título «Menina de lá», graças a uma sequência de natureza gramatical contém em germe o sentido textual que a «estória» no seu conjunto explicita. Quanto aos “mistérios”que pontuam o conto do escritor brasileiro de Osman Lins «Retábulo de Santa Joana Princesa»(26) (doze mistérios - «Primeiro Mistério», «Segundo Mistério», etc. – seguidos de «Mistério final»), o jogo dos planos temporais e enunciativos contribui para a construção de paradoxos que se encadeiam num conto que, não só pela sua extensão (46 páginas), tem um carácter excepcional. Limitar-me-ei apenas, na sequência da ilustração de ancoragens gramaticais fundamentais para a construção do sentido textual, de isolar um “lá” (p. 153), um “depois” (p. 159) e um “por agora” (p. 159) com vista a patentear o papel fundamental destas “pequenas palavras” gramaticais para a produção poética do sentido. Comecemos pela apresentação do co-texto: «Acompanhei, durante muitos anos, Joana Carolina e os seus. Lá estou, negra e moça, sopesando-a (tão leve!) sob o olhar grande de Totônia, que me pergunta: “É gente ou é homem?”»(p. 153). « Nosso pai gostava de animais. Ensinou um galo-de-campina a montar no dorso de uma cabra chamada Gedáblia, esporeando-a com silvos breves. Eu e Nô apanharemos essa inclinação e, de certo modo, por causa disto é que, daqui a anos, quando nossa mãe, ele já morto, estiver penando no Engenho Serra Grande, partiremos no mundo à procura de emprego, deixando-a com Teófanes e Laura, nossos irmãos mais novos, ainda não nascidos. Depois a tiraremos do Engenho, de volta para a cidade. Por agora somos dois meninos deitados em folhas de bananeira, nossa mãe curvada sobre nós, atiçando o fogareiro com alfazema. Um odor nauseante empesta a casa inteira, odor de nossos corpos ulcerados. Maria do Carmo, nossa única irmã, morreu há dois anos, o décimo do ano. Fazia calor, esse calor de Janeiro que nos sufoca a todos, ela pedia água. Morreu de sede» (p. 159). O evento apresentado de modo global e situado na sua duração no passado («Acompanhei, durante muitos anos, Joana, Carolina e os seus»), sofre bruscamente uma 25 Id., ib., p. 24. O. Lins, Retábulo de Santa Joana Carolina, in Melhores Contos. Osman Lins. Seleção de Sandra Nitrini, p. 153-199, São Paulo, Global Editora, 2003. 26 45 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. selecção temporal expressa por lá. Um dado momento dessa continuidade temporal no passado torna-se de tal modo pregnante que a narração passa a fazer-se no presente («Lá estou...»): Lá, nesse tempo, nesse momento afastado do presente da enunciação, mas ao mesmo tempo presentificado, trazido para um primeiro plano, na cena do passado, visto do presente. É pois a complexidade de valores do marcador lá que denota um afastamento e ao mesmo tempo uma ancoragem no tempo e/ou no espaço da enunciação que torna possível este encadeamento narrativo. Na segunda sequência apresentada, os marcadores temporais “depois” e “por agora” permitem um encadeamento temporal de eventos fortemente distanciados no tempo, eventos futuros e presentes no seio do tempo passado encarado a partir do momento da enunciação narrativa por um eu omnisciente: «Depois a tiraremos do Engenho, de volta para cidade. Por agora somos dois meninos...» Depois projecta o ponto de mira da narração num tempo futuro; por agora faz recuar no tempo os eventos narrados, delimitando-os temporalmente. Assim, graças a uma sábia utilização destes marcadores temporais em combinação com os tempos verbais (depois + futuro do indicativo; por agora + presente do indicativo), os eventos passados são recriados, filtrados pela subjectividade do narrador – personagem. E para concluir... As incursões em textos literários de autores variados, com vista a isolar alguns casos de ancoragens gramaticais fundamentais para a produção poética do sentido textual revelam-nos a pertinência do estudo das “pequenas” palavras gramaticais que permitem “mostrar”, “embraiar”, encadear sentidos, subjectivamente perspectivados. 46