Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 38 – O Português antigo: descrição e funcionamento.
A DIACRONIA DO VERBO CHAMAR E A PROEMINÊNCIA À ESQUERDA
NO PORTUGUÊS
Maria Clara PAIXÃO DE SOUSA1
Gilcélia de MENEZES DA SILVA2
RESUMO: Neste artigo discutimos a evolução diacrônica do verbo “chamar” e a
proeminência à esquerda, desde o Português Antigo até as variantes modernas da língua.
Apresentaremos o resultado de uma pesquisa sobre a sintaxe do verbo “chamar”, em
textos portugueses escritos nos séculos XV e XVI. Essa pesquisa mostra o
estabelecimento de “chamar” como o principal verbo usado em construções de
designação, em substituição a formas medievais tais como “haver nome”, “per nome
de”. Mostraremos a evolução nos padrões de ocorrência de “chamar” quanto à
expressão argumental e à ordem relativa entre os argumentos. O principal padrão de
ocorrência desse verbo no período estudado é aquele no qual o argumento com papel
temático de “designando” (Y) aparece em posição pré-verbal, e o argumento com papel
temático de “denominação” (Z) em posição pós-verbal, enquanto o argumento com
papel temático de “agente” (X) está nulo (i.e: (a) Y chamar (X) Z, Ex.: “A esta fruta
chamam Ananázes”). A partir de uma hipótese geral sobre a estrutura da frase no
português dos séculos XV ao XVII, explicaremos esse padrão de ordem como função da
propriedade de proeminência discursiva à esquerda, que caracterizaria a sintaxe dessa
época. Por fim, iremos propor que a elevada freqüência da ordem Y chamar X Z com
este verbo no Português Médio está na raiz de uma reanálise em sua valência, de tal
forma que no PB, o verbo “chamar” apresenta um uso estativo Y chama Z (“Ela chama
Maria”), diacronicamente derivado da construção ativa Y chama Z, com sujeito nulo.
Os estágios dessa mudança seriam:
(1) Y chama (X) Z: “A esta fruta chamam
(os índios) Cajús” /
“Esta fruta
chamam
(os índios)
Cajús” >
(2) Y chama-se Z: “A raiz
se chama
Mandioca,” /
Y chama (X) Z: “as outras
chamam
machos”
>
(3) Y chama-se Z: (estativo do PE) “A primeira e mais antiga se chama Tamaracá”
Y chama Z: (estativo do PB)
“A primeira e mais antiga
chama Tamaracá”.
Este trabalho se insere em um projeto maior de construção de um dicionário gramatical
de verbos portugueses dos séculos XV, XVI e XVII; e a mudança na valência de
“chamar” será comparada com processos semelhantes incidentes em outros verbos,
como “casar” – X casar Y com Z > Y casar (X) com Z / Y casar-se com Z > Y casar
com Z.
1
2
Professora Doutora Titular da Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Av. Professor Luciano Gualberto, 403,
Cidade Universitária, 05508-900 – São Paulo, SP – Brasil.
Aluna de Mestrado do Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL), Departamento de Lingüística. Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571,
13083-859 – Campinas – SP – Brasil.
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
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ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 38 – O Português antigo: descrição e funcionamento.
PALAVRAS-CHAVE: Mudança Lingüística; Valência Verbal; Português Medieval;
Português Clássico; Português Brasileiro.
Introdução
Este trabalho está inserido em um projeto maior intitulado A Língua Portuguesa,
1400 a 1600: Aspectos de História e Gramática, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria
Clara Paixão de Sousa, junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O
projeto tem como ponto central de pesquisa “os aspectos gramaticais da língua
portuguesa, aliados aos aspectos históricos inerentes aos processos de consolidação e
de reestruturação pelos quais a língua portuguesa passou durante os séculos 14, 15 e
16” (PAIXÃO DE SOUSA, 2009). Nosso trabalho de pesquisa se desenvolve no sentido
de realizar um estudo contrastivo entre o português escrito nos 1400 até os 1600 e o
português moderno.
Nesse sentido, o objetivo central do projeto é realizar uma
descrição gramatical do Português Médio, ou seja, o português escrito entre os séculos
XIV e XVI (cf. PAIXÃO DE SOUSA, 2004; e GALVES; NAMIUTI; PAIXÃO DE
SOUSA, 2006), período este da língua que constitui a base de atuação dos processos de
mudança formadores do Português Brasileiro e do Português Europeu. Além disso,
pretende-se publicar uma Gramática de Verbos do Português, 1400 – 1700 como
produto direto desse projeto. Portanto, é dentro desse conjunto maior de pesquisa sobre
os verbos do Português Médio que está inserido o estudo diacrônico sobre a valência do
verbo CHAMAR.
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Neste artigo, discutiremos a evolução diacrônica do CHAMAR como predicador
em construções com semântica denominativa, presentes em narrativas históricas
representativas dos séculos XIV, XV e XVI, a partir dos resultados parciais da
dissertação de mestrado em andamento “A valência do predicador CHAMAR no
Português Médio” (MENEZES DA SILVA, em curso). Dentro da discussão proposta,
relacionamos alguns dos aspectos do verbo CHAMAR, i.e., aqueles que dizem respeito
à expressão argumental e à ordem relativa entre os argumentos presentes nos padrões de
ocorrência desse predicador, com a hipótese geral que norteia as pesquisas do projeto
central sobre a estrutura da frase no português dos séculos XV ao XVII e a
proeminência à esquerda do verbo no Português Médio (PAIXÃO DE SOUSA, 2008;
2008b; 2009; 2009b).
Os dados para a descrição gramatical de CHAMAR foram coletados em dois
corpora representativos do português escrito entre os séculos XIV, XV e XVI, a saber:

Corpus Histórico do Português Tycho Brahe3 (CTB), do qual selecionei cinco
textos [dois relatos de viagem [COUTO (n.1542), GANDAVO (n.1576)] e três
crônicas históricas [FERNÃO LOPES (n.1380), DUARTE GALVÃO (n.1435) e
RUI DE PIÑA (n.1440)], com um total de 283.074 palavras. Os textos podem
ser encontrados em <www. tycho.iel.unicamp.br/tycho/corpus/>.

3
4
Corpus Informatizado do Português Medieval4 (CIPM), do qual selecionei três
Este corpus é coordenado pela Prof.ª Dr.ª Charlotte Galves, da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Brasil.
O CIPM é de responsabilidade de uma equipe da Linha de Investigação 1 do Centro de Lingüística da
Universidade Nova Lisboa, Portugal.
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crônicas históricas [Crónica Geral de Espanha de 1344 (CGE); Crónica do
Conde D. Pedro de Menezes (ZPM), e a Chronica dos Reis de Bisnaga (CRB)],
com cerca de 584.596 palavras. Este corpus também está disponível na internet
através do endereço <http://cipm.fcsh.unl.pt/>.
Nos textos acima descritos o predicador CHAMAR aparece em construções de
semântica denominativa com a estrutura argumental básica representada em (1), onde
X indica o constituinte com o papel temático de Agente; Y, o constituinte que recebe a
denominação e Z representa a denominação propriamente dita. Para a nomenclatura dos
papéis temáticos dos constituintes representados por Y e Z, estamos seguindo a
nomenclatura apontada por Perini (2008, p.382) no que diz respeito aos papéis
temáticos presentes em construções de designação. Entendemos que as construções de
semântica denominativas se assemelham, tanto na estrutura quanto na semântica, às
construções de designação propostas por Perini.
(1) A Valência de CHAMAR em Construções Denominativas
[X]
V
[Y]
[Z]
Agente
V
Designando
Designação
(a) [Os Índios da terra]-X [lhe]-Y [chamam]-V em sua língua [Hipupiára]-Z, que
quer dizer demônio d'água. {Gandavo}
(b) e porem [lhe]-Y [chama]-V [a estória]-X [filho de perdiçon]-Z {CGE}
(c) (...) e [este atabaque]-Y [chamaõ]-V [elles]-X [picha]-Z (…) {CRB}
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O que estamos chamando de construções de semântica denominativa são
aquelas nos campos de “Atribuir qualidade, denominar, autodenominar-se, dizer-se, ter
por nome” (HOUAISS, 2001) – em padrões transitivos e não-transitivos:
(2) CHAMAR denominativo, Transitivo-Ativo:
(a) (…) nós lhe chamamos galinhas do mato {Gandavo}
(b) (…) em tempo deste Rey D. Fernando de Castella seu filho, se chamou, e intitulou
Rey de Castella (…) {Rui de Pina}
(3) CHAMAR denominativo, outros (Passivo e/ou Estativo):
(a) A raiz se chama Mandioca
{Gandavo}
A Diacronia do verbo Chamar
Aspectos principais - séculos XIV a XV: As Construções Estativas
O primeiro aspecto a ser ressaltado sobre os padrões de ocorrência do
CHAMAR como predicador denominativo diz respeito ao fato que em textos mais
antigos, o CHAMAR denominativo convivia com outros predicadores com a mesma
semântica, que, em sua maioria, foram desaparecendo ao longo do tempo. Isso inclui
predicadores em construções transitivas (do tipo “Atribuir qualidade, denominar”) e em
construções estativas (do tipo “Ter por nome”):
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(4) Outros predicadores com semântica denominativa – Transitivo-Ativos:
(a) Dar (nome):
(...) dando a terra este nome de Santa Cruz: cuja festa celebrava naquele
mesmo dia a santa madre Igreja (que era aos três de Maio) {Gandavo}
(b) Pôr (nome):
A êste Arquipélago puzeram o nome dos Coraes, pelos arrecifes todos serem
deles, (...) {Couto}
(c) Dizer (por nome):
Em aquella sazom, avya em Castella e ẽ Allava hũũ mancebo dos mais nobres
do reyno e dezianlhe per nome Vella. {CGE}
(d) Nomear:
Outros animais há nesta província muito feros, e prejudiciais a toda esta
caça, e ao gado dos
moradores; aos quais chamam Tigres, ainda que na
terra a mais da gente os nomeia por Onças: (…) {Gandavo}
(5) Outros predicadores com a semântica de denominação - outros (Passivo e/ou
Estativo):
(a) Ganhar (por sobrenome):
[E], elles estando en esta duvyda, disse Diego Perez de Bargas, o que guaanhou
por sobre nome Machoca (…) {CGE}
(b) Levar (nome):
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(...) & daquelles nomes das armas leuaraõ nome aquellas moedas {Fernão
Lopes}
(c) Tomar (nome):
(...) e d’aquy em diante ficou em costume as moedas tomarem os nomes dos
reys que as fazem, {CRB}
(d) Ficar (com o nome):
Ao qual chamaram brasil por ser vermelho e ter semelhança de brasa, e daqui
ficou a terra com este nome de Brasil. {Gandavo}
(e) Haver/ter (nome):
E assy se tornou com hũ escud(ey)ro que avia nome Lopo Vazq(ue)z. {ZPM}
De fato, nos textos até o século XV, esses outros predicadores aparecem em
maior proporção do que o próprio CHAMAR. É o caso, sobretudo, das construções
denominativas do tipo “haver nome” (“aver nome”), exemplificadas em (5e) acima. Se
compararmos a proporção de HAVER NOME (que possui uma semântica estativa) com
as construções com CHAMAR-SE, que consideramos também possuir uma semântica
estativa, veremos que HAVER NOME e CHAMAR-SE manifestam uma relação
diacrônica interessante. Já Ranchhod (1999) observou que as construções com HAVER
NOME eram muito freqüentes em textos narrativos arcaicos, e que teriam sido
substituídas ao longo do tempo por construções com CHAMAR-SE. O levantamento de
Menezes da Silva (2008) confirmou essa previsão, conforme exemplifica o Gráfico 1
abaixo:
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Gráfico 01: Comparação entre HAVER NOME X CHAMAR-SE no Português
Médio
O gráfico acima mostra o desenvolvimento das construções com CHAMAR-SE,
ao longo do Português Médio. Percebe-se claramente o acréscimo de construções com
CHAMAR-SE em contraste com o declínio de construções com HAVER NOME ao
longo de todo o período analisado. As construções com CHAMAR-SE perfazem um
total de 35 casos (5,15%) no séc. XIV, contra 638 casos (94,85%) com HAVER
NOME. Já no séc. XVI essas mesmas construções com CHAMAR-SE atingem um total
de 78 casos (97,5%), contra apenas 02 casos (2,5%) com HAVER NOME.
Aspectos principais - séculos XV a XVI: A Expressão Argumental de CHAMAR
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O segundo aspecto a ser ressaltado é o padrão da expressão argumental de
CHAMAR, em construção transitivo-ativa, entre os séculos XV e XVI. Neste período,
nas narrativas analisadas, os argumentos de CHAMAR, quando predicador de
construções denominativas, se expressam da seguinte forma:
(6) Expressão dos argumentos de CHAMAR em construções denominativas
(6.1)
[X]
V
[Y]
[Z]
SN
V
SN/SP
SN
(a) e chamaõ [as pessoas da Santissima Trimdade]-Y-SN Tricebemca {CRB}
(b) [A esta fruta]-Y-SP chamam Ananázes {Gandavo}
(6.2)
[X]
V
[Y] - clítico
[Z]
SN
V
pro (acus.)
SN
(c) e outros [a]-Y-pro - acus chamã pater vyva {ZPM}
(6.3)
[X]
V
[Y]- clítico
[Z]
SN
V
pro (dat.)
SN
(d) & chamavã-[lhe]- Y- pro- dat Mateus {CGE}
O principal padrão de ocorrência dos argumentos de CHAMAR em construções
denominativas no Português Médio é aquele no qual o argumento com papel temático
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de Designando (Y) ocorre em posição pré-verbal; o argumento com papel temático de
Denominação (Z) em posição pós-verbal, enquanto o argumento com papel temático de
Agente (X) está nulo, como em (7):
(7)
(a) [A esta fruta]- Y [chamam]- V
[Ananázes]-Z
{Gandavo}
(b) [A esta fruta]- Y [chamam]-V
[Cajús]-Z
{Gandavo}
(c) [A hũ] - Y
[N(un)o Vazques]- Z
{ZPM}
[chamaraõ]- V
(d) [Aa seg(um)da daquellas alldeas]-Y
[chamavã]- V
[Benaberdão]-Z
{ZPM}
(e) [a hũa]-Y
[chamaron]-V
[dona Biringuella]-Z
{CGE}
Neste tipo de construção, além do Agente (X), o argumento Designando (Y)
também pode ocorrer nulo, podendo ser recuperado pelo contexto, como se observa em
(8) e (9):
(8) Apagamento do Agente (X):
[Y]
[V]
[Z]
E [o outro filho]-Y [chamaron]-V [__]- X [dom Fernãdo]-Z (...) {CGE}
(9) Apagamento do Designando (Y):
[V]
[Z]
(a) e [chamavam]-V [sanctos]-Z e queimavaos todos. {CGE}
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(b) e [chama]-V
[cerca velha]-Z
{Duarte Galvão}
Entretanto, o argumento Designação (Z) nunca ocorre nulo, o apagamento desse
argumento alteraria o significado do verbo (no sentido de que o predicador passa a
descrever outro evento, i.e., “convocar”) como se observa no exemplo hipotético em
(10):
(10) Apagamento hipotético da Designação (Z) – (X)
[V]
[Y]
Dado Real:
E [o outro filho]-Y [chamaron]-V [dom Fernãdo]-Z
Dado hipotético:
E [o outro filho]-Y [chamaron]-V [__] - Z
‘Mandaram vir o outro filho’
Dentre os argumentos que podem ocorrer nulos (X e Y), o Agente (X) é apagado
com maior freqüência no conjunto de dados analisados: em um total de 579 sentenças,
528 sentenças (91,19%) apresentam o apagamento do Agente (versus apenas 51
sentenças - ou 8,81% - com a presença do Agente), conforme demonstra o Gráfico 02
abaixo:
Gráfico 02: Apagamento do Agente em construções denominativas com CHAMAR
no Português Médio
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A Proeminência à esquerda
A partir de uma hipótese geral sobre a estrutura da frase no português escrito dos
séculos XV ao XVII apresentada por Paixão de Sousa (2008; 2008b; 2009; 2009b),
apresentamos aqui uma possível explicação para o padrão de ordem nas construções
denominativas com CHAMAR no Português Médio e o alto índice de apagamento do
Agente.
Em trabalhos recentes sobre o Português Médio, Paixão de Sousa tem mostrado
evidências de que “a gramática dos textos portugueses escritos nos anos 1400-1600”
apresenta uma ordem de constituintes “governada centralmente por propriedades
discursivas”. Os resultados destes trabalhos mostram que a gramática do Português
Médio apresenta as seguintes características:
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(11) A gramática do Português Médio – Paixão de Sousa (2009b)
(A) A ordem dos constituintes é flexível quanto à ordenação de categorias gramaticais, e
expressa fundamentalmente a organização discursiva da frase.
(B) O Português Médio é uma gramática de sujeito nulo pleno.
(C) O Português Médio apresenta uma forte correlação entre a categoria estrutural
Sujeito e a categoria semântica Agente.
Assim a posposição do sujeito corresponde a uma ênfase discursiva sobre o
constituinte posposto. A posição à esquerda do verbo, no Português Médio é uma
posição de proeminência discursiva. Dessa forma, estruturas do tipo [SV] é um subtipo
de {XV}, onde {X} é um constituinte discursivamente importante e em destaque (foco
ou tópico). Logo, nos textos do Português Médio, {XVS} não representa uma
posposição do sujeito, mas um fronteamento do constituinte {X}, estando o sujeito em
lugar não-marcado. Quando o Sujeito e o Tópico não coincidem, i.e., não são
representados pelo mesmo constituinte, a ordem que irá prevalecer será a de TópicoComentário, como se apresenta em (12):
(12) [Maria Monteira]-TOP tinha [uma sua filha]-SUJ muitas verrugas nas mãos
Em seu trabalho intitulado “Valências Verbais no Português Clássico”, Paixão
de Sousa (2008) analisou a relação entre “Agentividade” e a categoria de sujeito,
fazendo um contraste dos padrões de expressão argumental de verbos selecionados nos
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textos do PM e no PB. No Português Médio, “entre os papéis temáticos que podem se
expressar como sujeitos gramaticais, o papel “Agente” é claramente proeminente”.
Dessa
forma,
os argumentos que possuem uma semântica
mais agentiva
(desencadeadores com controle, segundo CANÇADO, 2005) tendem a aparecer nulos.
A conseqüência disso, é que encontramos uma proporção elevada de (i) construções
com sujeitos nulos agentes e (ii) de construções com tópico não-sujeitos e não-agentes à
esquerda do verbo. Estas características da gramática do Português Médio podem
explicar por um lado, o padrão de ocorrência {Y V S Z} do CHAMAR em construções
denominativas, e por outro, o elevado índice de apagamento do Agente (cf. 13 e 14)
neste mesmo tipo de construção:
(13)
(a) e porem [lhe]-Y [chama]-V [a estória]-S [filho de perdiçon]-Z {CGE}
(b) (...) e [este atabaque]-Y [chamaõ]-V [elles]-S [picha]-Z (…) {CRB}
(14)
(a) E [chamarõ]-V [aquella provincia toda]-Y [Carpentanea]-Z. {CGE}
(b) E [o outro filho]-Y [chamaron]-V [dom Fernãdo]-Z {CGE}
(c) & [aos ajumtamemtos ou companhas]- Y [chamã]-V [allcabellas]-Z {ZPM}
(d) e por ysso [lhe]-Y [chamavaõ]-V [Pinaráo]-Z {CRB}
Nessa proposta, a explicação para as construções estativas com CHAMAR
atestadas atualmente em Português Brasileiro do tipo {Y V Z} “Ela chama Maria”,
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teria por base o fato de que este tipo de construção é derivado das construções ativas do
tipo Y chama Z, com sujeito Agente nulo, presentes no Português Médio. Com o
Agente apagado, e o “constituinte discursivamente importante” ocupando a posição
imediata a esquerda do verbo, este tipo de construção {Y chama Z}, encontrada
atualmente no Português Brasileiro, pode ser interpretada como o constituinte Y
exercendo a função de sujeito (Paciente), alterando a valência do CHAMAR de três [__]
V [__] [__] para dois [__] V [__]:
(15)
(a) & [aos ajumtamemtos ou companhas]-Y-OBJ [chamã]-V [__]- SUJ [allcabellas]-Z
>
(b) & [aos ajumtamemtos ou companhas]- Y-SUJ [chamã]-V
[allcabellas]-Z
(16)
(a) e [as outras que carecem dele]-OBJ
[chamam]
[__]- SUJ
[machos]-Z
>
(b) e [as outras que carecem dele]-SUJ
[chamam]
[machos]-Z
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Considerações Finais
A descrição gramatical dos padrões de ocorrência de CHAMAR como
predicador denominativo, em textos narrativos, nos permitiu perceber alguns aspectos
relevantes para o estudo e descrição da gramática do Português Médio, período da
língua tão importante para o processo de formação do que hoje chamamos de Português
Brasileiro e Português Europeu.
Em primeiro lugar, vimos que o predicador CHAMAR com semântica
denominativa aparece nos textos do século XIV e XV convivendo com outros
predicativos que serão substituídos na diacronia. O principal padrão de substituição
observado se dá no campo das construções estativas, em que as construções do tipo
HAVER NOME são substituídas pelas construções do tipo CHAMAR-SE. Nos textos a
partir do século XV, portanto, CHAMAR aparecerá em tanto em construções ativas
como estativas.
Em relação às construções transitivo-ativas com CHAMAR denominativo,
observa-se um padrão de expressão argumental no qual o argumento que mais aparece
nulo é o Agente, e o argumento Y (Objeto) ocupa a posição à esquerda de proeminência
discursiva.
Em virtude do padrão de ocorrência {Y V __ Z}, encontrado nas construções
ativas com CHAMAR, i.e., o objeto ocorrendo à esquerda do verbo juntamente com
Agente nulo, procurou-se aqui realizar um estudo comparativo entre o CHAMAR e os
outros verbos descritos por Paixão de Sousa (2008). Assim percebemos que o padrão de
ocorrência de CHAMAR se combina com os padrões de ordem e apagamento de outros
verbos estudados. Dentre eles, destacamos o verbo CASAR, que semelhante ao
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(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
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ISBN: 978-972-99292-4-3
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CHAMAR, apresenta uma mudança de valência ao longo do tempo, conforme se
descreve em (17) e (18):
(17) CASAR
(a) [Uma chamada D.Urraca ]-Obj
[_]-Suj
[casou]
[com D. Reymão de Tolosa]-
Obj
θ-Paciente
(b) [Uma chamada D.Urraca ]-Suj
θ-Agente
θ-Tema
>
[casou] [com D. Reymão de Tolosa]-Obj
θ-Tema
θ-Tema
(18) CHAMAR
(a) e [as outras que carecem dele]-Obj [chamam] [_]-Suj
θ-Designando
(b) e [as outras que carecem dele]-Suj [chamam]
θ- Tema
θ-Agente
[machos]-Z
θ-Denom./Tema >
[machos]-Z
θ-Denom./Tema
Assim, à luz de Paixão de Sousa (2008) e acompanhando os resultados até agora
obtidos no âmbito do Projeto A Língua Portuguesa, 1400 a 1600: Aspectos de História e
Gramática, a valência dois {Y chama Z} de CHAMAR em construções estativas do
tipo {Ela chama Maria} encontrada hoje no Português Brasileiro, se coadunaria com o
padrão geral de reanálise das construções transitivas do tipo {Y chama Ø Z} presentes
na gramática do Português Médio. Essa reanálise se dá devido ao apagamento do
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Agente e a proeminência do Objeto, ou seja, do constituinte discursivamente importante
à esquerda do verbo, alterando, ao longo do tempo a valência de um conjunto verbos,
entre eles o CHAMAR e o CASAR.
Referências bibliográficas
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Cidadão, pp. 667-682, organização de Isabel Hub Faria, Lisboa: Cosmos.
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