Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. AS SEGMENTAÇÕES NÃO-CONVENCIONAIS DA ESCRITA EM TEXTOS DE CRIANÇAS BRASILEIRAS E PORTUGUESAS: UM ESTUDO SOBRE PROSÓDIA Ana Paula Nobre da CUNHA1 RESUMO: Em pesquisas realizadas com crianças brasileiras em fase de aquisição da escrita (CUNHA, 2004), observou-se que o processo de segmentação do texto em palavras pode gerar hesitação, a qual, muitas vezes, se reflete em casos de hipersegmentação – alocação de espaço no interior da palavra – e/ou de hipossegmentação – falta de espaço entre fronteiras vocabulares. Os resultados dessa análise mostraram que as segmentações não-convencionais surgem devido a uma coocorrência de fatores – dentre eles, os constituintes prosódicos (cf. NESPOR & VOGEL, 1986). Nas hipersegmentações, detectou-se forte tendência à preservação da sílaba e do pé métrico, em especial, do pé troqueu silábico. Nas hipossegmentações, verificou-se, predominantemente, tendência à formação de palavras fonológicas e, também, à formação de frases fonológicas. Se analisado sob o aspecto do ritmo, o troqueu silábico também se apresentou como possível elemento motivador das hipossegmentações. O presente estudo, ainda em fase de elaboração, tem como principal interesse comparar dados de segmentação na escrita inicial de crianças brasileiras e portuguesas. O objetivo final é discutir como se revelam na escrita, desses dois grupos de aprendizes, aspectos do conhecimento linguístico e, particularmente, do conhecimento a cerca da fonologia prosódica responsáveis pela incidência das segmentações não-convencionais do texto. PALAVRAS-CHAVE: aquisição da escrita; hipersegmentação; hipossegmentação; prosódia. Introdução Este trabalho está inserido na interface linguística/educação, pois se acredita que essas duas áreas de conhecimento devam andar, em certa medida, lado a lado. Embora seja esta uma pesquisa de cunho linguístico, que visa objetivamente descrever parte do 1 Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Faculdade de Educação (FaE), Programa de Pós-Graduação em Educação. Rua Alberto Rosa, 154. CEP 96010-770. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. [email protected] 80 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. processo de aquisição da escrita, acredita-se que o conhecimento desses processos é de fundamental importância para essas duas áreas do conhecimento. O professor, nesse caso específico aquele das séries iniciais, que tem como instrumento de trabalho a língua, não pode prescindir de conhecimentos teóricos sobre o seu funcionamento. É preciso, segundo Veloso (2008, p.2), que este professor se conscientize de que quando está ensinando seu aluno a ler ou escrever, tem a possibilidade de interferir “com uma parcela menos evidente do universo cognitivo da criança, como pode ser o caso do seu conhecimento fonológico”. Alguns pressupostos básicos norteiam este estudo. O primeiro deles está fundamentado em pesquisas anteriores, tais como as de Abaurre (1990, 1991, 1999), Chacon (2004, 2005, 2006), Cunha (2004), Miranda (2006, 2008a, 2008b), Tenani (2004, 2006) e Veloso (2008), dentre outros. Segundo esses pesquisadores, pode-se afirmar que dados de aquisição da linguagem oral servem como importantes parâmetros para a análise e compreensão da aquisição da escrita. Sem que se perca de vista as especificidades inerentes a cada um desses processos. O segundo pressuposto diz respeito à produção de textos espontâneos – meio através do qual foram obtidos os dados para o presente estudo. Acredita-se que esse tipo de texto, produzido por crianças em fase inicial de aquisição da escrita, é capaz de revelar aspectos do conhecimento linguístico infantil e, particularmente, do conhecimento que a criança possui acerca da fonologia da língua. Com base nos estudos de Cunha (2004), o terceiro pressuposto fundamenta-se na idéia de que dados de segmentação não-convencional da escrita sofrem influência da prosódia, em especial dos constituintes prosódicos (cf. NESPOR & VOGEL, 1986). 81 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Acrescenta-se a essa idéia, o quarto pressuposto, que é aquele em que se constata que a criança, em fase de escrita inicial, tem dificuldades em definir os limites da palavra. A partir desses pressupostos, apresentam-se como principais objetivos deste estudo: (i) analisar dados de escrita produzidos de maneira espontânea por crianças portuguesas e compará-los aos dados das crianças brasileiras (cf. CUNHA, 2004); (ii) verificar em que medida os processos apresentados por ambos os grupos assemelham-se ou diferenciam-se; (iii) discutir como se revelam na escrita das crianças brasileiras e portuguesas aspectos do conhecimento linguístico e, particularmente, do conhecimento acerca da fonologia prosódica responsáveis pela incidência das segmentações nãoconvencionais. A aquisição da escrita por crianças de séries iniciais O processo de aquisição da escrita, neste trabalho, é entendido como um processo de aquisição do conhecimento, cujo centro é o “sujeito cognoscente”, e está fundamentado na teoria psicogenética de Piaget (1972, 1978). Esse sujeito é descrito por Piaget (1972) como aquele que aprende por intermédio de suas ações sobre os objetos do mundo que o cerca, construindo, portanto, suas próprias categorias de pensamento enquanto organiza seu mundo. Dessa forma, entende-se que a criança em fase de escrita inicial é o sujeito cognoscente e que o seu objeto de conhecimento é a língua escrita. 82 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. A criança, segundo Ferreiro e Teberosky (1999), enquanto adquiri a escrita, busca compreender de forma ativa a natureza da linguagem que a cerca. Isso faz com que formule hipóteses, busque regularidades e crie sua própria gramática. Durante esse período de experimentação pelo qual a criança passa na sua escrita inicial, autores como C. Chomsky (1979) e Read (1971, 1986) reconhecem a atuação de componentes fonológicos. C. Chomsky (1970) chama atenção para a importância da representação fonológica subjacente no processo de alfabetização, pois, segundo a autora, aos 6 anos de idade uma criança já domina totalmente a estrutura fonológica da sua língua. A complexidade da segmentação do texto Ao ingressar na escola, a criança já construiu hipóteses sobre a segmentação da escrita, graças às constantes práticas de letramento às quais está exposta em seu cotidiano. No entanto, é na escola, quando tem a oportunidade de testar essas hipóteses, que se lhe apresentam as dúvidas sobre onde colocar os espaços na construção de um texto. Mesmo antes de dominar a língua escrita a criança já domina a língua falada e é esta que ela vai usar como objeto de comparação para a aquisição daquela. Segundo Kato (2001, p.10): “a percepção das propriedades de um objeto torna-se mais fácil quando o confrontamos com outro objeto de natureza semelhante.” 83 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Ao confrontar a língua escrita com a língua falada é absolutamente natural que a criança, no início do processo de aquisição da escrita, tenha tendência a escrever sem segmentações e que somente aos poucos, ao longo desse processo, comece a segmentar. De acordo com Kato (2001) a fala é uma cadeia contínua de sinais acústicos, ela não é segmentada em unidades linguísticas. Quem ouve é que reestrutura essa cadeia sonora em unidades psicologicamente significativas. Esse processo acontece de forma inconsciente, somente quando passa pela aquisição da escrita é que a criança toma consciência desse fato. Nesse momento, o aprendiz depara-se com uma nova e difícil tarefa, a de saber onde são os limites da palavra. Certamente, pode-se afirmar que a aquisição da escrita é um processo de aprendizagem muito complexo, pois exige da criança um trabalho consciente ao mesmo tempo que uma grande capacidade de abstração. O aprendiz terá que trazer para o nível da consciência, conhecimentos que já possui inconscientemente sobre a língua e sua estrutura. As segmentações não-convencionais das palavras em um texto No Português Brasileiro (PB), investigadores como Abaurre (1990, 1991, 1999), Capristano (2003, 2004), Chacon (2004, 2005, 2006), Cunha (2004), Cunha e Miranda (2006, 2007, 2009), Tenani (2004) e Paula (2007), buscam entender, fundamentados no modelo da hierarquia prosódica proposto por Nespor & Vogel (1986), quais as motivações linguísticas que fazem com que a criança produza, durante 84 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. o processo de aquisição da escrita, segmentações não-convencionais – hipersegmentações (“com versando” para “conversando) e hipossegmentações (“derepente” para “de repente”). É importante ressaltar que este estudo desenvolve-se em uma perspectiva um pouco diferente da proposta nos trabalhos de Chacon, Capristano, Tenani e Paula. Esses pesquisadores têm em comum uma perspectiva de análise dos dados de segmentação da escrita centrada não só na fonologia prosódica, mas também no modo heterogêneo de constituição da escrita (cf. CORRÊA, 2004). Segundo o qual, as segmentações nãoconvencionais podem resultar, simultaneamente, do trânsito que o sujeito escrevente possui nas práticas orais e letradas. Sem desconsiderar as diversas e importantes possibilidades de análise para um mesmo objeto, neste trabalho, em particular, pretende-se explicar as segmentações nãoconvencionais por meio de uma relação mais estreita e específica com a fonologia prosódica, todavia, sem perder de vista que o sujeito aprendente é ativo no processo de aquisição da escrita. As segmentações não-convencionais, segundo uma perspectiva piagetiana de “erro construtivo”, são aqui entendidas como uma parte importante do processo de aprendizagem, pois caracterizam a fase de experimentação da criança. É através desse tipo de erro que o aprendiz revela suas hipóteses sobre a segmentação do texto e o que compreende como sendo o limite das palavras. O erro também pode ser entendido, de acordo com Miranda (2008), como um vazamento do conhecimento internalizado e inconsciente que a criança possui em relação à fonologia da língua. 85 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. No Português Europeu (PE), autoras como Pinto (1977) e Sousa (2008) também abordam algumas questões sobre segmentação da escrita, no entanto, ambas as abordagens são feitas sob perspectivas não correlatas a deste trabalho. Pinto (1977) analisa erros ortográficos encontrados em textos de crianças dos quatro primeiros anos de escolarização. As ocorrências de segmentações nãoconvencionais (embora esse termo não seja utilizado pela autora) do tipo “de pois” para “depois”; “qua do” para “quando”; “em bora” para “embora” são classificadas como erros de individualização/identificação lexical. As hipossegmentações que envolvem verbo e pronome, como “saltole” para “saltou-lhe”, são classificadas pela autora como erros de morfologia verbal. Sousa (2008) faz um estudo de dados de hipo e hipersegmentação também em textos de crianças dos quatro primeiros anos de escolarização. O objetivo da autora era o de analisar de que modo o conhecimento da segmentação de palavras evolui ao longo do 1º ciclo. Sousa (2008) conclui seu estudo afirmando que as hipossegmentações são encontradas em maior número do que as hipersegmentações e que a escolarização é um fator importante no reconhecimento da fronteira de palavras. Como se pode constatar, nenhum dos dois trabalhos acima referidos, têm como objetivo analisar os dados de segmentações não-convencionais, encontrados em textos de crianças portuguesas, à luz da fonologia prosódica. 86 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Metodologia Para o PB, neste estudo, foram analisados dados de segmentação nãoconvencional extraídos de aproximadamente 2000 textos produzidos por crianças brasileiras de 1ª a 4ª série do ensino fundamental, portanto, aprendizes em fase de aquisição da escrita. No PE, foram analisados dados de segmentação não-convencional extraídos de 1252 textos produzidos por crianças de 1º e 2º ano do ensino básico, também, aprendizes em fase de aquisição da escrita. Assim como os textos das crianças brasileiras, os textos das crianças portuguesas foram igualmente produzidos de maneira espontânea. As recolhas foram feitas em uma escola pública do Concelho da Maia, norte de Portugal. As duas recolhas, no Brasil e em Portugal, seguiram a mesma metodologia de trabalho. A saber, os textos foram produzidos de maneira espontânea, por meio de uma Oficina de Produção Textual, na qual havia uma fase de aquecimento em que as crianças eram estimuladas a expressarem-se oralmente sobre a história que deveriam escrever a seguir. Todos os textos recolhidos pertencem ao Banco de Textos de Aquisição da Escrita (GEALE/FaE/UFPel). Como metodologia de análise, os dados de segmentação não-convencional foram primeiramente divididos em duas categorias: hipersegmentações e hipossegmentações. A seguir, esses dois grupos foram divididos em quatro subcategorias 2 A diferença do número de textos em ambos os grupos analisados (2000 para o PB e 125 para o PE), deve-se ao fato de a presente pesquisa estar em andamento. Esses 125 textos do PE são apenas os primeiros de uma série de recolhas que ainda serão feitas. 87 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. de análise: palavra gramatical3 + palavra fonológica4 (PG+PF); palavra fonológica + palavra gramatical (PF+PG); palavra gramatical + palavra gramatical (PG+PG); palavra fonológica + palavra fonológica (PF+PF). Resultados da análise dos dados das segmentações não-convencionais no PB Embora se tenham encontrado dados em todas as quatro subcategorias referidas na metodologia da pesquisa, serão aqui expostos somente os resultados considerados como mais relevantes para este trabalho. Para os dados de hipersegmentação, segundo Cunha (2004), apresentam-se duas tendências predominantes no corpus analisado: 1ª) Separação de uma palavra em duas, uma “palavra gramatical” e uma “palavra fonológica” (PG+PF), conforme os exemplos em (1): (1) a onde (aonde) em bora (embora) Nas hipersegmentações, esse tipo de dado é o que aparece em maior quantidade e parece demonstrar, segundo Ferreiro e Teberosky (1999), o reconhecimento da palavra gramatical como motivação. Nesse caso, a criança reconhece a sílaba inicial como sendo uma palavra gramatical e, consequentemente, a isola, gerando uma hipersegmentação. A palavra fonológica que fica segmentada à direita pode ter significado lexical ou não. O que se mostra mais representativo nessa palavra é 3 Segundo Cunha (2004), “palavra gramatical” é aquela que não possui significado lexical, como os clíticos, por exemplo. 4 “Palavra fonológica”, de acordo com Cunha (2004), inclui todas as palavras que possuem um acento primário e que, mesmo não tendo significado conhecido na língua, são candidatas potenciais para tal. 88 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. a preservação de um pé métrico, na maioria dos casos um troqueu silábico, resultado que confirma tendência observada por Abaurre (1991). 2ª) Separação de uma palavra em duas “palavras fonológicas” (PF+PF), como mostram os exemplos em (2): (2) mara vilha (maravilha) verda deiro (verdadeiro) Nas ocorrências de hipersegmentação que resultam em duas palavras fonológicas, que podem ou não ter significado lexical, observou-se que essas separações podem ter as seguintes motivações: preferência pela formação de palavras dissílabas e paroxítonas; reconhecimento de palavras integrantes do vocabulário da criança; preservação de um pé métrico, mesmo que tenha apenas uma sílaba pesada. As palavras fonológicas que ficam segmentadas, tanto à esquerda, quanto à direita, poderão ter ou não significado lexical. O que importa é que são portadoras de acento e, por conseguinte, candidatas potenciais a serem palavras do léxico. É importante ressaltar que na grande maioria dos dados de hipersegmentação aparece uma preferência pela preservação de um pé métrico binário, em especial, do troqueu silábico. Nos dados de hipossegmentação, de acordo com Cunha (2004), duas tendências mostram-se como mais relevantes no corpus analisado: 1ª) Juntura entre uma “palavra gramatical” e uma “palavra fonológica” (PG+PF), conforme apresenta-se no exemplo (3): (3) cesquese (se esquece) siencontrou (se encontrou) De um modo geral, assim como nos dados de hipersegmentação, a palavra gramatical à esquerda pode ser reconhecida como um clítico. Dentre as hipossegmentações, esse tipo de dado é o mais numeroso e confirma o que diz Ferreiro e 89 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Teberosky (1999) sobre a dificuldade da criança em reconhecer como palavra, na fase inicial de aquisição da escrita, sequências de uma ou duas letras. Segundo Abaurre, Galves e Scarpa (1999), essa dificuldade também ocorre na aquisição da linguagem oral, pois a palavra gramatical, por não possuir acento, integra-se à palavra adjacente como uma de suas sílabas pretônicas. 2ª) Juntura entre duas “palavras fonológicas” (PF+PF), de acordo com os exemplos apresentados em (4): (4) miaroupa (minha roupa) saiucorendo (saiu correndo) Nesse tipo de dado, o que acontece é o surgimento de frases fonológicas ou frases entonacionais. Nas primeiras, como no exemplo “miaroupa” (minha roupa), a hipossegmentação pode ocorrer devido à escolha, motivada por critérios semânticos, da frase fonológica forte de uma frase entonacional. No caso das frases entonacionais, pode haver uma motivação devido à presença de uma linha entonacional decorrente de uma pausa, como em “chicobento saiucorendo”. Na maioria dos dados de hipossegmentação, vale ressaltar que, sempre que há contexto favorável, processos de ressilabação e sândi são aplicados às sílabas onde ocorre a juntura. Descrição e análise preliminar dos dados do PE Com base na mesma subcategorização criada por Cunha (2004) para a análise dos dados de PB, tem-se, para os dados de segmentação não-convencional do PE, alguns exemplos conforme são apresentados no Quadro 1: 90 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Quadro 1 – Dados de hipersegmentação e hipossegmentação do PE hipersegmentações PG+PF PF+PG hipossegmentações a cilo (aquilo) – o brigado – da aporta – asseguir – opé – quele – es queceu derrepente chama da – conversan do deitouse – comeua – parate – roupada PG+PG e a (ía) PF+PF bola chinhas – capo chinho – lobomáu – taogerandes – tuvais entre tanto doque – oce – cece – nãocamais Ao analisar o Quadro1, pode-se observar que quanto à qualidade, os dados do PE não diferem dos dados do PB, encaixando-se perfeitamente em todas as subcategorias de análise criadas por Cunha (2004) para o estudo dos dados do PB. Para uma análise ainda bastante preliminar, pode-se dizer que os constituintes prosódicos que motivam as segmentações não-convencionais do PE são basicamente os mesmos que motivam as hiper e hipossegmentações do PB. No entanto, é necessário ressaltar algumas semelhanças e diferenças entre os dados encontrados nos textos das crianças portuguesas e brasileiras. 91 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Semelhanças e diferenças entre os dados do PB e do PE Em ambos os corpora analisados, tanto do PB quanto do PE, os dados de hipossegmentação são bastante mais elevados do que os dados de hipersegmentação. Esse resultado parece confirmar a hipótese de que, no início do processo de aquisição da escrita, a criança possa partir da compreensão de unidades linguísticas maiores para menores e que, com a escolarização, os limites das palavras passam por reajustes. Outra semelhança a ressaltar é o fato de que sempre que há contexto favorável, na maioria dos dados de hipossegmentação, os processos de ressilabação e sândi são aplicados às sílabas onde ocorre a juntura. O que poderá ocorrer é uma diferença quanto ao tipo de sândi em uma e outra variedade do português. Uma das semelhanças entre as segmentações não-convencionais, encontradas nos textos das crianças brasileiras e portuguesas, que pode resultar em futuras discussões sobre o ritmo do PB e do PE, é a preferência pela preservação de um pé métrico binário, em especial, do troqueu silábico, sempre que há contexto para tal. Uma das grandes diferenças entre os dados do PB e do PE acontece no tipo de hipossegmentação. Enquanto no PB os dados mais frequentes são os que se incluem na subcategoria PG+PF (“tecomer” para “te comer), no PE, o maior número de ocorrências é do tipo PF+PG (“comerte” para “te comer”). Essa diferença confirma a hipótese de Carvalho (1989) sobre o efeito direcionalidade em ambas as variantes do português. Segundo o autor, o PB tem uma tendência a associar o clítico à palavra adjacente que está à sua direita, na forma de próclise, enquanto no PE isso funciona de forma inversa, o clítico associa-se à palavra 92 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. adjacente que está à sua esquerda, na forma de ênclise. Pode-se afirmar que essa evidência de escrita está diretamente associada a uma prática de oralidade. No PB, o maior número de hipersegmentações também está relacionado à formação de PG+PF (“em bora” para “embora”), é possível que isso aconteça devido ao fato de a criança reconhecer uma sílaba inicial como uma possível palavra gramatical. No entanto, no PE, esse mesmo tipo de dado é raríssimo, dificilmente a criança reconhece uma sílaba inicial como sendo uma palavra gramatical. Nos dados do PB é incomum que se encontre o constituinte “sílaba” violado, tanto nos processos de hiper quanto nos de hipossegmentação. Isso não corresponde aos dados do PE, nos quais se encontra com mais frequência esse tipo de violação. Isso pode levar a um questionamento sobre a existência de uma diferente representação do constituinte “sílaba”, durante o processo de aquisição de escrita, em ambas as variantes do português. Considerações finais É possível verificar, por meio dessa análise ainda muito preliminar, que não existem grandes diferenças entre os processos de segmentação não-convencional encontrados nos dados do PB e do PE, quanto à sua qualidade e aos constituintes prosódicos que as motivam. No entanto, essas diferenças parecem apontar para sutilezas que poderão ser reveladoras de questões interessantes para futuras discussões teóricas à cerca da fonologia dessas duas variantes do português. 93 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. Olhando para ambos os dados do PB e do PE, pode-se afirmar que a criança, durante o processo de aquisição da escrita, parece ser bastante sensível aos aspectos prosódicos da língua. Dessa forma, mais uma vez, o foco na relação fala/escrita mostra-se pertinente para os estudos desenvolvidos tanto na área da aquisição da escrita quanto no campo da fonologia, mas, evidentemente, sem perder de vista as particularidades de cada um desses processos. Referências Bibliográficas ABAURRE, M. B. Língua oral e língua escrita: aspectos da aquisição da representação escrita da linguagem. Mimeo, IEL– UNICAMP, Campinas, 1990. ABAURRE, M. B. A relevância dos critérios prosódicos e semânticos na elaboração de hipóteses sobre segmentação na escrita inicial. Boletim da ABRALIN, 1991. ABAURRE, M. B. Horizontes e limites de um programa de investigação em aquisição da escrita. In: LAMPRECHT, Regina (org.). Aquisição da linguagem: questões e análises. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. ABAURRE, M. 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