1 Título: Mudanças na divisão dos trabalhos (doméstico e remunerado) nas famílias brasileiras e suas intersecções com as desigualdades de classe e gênero Instituição: Doutora em Sociologia e Pós-doutoranda no IESP - UERJ 2 Mudanças na divisão dos trabalhos (doméstico e remunerado) nas famílias brasileiras e suas intersecções com as desigualdades de classe e gênero Introdução A divisão do trabalho remunerado nas famílias vem mudando de forma expressiva nas últimas décadas, centralmente devido ao crescimento do trabalho das mulheres e de sua condição de (co)provedoras. Outros processos que se conjugam na definição da população disponível para o mercado de trabalho nas famílias emergem das mudanças na socialização dos filhos, como a ampliação da escolarização e o adiamento da saída da casa dos pais, e com a diversificação dos arranjos familiares. Já a divisão do trabalho doméstico apresenta poucas alterações, mantendo-se sua majoritária distribuição entre os membros femininos das famílias. A literatura internacional registra que a expansão do trabalho feminino é um dos aspectos das transformações nas famílias que mais afeta as desigualdades de renda entre famílias. O crescimento do trabalho feminino também é usualmente visto como a maneira mais importante de reduzir a pobreza, pois o risco de pobreza é diminuído quando há dois provedores, mas já se alerta para os limites no potencial de compensar a pobreza pelo crescimento do trabalho feminino (NIEUWENHUIS et al., 2016). Segundo Oppenheimer (1997), a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho aumenta as expectativas de sua contribuição financeira no domicílio e está associada a mudanças no padrão de casamento à medida em que a renda feminina se torna mais importantes na definição de seu status no mercado matrimonial. A crescente inserção feminina também é uma das transformações centrais do mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas (GUIMARÃES; BARONE; BRITO, 2015) e está relacionada a transformações nas expectativas culturais de gênero e à revisão do modelo tradicional que atribuía o papel de provedor aos homens. As mulheres são crescentemente provedoras de suas famílias, o que, junto com a queda do número de filhos, está relacionado à redução da incidência de pobreza (LEONE; MAIA; BALTAR, 2003). As desigualdades entre mulheres e entre famílias também são destacadas no caso do Brasil. Marri e Wajnman (2007) constataram, para 2004, que, nos casais com dupla renda, as situações em que as mulheres são as principais provedoras ou têm maior contribuição na renda do casal são mais frequentes nos decis mais baixos de renda, embora não se restrinjam a eles. Embora discutam a literatura que afirma que a contribuição da mulher na renda aumenta seu poder de barganha, notam que o fato da mulher se tornar principal provedora não tem levado a uma revisão da divisão do trabalho doméstico. Assim como a incorporação crescente das mulheres no mercado de trabalho não significou uma revisão da divisão do trabalho doméstico, outras transformações em curso na oferta de trabalho pelas famílias possuem sentidos variados. As mudanças nas transições juvenis afetam a disponibilidade de trabalho de filhos e filhas que estendem a permanência na casa dos pais (cangurus), aumentando seu percurso escolar, mas também experimentando dificuldades de inserção no mercado de trabalho – em especial com o fenômeno dos nem nem, que é estratificado, sendo mais frequentes nas classes baixas (CORSEUIL; BOTELHO, 2014). Recentemente surge também a preocupação com a redução do trabalho 3 entre homens adultos nem nem de 50 a 59 anos (CAMARANO; CARVALHO, 2015), evidenciando que, se nas transformações nas famílias destacam-se as alterações na condição de atividade das mulheres e jovens, esta não lhe é exclusiva. O caráter estratificado das mudanças em curso nas famílias e as implicações de tais modificações para a oferta de trabalho dos seus diversos membros motivou a presente investigação que tem por objetivo analisar as tendências gerais e as variações por classe na distribuição do trabalho nas famílias, considerando tanto a participação dos membros das famílias no mercado de trabalho quanto na divisão do trabalho doméstico. Além de descrever a condição de atividade dos membros das famílias, importa, assim, também analisar a divisão do trabalho doméstico, dimensão que tem afetado sobretudo a disponibilidade de trabalho feminino. Material e métodos Os dados empregados para a análise do trabalho remunerado provêm das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs – IBGE), de 1976, 1986, 1996, 2006 e 2012. Para a análise do trabalho doméstico, dispõe-se de dados somente nas três últimas datas. A medida de classe empregada é familiar, a qual permite incluir todas as pessoas independente do seu engajamento no mercado de trabalho. Nas famílias compostas por casais, considerou-se a ocupação mais alta dentre os cônjuges, independente do sexo, método inspirado na proposta de Erickson (1984) do “dominance approach”. Parte-se do esquema de classes proposto por Valle Silva (2003) que inclui 16 categorias ocupacionais, as quais foram agregadas em oito classes através de análise de cluster1. Procedeu-se a análise do percentual que declarou dedicar-se a trabalho no mercado e a trabalho doméstico por condição na família, sexo e idade, de forma a especificar os aspectos da redução trabalho infantil, permanência dos filhos na casa dos pais e a condição de atividade dos filhos, especificando a situação de cangurus e nem nem. Analisou-se também, de forma comparativa, a condição de atividade de cônjuges, bem como a divisão do trabalho entre os demais membros adultos das famílias. Investigou-se, ademais, as horas dedicadas ao trabalho doméstico e remunerado. Na investigação das horas dedicadas aos afazeres domésticos e ao trabalho no mercado por sexo e classe familiar, analisou-se homens e mulheres de 15 anos e mais que trabalharam na semana de referência, além de filhos e filhas de 10 a 14 anos, dimensão para a qual, dentre as amostras utilizadas, há dados apenas para 2006 e 2012. Resultados e discussão Se no passado, existia a expectativa de que a mulher trabalhasse quando solteira, mas se retirasse do mercado de trabalho quando se casasse ou quando tivesse filhos, só retornando quando estes crescessem e atingissem a idade escolar (então sete anos), nota-se um movimento progressivo, entre 1976 e 2012, de 11 As classes sociais resultaram nos seguintes grupos (seguidos de seu respectivo percentual na população segundo a PNAD 1996): Classe 1 - Trabalhadores rurais (24,5%), classe 2 - Trabalhadores na indústria tradicional, nos serviços pessoais e domésticos (24,2%), Classe 3 - Trabalhadores nos serviços gerais e vendedores ambulantes (12,9%), Classe 4 - Trabalhadores na indústria moderna (5,3%), Classe 5 - Empresários por conta-própria (3,9%), Classe 6 - Ocupações não manuais, técnicas, artísticas, de rotina e supervisão - (19,2%), Classe 7 - Proprietários e dirigentes (5,6%), Classe 8 - Profissionais de nível superior (3,7%). 4 incorporação das mulheres unidas ao mercado de trabalho (exceção a um ligeiro recuo do trabalho das mulheres unidas da classe 1 entre 2006 e 2012). O fato de que as mulheres unidas mais frequentemente trabalhem representa uma profunda subversão do padrão familiar tradicional, comumente descrito como homem provedor – mulher dona de casa. É marcante e generalizado o crescimento dos casais com dois provedores. Se em 1976, em todas as classes, em 70% ou mais dos casais existia apenas o homem como provedor, em 2012, este percentual cai para um máximo de 50% (classe 1) e um mínimo de 24% (classe 8). Ambos os cônjuges trabalham em 44% dos casais da classe 1 e 73% da classe 8, observando-se que a situação de coprovedores cresce à medida que se observam os estratos mais altos. No entanto, há variações por classe no grau de incorporação das mulheres no mercado de trabalho, pois as mulheres unidas das classes baixas urbanas são as que apresentam menor presença no mercado de trabalho. Este padrão tende a agravar as desigualdades sociais, já que a crescente participação das mulheres dos estratos altos é garantia de famílias com dois rendimentos, favorecendo também que mais recursos sejam investidos em seus filhos. Diante da ampliação nas últimas décadas no acesso à educação dos filhos a partir de sete anos, houve uma transformação na forma de socialização das crianças, em especial no caso das camadas baixas, onde no passado prevaleceu uma aprendizagem múltipla pelo acompanhamento dos adultos no trabalho (CÂNDIDO, 1979). A ampliação do percurso escolar de filhos(as) das diferentes classes alterou, ademais, a transição para a vida adulta, a qual é afetada também pela idade em que é permitido trabalhar. O trabalho entre 5 e 14 anos tem se reduzido de forma acentuada desde o início dos anos 1990, favorecido por políticas de erradicação do trabalho infantil (BARROS; MENDONÇA, 2010). A capacidade de cada classe postergar a entrada de seus filhos no mercado de trabalho e sua saída do estudo está associada às possibilidades de herança social ou estratégias de ascensão. Considerando a divisão do trabalho nas famílias do ponto de vista dos filhos, não se observam alterações expressivas nos estratos não manuais, que mantêm os privilégios já visíveis em 1976 de maior dedicação só ao estudo, mas ocorrem mudanças significativas na distribuição destes eventos nas classes mais baixas que passam a prolongar a experiência de escolarização e adiar a inserção no mercado de trabalho. Por outro lado, a despeito do engajamento profissional feminino vir se tornando mais parecido com o masculino, pouco mudaram as desigualdades de gênero na distribuição do trabalho doméstico. Quando se observam as horas em média dedicadas ao trabalho doméstico por sexo, nota-se que a participação masculina é menor na adolescência e juventude e depois se mantém estável em torno de 5 horas semanais, tendendo a crescer apenas na velhice. Já a dedicação feminina cresce continuamente até atingir médias superiores a 25 horas semanais, só declinando por volta dos 65 anos, idade na qual seus patamares ainda são mais de três vezes superiores ao masculino. A intensidade da dedicação ao trabalho doméstico é extremamente diferenciada por classe entre as mulheres, tendendo a decrescer com a classe, mas a dedicação dos homens ao trabalho doméstico pouco varia por classe. A divisão do trabalho doméstico na geração dos filhos mantém as desigualdades de gênero e classe, sendo os filhos(as) dos estratos superiores mais poupados da dedicação ao trabalho doméstico, permitindo-os investir mais tempo em estudo e outras 5 atividades que favoreçam sua futura inserção ocupacional. Se a participação de filhas e filhos com entre 10 a 14 anos no mercado de trabalho tende a declinar – mas ainda é relativamente comum entre trabalhadores rurais e pequenos proprietários urbanos (classes 1 e 5) – os afazeres domésticos é que são a ocupação mais frequente entre meninos e meninas, manifestando desde cedo a desigualdade de gênero, uma vez que em todas as classes é mais frequente entre as meninas. Conclusões Uma nova divisão do trabalho desenha-se nas famílias a partir da interseção de um conjunto de mudanças, sobretudo na condição das mulheres (as esposas e também mulheres em outras condições na famílias que ganham mais destaque com a diversificação dos arranjos) e dos filhos e filhas que experimentam ampliação da escolarização e adiamentos na inserção no trabalho, afetando a transição para a vida adulta. As relações entre mercado de trabalho, mudanças familiares e desigualdades de classe e gênero são complexas e merecedoras de variadas leituras num contexto em que o crescimento do trabalho feminino é um processo estratificado (mulheres escolarizadas hoje participam muito mais), mas que tendem a se reduzir as profundas desigualdades de classe no percentual de participação no trabalho dos filhos, ainda que o não trabalho para os estratos superiores ocorra mais em benefício da escolarização, enquanto a condição de nem nem é mais frequente nas classes baixas. Por outro lado, diante da simultaneidade das divisões do trabalho doméstico e remunerado e das maiores implicações das responsabilidades familiares para o trabalho feminino (como demonstrado na literatura sobre “child penalty”), a divisão do trabalho nas famílias articula múltiplas desigualdades merecedoras de atenção de políticas de cuidado e de igualdade de gênero no trabalho, dentre outras. Referências BARROS, Ricardo Paes de; MENDONÇA, Rosane. Trabalho infantil no Brasil: rumo à erradicação. Brasília: IPEA, 2010. (Textos para discussão; 1506). CAMARANO, Ana Amelia; CARVALHO, Daniele Fernandes. O que estão fazendo os homens maduros que não trabalham, não procuram trabalho e não são aposentados? Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 9, p. 2757-2764, 2015. CORSEUIL, Carlos Henrique; BOTELHO, Rosana Ulhôa. Desafios à trajetória profissional dos jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. GUIMARÃES, Nadya Araújo; BARONE, Leonardo Sangali; BRITO, Murilo Marschner Alves de. Mercado e mercantilização do trabalho no Brasil. In: ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. LEONE, Eugenia Troncoso; MAIA, Alexandre Gori; BALTAR, Paulo Eduardo. Mudanças na composição das famílias e impactos sobre a redução da pobreza no Brasil. Economia e Sociedade, Campinas, v. 19, n. 1 (38), p. 59-77, abr. 2010. MARRI, Izabel Guimarães; WAJNMAN, Simone. Esposas como principais provedoras de renda familiar. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 19-35, jan./jun. 2007. NIEUWENHUIS, Rence et al. Has the potential for compensating poverty by women’s employment growth been depleted? LIS Working Paper Series, 2016. 6 OPPENHEIMER, Valerie K. Women´s employment and the gain to marriage: the specializationn abd trading model. Annual Review of Sociology, 23, p. 431-453, 1997. VALLE SILVA, Nelson do. O esquema analítico e a classificação ocupacional. In: SILVA, Nelson do Valle; HASENBALG, Carlos (Org.). Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.