A QUESTÃO AGRÁRIA EM IGNÁCIO RANGEL Arissane Dâmaso Fernandes. (Doutoranda em História – UFG) Introdução: Já no início de sua carreira de intelectual, em meados da década de 1950, (particularmente no artigo intitulado “Industrialização e Agricultura”) Rangel se posicionou em relação a um importante debate, o qual permaneceu na década seguinte, acerca da questão agrária brasileira. Naquele momento, a industrialização (pautada no modelo de substituição de importações) alcançara um estágio que exigia novas definições para que tivesse continuidade. Era necessário expandir (“modernizar”) o Departamento I, o setor de bens de produção da economia brasileira, para que novas inversões (investimentos) ocorressem, mantendo a continuidade do processo1. Dessa maneira, caberia ao setor agrícola um duplo papel: aumentar a oferta de bens agrícolas concomitantemente à liberação de mão-de-obra (advinda da abertura do complexo rural). Iniciou-se então o referido debate, o qual discutia a funcionalidade ou não da agricultura no processo de industrialização da economia brasileira até aquele momento. 1 1- De acordo com Rangel, devido à dualidade da economia brasileira, a industrialização do país se deu às avessas, tendo sido iniciada pelo DII (Departamento I) da economia, ou seja, de bens de consumo, o que se efetivou na terceira dualidade, conforme já apresentado. O fato é que ao final dos anos 1950, para que a indústria nacional tivesse novos crescimentos seria necessária a modernização do DII, setor de bens de produção a fim de que a indústria pudesse produzir novos bens e obter maior participação no mercado. Tratava-se de um novo ciclo da indústria brasileira, que dava sinais de enfraquecimento do modelo substituidor de importações. A perspectiva teórica rangeliana: Ignácio Rangel foi um dos grandes representantes da corrente estrutural-dualista que, a partir do pensamento difundido pelo Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), defendia a necessidade de uma reestruturação agrária para que o setor agrícola pudesse continuar contribuindo para o desenvolvimento nacional. A partir desse ponto de vista, desenvolvimento significava a transferência da produção industrial da agricultura (ou a por ele denominada de produção de bens não agrícolas pela agricultura) para as fábricas, deixando à agricultura somente o papel que lhe caberia: a produção de bens primários. A proposta do intelectual, e economista, em questão (Rangel, 2005a, p.232) era modificar o modo de vida da família rural, para que abandonassem algumas atividades não agrícolas, voltando-se para a agricultura, para que outras famílias pudessem ser transferidas ao setor industrial. Isso esbarrava na sazonalidade da agricultura e trazia a necessidade de inovações econômicas e tecnológicas (p.e diversificação de cultivos). Mas o assunto era ainda um pouco mais complexo do que aparentava à primeira vista porque o complexo rural em processo de desagregação, segundo a teoria rangeliana, apresentava uma versão urbana semelhante. Tratava-se dos denominados serviços domésticos não remunerados (como por exemplo o conserto de roupas feito pela dona-decasa) que, assim como as atividades não agrícolas desenvolvidas pela economia natural (agricultura), competiam com a economia de mercado no que se referia ao uso de fatores2. Para Rangel havia uma espécie de extensão do complexo rural nas cidades que também ocupava funções que essencialmente caberiam à agricultura e que portanto deveria 2 2 - Essa versão urbana do complexo rural foi denominada pelo economista russo Wassily Leontiev, em sua obra “The Structure of the American Economy”, de “unidades combinadas” (Rangel, 2005a, p. 220 – nota 9), referindo-se justamente à unidade produção/consumo como remanscente do complexo rural nas cidades. ser considerada naquele momento de reestruturação da economia nacional. Claro estava nessa perspectiva que a industrialização, tão preconizada naquele período, necessitava da transferência de recursos da economia natural para a economia de mercado, modificando a forma como esses recursos seriam aplicados (Rangel, 2005a, p.122)3. Tratava-se, nessa ótica, de uma simplificação do complexo trabalho do agricultor, a partir da racionalização e mecanização da produção, tal como nos países “avançados”. Ficava explícita também uma imprescindível reeducação da mão-de-obra e o aumento de custos em que esta implicava custos esses que inexistiam no denominado complexo rural e nos serviços domésticos não remunerados, já que o trabalho nessas áreas não era especializado (“profissionalizado”). Industrialização e crise agrária na análise rangeliana: A idéia de industrialização defendida por Rangel (e de forma semelhante pelos desenvolvimentistas de maneira geral) significava a desagregação do complexo rural (da economia natural) e a transferência de seus fatores ao setores mercantis da economia. Processo esse que incidia na emergência de novos custos de produção- custos esses que poderiam ser pagos como o capital gerado no próprio processo de industrialização (RANGEL, 2005a, p.124). Nesse sentido emergia uma nova problemática a ser analisada nessa situação, a questão do planejamento dos gastos desse projeto. Não coincidentemente é que a teoria do planejamento fora alvo de grandes estudos por parte do economista em questão, já que a economia, vista por ele como um complexo unificado, poderia padecer de um desequilíbrio a 3 3- Essa questão foi retomada também em: “Desenvolvimento e Projeto (1956, p.31).” partir de ações não planejadas em outros setores. Assim, a desagregação do complexo rural e a conseqüente transferência de fatores (sobretudo mão-de-obra) advinda desse acontecimento, se não fosse planejada poderia trazer o risco de inflação à economia, como resultado da liberação de mão-de-obra do setor agrícola em maior proporção que os outros setores da economia pudessem absorver. Mais a diante se retomará os desdobramentos desse processo. Notadamente nacionalista e desenvolvimentista a teoria rangeliana é marcada por seu aspecto político, voltada para soluções a serem colocadas em prática. Integrante dos quadros de poder como era, não poderia ser diferente. O fato é que a base dessa teoria é o conhecimento da economia (e sociedade) brasileira, a fim de que as especificidades dessa realidade fossem desveladas, de forma a facilitar justamente a ação governamental. Com esse propósito é que o autor demonstra que a heterogeneidade do país, pano de fundo de todas as problemáticas abordadas em suas obras, seria o grande modulador das instituições e toda a sociedade brasileira.4 Com os olhos voltados para a expansão industrial, Rangel apontava a estrutura do setor agrícola, ou o “complexo das mil atividades”, como um “imenso oceano de força de trabalho à espera de melhor ocupação” (Rangel, 2005 a, pp.157,158). Via que a elaboração de produtos feita pelos camponeses era uma função estritamente das indústrias urbanas e para que isso fosse cumprido era mister o desligamento ou desagregação do complexo rural. Nessa perspectiva desenvolvimento significava, como antes destacado, a passagem da economia natural para a economia capitalista com a conseqüente transferência de fatores daquele setor a esse; mas implicava também além da já referida reeducação dos trabalhos uma mudança nos hábitos de vida da população (sobretudo rural, mas também a urbana- essencialmente a parcela que mantinha os serviços domésticos não remunerados). 4 4 - A ênfase na heterogeneidade é uma característica fortemente presente nas análises da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), uma das grandes referências da teoria rangeliana. Era necessário criar novos hábitos de consumo que impulsionariam a indústria, já que resultariam numa procura por novos bens e serviços. Tratava-se de um ajustamento da agricultura à industrialização, a partir do abandono da produção artesanal de manufaturas em detrimento das compras de produtos urbanos. E além disso, consistia em um processo no qual os setores não agrícolas deveriam estar equipados para a absorção dessa força de trabalho liberada pela agricultura. Deveriam também estar preparados para a realização de alguns serviços, sobretudo de transporte, uma vez que a antiga produção dos bens “semi-manufaturados” - realizada no campo seria sediada em outros locais (nas indústrias propriamente ditas). Estava claro que para além de um novo mercado de consumo que surgia, o desmantelamento do complexo rural era tido como ponto de partida ao desenvolvimento por sua característica inegável de reserva de mão-de-obra, que deveria ser transferida para a economia de mercado. Seria justamente o ritmo de transferência dessa mão-de-obra que ditaria o ritmo de desenvolvimento da economia brasileira (Rangel, 2005, p.184); ritmo esse que, conforme já destacado, deveria ser controlado, a fim de que não resultasse em desequilíbrio econômico. Mas a grande explicação para a necessidade de reestruturação do chamado complexo rural estava no fato de que o Brasil, enquanto um país subdesenvolvido, possuía uma economia marcada pelo fluxo e refluxo do comércio exterior. Em momentos de crise mundial, se dava um esforço nacional de substituição de importações e em momentos de prosperidade, aumenta-se a produção interna para exportação. Desse modo, a economia alternava “agrarização” e urbanização (Rangel, 2005b, pp.20,21), sendo que esta última ocorreria através da efetiva mercantilização da produção5. Justamente com esse intuito é que ele enumerou medidas tidas como fundamentais 5 5 - Discussão retomada no artigo “Industrialização e Economia Natural” (prefácio ao livro homônimo de Gilberto Paim), publicado em 1957. para acelerar esse processo que acreditava já estar em andamento. Tais proposições estão bem discutidas na obra “A questão agrária brasileira” (1962) (RANGEL, 2005b, pp. 34-36): 1- O primeiro passo seria a criação de um pequeno lote, fora da fazenda, para o trabalhador assalariado da moderna fazenda capitalista. Esses lotes deveriam ser em terra pública ou de propriedade do trabalhador, já que sendo as terras do empresário agrícola, seriam refeitos os laços de dependência pessoal, característicos do regime feudal. Resolver-se-ia a partir daí a questão da oferta regular de mão-de-obra à agricultura pois, conforme seu defensor, havendo um complemento salarial (casa própria e produção para autoconsumo) a esse trabalhador, parte da população inativa urbana (vista como resquícios da família camponesa desagregada no processo de enclosure6) seria absorvida por essa “nova” família camponesa; 2- Outra questão a ser resolvida dizia respeito a uma eficaz política de preços mínimos ao produtor agrícola, permitindo-lhe chegar diretamente ao consumidor, o que por sua vez requeria uma reorganização do crédito agrícola (para que o produtor tivesse acesso e não o intermediário) e a expansão da rede de silos e armazéns. Seria o fim dos denominados oligopsônios-oligopólios7, considerados um dos grandes empecilhos à expansão capitalista (devido ao controle de mercado e imposição de preços por parte desses grupos), e também para uma efetiva capitalização da agriculturafosse em empresas capitalistas privadas ou cooperativas, ou ainda pequenas explorações familiares. 6 6- O autor define “enclosure”para o caso brasileiro, que difere do britânico, a conversão do latifúndio agrícola em latifúndio pecuarista. Esse fato ficou conhecido na historiografia goiana, e provavelmente em outras historiografias locais, como “pecuarização da lavoura” ou da agricultura. (BORGES, 2000, p.8) 7 7 - Conforme esclarece o autor (2005a, p.623): “Oligopsônio: privilégio de compra exercido por alguns; oligopólio: privilégio de venda exercido por alguns ou por poucos”. Essa prática é considerada por Rangel uma das anomalias responsáveis pela inflação brasileira, segundo se observa mais detalhadamente na obra: “A inflação brasileira (1963)”. 3- Por fim, esse projeto propunha que a estrutura agrária não deveria ser modificada com a utilização de dinheiro público para a compra da terra (o que encareceria o preço da terra a partir da especulação), mas pela utilização de terras públicas recém tornadas acessíveis pelas rodovias8. Se assim fosse, se a compra dessas terras para fins de reforma agrária se dessem com a utilização de dinheiro do Estado aumentaria o nível do problema chave da crise agrária: o preço da terra. Isso porque haveria uma corrida às terras no mercado a partir da expectativa de aumento de preço desse terreno, a conhecida especulação. Naquela conjuntura a ênfase recaía sobre a região Nordeste do país, a fim de tirá-la da situação de marginalidade que segundo o autor, só poderia ocorrer através da grande exploração capitalista, já que naquele momento a agroindústria do açúcar apresentava bons resultados. Fica clara a perspectiva dualista da qual deriva essa abordagem. O Nordeste brasileiro era visto como a porção atrasada do país, em oposição à região Sul, onde predominavam as práticas “modernas” de cultivo. Com base nesse referencial Rangel (2005b, p.30) via na emigração de camponeses nordestinos para o Maranhão e Goiás, a única solução correta naquele momento, já que “nessas novas províncias está nascendo um Brasil completamente novo, que não é nem nordestino nem sulista, mas que é nordestino e sulista ao mesmo tempo”, uma realidade que os teóricos da época não teriam conseguido abarcar. Havia portanto nessa teoria a convicção de que a principal característica da agricultura brasileira (assim como a sociedade de forma geral) seria sua heterogeneidade, possuidora que era de um lado arcaico, caracterizado (por suas relações internas de produção) pelo latifúndio feudal e um lado moderno, em suas relações externas, caracterizado pelo latifúndio capitalista. Assim a metáfora de que a região central do país não era nem nordestina nem 8 8- Ao final dos anos 1950 Rangel fora assessor do então ministro de Viação e Obras Públicas (Lúcio Meira), quando propôs, e de fato se deu, a criação da Comissão de Povoamento dos Eixos Rodoviários (Coper) –em 1959. Caberia a esse órgão suscitar a migração de excedentes demográficos do Nordeste do país para outras regiões. sulista demonstra muito bem a predominância dessa dualidade, essência da economia brasileira conforme a teoria rangeliana, e a conseqüente coexistência de relações de produção arcaicas e modernas. Ela evidencia também a concepção de que a expansão do capitalismo (e como ele relações de produção mais “avançadas/modernas”) acabaria resolvendo naturalmente a questão da heterogeneidade gerada pela permanência de resquícios feudais, nossa grande e indesejada herança colonial. Além das relações de produção em estágios diferenciados, que caracterizam a dualidade básica da economia brasileira, esse dualismo era marcado por situações de excedente populacional na parte subdesenvolvida/marginalizada do país em contraposição a um excedente de produção nas áreas desenvolvidas (região Sul). Na perspectiva rangeliana a questão agrária, como componente essencial da economia, se agudizava sempre que a conjuntura não era favorável, ou seja, em momentos de crise. E em momentos de conjuntura favorável (fases ascendentes) a indústria brasileira intensificava sua produção ao comércio exterior, aumentando em conseqüência a utilização de mão-de-obra, tornando assim menos evidente a questão da superpopulação. Por outro lado, ao contrário, em momentos desfavoráveis (de recessão econômica) havia um esforço de substituição de importações, dado nosso modelo econômico até então, pela indústria nacional que a partir da queda de exportações diminuia o nível de utilização de mão-de-obra, ressaltando-se a crise agrária. Dessa maneira, o setor agrícola era apontado por ele como o grande regulador do mercado de trabalho. A questão agrária era então definia a partir do momento em que esse setor não liberava a mão-de-obra necessária ao crescimento dos demais setores da economia, ou a liberava em excesso (Rangel, 2005b, pp.40-42); fato esse que seria “corrigido” pela ação estatal, sobretudo a partir da implementação de uma prática efetiva de planejamento econômico. Nessa concepção a reforma agrária era a forma apontada para solucionar o “atraso” das relações internas de produção, que ainda padeciam com os resquícios feudais. Ele acreditava que a partir das relações externas de produção (tidas como as mais desenvolvidas) poderia haver uma reestruturação da economia brasileira que a levasse aos caminhos do desenvolvimento. Em síntese, o lado “desenvolvido” da economia impulsionaria mudanças ao lado “atrasado” a partir da atuação de seus representantes. Somente a partir do equilíbrio das finanças públicas é que poderia ser seguido um plano efetivo de reforma (ou reformas) agrária, já que esse processo se assentaria na criação de pequenas propriedades aos trabalhadores rurais, como forma de controlar o fenômeno da já destacada escassez sazonal de mão-de-obra; o que se daria a partir das terras públicas. O autor demonstrava portanto grande lucidez em relação à reestruturação agrária uma vez que, contrariando muitos “militantes”, anunciava que nem a fazenda de gado e nem a monocultura seriam compatíveis com a pequena produção familiar, dadas as relações de produção que as caracterizam. Seria com base nessa percepção, segundo ele, que muitos afirmavam (e ainda afirmam) a necessidade de desmantelamento do latifúndio capitalista, tido como ocupante das melhores terras, para realização da reforma agrária. Como forma de compensação, acreditavam que o governo deveria oferecer investimentos públicos ao empresário agrícola, visando o aumento de produtividade da terra pela irrigação das lavouras. Considerações Finais: À medida que a dinâmica da economia brasileira se desenrolava o grande desenvolvimentista propunha “soluções” para que a agricultura (em cada conjuntura que se apresentava) não obstacularizasse o tão propalado processo de desenvolvimento econômico nacional. As preocupações em relação ao setor agrícola se davam nesse sentido. Mesmo os projetos de reforma agrária seguiam essa vertente. Assim, a inquietação na década de 1930 com uma industrialização não precedida de reforma agrária poderia até possuir uma preocupação social em torno da questão, mas a partir dos anos 1950 a ênfase passou a ter caráter estritamente econômico, como se buscou demonstrar nessa análise. Reiterando, as propostas sobre reforma agrária apresentadas, sobretudo após a década de 1960, visavam solucionar os efeitos da crise agrária (sobretudo superprodução -com resultados indesejáveis às relações com o mercado externo – e a superpopulação – que ocasionava resultados “desagradáveis” nos centros urbanos) na medida em que estes obstacularizavam, conforme a perspectiva desenvolvimentista, o setor urbano-industrial. Referências Bibliográficas: BORGES, Barsanufo Gomides. Goiás nos Quadros da Economia Nacional (1930-1960). Goiânia, Ed. da UFG, 2000. RANGEL, Ignácio. Desenvolvimento e Projeto. In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 1º vol.pp.204-282. _______________ Dualidade e “Escravismo Colonial” (1978), In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 2º vol., pp. 623-635. ________________ Industrialização e Economia Natural. In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 2º vol, pp.19-22. ________________ Introdução ao Desenvolvimento Econômico Brasileiro (1955), In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 2º vol.pp.129-202. ________________ O Desenvolvimento Econômico no Brasil (1954). In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 1º vol, pp.39-126. ________________ Textos sobre a Questão Agrária (1955-1989). In: Obras Reunidas, Rio de Janeiro, Contraponto, 2005, 2º vol, pp.15-162.