INTERNET, EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E O CORPO: UMA NOVA PERSPECTIVA DE SITUAÇÃO? Rafaela Ferreira Marques (Bolsista IC-CNPq) Ac. Curso de Filosofia (DFIME – UFSJ) [email protected] Resumo O presente trabalho é fruto de uma sucessão de projetos de iniciação científica nos quais estudo, sob orientação do Prof. Dr. Wanderley C. Oliveira (DECED-UFSJ), a temática do corpo, das TIC (tecnologias de comunicação e informação, onde se insere a Educação a Distância) e, em um segundo momento a possibilidade de uma crise do conceito de situação. Tenho como principais referencias teóricos os filósofos Michel Serres (França, 1930) e Maurice Merleau-Ponty (França, 1908-1961). Além desses dois, fez-se importante também o estudo da teoria de Pierre Lévy (Tunísia, 1953), e a obra Adeus ao Corpo, de David Le Breton (França, 1956) a fim de explicar uma conceituação de virtualidade que seja coerente com as nossas expectativas e necessidades no decorrer do texto, e, em um primeiro momento, no desenvolvimento de nossas pesquisas. O tema que procuraremos expor nesse trabalho se refere basicamente às mudanças causadas pelas TIC e como essas mudanças atingem a educação, o conceito de corpo e também o conceito de situação. É importante dizer que não possuímos nenhuma base empírica, nossos estudos e reflexões são inteiramente voltados para dados bibliográficos e pesquisa puramente conceitual, ao contrário de muitos estudos que se valem de trabalhos de campo ou similares. 1 Introdução Nossa motivação de propor esse trabalho no IV SENAFE foi basicamente despertada pelo tema tratado no evento: “Interatividade, Singularidade e Mundo Comum”. Isso porque tal assunto vai de encontro com as pesquisas que temos desenvolvido desde o segundo semestre do ano de 2010. Estamos pensando, dentro da filosofia de dois autores franceses contemporâneos (Michel Serres e Merleau-Ponty), questões referentes ao mundo virtual em “oposição” ao mundo real além dos conceitos de corpo virtual e corpo próprio, que serão tratados mais detalhadamente no decorrer do texto. A tentativa de aproximação entre as filosofias de Serres e Merleau-Ponty se dá, em um primeiro momento, no que se refere à EaD. Pensar esse novo modelo de educação, nos moldes que vem sendo desenvolvido na atualidade, é inevitável se levarmos em consideração as diversas mudanças que as TIC tem proporcionado à sociedade e ao homem. Não podemos ignorar que a educação, necessariamente, sofre mudanças na atualidade e não somente a forma de comunicação e de representação do corpo e da singularidade. Quando a sociedade muda radicalmente, é um movimento quase instantâneo que os métodos educacionais mudem para acompanhar o novo mundo e o novo homem que surge. Atualmente estamos pesquisando a questão da situação nas filosofias dos dois autores citados para tentar descobrir se o mundo virtual pode colocar em xeque o conceito de situação que, podemos dizer, é uma das peças chave na fenomenologia merleau-pontyana. Por se tratar de uma pesquisa em andamento não apresentaremos nada conclusivo no que se refere à problemática da situação, mas somente algumas considerações. Nossa preocupação no que se refere a esse ser em situação, dialoga diretamente com o conceito de virtualidade, dos meios de comunicação e mesmo do corpo humano e seus sentidos. Pensar que podemos estar situados aqui, lá e também nas redes sociais ou emails, ou números de telefone é um tanto quanto problemático se levarmos em consideração a filosofia de Merleau-Ponty como uma “filosofia da situação”, pois é ao situar a consciência no mundo através do corpo, que o filósofo inicia sua crítica ao pensamento puro ou a razão de sobrevoo. 2 O corpo Nesta seção pretendemos evidenciar as diferenças presentes nas filosofias de Michel Serres e Merleau-Ponty no que se refere à temática do corpo. Enquanto para o primeiro o corpo não possui uma definição rígida e fechada, e sim algumas conceituações que se completam e aprofundam umas pelas outras, para Merleau-Ponty (2006, p. 156) o corpo "nosso ancoradouro no mundo" (IDEM, p. 156), "nosso meio geral de ter um mundo" (IDEM, p. 158). Podemos afirmar que o conceito de corpo na filosofia merlau-pontyana é um conceito chave que embasa muitos outros conceitos, como o conceito de mundo, de conhecimento e de situação. Em Serres utilizaremos nessa seção os livros A lenda dos Anjos 1, Hominescências 2, e O Incandescente 3, três obras que formam uma dita antropologia filosófica, na qual o autor trata 1 Cf. Serres, 1995. de diversas mudanças ocorridas na contemporaneidade e suas reflexões na vida e no cotidiano dos indivíduos, de seus corpos, da memória individual e coletiva da humanidade. Em Merleau-Ponty trabalharemos com a Fenomenologia da Percepção 4, publicada em 1945, que contém uma ampla discussão sobre o corpo. 2.1 Perspectivas de compreensão do corpo na filosofia de Michel Serres 2.1.1 Vilanova e os corpos voláteis Serre disserta sobre a questão da volatilidade do corpo em A lenda dos anjos, livro publicado em 1993. Antes de falar sobre os corpo volátil é necessário que esclareçamos outro conceito que o complemente e mesmo é sua razão de ser: a cidade mundo, ou Vilanova, que é um local onde não há barreiras físicas por ser formado basicamente por ondas, ondas que provém dos meios de comunicação e dos meios de transporte que cada vez mais se aperfeiçoam. Há, por esse motivo, um “encurtamento” das distâncias no mundo, ele torna-se menor a cada inovação tecnológica que surge relacionada às TIC (tecnologias de informação e comunicação) bem como aos meios de transporte, como aviões a jato, e novos materiais que conferem maior resistência a carros e ônibus, por exemplo. Vilanova é produto de todas essas mudanças, nela não há espaço físico, somente o espaço volátil, diz-se volátil de “uma substância que, rapidamente, passa para o estado sutil e (...) de uma aparição que, em seguida, desaparece” (SERRES, 1995, p. 44). Quanto a organização físico-espacial de Vilanova o autor explica que nela não há exterior, que ambos se confundem tamanho o grau de relações mantidos entre o que está teoricamente exterior a pessoa e interior para ela. Serres diz: Ela se organiza em torno de uma única faixa, onde se confundem exterior e interior, rua que vai da passagem para pedestres à larga avenida ou, se quisermos — eu clico ou zuno — para a rampa de decolagem, ou conforme uma outra escolha — eu zuno ou clico —, para a linha do fax, do rádio ou da televisão... assim ela se ramifica em meios tão diversos — corpo, automóvel, asas ou ondas — a ponto de podermos dizer que reproduz a curva que passa por todos os pontos da diversidade onde ela se desenvolve, penetrando diferentes dimensões (1993, p. 67). Para acompanhar as mudanças ocorridas com a sociedade o corpo também se torna volátil, os indivíduos possuem além de sua existência física, uma existência virtual. Um exemplo disso 2 Cf. Serres, 2003. Cf. Serres, 2005. 4 Cf. Merleau-Ponty, 2006. 3 são as redes sociais, nas quais os indivíduos possuem perfis que lhes representam virtualmente, e mais que isso, normalmente as pessoas possuem até mais de um perfil. A partir dessas definições entenderemos o próximo tópico desse trabalho, que se refere à Hominescência, processo pelo qual o homem vem passando desde a primeira revolução industrial e no qual os instrumentos, como as TIC e os meios de transporte, possuem fundamental importância. 2.1.2 A Hominescência A Hominescência é uma busca do homem pela vida, mas não a vida de privações e problemas que levava em épocas passadas, mas uma vida que garanta seu bem estar, bem estar do mundo e do corpo. Serres apresenta um conceito novo, um neologismo que explica uma das características, segundo ele, desta hominescência: o exodarwinismo. Que se relaciona com os instrumentos criados pelo homem, e como ele faz uso destes, além de ressaltar que tais instrumentos são inspirados nas próprias capacidades corporais, porém melhoradas. O exodarwinismo consiste no fato de a evolução dos seres humanos não depender somente das leis e acasos biológicos, agora o homem evolui a partir das coisas que cria e aprende a usar. Serres denomina “exodarwinismo esse movimento original dos órgãos que exterioriza os meios de adaptação.” (2003, p. 51). Perpassando por inúmeras mudanças o corpo novo de Serres assume um papel que vai além daquele usualmente atribuído a ele. As possibilidades desse corpo modificado pelo processo hominescente são tantas que o autor dá um nome específico a ele: biossom, que significa o corpo que representa a soma de todas as possibilidades dos seres humanos e da sociedade. E isso ocorre porque “por meio das técnicas que aparelham nossos corpos, ampliamos nossas recepções em toda sua biocapacidade empírica possível” (SERRES, 2003, p. 129). 2.1.3 O corpo incandescente Além de tudo o que foi dito, o corpo não é apenas uma parte da existência física, ele carrega consigo partes da história da humanidade, sendo também um receptáculo dos inúmeros níveis da memória da espécie, “composto de ritmos variados, meu corpo passa do efêmero a milhões de séculos, em suma, sou tão velho que minha vida e a história quase não têm importância” (SERRES, 2005, p. 18). Isso porque para Serres toda a história da humanidade, as descobertas, as revoluções e até mesmo as guerras deixaram marcas no corpo humano. A memória que ele cita acima diz respeito a esses fatos, não só memória particular, mas uma memória universal herdada da tradição histórica da qual o indivíduo provém. Uma das ferramentas utilizadas pelo corpo para ter acesso a todo esse tempo transcorrido desde o surgimento da vida até a consolidação da espécie Homo sapiens, são os sentidos, que segundo o autor, possibilitam essa relação. Serres (2005) explica: Costuma-se dizer que os sentidos abrem o corpo para o mundo; não, eles fazem com que penetremos na duração imemorial de espaços há muito tempo perdidos. (...) Quando nos colocamos sob as condições iniciais da ciência moderna, sem saber, evocamos uma série de milhões de anos” (p. 24). As mudanças em relação ao tempo ocorreram e acarretaram outras, como dito acima, a mudança no conceito de espaço e quanto à idade dos seres, “não vivemos nos mesmos espaços nem nos mesmos tempos. Nem o mundo, nem nós mesmos ou qualquer dos seres vivos têm mais a mesma idade; de repente, despertamos fantasticamente velhos” (Id. p. 25). Essa mudança de espaços e tempos pode ser relacionada à questão das novas tecnologias de comunicação e também à Vilanova, que sendo entendida como um novo espaço condiz com a teoria defendida por Serres. O corpo se torna incandescente a partir de uma característica própria do ser humano: a desprogramação, o caráter polivalente do ser humano desespecializado, que “no decorrer dos tempos, o orgânico inútil e frágil revelou-se um técnico possuidor de todas as valências” (p. 60). O que, a princípio, poderia parecer algo desfavorável, tornou-se o diferencial da espécie humana, a essa valência múltipla o autor atribui o nome “Incandescência”. A desdiferenciação confere ao homem uma particularidade referente às possibilidades, a partir dela várias culturas se originam, diferenças linguísticas e pessoais. As inúmeras nações do planeta, as diferenças religiosas e culturais são exemplos das possibilidades conferidas pela incandescência dos seres humanos. “No lugar em que todos os outros seres vivos se diferenciam corporalmente em espécies, nós nos diferenciamos culturalmente por meio de famílias de línguas” (p. 62). O homem é, sem dúvida, o ser que de maneira mais pertinente utiliza-se de suas invenções e as multiplica, cada vez mais. Isso se deve também a essa brancura e exteriorização do corpo incandescente que o ser humano possui. Serres afirma “quanto mais brancos nos tornamos, mais inventamos; quanto mais construímos instrumentos a partir do nosso corpo, mais nos exteriorizamos e mais brancos nos tornamos” (p. 85), este é, então, um ciclo vicioso no qual a tendência é cada vez mais os seres humanos inventarem e tornarem-se brancos. 2.2 O corpo próprio A tradição filosófica sempre delegou ao corpo o estatuto de objeto, porém Merleau-Ponty discorda radicalmente dessa concepção. Enquanto posso me distanciar de objetos e variar minha perspectiva de observação em relação a eles, não existe essa possibilidade se pensarmos o corpo, não posso distanciar-me de meu corpo. O que aparece sob várias perspectivas não é o corpo, mas o mundo. O corpo é esta "permanência absoluta que serve de fundo à permanência relativa dos objetos" (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 104). Graças a esta "resistência de meu corpo a toda variação perspectiva" (IDEM, 2006, p. 104), os objetos podem aparecer-me sob vários perfis. Meu corpo, sendo esta perspectiva invariável para o mundo, permite ao mundo aparecer-me sob várias perspectivas. Meu corpo é esta "permanência absoluta que serve de fundo à permanência relativa dos objetos" (idem, p. 104). Meu corpo enfim, é o ponto de vista de todos os meus pontos de vista, é o lugar de onde observo os objetos exteriores, sem que ele mesmo possa ser observado como um deles. Merleau-Ponty apresenta ainda uma perspectiva critica em relação à dualidade entre corpo e consciência. Na experiência perceptiva, o corpo não se reduz a um mero objeto colocado entre a consciência e o mundo, mas se define como este "Eu natural" que percebe o mundo; por sua vez, a consciência também não é uma pura transparência, mas se apresenta como um ser para o mundo através do corpo, ou seja, como consciência encarnada. Deste modo, na experiência perceptiva, existe uma circularidade entre corpo e consciência que nega ao corpo o estatuto de puro objeto e à consciência o estatuto de puro sujeito, sem qualquer contaminação com o mundo. Pois, na experiência perceptiva, minha existência enquanto corpo está intimamente em círculo com minha existência enquanto consciência e vice-versa, nem o corpo é pura exterioridade sem interior, nem a consciência é pura interioridade sem exterior. Logo, na experiência perceptiva, não sou nem coisa nem ideia, mas corpo cognoscente ou consciência perceptiva, sou esta modalidade de existência que envolve numa ambiguidade essencial o Para-si e o Em-si, colocando-os num comércio constante, a partir do qual o corpo e a consciência são apenas dois aspectos de minha presença ao mundo, isto é, dois momentos de um sujeito que na experiência perceptiva se experimenta como fundamentalmente uno. A explicitação do "corpo-próprio" que empreendemos até aqui, confirma-nos que não estamos diante de nosso corpo, mas dentro dele, enfim, que somos nosso corpo. Deste modo, ao invés de se comparar o corpo a um objeto físico, melhor seria compará-lo a uma obra de arte. Na obra de arte, a expressão não se distingue do exprimido, o que torna o sentido da obra de arte acessível apenas através do contato direto com ela. Assim também, o sentido deste corpo que somos se irradia sem abandonar seu lugar no tempo e no espaço. O corpo, como a obra de arte, é um “nó de significações” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 162) que só apreendemos vivendo-o ou confundindo-nos com ele. Outra parte relevante para nossa pesquisa foi a questão do mundo e a maneira como o corpo se insere nele e faz aparecer. Neste mundo, no qual todas as coisas aparecem-me, meu corpo constitui com elas um conjunto de significações vividas ou “um sistema onde cada momento é imediatamente significativo de todos os outros” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 306). Assim, a tomada de um objeto sob determinado ponto de vista implica não só numa certa aparência deste objeto, como também numa remodelação do aparecer de todos os objetos vizinhos a ele no meu campo visual. É nesta conexão viva, onde “cada atitude de meu corpo é de saída para mim potência de um certo espetáculo" (IDEM, p. 308), que as coisas me são dadas. Assim, a percepção do "corpo-próprio" e a percepção do mundo são correlativas; toda percepção do “corpopróprio” implica numa certa percepção do mundo e toda percepção do mundo, numa certa percepção do “corpo-próprio. 3 Educação a Distância e virtualidade A questão da virtualidade surgiu como um grande problema, já que na filosofia clássica não encontramos quaisquer conceitos que pudessem dar conta do que estávamos pesquisando. O virtual que procuramos não é aquele sinônimo de potencial na filosofia de Aristóteles, ainda que este conceito nos seja também útil, mas sim o virtual da contemporaneidade, causado basicamente pelo melhoramento das TIC e a difusão cada vez maior e mais rápida da internet como parte da vida das pessoas. Para isso, nos valemos de dois outros autores (Pierre Lévy e David Le Breton) que, estudados conjuntamente foram capazes de nos auxiliar nesse quesito. Compreendemos que, para Pierre Lévy o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual, e por isso falar em uma realidade virtual, um mundo virtual ou mesmo um “ciberespaço” como o próprio autor coloca não aparenta ser nenhum absurdo, pelo contrário, é uma indicação clara dos novos tempos e das novas tecnologias. Segundo Lévy (2008, p. 11) “estamos vivendo a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas deste espaço nos planos econômico, político, cultural e humano”. Dentre essas potencialidades positivas destacamos a EaD, que mesmo já existindo desde a década de 1940 (mas com moldes inteiramente distintos dos que ela assume hoje, é claro), cresceu de maneira exponencial nos últimos anos graças ao advento da internet. O mundo virtual é um mundo “em que as fronteiras se misturam e em que o corpo se apaga, em que o outro existe na interface da comunicação, mas sem corpo, sem rosto, sem outro toque além do toque do teclado do computador, sem outro olhar além do olhar da tela” (LE BRETON, 2009, p. 142). Como não há mais o corpo biológico, pesado, limitado e impossibilitado de se mover com a mesma rapidez das ondas da internet, na educação a distância as informações vem e vão com uma facilidade nunca vista. As pessoas aprendem, tem acesso a livros, textos, aulas em vídeo, áudios, que lhes auxiliam o desenvolvimento intelectual. Nesse mundo as informações não são perdidas, “fluida, virtual e ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa biblioteca de Babel não pode ser queimada” (LÉVY, 2008, p. 16). Não há mais a necessidade de se preocupar com perdas de informações, porque as informações no ciberespaço estão em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar nenhum. Isso pode trazer alguns problemas, como não sabermos quem envia trabalhos, ou se as pessoas de fato assistem às aulas e cumprem com as atividades dedicadas a elas em um curso de graduação a distância, por exemplo. Porém, não é nossa intenção discutir acerca dos problemas práticos da EaD, como já foi dito, nossa pesquisa é somente teórica e nunca fizemos trabalhos de campo, ou levantamento de dados. Michel Serres, em seu Atlas escrito em 1994, afirma que houve várias transformações na sociedade, sendo que a maioria delas foi causada pelo melhoramento da técnica e desenvolvimento de novas técnicas, e “entre estas transformações, há uma outra, igualmente importante, que diz respeito ao saber a às formas de o apreender: ele deslocar-se-á em direção àqueles que, outrora, viajavam a seu encontro” (SERRES, 1997, p. 13). Ele aponta para este deslocamento já no início da década de 1990, e hoje, após o fim da primeira década do novo milênio podemos observar que, de fato, o conhecimento não está mais em propriedade desta ou daquela universidade, ou biblioteca, mas sim, disseminado pela rede mundial de computadores à qual cada vez mais pessoas tem acesso. Para Serres, essa mudança ocorrida na educação nada mais é que uma confirmação de que a educação é diretamente ligada e dependente da sociedade em que ela se desenvolve, “porque a cada mudança de suporte correspondeu um renascimento radical no ensino” (SERRES, 2012, p. 2). Como a sociedade está “se virtualizando” e valorizando de forma crescente o ciberespaço, também a educação teria que se integrar a essa nova realidade. Atualmente, há centros de ensino a distância em boa parte do território brasileiro, com a criação da UAB (Universidade Aberta do Brasil) houve um salto no número de estudantes de graduação e pósgraduação a distância. Podemos afirmar que a Educação a Distância é fruto da virtualidade, e nela há uma nova possibilidade de habitação do corpo. Para Serres, assim como Le Breton, as distâncias não são mais as mesmas após esse “boom” das novas tecnologias, “temos hoje uma noção menor das estradas e caminhos duros. Será que daqui para a frente a humanidade vai nutrir-se apenas de signos e abrigar-se dentro dos sites?” (SERRES, 2003, p. 169 - grifos do autor). O livro de que foi retirada essa citação é de 2001, e nesse ano ainda não era tão expoente a integração da internet à vida das pessoas. Atualmente, podemos afirmar que Serres tinha razão, e não somente a humanidade se abriga dentro de sites, como também a própria educação pode ser encontrada neles. Os caminhos duros, segundo Serres, é tudo aquilo que necessita de uma mediação substancial, como as estradas, e as ferrovias e eles diferem dos caminhos doces, aqueles que demandam menos tempo para serem percorridos por tecnologias novas como os aviões a jato. Mais que isso, os caminhos doces da informação condizem com a internet, os telefones com sinais via satélite e mesmo os aparelhos de fax e telefonia fixa, que permitem que a voz viaje em uma alta velocidade podendo ser escutada no outro lado da linha praticamente no mesmo momento em que é dita pelo falante. 4 Relações entre corpo virtual e corpo próprio A noção de esquema corporal exprime o corpo como esta “estrutura dinâmica” que se transforma a cada instante em função de suas relações com o meio. Já que houve, com as TIC, uma mudança do meio no qual o corpo estava inserido, também o corpo se modifica para poder habitar esse novo mundo. E neste sentido que, o esquema corporal é "uma maneira de exprimir que meu corpo está no mundo" (idem, p. 112). Assim, o esquema corporal "não é apenas uma experiência de meu corpo, mas ainda uma experiência de meu corpo no mundo" (idem, p. 153). É com ele que organizamos uma compreensão do mundo. Merleau-Ponty não viveu a revolução tecnológica ocorrida a partir da década de 1990, por isso, não poderia imaginar que essa nova “configuração” de mundo existiria e muito menos pensar a existência do corpo no mundo virtual. Porém, a partir dos estudos de suas teorias a respeito do mundo e do corpo não pudemos deixar de fazer essa relação entre mundo-da-vida e corpo próprio e mundo e corpo virtuais. A Educação a Distância aparece, então, como uma possibilidade de educação desse corpo virtual que não abandona em momento algum seu corpo físico, mas se apresenta como a “estrutura dinâmica” capaz de mudar e se adequar graças a sua relação com o meio. A virtualidade do corpo, ou sua volatilidade como coloca Serres, faz parte da existência do corpo no mundo, nos moldes em que Merleau-Ponty indica e como foi dito acima. 5 A crise da situação? Para Merleau-Ponty o homem é um ser em situação, ou seja, ele é de acordo com o local e a maneira que ele está situado, isso porque, como já foi dito, o corpo é nosso ancoradouro no mundo, e por esse motivo ele é a perspectiva de todas as nossas perspectivas (MERLEAUPONTY, 2006). De acordo com a situação em que ele se encontra, pode-se ter esta ou aquela percepção. Porém, Serres (1997) afirma que As imagens vindas de longe deixaram de nos surpreender; separados por mil léguas, conseguimos reunir-nos para uma teleconferência e inclusivamente, trabalhar juntos. Deslocamo-nos sem mover um dedo. Onde tem lugar essa conversa? Em Paris, no nosso quarto? Em Florença, de onde nosso amigo nos responde? Ou em qualquer outro lugar intermediário? Não. Num sítio virtual (p. 12). Por isso devemos pensar sobre onde de fato estamos situados. Quando possuímos um perfil no facebook, um (ou mesmo vários) email e um número de telefone, onde estaremos nós? Em todos esses lugares ou em lugar algum? Sendo o corpo virtual uma das facetas do corpo próprio, ele pode estar aqui e lá ao mesmo tempo? Aparentemente, é isso o que acontece, podemos estar situados tanto em nosso perfil do facebook quanto em nosso corpo de fato. Porém, essa existência é no mínimo problemática. Segundo Lévy, (2008, p. 49) “o ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos (telecomunicação, telepresença) e da coincidência dos novos tempos (comunicação assíncrona)”. Como foi dito anteriormente, nossa pesquisa não foi concluída e por esse motivo, não podemos, aqui, tirar quaisquer conclusões sobre a temática da situação. Entretanto, tudo indica para que, como ocorreu na questão do corpo, onde corpo virtual e corpo próprio não se opõe, mas na verdade o primeiro pode ser entendido como parte do segundo, também nesse caso esperamos entender a situação da internet como algo novo, mas que não foge ao que Merleau-Ponty entende como situação. 6 Referências LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e sociedade. Campinas: Papirus Editora, 2009. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. _____. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 2008. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SERRES, Michel. A lenda dos anjos. São Paulo: Aleph, 1995. _____. Atlas. Tradução de João Paz. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. _____. Hominescências: o começo de uma outra humanidade?. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. _____. O Incandescente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.