O uso de pronomes pessoais do caso reto como objeto direto sob uma perspectiva da Sociolingüística e no contexto do Preconceito Lingüístico Leonardo Harada1 e Teresinha de Fátima Nogueira2 1 UNIVAP/Faculdade de Educação e Artes/Curso de Letras, Rua Tertuliano Delphin Júnior, Jardim Aquarius, São José dos Campos, SP, [email protected] 2 UNIVAP/Faculdade de Educação e Artes/Curso de Letras, Rua Tertuliano Delphin Júnior, Jardim Aquarius, São José dos Campos, SP, [email protected] Resumo – Este trabalho trata de um fenômeno lingüístico sintático bastante freqüente tanto na fala de usuários do dialeto não-padrão como na dos usuários da chamada norma culta da Língua Portuguesa: o uso de pronomes pessoais do caso reto em posição de objeto direto, situação esta em que a prescrição normativista prevê uso de pronomes pessoais do caso oblíquo. Tal fenômeno é analisado e discutido sob a perspectiva da Sociolingüística, no contexto do tema Preconceito Lingüístico no Brasil e suas implicações para o processo de ensino e aprendizagem da chamada norma culta da Língua Portuguesa especialmente quando este processo de ensino e aprendizagem é voltado para as camadas mais populares da sociedade. Palavras-chave: Lingüística, Preconceito, Sociolingüística, Pronomes, Sintaxe Área do Conhecimento: Letras, Lingüística e Artes Introdução Sentindo-me provocado por textos de educadores e lingüistas e valendo-me também de observações minhas feitas em sala de aula e na comunidade escolar, percebi a necessidade de investigar o tema Preconceito Lingüístico no Brasil e suas implicações no processo de ensino e aprendizagem da chamada norma culta da Língua Portuguesa, especialmente quando este processo de ensino e aprendizagem é voltado para as camadas mais populares da sociedade. Sabendo da amplitude temática e para corroborar este assunto, fez-se necessário delimitar um recorte investigativo e para tal fim, resolvi tratar neste artigo de um sub-tema, que se constitui no objeto da minha pesquisa: o uso de pronomes pessoais do caso reto em posição de objeto direto (posição esta em que a nossa tradição gramatical normativista prescreve o uso de pronome pessoal do caso oblíquo). O objetivo é discutir algumas explicações para este fenômeno sintático lançando mão de ferramentas da Ciência Lingüística. Os resultados serão utilizados para outros trabalhos e reflexões no contexto do tema mencionado. A justificativa para esta pesquisa dá-se, primeiramente, pelo fato de ela atender ao primeiro tema anunciado, provendo conhecimentos para embasá-lo. Em segundo lugar, pelo fato de o referido fenômeno sintático se tratar de um fenômeno bastante recorrente não apenas na fala de usuários do dialeto não-padrão, mas também na fala de usuários da chamada norma culta da língua (muito embora seja objeto de notória rejeição pela tradição gramatical normativista). Metodologia A fundamentação teórica desta pesquisa está sendo feita a partir de conceitos da Sociolingüística, área que tem como objeto de estudo a fala. Autores como Tarallo (1985), Pretti (1994), Bagno (1998, 1999 e 2003) e Soares (1993) serão referenciais para nossas reflexões. O corpus para análise será coletado de situações reais de fala de usuários do dialeto não-padrão e de usuários da chamada norma culta da língua. Poder-se-á aproveitar também material já coletado e transcrito por outros pesquisadores da área. Outra fonte de coleta de dados utilizada advém de declarações escritas ou faladas de professores de Português, escritores, jornalistas, apresentadores, educadores, entre outros que explicitem se seu posicionamento é tradicional-normativista com relação ao fenômeno analisado. Resultados Do século XX para cá, a Ciência Lingüística tem-nos fornecido ferramentas mais funcionais e contextuais do que as que, até então, vinham sendo propostas pela nossa tradição gramatical normativista, para se fazer a análise dos fenômenos da linguagem. A Lingüística moderna tem desvendado com rigor científico-acadêmico os porquês de inúmeras manifestações encontradas na língua utilizada pelos falantes de um país (tanto as de prestígio como as estigmatizadas). XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1 Essas explicações ultrapassam em muito as concepções gramático-tradicionais, amplamente aceitas e defendidas de certo/errado, feio/bonito, ignorante/culto, melhor/pior, inteligente/inapto, entre outras. Foi possível verificar, principalmente, através da Sociolingüística que o dialeto não padrão é mais complexo, sistematizado e governado por regras do que se supunha pela perspectiva tradicionalista (o que pressupõe um complexo conhecimento por parte de seus usuários). Seus fenômenos apresentam uma regularidade comprovada e muitos deles têm raízes idênticas as de fenômenos encontrados também na chamada norma culta. É o caso, por exemplo, do rotacismo, fenômeno que consiste na flutuação das consoantes “r” e “l” como em Cláudia/Cráudia, planta/pranta, classe/crasse. Na formação da língua portuguesa, muitos vocábulos que originalmente (no Latim) apresentavam suas formas em “l" como ecclesia, Blasiu, plaga, sclavu, fluxu, sofreram transformações ao longo da história chegando ao que conhecemos hoje por igreja, Brás, praia, escravo, frouxo. O “l” dessas palavras (que se conservou em línguas de origem latina como o Francês no qual encontramos église, Blaise, plage, esclave, flou e também no Espanhol no qual temos iglesia, Blas, sclavo, flojo) transformou-se em “r” na chamada norma culta da língua portuguesa. (BAGNO, 1998). Um dado interessante é o de que tal fenômeno está presente também n”Os Lusíadas”, a obra prima de Luís de Camões, que é considerado o maior poeta da língua portuguesa (também chamada de “a língua de Camões”). Estes poucos versos do poema nos confirmam isso: “E não de agreste avena, ou frauta ruda” (canto I, verso 5) “pruma no gorro, um pouco inclinada” (canto II, verso 98) “Era este ingrês potente, e militava” (canto VI, verso 47) “Onde o profeta jaz, que a lei pubrica” (canto VII, verso 34) “Doenças, frechas, e trovões ardentes” (canto X, verso 46) “Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta” (canto X, verso 136) Depreende-se daí que o rotacismo é uma tendência natural na evolução histórica da língua portuguesa. E na fala dos usuários do dialeto nãopadrão (fala esta que está mais livre de autopoliciamento) esta tendência continua em andamento e operando transformações. (BAGNO, 1998). Do ponto de vista lingüístico e lógico-científico, este fenômeno não possui coisa alguma em si que o classifique como bom ou ruim, certo ou errado, feio ou bonito. Toda e qualquer classificação deste tipo fundamenta-se exclusivamente em critérios de natureza político-social. Não existe base científica para tais julgamentos (TARALLO, 1985). O rotacismo é apenas um de vários exemplos que podemos observar e que nos sugerem essa mesma reflexão. É possível observar que a variante eleita como padrão pela tradição normativista coincide (embora não completamente) com formas lingüísticas utilizadas por indivíduos de classes sociais politicamente dominantes e economicamente privilegiadas. Muitos dos fenômenos da chamada norma culta da língua constituem (por razões que extrapolam os limites deste artigo) um dialeto estrangeiro para os indivíduos das classes sociais mais populares (BAGNO, 1999). Entendemos que o não reconhecimento de todas estas constatações feitas até aqui tem produzido danos no processo de ensino e aprendizagem da variante padrão, uma vez que afeta diretamente a postura do educador ao traçar sua estratégia de abordagem, bem como a do aprendiz ao ser submetido a esta metodologia. Esta discussão não será pormenorizada neste espaço. A intenção desta pesquisa é outra e está ainda em um estágio anterior a tal discussão (embora a corrobore e a ela nos encaminhe). A proposta aqui feita é a de analisar um fenômeno sintático que, embora não legitimado pela tradição gramatical normativista, é largamente observado tanto na fala de usuários da chamada norma culta como na de usuários do dialeto não-padrão: o uso de pronomes pessoais do caso reto em posição de objeto direto, situação esta em que a chamada norma culta prescreve o uso de pronome pessoal do caso oblíquo. Um exemplo desta variável: “Fui com Ivana à festa e beijei-a” (prescrição normativista) e “Eu fui com a Ivana na festa e beijei ela” (uso real que pode ser encontrado na fala de usuários de ambos os dialetos). Outro exemplo: “Deixe-me ver a carta” (prescrição normativista) e “Deixa eu ver a carta” (encontrado em falantes de ambos os dialetos). Nossa proposta constitui-se em coletar a ocorrência do fenômeno na fala de usuários da língua (especialmente dos falantes da chamada norma culta), observá-lo, descrevê-lo e tentar explicá-lo. Apesar de o normativismo reconhecer (inclusive entre falantes mais escolarizados) a XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 2 ocorrência freqüente deste fenômeno, ele ainda tende a ser classificado como “solecismo” e a sofrer estigma da parte dos normativistas em geral. Tal é a postura, por exemplo, de Almeida (1979). Embora nossa pesquisa esteja ainda em sua fase inicial, queremos antecipar aqui alguns dados pertinentes a nosso estudo que encontramos em Silveira Bueno (1965) e Bagno (2003). De acordo com eles, o emprego de pronome reto em posição de objeto é encontrado com freqüência em textos escritos em língua portuguesa arcaica. Dois exemplos: “El-rei, sabendo isto, houve mui grande pezar, e deitou-o logo fora de sua mercê, e degradou elle e os filhos a dez leguas de onde que elle fosse” (Fernão Lopes). “Deu os bens d’alguns aaqueles que lh’os pediam, os quaes se houveram por mui agravados, dizendo que culpava êlles, porque se davam tão anzinha, não se podendo mais defender, aos inimigos” (Fernão Lopes). Fernão Lopes viveu nos séculos IV e V e ocupou os cargos de guarda-mor da Torre do Tombo (arquivo do Estado) e de cronista-mor do Reino (AMARAL, FERREIRA, LEITE e ANTÔNIO, 2003). Seus escritos eram documentos oficiais e, portanto, produzidos no padrão lingüístico da época. Este exemplo evidencia o fato de que o fenômeno é uma força intrínseca da Língua Portuguesa e que inclusive já foi oficialmente aceito no passado. Nossa pesquisa continua em andamento e pretende se aprofundar no tema. As conclusões serão pormenorizadas na monografia que estou produzindo. Discussão Quando um fenômeno como o que estamos investigando, considerado inadequado ao uso pelo normativismo, ocorre com maior freqüência do que a forma lingüística considerada correta pela tradição gramatical é preciso questionar se aquilo que supostamente deveria ser a exceção não estaria se estabelecendo como a regra. Compreendemos que a língua é uma realidade viva e dinâmica e que esta é naturalmente governada por regras que surgem justamente para atender às necessidades dos falantes. Tais regras têm razão de ser e são cientificamente explicáveis Sabendo da dificuldade de se fazer rever os critérios adotados pela prescrição normativista ou de neutralizar a força e influência que possui, propomos aqui um olhar crítico para a prescrição normativista, ainda que ela continue sendo exigida tal como se configura. Entendemos que explicar ao aprendiz em sala de aula os porquês das formas lingüísticas encontradas no uso cotidiano bem como as razões de ser do padrão lingüístico exigido pela tradição normativista facilitaria a apreensão deste padrão por parte do aprendiz. Ele compreenderia a legitimidade lingüística de fenômenos considerados incorretos pela tradição normativista e entenderia que as prescrições desta são baseadas em critérios de natureza político-sociais. Entenderia também que deveria aprender a chamada norma culta por razões também político-sociais e não porque ela seja em si mesma melhor do que outras formas lingüísticas e que ela deve vir como um dialeto a mais para o seu repertório e não em substituição às formas de linguagem que costuma utilizar. Dessa forma, seriam minimizadas muitas das dificuldades encontradas no processo de ensino e aprendizagem do dialeto padrão. Há ainda fatores sociológicos que não podem ser desconsiderados ao se analisar esta questão mais profundamente e que nos fariam entender o porquê de muitos indivíduos estarem a margem da norma padrão da Língua Portuguesa falada no Brasil, bem como de sua modalidade escrita como podemos encontrar em Soares (1993) e Freire (1996). Estes fatores estão além dos limites previstos para discussão neste artigo. Conclusão A proposta do nosso estudo é a de analisar um fenômeno sintático observado tanto na fala de usuários da chamada norma culta e do dialeto não-padrão: o uso de pronomes pessoais do caso reto em posição de objeto direto, situação esta em que a gramática normativista prescreve o uso de pronome pessoal do caso oblíquo. Até o presente momento, nossa análise foi realizada a partir de materiais teóricos e escritos. Assim, concluímos este artigo afirmando que todos os fenômenos naturalmente encontrados na língua, têm sua razão de ser e sua legitimidade lingüística inclusive aquele que nos propusemos estudar neste trabalho e que o não reconhecimento deste fato pode afetar diretamente nossas posturas político-pedagógicas com relação às variantes lingüísticas e a seus usuários causando dano especialmente no processo de ensino e aprendizagem da chamada norma culta da Língua Portuguesa, sobretudo para as camadas mais populares da sociedade brasileiras. Estamos constatando que há explicações para o fenômeno que elegemos como objeto desta pesquisa que está ainda em sua fase inicial. XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 3 Referências Bibliográficas ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979. AMARAL, Emília ... [et al]. Novas Palavras : Português, volume único: livro do professor. 2ª ed. São Paulo: FTD, 2003. BAGNO, Marcos. A Língua de Eulália: Novela Sociolingüística. São Paulo: Contexto, 12ª ed., 2003. BAGNO, Marcos. A Norma Oculta – Língua & Poder na Sociedade Brasileira. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAGNO, Marcos. O Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. PRETTI, Dino. Sociolingüística: os níveis da fala. 7ª ed. São Paulo: Edusp, 1994. SILVEIRA BUENO, Francisco de. A Formação Histórica da Língua Portuguesa. 3ª ed. São Paulo: Edição Saraiva, 1965. SOARES, Magda. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. 10ª ed. São Paulo: Ática, 1993. TARALLO, Fernando. A Pesquisa Sociolingüística. São Paulo: Ática, 1985. XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 4