Metodologia Mandala de Saberes M etodologia Mandala de Saberes Aprender é tornar seu aquilo que é de um outro, mas que ao tornar-se seu é interiorizado e devolvido ao outro transformado por si. (Charlot, 2001) O B J E T I VO S A metodologia Mandala de Saberes busca contribuir para a ampliação do diálogo entre escolas e seus territórios, relacionando a cultura local aos desafios acadêmicos. Há quatro anos a metodologia vem sendo disseminada em contextos diversos de educação integral, EJA e políticas públicas da cultura. Ela contribui para a instauração de um campo de articulação entre saberes e linguagens, e tem como objetivo a qualificação das práticas educacionais por meio da instauração de campos intersetoriais de conhecimentos e ações. J US T I F I CAT I VA O trabalho que a Casa da Arte de Educar desenvolve nasce de processos participativos, elaborados a partir de diversas práticas que permitem à equipe colocar em diálogos as muitas vozes que constituem ações educativas. Persegue-se uma prática solidária na qual todos são simultaneamente autores e agentes da educação, entendendo-se a educação como ação que se constitui por meio da relação entre o fazer e o saber fazer, entre uma prática e uma reflexão. Busca-se, assim, uma educação que se desenvolva numa dimensão pública, por meio de relações sempre intencionais entre professores e os saberes envolvidos, entre escola e comunidade, conquistando um espaço em que as práticas e as pesquisas se aproximam. A construção de conhecimento é feita a partir do diálogo entre essas diferentes vozes – trata-se de uma prática que só é possível pelo “empoderamento” de todos os envolvidos. Dessa forma, entende-se que o monitoramento das ações e as pesquisas a elas associadas são simultaneamente ações de formação para todos os participantes. A opção pela pesquisa-ação não é apenas uma opção teórico-metodológica, mas também a expressão de um determinado posicionamento acerca da sociedade, do ensino, da escola e dos professores, que ao atuarem estão sempre em formação. Por meio de processos de pesquisa adentra-se a práxis, pois nesses processos é formulada uma ação que é ao mesmo tempo comprometida socialmente e fundamentada teoricamente, e que, espera-se, poderá colaborar para a conquista da qualidade da educação. A partir da sistematização dos processos de pesquisa dos envolvidos, garante-se a construção da dimensão científica para além da espontaneidade, assumindo-se assim um ponto de vista marcadamente crítico-reflexivo. A educação é um dos ambientes da cultura, um ambiente em que a sociedade reprocessa a si mesma numa operação sem fim, recriando conhecimentos, tecnologias, saberes e práticas. Independentemente da área em que se formam, professores são desafiados a reconhecer que atuam em territórios culturais, em espaços que produzem e mantêm acervos culturais distintos. A interculturalidade remete ao encontro e ao entrelaçamento, àquilo que acontece quando os grupos entram em relações de trocas. Os contextos interculturais permitem que os diferentes sejam o que realmente são nas relações de negociação, conflito e reciprocidade. Escola e territórios são desafiados a se expandirem um em direção ao outro e se reinventarem. A circulação de saberes e bens culturais pode ser uma operação pedagógica e política, capaz de instaurar outras formas de organização social, bem como outras visões de aprendizagem estruturadas em noções mais amplas de saberes. A perspectiva adotada é a da necessidade de compor estratégias pedagógicas para que seja repensado o modo de funcionamento das instituições educativas, a fim de inseri-las na lógica da inclusão e da formação integral de crianças, adolescentes e adultos (valorizando as práticas em curso na sociedade organizada, nas escolas, museus, ou seja, na educação não formal e formal). A proposta tem como ponto de partida o incentivo ao diálogo e às trocas entre distintos atores que constituem os processos educacionais por meio de uma ação pedagógica estruturada para esse fim. F U N DA m EN TAÇÃO T Eó R I CA Na perspectiva de buscar articular em práticas educativas grupos socioculturais distintos, faz-se relevante reflexão de Sousa Santos (2007), segundo a qual o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Esse pensamento se estrutura numa linha de distinções visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos opostos: o dos colonizados (Novo Mundo/ este lado da linha) e o dos colonizadores (Velho Mundo/outro lado da linha) 2. Trata-se de um modo de estruturar o conhecimento que torna inexistente todo e qualquer pensamento que não seja criado pelo outro lado da linha, ou seja, pelo Velho Mundo. Sousa Santos refere-se a um episticídio, a “morte” de todas as outras formas de conhecimento, e afirma que as universidades (e consequentemente as escolas) são centros de implantação das bases do pensamento abissal. 2 Não se utiliza o ponto de vista do autor, mas o nosso, de país colonizado, como referência. Esse aspecto destacado pelo pesquisador português justifica todo o desinteresse pelos saberes populares, muito comum tanto nos centros acadêmicos quanto nas escolas. Garantir a diversidade de enfoques diante do conhecimento é um dos desafios que a metodologia busca enfrentar, estruturando um sistema de diálogo capaz de amplificar as pistas, os sinais e as tendências latentes que, embora dispersas e embrionárias, apontam novas constelações de sentido para a vida contemporânea. A metodologia se estrutura a partir do incentivo ao diálogo e às trocas entre grupos culturais distintos, por meio da valorização das experiências de cada grupo. Todos os agentes envolvidos nos processos são portadores de experiências distintas que precisam ser articuladas em um projeto comum. Uma Pedagogia das Trocas ajuda a oportunizar mútua contaminação, transformando os envolvidos a partir de experiências comuns estruturadas em processos de trocas capazes de enriquecê-los, e não afastá-los. A educação é atualmente desafiada a recuperar a dimensão pesquisadora do fazer docente. A metodologia Mandala de Saberes se apoia em ideias de uma educadora brasileira de destaque, Selma Garrido Pimenta (2007), que busca valorizar a práxis educativa, ou seja, uma prática docente simultaneamente reflexiva. As Mandalas representam projetos de pesquisas pedagógicas capazes de assumir diversos formatos, como requer nossa rica estrutura cultural. O campo da pesquisa, ou os diálogos que surgem entre diferentes grupos socioculturais, se desenvolve a partir de um atento sistema de monitoramento, constituído de Mandalas, textos e gravações. Com isso, é possível ampliar as “fontes” de pesquisas pela incorporação das vozes e práticas cotidianas expressas significativamente nas comunidades populares e que não estão sistematizadas nas fontes tradicionais. Charlot (2000) oferece fundamentos para realizar uma leitura positiva a respeito dos conhecimentos dos grupos populares. Ou seja, buscar ler de outra maneira o que comumente é lido como falta. Trata-se de uma postura interessada em reconhecer as diferenças, buscando a partir daí o diálogo. O que se propõe é que se possa valorizar a história dos sujeitos, compreendendo o indivíduo como um sujeito que interpreta, interfere e questiona o mundo, instaurando, muitas vezes, outros mundos. O sujeito do saber não pode ser compreendido sem que se pense na sua relação com o mundo e o seu contexto. Buscam-se escolas culturalmente heterogêneas, que se afastem da ideia de que todos pertencem ao mesmo ambiente cultural, ou que devem atingi-lo. Não se trata, portanto, de adaptar a escola àquilo que a sociedade espera dela, mas sim de repensá-la dentro da lógica do sujeito, a lógica da construção da democracia. Esta proposta não questiona o papel da escola como lugar de construção e socialização de conhecimento, mas permite enfrentar os desafios epistemológicos, o que pode auxiliar nas pesquisas por práticas interculturais entre grupos sociais distintos. Outras duas importantes referências são o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, e os mapas conceituais, de Joseph Novak. Eco publicou em 1962 o livro Obra aberta, em que apresenta um modelo teórico para explicar a obra de arte contemporânea a partir da ideia de que as obras possuem diferentes significados, todos em relação direta com o fruidor (o espectador). Ele retira do artista o papel de criador da obra, pois estabelece que a criação se dará na relação entre artista e espectador. Esses aspectos são importantes porque permitem pensar num instrumento de diálogo pedagógico sob a mesma condição: as Mandalas de Saberes atuam como obras de arte abertas e não encerram em si suas possibilidades, mas as abrem para que diferentes sujeitos possam escolher suas condições, sequências, formas... transformando as Mandalas em espaços de negociação e diálogo. A teoria dos mapas conceituais teve sua origem nos anos 1970, com os trabalhos de Joseph Novak, pesquisador estadunidense, especialista em psicologia cognitiva. Tem por base a teoria da aprendizagem significativa de David Ausubel. Novak concebe os mapas conceituais como ferramentas, cujo principal objetivo é organizar e representar o conhecimento. (Candau, 2009) Segundo Novak e Cañas (2005), os mapas conceituais são estruturados a partir de conceitos fundamentais e suas relações. Usualmente, os conceitos são destacados em caixas de texto. A relação entre dois conceitos é representada por uma linha ou seta, contendo uma palavra ou frase de ligação. Esta ferramenta está orientada a reduzir e concentrar a estrutura cognitiva subjacente a um dado conhecimento, visibilizando os elementos básicos da estrutura cognitiva a ele subjacente e permitindo analisar seus elementos fundamentais. (Candau, 2009) A C O N S T RU ÇÃO DA m A N DA L A A metodologia instaura um campo de diálogo entre a linguagem formal e a simbólica, expressando ideias individuais, quando realizada por um ator, ou as dinâmicas de grupos, quando trabalhada em equipe. Se utilizada em grupos, cria uma dinâmica compreensiva entre diferentes atores nas fases do trabalho de grupo, facilitando a ação coletiva. Dessa forma, a metodologia tem se mostrado capaz de representar cenários e problemáticas complexas como as que caracterizam o campo da educação. Em grupos, as Mandalas surgem da dialética entre o sujeito, o grupo e o objeto (elementos que as tornam concretas: linhas, cores, formas, objetos distintos, letras etc.). Como “objetos em processo”, elas colaboram para que os debates possam assumir uma dimensão poética. As Mandalas expressam problemas complexos e se revelam instrumentos capazes de conduzir debates para além de “uma resposta certa”, quando lidamos com múltiplos pontos de vista. o Brincadeiras Território As etapas: • Constituir um coletivo investigador (se individual, ver próxima fase); • Identificar o problema, ou cenário, que o grupo pretende desenvolver; • Ouvir as experiências e pontos de vista (deve-se lembrar que a raiz do não escutar é o já saber, e se integramos um coletivo para investigar um aspecto é porque concordamos que o que buscamos está para além de um ponto de vista); • Buscar pensar o inimaginável, indo além do conhecido; • Falar abertamente, com respeito pelos demais, mas sem prender-se a papéis políticos e sociais dos integrantes do grupo; • Buscar, durante o debate, destacar palavras ou expressões chaves. Idem para objetos, se forem utilizados; • Representar os itens destacados com cores, formas, linhas, objetos etc.; • Partir do centro para “fora” do círculo, pensando as relações entre as partes e o todo; • Valorizar a mão dupla: da fala para o simbólico e vice-versa. Ou seja, um elemento representado na Mandala pode gerar um debate, assim como um debate pode gerar a produção de uma nova representação na Mandala; • Criar: expor-se ao novo que vem do outro. Buscar a visão do outro; • Romper paradigmas experimentando novas relações com o problema, por meio da utilização de linguagens, experiências e/ou práticas construídas no coletivo. PL AN O D E E X EC U ÇÃO N O S T ER R I Tó R I O S Para desenvolver a tecnologia Mandala de Saberes nos espaços de educação, é preciso engajar os atores envolvidos no processo de construção coletiva de conhecimento. O pensamento científico não precisa estar em oposição ao saber local, é preciso relacioná-lo aos nossos desafios cotidianos. Esse diálogo é capaz de fazer desaparecer a distinção hierárquica entre o conhecimento científico e o cotidiano, impulsionando-nos para uma prática reflexiva ou para uma filosofia da prática, em que o sujeito compreende e transforma as circunstâncias ao mesmo tempo em que é por elas transformado. Nessa perspectiva, é adotada a seguinte estratégia: • Introdução às relações entre escolas e territórios, práticas escolares e não escolares; • Reconhecimento da realidade local, utilizando a Mandala de Saberes no território; SABERES ESCOLARES Domínio da leitura e da escrita Compreender e atuar em seu entorno social Trabalhar em grupo SABERES ESCOLARES Fazer cálculos e resolver problemas Alimentação Analisar e sintetizar dados e situações Domínio da leitura e da escrita Trabalhar em grupo Fazer cálculos e resolver problemas Condições Ambientais Compreender e atuar em seu entorno social Analisar e sintetizar dados e situações Acessar e Receber usar criticamente informações os meios de acumuladas comunicação Acessar e Receber usar criticamente informações os meios de acumuladas comunicação SABERES ESCOLARES SABERES ESCOLARES Domínio da leitura e da escrita Trabalhar em grupo Fazer cálculos e resolver problemas Expressões Artísticas Compreender e atuar em seu entorno social Analisar e sintetizar dados e situações Domínio da leitura e da escrita Trabalhar em grupo Fazer cálculos e resolver problemas Analisar e sintetizar dados e situações Brincadeiras Compreender e atuar em seu entorno social Receber Acessar e criticamente usar os meios de informações acumuladas comunicação Receber Acessar e criticamente usar os meios de informações acumuladas comunicação SABERES ESCOLARES SABERES ESCOLARES Domínio da leitura e da escrita Trabalhar em grupo Fazer cálculos e resolver problemas Calendário Analisar e Compreender Local sintetizar e atuar em seu dados e entorno social situações Acessar Receber e usar criticamente informações os meios de acumuladas comunicação Domínio da leitura e da escrita Compreender e atuar em seu entorno social Trabalhar em grupo Habitação Fazer cálculos e resolver problemas Analisar e sintetizar dados e situações Acessar e Receber usar criticamente informações os meios de acumuladas comunicação SABERES ESCOLARES Domínio da leitura e da escrita Trabalhar em grupo Fazer cálculos e resolver problemas Narrativas Locais Compreender e atuar em seu entorno social SABERES ESCOLARES Analisar e sintetizar dados e situações Receber Acessar e criticamente usar informações os meios de acumuladas comunicação SABERES ESCOLARES Trabalhar em grupo Domínio da leitura e da escrita Trabalhar em grupo Fazer cálculos e resolver problemas Organização Politica Compreender e atuar em seu entorno social Analisar e sintetizar dados e situações Receber Acessar e criticamente usar informações os meios de acumuladas comunicação SABERES ESCOLARES Fazer cálculos e resolver problemas Compreender Espiritualidade e Rezas e atuar em seu entorno social Domínio da leitura e da escrita Analisar e sintetizar dados e situações Trabalhar em grupo Domínio da leitura e da escrita Fazer cálculos e resolver problemas Mundo do Trabalho Compreender e atuar em seu entorno social Analisar e sintetizar dados e situações Receber Acessar e criticamente usar os meios de informações acumuladas comunicação Receber Acessar e criticamente usar informações os meios de acumuladas comunicação SABERES ESCOLARES SABERES ESCOLARES Trabalhar em grupo Domínio da leitura e da escrita Compreender e atuar em seu entorno social Corpo Vestuário Fazer cálculos e resolver problemas Analisar e sintetizar dados e situações Receber Acessar e criticamente usar informações os meios de acumuladas comunicação Trabalhar em grupo Domínio da leitura e da escrita Compreender e atuar em seu entorno social Cuidados e Zelos Fazer cálculos e resolver problemas Analisar e sintetizar dados e situações Receber Acessar e criticamente usar informações os meios de acumuladas comunicação • Identificação do marco cultural e desafios acadêmicos do território; • Estabelecimento das interseções de saberes e objetivos que poderão ser trabalhados – Mandala Relações de Saberes; • Planejamento de ações conjuntas: envolvendo integrantes das práticas escolares e não escolares; • A Mandala para aprendizagens distintas nos territórios; • As transformações dos sujeitos; • As transformações do espaço e tempo educacional nos territórios de aprendizagem. A Mandala de Saberes é desenvolvida de forma contínua e permanente, envolvendo os atores locais que interferem na metodologia e a reconstroem de acordo com o marco cultural e desafios acadêmicos do seu território. Essa reconstrução gera um projeto pedagógico em processo capaz de ampliar a relação entre as escolas e os territórios. Assim, a própria metodologia é construída numa dimensão coletiva de formação continuada. A formação tem foco na produção, contextualização e análise dos envolvidos, e valoriza: • tolerância no trabalho coletivo; • capacidade de escuta e interação; • sensibilidade de questionar os outros e a si mesmo; • relações de confiança e parceria; • clima favorecedor das trocas e do diálogo. Sempre que uma coletividade afirma seu direito à autodeterminação, a capacidade de tomar nas mãos os seus próprios assuntos, o sujeito na perspectiva democrática ganha importância. Esta capacidade, de tomar para si seu próprio destino, está diretamente associada a uma escola capaz de trabalhar pela formação ampliada de seus estudantes, compreendendo as diferenças e incentivando a voz de cada um. A escola pode ser uma instituição fundamental para a construção da ideia do sujeito, se compreender seu compromisso na conquista de direitos sociais, no reconhecimento das diferenças culturais. 12 Arte de Educar Os capítulos que se seguem apresentam uma série de resultados do trabalho realizado nas Casas, na Mangueira e Macacos, e que tiveram por base os dados da avaliação de aprendizagem aplicada no início do ano. Com o objetivo de construir alternativas para contribuir no processo de ensino-aprendizagem de estudantes frequentadores da Casa da Arte, e entendendo que a educação é prática que só se realiza plenamente em estreita relação com o meio, a sociedade em que ela se insere, foi produzido um mapeamento das condições de aprendizagem dos estudantes, tendo por base os “sete códigos da modernidade” construídos por Bernardo Toro. Uma vez traçados os indicadores desse mapeamento, optou-se por estabelecer três etapas em que se daria a avaliação por parte dos educadores, batizadas de “marco zero”, “marco um” e “marco dois”, que correspondem a “fotografias”, instantâneos do processo de aquisição de conhecimentos e competências específicas dos estudantes ao longo do tempo. Assim, a análise de momentos distintos de avaliação possibilitou o enfrentamento das dificuldades cognitivas encontradas no processo de aprendizagens daqueles educandos. Arte de Educa Continua na Metodologia Mandala de Saberes – Parte 2