1 I A PERCEPÇÃO DA VIDA LABORATIVA POR IDOSOS ASILADOS Nayara de Paula Faleiros∗ José Sterza Justo . Resumo: O envelhecimento da população brasileira tem sido estudado e discutido em diversas áreas do conhecimento. No campo das ciências humanas, por meio da Geriatria, Gerontologia e Psicologia do Envelhecimento, procura-se construir uma nova forma de vivenciar essa fase do desenvolvimento, diferente das formas estereotipadas, nos planos da vida social, econômica, política, cultural e no exercício da cidadania. No entanto, o confinamento asilar, baseado no modelo hospitalocêntrico, persiste como condição de vida de boa parte dos idosos, mesmo entre aqueles que possuem familiares vivos e próximos. A presente pesquisa se propôs a investigar a subjetivação do processo de asilamento pelo idoso. Para tanto, foram realizadas entrevistas com idosos residentes num asilo da cidade de Assis/SP, centradas na sua vivência de todo o processo de asilamento, sendo os dados das entrevistas submetidos a uma análise de conteúdo. Os dados obtidos demonstraram que as percepções dos idosos sobre o envelhecimento e as condições de vida no asilo são heterogêneas, principalmente quando se referem à vida laborativa. Enquanto alguns idosos procuram realizar pequenos trabalhos dentro da instituição asilar, apesar da falta de incentivo e da existência de uma rotina rígida em horários e afazeres, que reduzem a vida a praticamente comer e dormir, outros se percebem apenas como inúteis, dentro de um ambiente apresentado como “depósito de gente”. Nesse sentido, não esboçam qualquer perspectiva futura, a não ser a de descansar e aguardar, apaticamente, a chegada da morte. Mesmo assim, a vinda para o asilo foi relatada, também por estes, como uma situação impactante, sobretudo, pela a falta de atividades cotidianas em que se sintam produtivos e valorizados. É possível concluir que mesmo entre aqueles que se mostram resignados, a estagnação e a restrição de experiências vivenciais impostas pelo processo de asilamento produz uma grande e traumática mudança de vida, pois de agentes atuando ativamente na sociedade através do trabalho e da rede de relacionamentos sociais, transformam-se em pacientes, recebedores de cuidados tutelares que, na maioria das vezes, os infantiliza. Projeto de Pesquisa financiado pela FAPESP. Email para contato: [email protected]. Universidade Estadual Paulista, UNESP, campus Assis-SP. ∗ 2 Introdução O envelhecimento é um dos muitos assuntos em pauta no momento, alvo de discussões, estudos, pesquisas e matérias na mídia, principalmente a partir do decreto, como lei, do Estatuto do Idoso, um dos exemplos mais recentes da visibilidade do idoso no espaço social. Ariès (1981, p.36) comenta que o livro IV da enciclopédia Le Grand Propriétaire de Toutes Choses, publicada na França, no século XVI, já esboçava as preocupações com os aspectos da velhice. No campo das ciências humanas, o interesse pelo estudo do processo de envelhecimento é recente. Na Psicologia, Walter Milles e colaboradores são considerados referenciais quanto ao desenvolvimento de pesquisas sobre os aspectos psicológicos dos idosos, realizadas por volta de 1930. Na década de 50 esse interesse cresceu significativamente com o conseqüente avanço da Psicologia do envelhecimento, Gerontologia e Geriatria. No Brasil, segundo dados do censo feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2000, há aproximadamente 170 milhões de habitantes, sendo que cerca de 20% tem idade superior a sessenta anos. Estima-se que em 2025 o Brasil seja o sexto país do mundo em quantidade de pessoas nesta faixa etária. Afirmando-se a juventude e a velhice como pólos opostos e não como partes de um mesmo processo vivencial, conotações negativas como inútil, descartável, dispensável são atribuidas à velhice frente a uma óptica capitalista de exigência produtiva maquínica. E, uma vez que esse perfil não é mais preenchido pelo indivíduo idoso, a ele só resta a marginalização, incentivada e propiciada pela sociedade por meio da criação de espaços físicos afastados, hoje ocupados por boa parcela da população idosa, as instituições asilares, um dos exemplos do que Goffman (1999) denomina instituição total. Pautando-se na idéia 3 de que “os idosos custam demais e vivem demais (...) tenta-se, portanto, estabelecer de modo arbitrário uma separação entre o social e o sanitário, instalando novos guetos para idosos”. Mannoni (1995, p. 27). O afastamento da sociedade se inicia com os processos de admissão, em que o novato é destituído de todos os objetos que poderiam manter os vínculos com o mundo externo e continua pela rotina de atividades cotidianas que modelam o indivíduo para que este aja segundo as regras estabelecidas pela instituição, além de provocar uma alteração no seu próprio autoconceito e na sua maneira de pensar sobre a experiência do outro. Assim, considerando o asilo como a grande usina de produção simbólica sobre a velhice, entendemos que se justifica tomá-lo como um lugar privilegiado para o exame da subjetividade do idoso, ou seja, o lugar da refração no sujeito das condições e olhares sociais que recaem sobre ele enquanto ser “envelhecido”. Objetivo O objetivo principal da presente pesquisa, já concluída, foi tentar apreender, na própria vivência do asilamento pelo idoso, expressa em sua fala, as imagens, idéias e sentimentos através das quais ele se representa e representa a instituição asilar. Acreditamos que, ao mapear as principais representações do idoso sobre si mesmo e sobre o lugar onde vive, poderíamos melhor examinar as implicações da instituição asilar na constituição da subjetividade dos indivíduos internados a partir dos possíveis nexos relacionais entre tais representações e a condição de asilamento. Embora a literatura consagre as relações entre o cotidiano institucional e a maneira como se concebe e se vive e velhice, buscamos verificar como o próprio idoso faz essa conexão e se ele conseguia percebê-la. 4 Método O método de pesquisa utilizado foi a análise de conteúdo conforme proposta por Bardin (1977), tendo como instrumento de coletas de dados entrevistas realizadas com idosos numa instituição asilar da cidade de Assis/SP. As entrevistas foram semidirigidas, uma vez que, num primeiro momento, identificamos e caracterizamos os sujeitos, questionando sobre a composição familiar originária, rotina cotidiana e convivência social; e, num segundo momento, questionamos sua trajetória de vida, procurando compreender seus conceitos de vida/morte e sociabilidade/solidão enquanto indivíduo asilado. Os sujeitos entrevistados foram homens e mulheres, com idade entre cinqüenta e cinco e cem anos, sendo que a maioria tinha idade entre sessenta e setenta anos. Eram moradores efetivos do asilo, atendiam o critério de pleno domínio da fala e cognição e concordaram em participar da pesquisa nos termos da resolução CNC 196/96. Assim, foram entrevistados vinte e um sujeitos, oito mulheres e treze homens. A análise do conteúdo das entrevistas, baseada em Bardin (1977), foi realizada em três momentos: a pré-análise, quando organizamos os dados coletados, buscando sistematizar as idéias iniciais com vistas a um plano de análise; num segundo momento, orientados pelos objetivos da pesquisa, elaboramos os indicadores, fazendo os recortes necessários nos dados para que pudessem ser categorizados e, na exploração do conteúdo transformamos os dados brutos colhidos pelas entrevistas numa representação clara do conteúdo destas e suas características principais, categorizando os dados (unidades de sentido expressas em palavras, frases ou seqüências da fala), ou seja, os agrupamos por analogia segundo o campo de significação delimitado em cada categoria. 5 Resultados e Discussão Um dos pontos que mais chamou nossa atenção durante a análise dos conteúdos das entrevistas foi a clara oposição da cotidianidade vivenciada pelos idosos antes de entrarem no asilo e a atual – já na instituição, principalmente no que se referia à vida laborativa. Mencionado com certo saudosismo por todos os entrevistados, o trabalho representa o cerne da vivência exterior ao ambiente asilar, quando desempenhavam o papel de agentes, em detrimento da vivência atual, em que se percebem restringidos em suas atuações. Acostumados com trabalhos que exigem a disposição de força física como roçar, costurar ou cuidar da casa, fica-lhes clara a “passagem” do grupo dos válidos para o trabalho para o grupo dos inválidos, segundo as relações trabalhistas socialmente valorizadas. (BACELAR, 1999) Na vida contemporânea, o trabalho é uma atividade de grande importância, uma vez que não só produz as riquezas que a sociedade acredita necessitar para desenvolver-se, como dá ao trabalhador um lugar de prestígio nessa estrutura social. Em busca do progresso contínuo – um dos princípios do sistema capitalista em que se vive – o trabalhador precisa se enquadrar num ritmo de vida compulsório pautado em determinações temporais, em que planejar, organizar e programar são quesitos imprescindíveis para se sentir parte desse todo. E, uma vez que não se tem mais um emprego, uma ocupação ou uma atividade produtiva deixa-se de ser funcionalmente significativo nesse sistema maquinal para tornar-se “inútil”, “velho” e desvalorizado. Essa oposição – válidos e inválidos – foi uma das justificativas utilizadas, no início do século XX no Brasil, para a consolidação do asilo como instituição de assistência aos velhos “desamparados”, pessoas que por terem suas condições físicas 6 para o trabalho diminuídas não poderiam mais realizá-lo da forma como até o momento tinham feito. (GROISMAN, 1999a) Indo de encontro à idéia do asilo como um lugar apenas para o descanso, alguns residentes efetuam pequenas tarefas para se manterem de alguma forma ativos, mesmo estando inseridos numa estrutura estagnante. Porém, o comentário que um dos entrevistados ouviu da assistente social quando dizia a ela das atividades que realizava na instituição, ilustra o que ainda circula no imaginário social: “(...) Assistente Social aí falou assim: “Você não pode trabalhar. Cê tem que ficar descansando suas pernas (...)” É importante notar que mesmo oferecendo serviços terapêuticos para os residentes, o objetivo do asilo não é curá-los e devolvê-los à sociedade mais ampla como ocorre nas instituições de saúde. Por ser uma instituição total (GOFFMAN, 1999), sua função principal é tutelar o indivíduo ali residente, pois “a velhice, embora seja fatal, não é uma doença. Mais do que isso: o envelhecimento não pode ser ‘curado’”.(GROISMAN, 1999 a, P.63). Assim, doentes ou impossibilitados de continuarem trabalhando, os idosos asilados aí permanecem por anos a fio seguindo uma rotina linear e cadenciada pelos momentos de alimentação, sendo que a maioria dos residentes apresenta o asilo como “depósito de gente”: “Aí (...) eu (...) a (...) eles trouxeram porque, pra eu não dar trabalho mais. E porque (...) tudo que (...) tudo nóis aqui, pá (...) pá (...) dá trabalho, cê num acha? [risos] Ta declarado. [risos]” (D. Marília) Considerações finais Embasados na literatura científica pertinente e mediante as entrevistas realizadas com os idosos asilados, notamos que a permanência na instituição é apresentada, por eles, 7 como o extremo oposto da vivência laborativa. Uma vez internados, grande parte desses idosos não desenvolve qualquer atividade que lhes desperte prazer ou exija certa dose de esforço pessoal e perspectivas futuras. Procuram, pelo contrário, cultivar a idéia de que o asilo é um “lugar para o descanso” e estar lá significa “estar fora do mundo”, não restando mais nada a fazer. Percebemos que esta ausência de atividades é favorecida pela própria rotina institucional que visa, principalmente, facilitar a movimentação dos funcionários, não havendo a programação de qualquer momento de lazer para os residentes. E, quando alguns deles encontram uma forma alternativa de experienciar o trabalho, mesmo dentro do asilo, não são incentivados a continuar. A ida para uma instituição asilar, relatada como um momento de grande impacto pelos idosos, constitui-se ainda num processo desvitalizador para o indivíduo. Pautada na rigidez e estagnação, a cotidianidade asilar favorece a despotencialização, e lhes infringe um determinado papel, de acordo com estereótipos negativos acerca da velhice ainda vigentes. Bibliografia ARIÈS, P. As idades da vida. In: ___________. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1981, p. 29-50. BACELAR, R. Envelhecimento e produtividade: processos de subjetivação. Recife: Fundação Antônio dos Santos Atranches - FASA, 1999 BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. 6.ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999. GROISMAN, D. A infância do asilo: a institucionalização da velhice no Rio de Janeiro na virada do século. 1999. 120f. Dissertação (mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. 8 MANNONI, M. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.