ASILO: UM UNIVERSO PARALELO

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XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
1 a 5 de setembro de 2003 - UNICAMP –Campinas, SP
GT-10: Gerações, Migrações e Laços de Sociabilidade
IDOSO INSTICIONALIZADO:
observações em um asilo público de Belém do Pará
JAIME LUIZ CUNHA DE SOUZA
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IDOSO INSTITUCIONALIZADO:
Observações em um asilo público de Belém do Pará
Jaime Luiz Cunha de Souza *
A condição do idoso institucionalizado trás à mostra toda uma série de processos
sociais cuja característica principal é a violência. A modificação do status social com a
decorrente perda de papéis, faz com que ele adentre à instituição de acolhimento como
personagem difuso e sem rosto, no qual as marcas do abandono e a depressão provada
por uma vida dura são os estigmas evidentes. À violência física e psicológica
experimentada no seio da família, que assusta pela dimensão e crueldade, soma-se a
vida administrada, onde sua condição de cidadão é suprimida em grande parte. Essa
falta de perspectiva o coloca diante do que passa a ser sua companhia inevitável: a
morte. Este texto pretende abordar os fatores que levam o idoso ao asilo e discutir a
condição em que o mesmo lá se encontra.
Palavras-chave: asilo, idoso, violência, individualidade, alteridade.
ABSTRACT
SENIOR IN INSTITUTION:
Observations in an asylum publish of Belém of Pará
The condition of the senior in institution back the exhibition an entire series of
social processes whose main characteristic is the violence. The modifications of the
social status with the current loss of papers, does with that he penetrates to the reception
*
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas, Mestre em Sociologia pela
Universidade Federal do Pará, Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do
Pará.
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institution as diffuse character and without face, in which the marks of the abandonment
and the depression provoked by a hard life, they are the evident stigmas. The physical
and psychological violence tried in the breast of the family, that scares for the
dimension and cruelty, is added to the administered life, where its citizen condition is
largely suppressed. That perspective lack places it before what it becomes its inevitable
company: the death. This text intends to approach the factors that lake the senior to the
asylum and to discuss the condition in that the same there meets.
Words Key: asylum, senior, violence, individuality, alterity.
Introdução
O presente trabalho surge como desdobramento de uma investigação realizada
no período 2001/2002, que teve por objeto, os idosos internos no asilo Dom Macedo
Costa, localizado em Belém do Pará, o qual, na ocasião, passava por um processo de
desativação. Essa incursão, que serviu como pesquisa de campo para minha dissertação
de mestrado permitiu perceber que o isolamento dos idosos em instituições asilares é
um testemunho das dificuldades que as pessoas têm em identificar-se com eles. A
velhice do Outro se torna uma lembrança antecipada da própria velhice e o contato com
a pessoa idosa abala as fantasias defensivas que são construídas como muralha contra a
idéia de sua própria velhice. Por trás da necessidade obsessiva de acreditar na eterna
juventude e rejeitar a face da velhice, encontra-se um certo desejo inconsciente de fugir
à inexorabilidade das leis da natureza. É como Édipo1 que, embora busque escapar de
seu destino, corre justamente ao encontro dele. O idoso não consegue escapar do drama
que começa com sua retirada paulatina da vida social, ganha impulso com utilização de
1
Personagem da tragédia Édipo Rei, escrita por Sófocles.
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múltiplas formas de violência, se solidifica com a perda da liberdade e com o
aviltamento de sua dignidade, e finalmente se completa na experiência do asilo.
Asilo: um universo paralelo
A sensibilidade em relação ao afastamento dos idosos da vida social evaporou
rapidamente e ajustou-se à racionalização dos motivos. Existem expectativas e
sentimentos que não podem ser compartilhados quando se chega à velhice, o principal
deles é a solidão. Elias (2001), diz que o caminho para as câmaras de gás nazistas é um
exemplo de pessoas em meio a muitas outras, mas definitivamente sós; os levados para
a morte eram reunidos ao acaso e não se conheciam entre si, cada um deles, em meio a
várias pessoas, estava sozinho e solitário no mais alto grau. Tal exemplo dá indicação
do que significa para os idosos se sentirem excluídos da sociedade mais ampla,
mostrando que a admissão em um asilo, normalmente significa não só a ruptura
definitiva dos velhos laços afetivos, mas também a necessidade de se submeter a uma
vida comunitária com pessoas as quais ele nunca antes teve qualquer ligação afetiva.
Significa em princípio, um estado de extrema solidão, “muitos asilos são, portanto,
desertos de solidão”.(Elias, 2001, pp.85-86)
O asilo é, basicamente, uma instituição burocrática, cuja hierarquia deriva da
posição que cada um ocupa dentro dela. Lá se estabelecem relações de poder que são
expressões de uma organização, que se concretiza através das normas e regulamentos,
que, enquanto elementos racionais, representam um conhecimento especializado dos
que lá exercem suas funções sobre os que estão na condição de internos. Estes são
tratados como objetos sobre os quais é exercido o trabalho de mantê-los vivos e
razoavelmente confortáveis enquanto a morte – sua perspectiva óbvia, iminente e
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inevitável – não os vêm colher definitivamente. Esse fenômeno – a morte - ocorre sob
múltiplas dimensões, a maioria delas é simbólica e acontece gradualmente. Os vários
falecimentos começam muito antes de sua entrada no asilo e têm um de seus eventos
mais importantes quando da separação dos que envelhecem do âmbito das relações em
que atuam os outros vivos. Costa (1998), diz que na velhice, o futuro é o presente, e a
maturidade implica , portanto, renúncia à juventude e à beleza e rendição às limitações,
à doença e, finalmente, à morte. De acordo com a autora, o velho maduro tem
consciência da transitoriedade da vida, aceita e convive com a proximidade da morte.
O isolamento e o gradual esfriamento das relações com as pessoas a quem eram
afeiçoados, a separação do calor humano familiar e do círculo de amizade, faz com que
seja de sofrimento o tempo daqueles que são deixados sós. Isso faz do asilo uma
perspectiva ao mesmo tempo assustadora e inevitável. Na condição de interno, o idoso
se encontra submetido a um conjunto de regras que serão postas em vigor por meio de
estratégias que envolvem premiações para quem as acata e punição para quem as
transgrida. Além das regras formais, outras, de caráter informal, levadas a efeito pela
manipulação de privilégios e punições, persuadem o interno a tornar-se dócil e a
adaptar-se, como um estrangeiro longe de seu país de origem.
Para colocar o idoso na instituição asilar, aqueles que o cercam fazem-no
privado
ou pelo menos limitado em sua vontade e razão, tornando-o deslocado
socialmente. Isso trás à tona a questão para o qual a solução ainda não está
perfeitamente clara, e que diz respeito ao papel reservado ao idoso num contexto social
caracterizado por múltiplas formas de exclusão e onde a face do Outro é
sistematicamente rejeitada. Como diz Debert (1999), a impossibilidade do resgate da
multiplicidade de papéis sociais torna a experiência na instituição decepcionante e dá a
ela dinâmica própria.
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Os indivíduos cada vez mais cedo são relegados à condição de desnecessários,
num processo que os retira do mundo do trabalho de forma prematura, inexorável e
impiedosamente. Essa saída produz um rompimento com as instâncias formuladoras de
sua condição de indivíduo, representando uma espécie de morte do sujeito social que ele
é, tornando-o opaco diante dos outros indivíduos. Esse processo de liquidação do Outro,
nesse caso o Outro velho, é operado por uma síntese artificial da alteridade que provoca
o desaparecer da memória. Levinas (1998), diz que o pensamento ocidental é
caracterizado por um esquecimento sistemático do Outro. O asilo, então, torna-se o
inconsciente para onde a lembrança do idoso é varrida.
A sociedade e a família, mais especificamente, tentam justificar a internação dos
idosos pela necessidade de cuidá-los adequadamente. Da parte do Poder Público, o
discurso aparente é o da intenção de protegê-los para evitar que sofram maus tratos.
Todavia, por melhores que sejam as condições da instituição não é possível evitar que
sejam submetidos a sofrimentos, pois sua condição de interno já se configura por si só
motivo para profundas angústias. Uma vez que estejam fora da esfera produtiva tornamse inúteis e socialmente inoportunos; para a família ao demandarem maior quantidade
de atenção e cuidados, tornam-se estorvo e fonte de despesas adicionais; se não têm
família e vivem nas ruas, a estética da miséria estampada, incomoda, muito mais que
comove, aos transeuntes. Segundo Haddad (1993), o fim da vida é um fenômeno que
evidencia a reprodução e ampliação das desigualdades sociais.
Recolhido ao asilo precisa reinventar a sua socialização, e nessa condição, corre
o risco de ver reproduzidas grande parte das mazelas já experimentadas fora. Uma vez
lá dentro poderá sentir-se acolhido e achar que a instituição age sobre ele com o intuito
de protegê-lo e confortá-lo, como também poderá experimentar a sensação de que sobre
sua condição de interno são descarregadas as frustrações daqueles que vivem fora do
ambiente asilar. Isso só é possível porque a velhice desarticula a interação do indivíduo
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com o mundo e produz o seu desamparo frente à vulnerabilidade do corpo e dos efeitos
da potência esmagadora da morte.
Apesar de seu papel desconstrutor, o asilo faz emergir a possibilidade de
reconstrução de um novo mundo social para o idoso, limitado, restrito em relação à
sociedade mais ampla, mas ainda assim suficiente para que ele incorpore alguns papéis
e resgate, pelo menos parcialmente, sua condição de ser humano.
A Violência da Segregação Asilar
O homem é, essencialmente um ser de relação. As relações que ele entabula
quase sempre são de conflito que, na maioria das vezes, não aparecem de forma
evidente. Na família, no trabalho, numa instituição qualquer ou mesmo a sociedade
como um todo, os limites dos direitos de cada um estão em permanente confronto com o
direito dos outros. Esse confronto, via de regra, nega a condição de igualdade e nega
também o direito à diferença, formando uma espécie de lógica darwiniana que agride a
liberdade do Outro, transforma-o em vítima, agindo contra ele através do uso da força
ou privando-o de algum bem, seja ele a vida, a integridade ou a liberdade de
movimento.
Tal postura configura-se como violência e está em contradição com a exigência
fundamental para que se possa agir eticamente: afastar dessa ação tudo que possa
impedir a manifestação integral da condição humana. No caso dos internos em asilos, é
possível questionar não apenas o Estado mas toda a sociedade quanto à legitimidade do
agir segregador que atua sobre o idoso. Tais ações se apresentam como autojustificadas
pela necessidade de proteger esses indivíduos mesmo contra a sua vontade. A
contradição desse processo encontra-se no fato de que sob a justificativa da necessidade,
são agredidos frontalmente outros direitos fundamentais desses indivíduos.
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Embora nas intervenções do Poder Público, através dos programas de
assistência, não se possa falar em agressão física, mesmo assim, existe violência, já que
a ação exercida sobre o idoso visa privá-lo parcialmente do direito de manifestar sua
humanidade e da possibilidade de vivê-la livremente em sociedade. Essa é uma
violência que “se insinua, freqüentemente, como um ato natural, cuja essência passa
despercebida”.(Odália 1985, pp.22-23). Percebê-la significa superar sua aparência de
ato rotineiro, natural, inscrito na ordem das coisas, e transformá-la naquilo que ela
realmente é: um dos mecanismos de efetivação dos processos de exclusão. A
institucionalização do idoso pobre, faz com que sua condição deixe de ser percebida
como decorrente de processos sociais e passe a ser encarada como fruto da
imprevidência pessoal ou da crueldade familiar. De acordo com Néri & Debert (1999),
o processo de envelhecimento pode reforçar desigualdades em face da qualidade de vida
e do bem-estar dos diferentes estratos sociais, de homens e mulheres, de brancos e nãobrancos, de jovens, adultos e os mais velhos, contribuindo assim para aumentar a chance
de exclusão.
Essa forma de violência, como todas as outras, tem como característica principal
ser um “abuso”. Historicamente, as sociedades constroem modelos de discriminação e
exclusão, alimentados por sistemas de valores fundados sobre a estigmatização de
determinados segmentos do grupo social ao mesmo tempo em que fornece os
paradigmas as serem seguidos e prestigiados pelos membros da comunidade.
Beauvoir(1976) diz que o mundo fecha os olhos aos velhos, assim como aos jovens
delinqüentes, às crianças abandonadas, aos aleijados, aos deficientes, todos
estigmatizados, nivelados pelo mesmo plano.
O paradigma de homem contemporâneo está construído com base no sistema
econômico vigente, que tem por característica desenvolver-se e alimentar-se do “novo”,
mesmo que esse novo não passe de uma maquiagem do velho, o que coloca em xeque a
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fragilidade da condição humana. No caso do idoso, os processos de exclusão que sobre
ele atuam iniciam-se com sua saída da esfera produtiva, que tem como paradigma o
jovem cheio de vigor e estende-se à família, que, envolvida nas lutas do dia-a-dia não
encontra mais tempo para lhe dar atenção.
Por trás das providências de acolhimento, é possível vislumbrar a rejeição
sistemática de sua presença, especialmente quando pobre. Como não é possível eliminálos, simplesmente, a opção se torna afastá-los da convivência social e exilá-lo em locais
onde a sua condição de segregado não se ponha à mostra. A sociedade, manifestando-se
através do Estado, da família e das demais instituições, age sobre ele como um barco
que para continuar sua trajetória com mais celeridade, joga ao mar o peso desnecessário.
A condição de idoso, agravada pela pobreza, coloca-o fora do jogo que se desenvolve na
arena social.
Ninguém sofre mais injustamente a privação nessas formas camufladas do que
um interno de asilo público. Ele é retirado do convívio social, e tudo que ele é, foi
construído no ambiente social e só tem sentido socialmente. Quando uma sociedade
oferece a qualquer pessoa menos do que ela é capaz, então ela, necessariamente, é uma
sociedade injusta e violenta. Damata (1993), nos diz que a violência e sobretudo um
mecanismo social que rompe os espaços e as barreiras dos costumes, as normas legais, e
invade o espaço moral do Outro.
Por trás da política de assistência social da qual os idosos são alvos, existe a
demonstração evidente de que não só o Estado, mas a sociedade, de um modo geral,
fracassou em produzir condições adequadas de vida a seus membros, e uma sociedade
que assim age é necessariamente injusta, agressiva e violenta.
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Ataques à Individualidade: uma rotina dentro e fora da instituição asilar
Tanto o reconhecimento da condição de indivíduo quanto sua exclusão
demandam a construção de identidades. A existência do indivíduo pressupõe o Outro,
mas não só, pressupõe a existência apesar do Outro, em relação necessária com o Outro.
A delimitação do indivíduo é dada em primeira instância, de forma negativa, ou seja,
pela constatação necessária da existência do não-eu, isto é, do outro que não sou eu
mas que tem tanto direito quanto eu a uma existência digna. A negação do Outro, por
sua vez, demanda a própria negação, ou seja, o indivíduo só crava sua existência a partir
de um processo de dupla afirmação, de si e do Outro. Há uma dependência necessária
de um em relação ao outro; ao mesmo tempo em que se reconhecem um no outro,
também reconhecem no outro sua própria negação.
O idoso com o perfil típico do interno de instituição asilar pública,
sofre
constantes ataques à sua condição de indivíduo. Costa (1996), demonstra que esse
processo tem como efeito a banalização da vida, onde o Outro é anulado pelo olhar da
indiferença que faz desaparecer sua humanidade. Ele se transforma num estranho
desqualificado, tornando-se banal o desrespeito físico e moral.
O processo pelo qual os idosos são subtraídos do meio social, e desaparecem da
imagem que a sociedade faz de si própria, revela uma mutilação. Uma sociedade que
somente se vê jovem e produtiva, simplesmente ignora que dessa percepção estão
excluídas as gerações mais antigas consideradas velhas. Desconhece que a relação entre
indivíduo e sociedade é indissociável do ponto de vista ético. Codo (1993), nos diz que
indivíduo e sociedade se equivalem e se distinguem concomitantemente numa relação
de contradição e/ou dupla negação. Isso significa que, a condição de indivíduo, em
qualquer das suas fases, é a unidade social fundamental e que repousa sobre ela os
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mecanismos de múltiplas interações da sociedade. Não há individualidade possível a
não ser pelo mútuo espelhamento dos indivíduos. O agir contrário a esse preceito ético
compromete a sanidade da própria sociedade na medida em que torna legítimos os
mecanismos de exclusão ilegítimos. A sobrevivência do interno no asilo esta ligada à
possibilidade maior ou menor de reconstruir sua individualidade pelo processo de
interação não apenas com os outros internos, mas também com o corpo de funcionários.
É uma tentativa precária e desesperada de fazer-se reconhecido pelo Outro, porque de
tal reconhecimento depende sua dignidade.
A construção do indivíduo começa e termina com a história das relações por ele
vividas. As vivências que ele constrói são, portanto, formas de existir, objetivar-se e, ao
objetivar-se, subjetivar-se, isto é, construir-se internamente a partir das relações
externas que é capaz de entabular. Isolado no asilo, o idoso fica afastado do contexto
social que o construiu e que é capaz de estruturá-lo. Sua separação da sociedade mais
ampla representa uma ruptura com os referenciais formuladores de sua individualidade
situados no ambiente exterior ao asilo; ruptura essa que agride sua estrutura psicológica,
desconectando-o do mundo, às vezes, definitivamente pelo comprometimento de sua
sanidade, de sua individualidade e de sua cidadania.
Uma das características observadas junto aos internos de uma instituição asilar é
o processo de reificação pelo qual os mesmos passam. Tal situação ocorre tanto na
relação dos internos entre si, quanto na relação dos mesmos com a equipe dirigente2. A
desconstrução de sua individualidade construída socialmente tem por objetivo adaptá-lo
à sua nova condição de recluso. O objetivo é fazê-lo conformar-se com a perda da
liberdade e com a restrição do seu círculo de relações.
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Goffman (1974), diz que nas instituições totais, em cujo conceito se enquadra o asilo para idosos, existe
uma divisão básica: há um grande grupo controlado a que ele chama de grupo dos internados, e um
pequeno grupo de supervisão, administração e controle, a que ele chama de equipe dirigente, formada
pelo corpo de funcionários da instituição.
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Um dos primeiros ataques que sofre a estrutura psicológica do interno diz
respeito ao cerceamento da liberdade. A afirmação da liberdade individual como valor e
a noção de que cada indivíduo tem o direito de fazer, na esfera de sua liberdade, tudo
que não interfira na liberdade dos outros e ser reconhecido por essa condição essencial,
tem, para o caso do interno do asilo, um sentido muito peculiar na medida em que a
perda da liberdade é mascarada pelo discurso de que tal situação ocorre por um motivo
justo: assegurar a proteção e a segurança do idoso.
No asilo, as relações de troca entre os diferentes membros do grupo tomam a
forma e os atributos de relação com coisas mortas. O processo reificador conseqüente
se estende progressivamente ao conjunto da vida psíquica não apenas dos internos,
como também dos funcionários envolvidos, ocasionando a predominância do
quantitativo sobre o qualitativo. Goldmamn (1979), nos diz que há um mascaramento
do processo histórico da condição humana e da vida social, transformando o homem em
elemento passivo, em espectador de um drama que se renova continuamente e no qual
os únicos elementos realmente ativos são coisas inertes.Tende-se, assim, a substituir no
conjunto da vida humana, a autonomia da coisa em relação à ação dos homens, o que
transforma a realidade humana em coisa.
No interior da instituição, as relações fundamentais continuam a existir, mas
sofrem modificações que só implicitamente podem ser percebidas. Os valores e as
concepções de mundo que o interno possuía fora se enfraquecem e muitas vezes
desaparecem totalmente de sua consciência, e mesmo quando deles permanecem alguns
vestígios, não têm mais contato imediato com a vida cotidiana existente fora dos muros
da instituição. O asilo é uma espécie de além-fronteiras, para onde vão todos aqueles
que, de uma forma ou de outra, perderam seu lugar na sociedade. A reconstrução de
papéis nesse ambiente está limitada a uma dimensão ínfima da realidade social
circunscrita ao espaço físico do asilo.
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O homem é um ser em torno do qual se organizam as coisas do mundo. Se
consideramos o Outro como um homem, qualquer que seja sua condição social ou faixa
etária afirmamos dele sua relação com as coisas do mundo e com os outros homens em
condição de igualdade; afirmamos sobretudo sua liberdade. A condição de exilado
embora assegure um certo bem-estar material, nega a liberdade e conseqüentemente
rejeita os elementos fundantes da condição humana, transformando-a em coisa.
Dinâmica das Relações e Fluxos de Poder na Instituição Asilar
Uma das características na dinâmica das relações dos indivíduos em sociedade é
a existência de fluxos de poder que atingem a todos indistintamente, mas que se
manifestam de forma mais seletiva sobre os segmentos sociais com menor possibilidade
de barganha no jogo de forças em que se transformam os ambientes de convivência. O
poder – que pode ser compreendido como a capacidade que têm os indivíduos ou grupo
de indivíduos de interferirem na atividade de outros indivíduos ou grupos – torna
possível submeter o Outro e colocá-lo em uma condição fragilizada na relação. Sobre o
idoso, o peso dessas conseqüências se dá de forma contínua, velada, mas nem por isso
menos contundente. Primeiramente, ele sofre a estigmatização e a exclusão da
sociedade mais ampla, processo lento, contínuo e inexorável. Uma vez completado esse
ciclo e já deslocado da esfera considerada produtiva, perde o apoio família, e por
último o Estado dele se apodera e o coloca em um asilo. Uma vez segregado no
ambiente do asilar, fica sob o poder da equipe de funcionários e submetido a uma vida
reclusa cujas possibilidades de movimentos está sob o controle da instituição.
A direção do asilo, o corpo técnico e mesmo os funcionários menos qualificados
fazem parte de um mecanismo de poder, cuja função precípua é manter administrada e
sob controle suas ações, não havendo possibilidade efetiva de se lhe opor resistência. As
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normas têm que ser obedecidas sem nenhuma chance concreta de contestação eficaz. O
controle do corpo e, por extensão, de toda a sua vida estará sob o domínio da instituição.
Essa visão da condição de interno se aproxima da perspectiva de Foucault
(1987), que vê o poder como uma rede formada por micro-poderes que se estendem por
todo o corpo social, criando a sociedade disciplinar, caracterizada pela organização do
espaço com vistas ao controle dos corpos, permitindo agir sobre o Outro, interferindo
diretamente em sua vida, inclusive suprimindo direitos. Desse ponto de vista, o interno
encontra-se em posição de instrumento e as intervenções que se fazem sobre ele
refletem um jogo de forças cujo fluxo de poder se manifesta numa direção bem
definida. Seu corpo é colocado num sistema de coação e privação, de obrigações e de
interdições onde o castigo passa da arte das sensações a uma economia dos direitos
suspensos. O internamento compulsório do idoso tem uma certa correspondência com as
penas de banimento da segunda metade do século XVIII na Europa, especialmente na
França. É questionável o internamento como forma de proteção, na medida em que ele
atende muito mais aos interesses daqueles que permanecem do lado de fora do asilo.
Como interno do asilo esse sofrimento assume uma face cruel por significar a
impossibilidade de ver sua situação revertida. É um sofrimento para “sempre”, quando
“sempre” significa o resto da vida; é como morrer diariamente e renascer para repetir
novamente no dia seguinte as dores da morte do dia anterior. Trata-se de uma
codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço e os movimentos permitindo
o controle minucioso das operações do corpo, realizando a sujeição constante de suas
forças e lhe impondo uma condição de docilidade e utilidade. O poder disciplinar
existente no asilo impõe um princípio de visibilidade obrigatória, o que se contrapõe à
sua função em relação à sociedade mais ampla que é justamente a de suprimir o idoso
da visibilidade geral. Esse poder disciplinar, que se manifesta prioritariamente sobre os
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corpos dos internos, manifesta-se tanto
na organização dos objetos pessoais dos
mesmos, quanto naqueles pertencentes ao asilo.
Entender as razões pelas quais essa forma de agir sobre o idoso é considerada
legítima, tem a ver, primeiramente, com a não visibilidade dos processos que sobre ele
atuam, em segundo lugar com o fato de que o interno é vítima de uma representação
ideológica da sociedade, que é fabricada pelo disciplinamento de um espaço social que
não lhe reservou nenhum lugar. O contato a ser cortado é o fundamento desse processo
de exclusão e como Gregor Samsa3, o personagem cafkiano, o idoso também participa
de um drama intenso de rejeição que vai expeli-lo de seu próprio ambiente, fazendo-o
menosprezado e incompreendido por aqueles que teriam obrigação de amá-lo e amparálo. Ele se sente um estorvo, sem nada poder fazer contra as forças que o colocam nessa
condição de inferioridade.
O poder exercido sobre o corpo no processo de encarceramento a que está
submetido o idoso, faz parte de um esquema de vigilância que se baseia na pirâmide de
olhares formada por médicos, enfermeiros, serventes, enfim, todos os que compõem o
corpo de funcionários do asilo. Os asilos, em suas origens, foram criados com o
propósito específico de segregar, preferencialmente nos lugares situados em regiões
geograficamente periféricas das cidades, os corpos estigmatizados pela indigência que
mendigavam nos centros urbanos.
Uma vez restringidos a um espaço mínimo de movimentação, à limitação e ao
empobrecimento de suas experiências, a conseqüência inevitável é um lento perecer da
alma. Foucault (1979), diz que é sobre o corpo que se encontram os estigmas dos
acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os
desfalecimentos e os erros; nele também se atam e de repente se exprimem, mas nele
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Gregor Samsa é um personagem da obra A Metamorfose, de Franz Kafka que leva uma vida
absolutamente rotineira, mas que um belo dia acorda transformado em um inseto e passa a experimentar
uma série de rejeições devido à repugnância causada pela sua nova condição.
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também eles se desatam, entram em luta, se apagam os conflitos. O corpo é, portanto, a
superfície de inscrição dos acontecimentos e um volume em perpétua pulverização, o
lugar sobre o qual os fluxos de poder se tornam visíveis.
As Rupturas que Conduzem ao Asilo
A alquimia complexa que submete o idoso à experiência do asilo, adiciona às
desigualdades sociais uma série de rupturas: familiares, físicas e psicológicas. Essa
mescla de infortúnios na velhice atua prioritariamente sobre os indivíduos do sexo
masculino, justamente porque a mulher tem uma maior facilidade em adaptar-se ao
ambiente de convivência com os filhos. Ela pode vir a encontrar um papel no ambiente
familiar do filho ou filha, auxiliando na criação dos netos ou mesmo cuidando dos
serviços domésticos. O idoso do sexo masculino, por sua vez, tem menos chance de
participar desse tipo de papel, o que torna sua convivência familiar mais difícil, fazendo
do abandono ou da internação asilar uma possibilidade cada vez mais concreta.
Uma parcela significativa dos idosos internos é oriunda da zona rural, o que nos
leva a inferir que o deslocamento em direção às cidades e a falta de condições de
sobrevivência digna são fatores importantes na composição do perfil da população
masculina dos asilos públicos; acrescente-se a isso a situação financeira precária devido
à sobrevivência através do subemprego ou da mendicância e o quadro de degradação se
completa de forma quase inexorável. As mulheres com essa mesma origem em geral
têm pouca ou nenhuma escolaridade, sobrevivem como empregadas domésticas, e em
função das condições de trabalho – praticamente os sete dias da semana –, não
conseguem constituir um círculo familiar próximo. Essa dificuldade de desenvolver
uma vida social razoável, geralmente faz com que envelheçam na casa dos patrões,
ajudando a criar seus filhos e netos. Quando, em função de problemas de saúde ou pelo
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avanço da idade não mais conseguem desempenhar suas tarefas, são encaminhadas ao
asilo como uma peça que não mais cumpre sua função e, portanto, é descartável.
Entre os que sofreram maus tratos, as mulheres idosas parecem ser as maiores
vítimas. Sua fragilidade física muitas vezes as obriga a suportar uma vida familiar
caótica com parentes que se apossam de sua aposentadoria, não lhes proporcionando
condições adequadas de saúde e alimentação. A maioria não consegue superar o trauma
de sentir-se abandonada e não ter os esforços de toda uma vida reconhecidos. A perda
do companheiro, para aquelas que conseguiram construir uma relação conjugal, é o sinal
que desencadeia os eventos que culminarão com a internação, pois esse fato leva à
perda da residência, geralmente reivindicada pelos membros mais jovens da família. Tal
situação agrava seu estado de miséria levando-a à condição de indigência, não lhe
restando outra alternativa a não ser o recolhimento à instituição asilar.
Considerações Finais
O processo que faz do indivíduo um potencial morador do asilo começa com
rupturas que o retiram de maneira quase imperceptível do convívio social mais amplo.
Na raiz da questão se encontra o fato de a sociedade não reconhecer a si própria, pois o
referencial no qual se espelha é pautado no paradigma de homem contemporâneo:
jovem, economicamente ativo, consumidor e auto-suficiente.
Evidentemente não podemos atribuir a rejeição que retira o idoso da visibilidade
social e o conduz ao asilo exclusivamente a fatores relacionados ao estilo de vida
contemporâneo, afinal, se volvermos o olhar para o passado, veremos que essa prática
se encontra difundida como uma espécie de lógica perversa não apenas em relação ao
idoso mas a todos os seguimentos que de alguma forma não se enquadram no perfil de
indivíduo que a sociedade reclama como seu. No entanto, torna-se impossível não
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perceber que o excessivo individualismo contemporâneo criador de uma mentalidade
consumidora e egocêntrica, produz, com maior rapidez e em números cada vez mais
expressivos, legiões de rejeitados que não encontram mais lugar no mundo social.
A quase total indiferença em relação a esses indivíduos somente é possível
porque a sociedade pratica um exercício de esquecimento sistemático por considerá-los
presença incômoda. A solução então se torna suprimi-los da visibilidade, o que, via de
regra, implica na literal perda da liberdade ou no seu confinamento em instituições ou
guetos.
Para um indivíduo que se concebe construído socialmente, o processo de
afastamento de seus pares, significa uma ruptura com as instâncias formuladoras de sua
individualidade e produz uma desconstrução violenta de seus referenciais. Quando uma
sociedade recorre a esse expediente mostra-se incompetente para produzir as condições
adequadas a seus membros, e revela-se violenta, na medida em que agride a dignidade
de seus componentes.
Como um mal necessário, o asilo é a instância encarregada de acolher a face
rejeitada do idoso e dentro da medida do possível, reestruturá-lo, oferecendo, pelo
menos em parte, aquilo que a sociedade lhe negou. Evidentemente que uma enorme
carga de dor e sofrimento acompanha aqueles que se encontram na condição de
internos, pois ter o asilo como último refúgio significa habitar em um universo paralelo,
com um tipo de socialização alternativa, que só em pontos determinados e situações
bem específicas se toca com o mundo que lhe é exterior. Nesse ambiente artificial e
excludente, o interno precisará reconstruir seu mundo de relações sobre novas bases,
onde os valores, as possibilidades e perspectivas que antes possuía tem significados
substancialmente diferentes e precisam ser reinventados.
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