UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER A POSIÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL NA FORMAÇÃO DO DIREITO POSITIVO: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen FRANCA 2009 PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER A POSIÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL NA FORMAÇÃO DO DIREITO POSITIVO: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas FRANCA 2009 Müller, Perla Carolina Leal Silva A posição da ética e da moral na formação do direito positivo : uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por por Kelsen / Perla Carolina Leal Silva Müller. –Franca : UNESP, 2009 Dissertação – Mestrado – Direito – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP. 1. Direito – Filosofia. 2. Direito positivo. 3. Ética. 4. Moral. 5. Hans Kelsen – Crítica e interpretação. CDD – 340.11 PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER A POSIÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL NA FORMAÇÃO DO DIREITO POSITIVO: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. BANCA EXAMINADORA Presidente:_________________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas 1º Examinador: _____________________________________________________________ 2º Examinador: ____________________________________________________________ Franca, ______ de _______________ de 2009. Dedico ao meu companheiro de mais de uma década, marido e parceiro; parceiro no amor, na profissão, no entusiasmo e afeição pelo Direito e pela vida. Tributo a ele parte do mérito deste trabalho, pelas noites passadas em claro ao meu lado, em gesto de mais pura fidelidade e cumplicidade. Dedico, ainda, às minhas amadas mãe, vó e irmãs, por professarem a crença de que sou mulher das mais fortes e capazes, preenchendome de forças para avançar sempre mais. AGRADECIMENTOS Agradeço, em especial, ao Prof. Dr. JOSÉ CARLOS GARCIA DE FREITAS que, além de um orientador dedicado, brindou-me com afeto paternal e com distinta tolerância; não só dirigindo meus passos, mas caminhando comigo, instigando e incentivando o desenvolvimento das minhas idéias. Curvou-se do alto de seu conhecimento e sabedoria a fim de me abrigar, pequena ante sua grandeza intelectual. Agradeço a honra de tão brilhante mestre e esmerado amigo. Externo, ainda, meus carinhosos agradecimentos a todos os professores do Curso de Pós-Graduação em Direito da Unesp, que prestaram grande contribuição para desenvolvimento e evolução da minha pesquisa jurídica, em especial à Profa. Dra. JETE JANE FIORATI pelas ativas aulas ministradas. “Ningún orden social puede compensar completamente la injusticia de la naturaleza.” (KELSEN, 1992). MÜLLER. Perla Carolina Leal Silva. A posição da ética e da moral na formação do direito positivo: uma análise sob a ótica da “Teoria Pura do Direito” desenvolvida por Kelsen. 2009. 102 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009. RESUMO O trabalho visa uma re-apresentação da Teoria Pura do Direito desenvolvida por Kelsen, naquilo que, em particular, envolve a Ética e a Moral no processo de construção e aplicação da norma jurídica, e que está disseminada por toda a obra deixada pelo autor e não apenas em um livro específico. Busca-se dar evidência ao pensamento do jurista austríaco que, intencionalmente ou não, é ocultado ou mesmo negado pela ciência jurídica tradicional, demonstrando os equívocos de sua leitura e deixando vir à tona não só o teórico do direito que tantos conhecem, mas, principalmente, o filósofo-político que pouquíssimos buscaram ou buscam conhecer. É entuito, enfim, demonstrar que, ao contrário do que propagam, Kelsen muito se preocupou com a realização da Justiça, de modo que pretendeu criar uma ciência jurídica pura na medida em impede a qualquer Poder lograr uma justificação jurídica que lhe permitisse sufocar os anseios da maioria, enxergando, no Direito Positivo, um mecanismo da democracia, anti-estadista, porém jamais anarquista ou opressor. Com uma assim ciência jurídica os ideais políticos, religiosos e, no que nos interessa, éticos e morais têm lugar reservado a incidir, não como objeto da ciência jurídica que é a norma, mas como fator de influência do ato de vontade humano criador da norma. Palavras-chave: direito positivo. ética. moral. Hans Kelsen. teoria pura do direito. MÜLLER. Perla Carolina Leal Silva. The position of the Ethics and Moral in the formation of Positive Law: an analysis from the perspective of the "Pure Theory of Law" developed by Kelsen. 2009. 102 p. Dissertation (Master em Law) – Faculty of History, Law and Social Work, State University of São Paulo “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009. ABSTRACT This work aims at the re-introduction of the Pure Theory of Law which was developed by Hans Kelsen in that field that particularly envolves the Ethics and the Morals in the creating process of Law and its application; and which is spread all over the author´s work and not only in one specific book. It seeks highlighting the Austrian jurist´s thoughts which, either intentionally or not, is hidden or even denied by the traditional Science of Law, demonstrating the faults in their reading, and focusing not only on the theorist of law, known by so many, but mainly on the philosopher-politician himself, that only a few attempted or still atempt to know about.Therefore, this work aims at demonstrating that, contrary to what is stated by many, Kelsen was rather concerned about the realization of Justice, in a way that he meant to create a pure Jurisprudence, as it prevents any power from being justified by Law, which would allow it to suffocate the dreams of the majority, interpreting the Positive Law as a democratic mechanism, anti-statist, although never anarchist or oppressive. With such a Jurisprudence, the political or religious ideals, as well as the ethical and moral ones, have their place guaranteed, not as an object of the science of law, which is the legal norm, but as a factor which influences the acts of will that create the norm. Keywords: positive law. ethics. moral. Hans Kent. pure theory of law. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN ................................ 15 1.1 As influências do pensamento de Kelsen ........................................................................ 15 1.2 Sobre o Direito Natural e o Direito Positivo................................................................... 20 1.3 A idéia de justiça............................................................................................................... 26 1.4 O problema do conhecimento para Kelsen .................................................................... 30 1.5 O conhecimento filosófico – o que é Filosofia?............................................................... 32 1.6 A Filosofia e a Ciência ...................................................................................................... 38 1.7 As origens da Filosofia do Direito e da Ciência do Direito ........................................... 40 1.8 O criticismo de Kant ........................................................................................................ 44 CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA PURA DO DIREITO..... 47 2.1 O método científico adotado ........................................................................................... 47 2.2 O princípio da imputação ...........................................................................................................54 2.3 A norma hipotética fundamental...............................................................................................57 2.4 O sistema do Direito Positivo e o sistema da Ciência do Direito.................................. 60 CAPÍTULO 3 O PAPEL DA ÉTICA E DA MORAL NO PENSAMENTO DE KELSEN.................................................................................................... 67 3.1 Noções preliminares sobre Ética e Moral....................................................................... 67 3.2 A Ética e a Moral na visão de Kelsen ............................................................................. 72 3.3 Moral e Direito na visão de Kelsen ................................................................................. 75 3.4 O ato de aplicação e criação do direito como juízo de valor ético................................ 77 3.5 A influência da moral e da ética científica na aplicação do direito.............................. 79 3.6 O papel da ética filosófica na criação do direito ............................................................ 82 CAPÍTULO 4 A JUSTIFICATIVA DO PENSAMENTO DE KELSEN .......................... 85 4.1 Kelsen: um teórico do Estado .......................................................................................... 85 4.2 As correlações entre a Teoria Pura do Direito e a Teoria do Estado de Kelsen......... 86 4.3 A legitimação do Estado pelo Direito.............................................................................. 90 4.5 A limitação do Poder Político pelo Direito ..................................................................... 92 4.6 Ética e a Moral: fundamento de validade do Direito ou fator de influência na aplicação do Direito? ...................................................................................................... 95 CONCLUSÃO......................................................................................................................... 97 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 100 INTRODUÇÃO Ao trazer à discussão a obra deixada pelo jurista Hans Kelsen, temos que ter em mente a árdua tarefa a que nos dispomos a realizar, posto se tratar de um dos maiores pensadores do século XX e, talvez, o que trouxe para o estudo do Direito, as mais polêmicas considerações, influenciando direta ou indiretamente o debate jurídico dos últimos tempos. É inegável a repercussão das teorias kelsenianas entre os juristas do mundo contemporâneo, não sendo exagero afirmar que Kelsen representou um divisor de águas para o estudo do Direito a partir, principalmente, da divulgação de sua obra mais conhecida, a Teoria Pura do Direito. Por tal motivo, a abordagem da obra de Kelsen, apesar de já ter sido alvo de inúmeros estudos realizados em todas as partes do mundo, ainda continua de extrema relevância, principalmente por ter servido de base para muitas teorias tidas como de vanguarda, em verdade releituras da obra kelseniana, como também por ter sido ponto de partida para a confrontação daquelas teorias que tentaram combatê-la. O jurista cubano, Ramón de la Cruz Ochoa1, resumiu bem a importância do jurista vienense para o estudo do direito, durante a apresentação de um seminário intitulado “Seminario Internacional sobre la obra de Hans Kelsen”, diante a estranheza que poderia causar a realização deste evento justamente em Cuba, onde reinam as idéias marxistas, manifestando o seguinte: Sé que muchos en Cuba y también en el extranjero se habián preguntado por qué en Cuba un seminario sobre KELSEN. La respuesta para mi es sencilla, KELSEN es uno de los grandes exponentes del pensamiento jurídico del siglo XX; no concibo un jurista medianamente formado e informado que no conozca al menos elementalmente el pensamento de KELSEN, como creo que no puede haber un profesional de las ciencias sociales y políticas que no conozca a MARX, o un psicólogo que no conozca el pensamiento de outro gran austríaco FREUD. Son pensamientos vitales con los cuales se puede estar completamente o parcialmente de acuerdo, o totalmente en desacuerdo, pero no se pueden ignorar a Hombres que hay que leer y releer, estudiar y intepretar sin dogmas de ningún signo y tomar de ellos lo que pueda ser útil para todos aquellos que creemos y luchamos por el progreso espiritual y material del Hombre y de la Sociedad. 1 CRUZ OCHOA, 1992, p. 34-35 apud MANCHEGO, José F. Palomino. Bio-bibliografia de Hans Kelsen. In: KELSEN, Hans. Introducción a la teoría pura del derecho. 3. ed. rev. e cor. México: UNAM, 2002. p. 125-126. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1956/17.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2009. Porém, o tamanho destaque alcançado pelo jurista austríaco no cenário mundial gerou certa mitificação em torno de sua obra, propagando, muitas vezes, uma imagem distorcida e limitada de suas idéias, ora devido às críticas cegas de seus adversários, ora aos exageros emprestados à sua obra por seus próprios defensores. Tal deturpação da obra de Kelsen deve-se à sua tentativa de propor uma ciência do direito diferente de tudo que se via em sua época, distanciando-se tanto dos pregadores do Direito Natural, que procuravam justificar o direito através de concepções metafísicas, como de seus antecessores positivistas, que viam a norma jurídica como única possibilidade do conhecimento jurídico, a qual já seria repleta de um conteúdo valorativo absoluto, dedutível pela razão humana. Certamente, por representar uma quebra de paradigmas, a obra de Kelsen enfrentou toda sorte de debates apaixonados, que muitas vezes fugiram da própria proposta teórica divulgada pelo jurista, travando-se embates filosóficos distanciados da realidade do objeto estudado. Não raro, as tentativas do homem em explicar ou apreender a realidade se vêem guiadas por fantasias, desejos e medos, frutos do componente emocional, afetivo do espírito humano. Tal componente afetivo, por vezes, cega-nos, impedindo ver o que realmente deve ser visto. Neste contexto, é possível constatar que apenas as proposições kelsenianas mais distantes de tudo que se pregava até então é que tiveram maior espaço no estudo jurídico, deixando-se de lado, muitas vezes, a completude da obra de Kelsen, de forma a limitar o alvo das ferrenhas críticas, ou mesmo dos exagerados elogios, a aspectos pontuais do pensamento deste grande filósofo do direito, que foi Hans Kelsen. Desde sua primeira edição, em 1934, a Teoria Pura do Direito, estudada de forma isolada e dissociada de toda a base filosófica que a cerca, tem sido alvo de árduas críticas, para não dizer de ódio. O fato desta obra, sem dúvidas a mais famosa de Kelsen, ter procurado distanciar do objeto da ciência jurídica toda sorte de influência ideológica, política ou mesmo de outras ciências, foi certamente o maior motivo de repulsa por parte dos estudiosos do direito. Acusam o jurista vienense de um reducionismo formalista, o que tornaria o direito distanciado de seus fins supremos, ou mesmo passível de admitir toda forma de poder, mesmo um poder criminoso como o nazista, já que, por meio de uma ciência jurídica despida de juízo de valor, quanto ao bom ou mau, ao justo ou injusto, não se poderia repelir os desvios praticados por um Estado autoritário e amoral. Mas tal repulsa, por vezes, é de fácil compreensão. Até o surgimento da Teoria Pura do Direito passava despercebido, ou melhor, fingia-se não perceber, o uso da ciência do direito como elemento de justificação de ideologias políticas, como elemento de legitimação do poder. E isto muito bem foi sintetizado por Kelsen2 no prefácio da primeira edição alemã da Teoria Pura do Direito: Mis adversarios no admiten que estos dos dominios [direito e política] estén netamente separados el uno del otro, dado que no quieren renunciar al hábito, bastante arraigado, de invocar la autoridad objetiva de la ciencia del derecho para justificar prentensiones políticas que tienen un carácter esencialmente subjetivo, aun cuando de toda buena fe correspondan al ideal de uma religión, de uma nación o de una clase. E os fervorosos - e igualmente cegos defensores da Teoria Pura do Direito - o fazem com o igual objetivo de justificar suas próprias ideologias também políticas, ao impedir toda e qualquer discussão a respeito do conteúdo do direito, através da má interpretação de sua 'pureza'. Confundese aqui a pureza da ciência construída por Kelsen com a suposta pureza da própria norma jurídica, que, na realidade, é um ato de vontade repleto de influências axiológicas e, inclusive, de índole subjetiva. Neste ou naquele caso, o que se verifica é uma leitura distorcida da obra de Kelsen, principalmente naquilo que remonta ao papel atribuído à política, ou melhor, à filosofia, como juízo de valor sobre os conceitos formulados pela ciência e suas relações com o direito. Não conseguem, tanto uns como os outros, enxergar a Teoria Pura do Direito como ensaio filosófico de uma ciência do direito pura – a ciência é que se pretende pura, não a teoria-filosófica que a funda, esta de conteúdo profundamente político. O que se tenta ocultar através das interpretações tergiversadas da obra de Kelsen é justamente a densa discussão filosófica travada no bojo da Teoria Pura do Direito, acerca do direito e do poder e da necessária purificação da ciência do direito, não como instrumento de legitimação deste ou daquele poder ou ideologia, mas como veículo de realização da justiça, que para Kelsen3 é “[...] a ordem social bajo cuya protección puede progresar la búsqueda de la verdad”, é, enfim, a “Justicia de la democracia.” Para se entender e alcançar a cientificidade do direito em Kelsen é inafastável compreender seu discurso político-filosófico. 2 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: : introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 11. 3 Id. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 63. Uma obra assim erguida não pode ser taxada formalista ou fria e, muito menos, fora ou mesmo distanciada do campo filosófico. As próprias palavras de Kelsen4 negam tal pecha: “Yo creo haber acelerado el ritmo de la inevitable evolución de mi disciplina, poniendo em estrecho contacto la provincia algo lejana de la ciencia jurídica com el fructífero centro de todo conocimiento: la filosofia.” Não há dúvida de que a equivocada visão da Teoria Pura do Direito como um vazio e árido formalismo seja fruto da má compreensão de Kelsen5, que, no Prefácio à 1ª edição, assim se expressa: “Hace casi un cuarto de siglo que emprendí la tarea de elaborar una teoría pura del derecho, es decir, uma teoría depurada de toda ideología política y de todo elemento de las ciencias da la naturaleza.” O que não se percebe é que a separação do campo da ciência proposta pela Teoria Pura do Direito apenas limita o campo da ciência jurídica, sem jamais se ter pretendido com tal separação extirpar-se do direito, enquanto fenômeno social complexo, a influência volitiva do próprio homem. Kelsen não cria a “norma jurídica pura”, eis que esta é, como por ele mesmo dito, ato de vontade, ou seja, é criada através de uma decisão política, impregnada por toda sorte de juízo valorativo, inclusive no que diz respeito à justiça e à ética. O que é puro, pois, é a ciência, enquanto focada a descrever seu objeto – o direito – cumprindo sua tarefa precípua de dizer o que é e como é o direito e não como deveria ser, resposta esta reservada à filosofia. Os críticos de Kelsen não conseguem constatar uma sutil diferença existente entre a afirmação de que um enunciado científico deve abster-se de juízo de valor e a conclusão de que o conhecimento do fenômeno jurídico como um todo, necessariamente passe por tal análise valorativa. Nas palavras do próprio jurista: “Un enunciado que describa al Derecho no debe implicar ningún juicio acerca del valor moral de la ley, es decir, sobre su justicia o injusticia, lo que por supuesto no excluye el postulado de que el Derecho deba ser justo.” 6 Eis o objetivo do presente trabalho: desmistificar a existência de um Kelsen-cientista do direito para apresentar um Kelsen-político-filosófico, que expressamente reconheceu a virtude da justiça como juízo de valor que, apesar de escapar ao conhecimento científico, certamente influencia a criação do direito, como ato de vontade. 4 KELSEN, 1979 apud CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. p. 35. 5 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 9. 6 Id. Introducción a la teoría pura del derecho. 3. ed. rev. e cor. México: UNAM, 2002. p. 60. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1956/12.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2009. É, pois, dentro desta visão completa da obra de Kelsen, que procura enxergar todo o fenômeno jurídico, não só do ponto de vista científico, mas também reservando papel de extrema importância para o ato volitivo do criador da norma jurídica, que encontraremos as possibilidades de influência da ética e da moral sobre o conhecimento jurídico. Por conseguinte, apoiados na filosofia política que embasa toda a obra de Kelsen, tentaremos demonstrar quando e como a ética e a moral exercem seu papel na formação do Direito, e qual a importância desta incidência para tal. CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN 1.1 As influências do pensamento de Kelsen Um pensamento filosófico, para ser bem entendido em suas várias acepções, deve ser contraposto ao ambiente histórico no qual foi fundado, ou seja: para ser possível alcançar a mais ampla completude de uma teoria filosófica, é necessário adentrar os conceitos e idéias preexistentes a sua concepção. Isto porque o pensamento humano, por ser sempre dinâmico, tende a adotar pontos de partida baseados no conhecimento da realidade já dominado pelo homem, contrariando-o, mostrando suas falhas ou, ao contrário, aprofundando seus conceitos, a ponto de verificar novas concepções. Deste modo, para se conhecer profundamente o pensamento exposto nas obras de Kelsen, estabelecendo suas reais bases e conceitos, torna-se imperioso buscar conhecer o momento histórico em que constituídas suas teorias, visando descobrir as influências que motivaram a postura filosófica adotada. Nascido em 1881, na cidade de Praga, Kelsen inicia seus estudos logo no começo do século XX, sendo contemporâneo a muitos grandes pensadores, mantendo contato com destacados filósofos de sua época. Há relatos de que tenha freqüentado ou ao menos tido acesso aos debates filosóficos realizados pelo grupo de pensadores que se reuniam em Viena, conhecidos com Círculo de Viena. Embora se diga que, a exemplo de Kelsen, Wittgenstein tenha apenas participado indiretamente do Círculo de Viena, suas idéias influenciaram incisivamente o pensamento predominante neste grupo de intelectuais, que viam em seu Tractatus Lógico-philosophicus uma verdadeira linha mestra para a construção de todo o conhecimento científico da época. E certamente a filosofia analítica de Wittgenstein, difundida pelo Círculo de Viena, iria influenciar o pensamento de Kelsen, principalmente com relação ao problema do conhecimento, do que é possível conhecer cientificamente, ou seja, do que é possível apurar através da razão humana e de demonstrar segundo um método lógico-empírico, passível de ser expresso em definições lingüísticas consistentes. Wittgenstein chega ao ápice de sua proposta filosófica ao advertir que a filosofia não deveria se preocupar com questões metafísicas que fogem ao conhecimento empírico, não sendo passíveis de uma resposta que se possa demonstrar segundo a experiência, chegando a afirmar que a filosofia não deveria se pronunciar sobre aquilo que não se pode falar. Embora não tenha adotado o mesmo rigor extremo que Wittgenstein quanto às possibilidades do conhecimento, conforme será visto no decorrer deste trabalho, Kelsen certamente foi impulsionado por este pensamento amplamente divulgado pelo Círculo de Viena, levando-o a procurar identificar, dentro do fenômeno jurídico, aquilo que poderia ser conhecido de forma científica, ou melhor, que poderia ser traduzido em uma linguagem vertida em enunciados lógicos. Esta é uma das razões que levaram o jurista vienense a criar as bases de sua Teoria Pura do Direito, pela qual visou extirpar, da ciência jurídica, as indagações metafísicas que não seriam passíveis de comprovação segundo uma lógica tradicional, pela qual se avalia se determinado enunciado científico é falso ou verdadeiro. Kelsen admite que o direito positivo, enquanto conjunto de normas jurídicas, não está organizado segundo conceitos de lógica tradicional, posto que não se pode atribuir às proposições normativas a qualidade de verdadeiras ou falsas, mas tão somente a condição de válidas ou inválidas, de acordo com a pertinência ou conformação da norma ao sistema jurídico no qual está inserida. Porém, a ciência do direito, na concepção que lhe foi dada pela Teoria Pura do Direito, consegue adotar um método lógico de verificação de suas proposições, pelo qual é possível avaliar se uma proposição descritiva da ciência jurídica é verdadeira ou falsa, conforme encontre tal proposição uma correspondente norma jurídica válida no ordenamento jurídico analisado. Portanto, para manter a coerência lógica das proposições descritivas da ciência do direito, Kelsen propõe a construção de sua ciência apenas sobre o que entende ser seu objeto próprio, qual seja, a norma jurídica. Outro ponto da teoria kelseniana que sofre forte influência da filosofia analítica de Wittgenstein é, sem dúvidas, o necessário afastamento de questões de cunho valorativo, do âmbito da ciência jurídica. Ora, os juízos de valor, por não se traduzirem em proposições verificáveis segundo uma lógica empírica, somente podem ser conhecidos pela intuição sensorial, ou seja, por um conhecimento emocional, impregnado de subjetivismo, que o torna sujeito a um relativismo conceitual, imprestável à ciência que busca perquirir resultados tendentes a serem absolutos. As teorias de Kant, por sua vez, também tiveram forte papel na concepção das teorias kelsenianas, auxiliando o jurista austríaco a desenvolver a metodologia científica revelada por sua Teoria Pura do Direito. O jusfilósofo Hans Kelsen sofreu forte influência do criticismo de Kant, tanto que, para muitos juristas, Kelsen é conhecido como um neokantiano. Certamente, uma das maiores influências do pensamento de Kant sobre a obra de Hans Kelsen, por estranho que possa parecer, foi a criação de uma filosofia pautada na idéia de que seria possível o conhecimento a partir de juízos sintéticos a priori, ou seja, através de juízos de lógica transcendental, independentes da experiência. Esta idéia de existência de juízos lógicos transcendentais ajudou o jusfilósofo austríaco a construir seu conceito de norma fora do mundo da realidade fenomênica, ou seja, fora do mundo do ‘ser’, mas enquadrada em uma outra realidade, a do ‘dever ser’. E tal influência torna-se clara quando Kelsen estabelece que o Direito não está sujeito ao princípio da causalidade, como as ‘ciência causais’1 estão, mas ao princípio da imputação, pelo qual se estabelece uma conseqüência esperada, mas não necessária, para determinada conduta. Igualmente amparado na possibilidade de construir juízos sintéticos a priori, Kelsen vai justificar toda a sua teoria normativa em um pressuposto de lógica transcendental, que é a conhecida “norma hipotética fundamental”, idealizada para justificar a validade de seu sistema escalonado de normas, ou melhor, para justificar a validade da Constituição, que, por sua vez, validaria a normas inferiores, dentro do sistema piramidal por ele idealizado. A noção de metodologia científica utilizada por Kelsen, bem como o isolamento do objeto do conhecimento para viabilizar sua apreensão, tem também suas origens no pensamento de Kant, de onde se extraiu a idéia de pureza do conhecimento cientifico acerca de seu objeto de estudo, o Direito Positivo. Aliás, vale destacar que o modelo de ciência kelsiniano, ao mesmo tempo que descreve seu objeto, o cria, 1 Aliás, pertinente um parênteses neste momento, para justificar o ponto em que Kelsen se afasta e deixa de poder ser considerado um ‘positivista’. Sem dúvida o ponto de partida para a construção do conceito de ‘ciência’ em Kelsen partiu do positivismo comtiano, percorreu as doutrinas de Bacon, bebeu da fonte do positivismo filosófico do século XIX, mas deles se afastou de forma deveras profunda quando Kelsen atingiu sua maturidade filosófica: enquanto o positivismo jurídico parte da distinção de ciências sociais e ciência naturais, Kelsen firma a distinção entre ciências normativas e ciências causais, fundamento epistemológico que levará a desenvolvimentos doutrinários profundamente distantes a tais correntes filosóficas, conforme se concluirá adiante. É que, segundo Goyard-Fabre, a teoria Pura do direito constrói, metodologicamente e segundo os postulados da filosofia transcendental kantiana, seu objeto de investigação: ‘Hegel acusara Kant de fazer do método um instrumento antes para a constituição do saber do que para sua exposição; pelo contrário, é isso o que Kelsen admira em Kant, chegando a copiá-lo’ (2002:344) Na realidade, não é apenas a ciência do direito que cria seu próprio objeto, mas também o direito, como sistema de normas, regula sua própria criação por meio de um procedimento formal específico. Isso porque para Kelsen o direito positivo é um sistema dinâmico, que não pode existir senão por sua própria força e em consonância com sua instância específica de fundamentação: a norma fundamental. Anote-se, por oportuno, que o normativismo kelseniano – que Simone Goyard-Fabre chamou de teoria transcendentalista (2002:366) – não se confunde com a teoria autopoiética do direito porque são diferentes os propósitos que animam ambas as propostas teóricas. A Teoria Pura do direito, diferentemente da auopoiésis, orienta-se rumo a um a priori jurídico, arquitetando as próprias condições de sua pensabilidade e remonta, num processo ascendente, à sua última razão de ser (Goyard-Fabre, 2002:366). [...] é por isso que o momento ontológico do direito tem importância apenas secundária na Teoria Pura do Direito que, como se pode facilmente verificar, privilegia o momento epistemológico. 2 Constata-se, pois, que há uma forte influência dos conceitos filosóficos kantianos na obra de Kelsen, principalmente em relação aos conceitos inseridos por Kant em sua “Crítica da razão pura”. Tal influência se explica pelo fato de as teorias de Kant terem sido estudadas e aprofundadas mais tarde, e em período contemporâneo ao de Kelsen, pelos filósofos da chamada ‘Escola de Marburgo’, dentre os quais se destacam Paul Nartop, Ernst Cassirer e Hermann Cohen. A Escola de Marburgo, ao aprofundar o conhecimento desenvolvido por Kant, ficou conhecida como um movimento neo-kantiano, ou denominada como neo-criticismo, reforçando a metodologia científica e o perfil epistemológico da busca pelo conhecimento. Tal fato, certamente, serviu como sugestão para a criação de uma ciência pura do direito, livre de interferência direta de outras ciências, a que Kelsen procurou justificar como uma forma de se evitar o que chamou de sincretismo metodológico. Neste contexto, Max Weber dá grande contribuição a Kelsen, quando denuncia haver nítida distinção entre o campo de estudo da sociologia jurídica e da ciência do direito. 2 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do direito e justiça na obra de Hans Kelsen. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 81-82. Embora Kelsen tenha dedicado várias críticas a Weber, principalmente ao indicar, contrariando-o, a existência de uma dependência lógica da sociologia jurídica da Ciência do Direito, ambos pensadores concordavam que a sociologia jurídica tem seu nítido campo de estudo focado nas questões ligadas ao comportamento social ante a existência do direito positivo, ao passo que à Ciência do Direito cabe o estudo do que é e como é o direito. Vale lembrar que Weber combateu as correntes propagadas em sua época, principalmente por seus antecessores Herman Kantorowicz e Eugen Erlich, que difundiram as idéias da chamada “Escola do Direito Livre” e do “Movimento Sociológico do Direito”, pelas quais se pregava a concepção de um direito constituído não pelas leis, mas pelos julgadores. Com base nesta idéia, advertia-se que a ciência jurídica não poderia se pautar somente em relação às leis, como normas criadas pelo legislador, devendo ater-se à constatação empírica do que era decidido livremente pelos julgadores, acreditando ser esta a única possibilidade de conhecimento do direito. Entendiam estes pensadores que a sociologia jurídica seria a única ciência capaz de estudar o Direito, a partir de dados concretos, posto que se dirigia ao escopo do próprio Direito, que seria a modificação do mundo fático. Desta forma, ao constatar as decisões proferidas pelos magistrados, seria possível apurar o sentido real do Direito. Weber contrapôs-se a esta idéia, demonstrando que, na realidade, a Ciência do Direito e a Sociologia do Direito possuíam campos diferentes de incidência, não podendo ser justapostas, posto que se dirigiam a objetos distintos. A sociologia jurídica destinava-se a apurar o comportamento humano diante do Direito, pautando-se por um princípio de causalidade próprio do mundo do ‘Ser’, ao passo que a ciência jurídica dirigia-se segundo uma lógica deôntica, ou seja, do ‘Dever Ser’, não se atendo à realidade fática e sim à dogmática jurídica, não se preocupando com a modificação dos fatos sociais provocada pelas normas, mas como são as normas, o que é o Direito e como este se apresenta e se estrutura. Desta forma, as idéias de Weber ajudam Kelsen a demonstrar os diferentes pontos de vista existentes entre a Sociologia Jurídica e a Ciência do Direito, bem como a nítida distinção entre seus campos de estudo, tornando possível apontar precisamente que a primeira se dirige ao estudo dos fatos, enquanto mundo do ‘Ser’, pautada no mesmo princípio das ciências naturais, qual seja, o princípio da causalidade; enquanto a segunda não se submete ao princípio da causalidade, mas ao da imputação (ou da normatividade), já que se aperfeiçoa por uma lógica deôntica, do ‘Dever Ser’, dirigindo seu foco de atenção exclusivamente para as normas jurídicas. Esta distinção metodológica adotada em relação à sociologia jurídica também será tomada por Kelsen para distinguir a Ciência do Direito das demais ciências sociais, como a política, a ética, a psicologia, dentre outras, já que cada uma delas possui seu próprio objeto de estudo e seus próprios métodos de apreensão do conhecimento específico a que se propõe. Deve-se, pois, buscar, para a real compreensão do problema que se quer solucionar, uma pureza metodológica conforme orientado por Kant, a fim de que se possa chegar a conclusões verdadeiramente científicas. Assim, visando constituir uma metodologia verdadeiramente científica, livre de imprecisões conceituais promovidas principalmente pelo sincretismo metodológico que se verificava nas teorias jurídicas existentes até então, Kelsen identifica o campo de estudo da Ciência do Direito, como sendo unicamente o Direito Positivo, pretendendo excluir do campo de análise da ciência jurídica toda forma de conhecimento que não se atenha ao seu objeto próprio, ou à metodologia própria desta ciência, bem como o que não se possa apreender de forma racional, por meio do emprego de uma lógica tradicional, afastando-se toda sorte de juízos metafísicos. Certamente é neste aspecto que o jurista vienense se aproxima da corrente positivista do Direito que predominava à sua época, em oposição aos adeptos do chamado Direito Natural, porém, como será visto mais adiante, destoando de forma acentuada dos positivistas tradicionais que o antecederam. 1.2 Sobre o Direito Natural e o Direito Positivo Durante toda a evolução do pensamento jurídico é notória a dicotomia existente entre as correntes filosóficas que se apóiam em juízos metafísicos, entendendo-se existir um Direito preexistente ao próprio Direito Posto, denominado Direito Natural, e, de outro lado, as correntes filosóficas que afastam tais conceitos preexistentes, fixando a origem e o fim do Direito em si mesmo, ou seja, nas normas jurídicas postas. Esta dicotomia torna-se extremamente relevante, quando se constata que qualquer teoria dirigida ao estudo do Direito, certamente se aproximará de uma ou outra corrente filosófica. Isto porque, por mais diferentes que sejam as teorias jurídicas propostas, de certa forma passarão pelo questionamento prévio de se aceitar uma justificativa externa ao Direito, considerando válidos alguns conceitos jurídicos preexistente ao Direito Posto, de índole metafísica, ou se tais conceitos não poderiam ser considerados existentes para o entendimento do fenômeno jurídico. O conceito de Ciência do Direito de Hans Kelsen, por mais autêntico que se possa considerar, aproxima-se do positivismo jurídico, já que fixa como premissa uma análise dogmática do Direito, isenta de qualquer juízo metafísico, de índole ontológica, justamente para que possa prevalecer uma análise pura do Direito. Porém, para que se possa discorrer de forma mais profunda sobre as similitudes ou distinções existentes entre a obra de Kelsen e outras teorias positivistas, ou mesmo para se afirmar o distanciamento de sua ciência dos conceitos fixados pela corrente que prega a existência do Direito Natural, faz-se necessário realizar uma digressão teórica, procurando observar a evolução desta dicotomia entre o positivismo jurídico e a escola jusnaturalista. Muito embora a distinção dos conceitos de um e de outro já estivesse sendo delimitada desde a Grécia e Roma antigas, o uso do termo ‘direito positivo’ foi, de fato, empregado apenas a partir da era Medieval. Quanto ao teor de seus conteúdos, Platão e Aristóteles já os delineavam, atrelando seus conceitos à idéia de Justiça, afirmando, principalmente Aristóteles3 (Livro V, capítulo VII, Ética a Nicômaco), que a ‘justiça’ teria uma parte de origem ‘natural’ e outra de origem ‘positiva’. Para Aristóteles, portanto, natural seria a justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito, não interessando o juízo que os sujeitos tenham d’ela (physikón). Portanto, a ‘justiça natural’ se apresentaria, para Aristóteles, universal (no espaço) e absoluta. Por seu turno, positiva seria a justiça cuja origem não vem a caso, valendo pelo simples fato de ser o que é por convenção dos homens, de modo que, por conseqüência, só tem efeito nas comunidades singulares em que assim foi posta (nomikón díkaion). Decorre, em Aristóteles, ser a justiça positiva mutável, histórica e relativa (no espaço e no tempo). Note-se, portanto, que do pensamento grego-clássico, nos é possível retirar elementos qualificadores hábeis a distinguir um ‘direito positivo’ e um ‘direito natural’, muito embora – conforme acima dito – aquela expressão seja de uso mais recente. Também na Roma Antiga há elementos, nos textos de aludida época, dos quais decorre a dicotomia conceitual necessária à distinção das idéias de direito natural (abarcando a expressão jus gentium) e direito positivo (refletido na expressão jus civile). 3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. (Obra-prima de cada autor, 53). Em Roma, a distinção entre jus gentium e jus civile repousa em elementos semelhantes àqueles firmados por Aristóteles, uma vez que o jus gentium não encontraria limitações temporais ou espaciais e derivaria da naturalis ratio (razão natural), ou seja, é direito de todas as nações, posto que constituído por ‘providência divina’. O jus civile, por sua vez, é particular de cada nação, sendo posto, para si, pelo próprio povo. Portanto, no pensamento romano clássico a distinção entre direito natural e direito positivo já inspirava o caráter universal e imutável daquele e a particularidade e mutabilidade deste, nas dimensões espaço/tempo, conforme decorria da análise tecida, sobre o tema, por Paulo4 no Digesto. Ainda no Digesto, Paulo traça distinção decisiva entre direito natural e direito positivo, prescrevendo que aquele estabelece aquilo que é bom em si mesmo, fundando-se, pois, em um critério moral, enquanto deste decorre aquilo que é útil, baseado, portanto, em um critério utilitarista. Entretanto, é apenas no pensamento medieval que verificaremos o uso da expressão ‘direito positivo’ (jus positivum), conforme acima já salientado. O pensamento medieval reforçou ainda mais a distinção entre direito natural e direito positivo, ao distingui-los segundo o critério de sua ‘instituição’, sendo este posto pelos homens (postestas populus) e aquele por algo (a natureza) ou alguém (Deus) acima dos homens. O critério instituidor encontrou espaço dentre todos os escritores da era Medieval, fossem eles filósofos ou teólogos. São Tomás de Aquino5, em sua célebre Summa Theologiae, estabeleceu diferenciação entre quatro categorias: a lex aeterna (que está na consciência de Deus e excede à razão humana), a lex divina (sendo Deus a lei de si próprio, sua medida); a lex naturalis (revelada por Deus aos homens) e a lex humana, correspondendo, as duas últimas categorias, aos conteúdos do direito positivo e direito natural. Para São Tomás de Aquino, a lex naturalis – contida pela idéia de direito natural – está entalhada na razão da criatura, do ser e participada por Deus aos homens; enquanto a lex humana é obra do homem, que faz valer, por derivação, a lei natural. Assim, a lex humana só o é enquanto derivação da lex naturalis. 4 Paulo apud BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 18-19 5 TOMÁS DE AQUINO apud BOBBIO, op. cit., p. 19-20. No pensamento moderno, entretanto, ganha cada vez mais força a polaridade entre direito natural e positivo, recebendo relevo o critério moral distintivo. Grócio6 traz reverenciada distinção entre direito natural e direito positivo em seu “De jure belli ac pacis”, afirmando ser o direito natural aquele fruto da ‘justa razão’ (ou ‘reta razão’), sendo seu objetivo mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não de acordo com a própria natureza racional do homem, e um assim ato será vetado ou comandado pela natureza, ou, como queriam alguns, por Deus, enquanto Autor da natureza. Sendo o Estado a associação perpétua de homens livres, na busca da utilidade comum, o direito positivo é então posto pelo Estado para satisfação da aclamada utilidade comum, sempre tendo em mira o que é bom e justo, como reflexo de um direito natural. Lembre-se que Platão, na Grécia Antiga, já afirmava que o homem é um ser de relação, de modo que o Estado seria conseqüência inevitável da alteridade humana. Porém, num momento histórico ainda anterior ao surgimento do Estado Moderno (fins do século XVIII), estabeleceu-se, por derradeiro, outro relevante critério distintivo entre direito natural e positivo, fundado no modus como o homem vem a conhecer as normas de um e de outro daqueles ‘direitos’. Por aludido critério, o direito natural seria conhecido pelo homem através da razão, sendo, pois, categoria a priori; e o direito positivo seria conhecido através da vontade declarada do Estado (entendido como associação de homens livres). Tais conceitos são visíveis no pensamento de Glück7. Do que se viu até aqui, cabe ressaltar que, até o fim do século XVIII – portanto, antes do surgimento do Estado Moderno – vigorou a visão dualista do direito, onde a distinção entre Direito Natural e Direito Positivo era apenas hierárquica. Na Grécia e Roma Clássicas, o Direito Natural não foi considerado superior ao Direito Positivo, nem inferior, salientando a incidência deste, segundo o critério de sua particularidade em confronto com a universalidade pregada àquele. Na Idade Média, o Direito Natural é considerado superior ao Direito Positivo, sendo as normas daquele expressões da própria vontade de Deus. Desta forma, toda a doutrina do Direito Natural, até então, tinha um caráter religioso mais ou menos acentuado; entretanto, a maior parte de seus pensadores, salvo os de cunho 6 Hugo Grócio apud BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 20-21. 7 Glück apud BOBBIO, op. cit., p. 22. eminentemente teológico, buscou distinguir o Direito Natural do Direito Divino, fundando, um ou outro filósofo, sua teoria sobre a natureza, tal como é interpretada pela razão humana. Porém, a partir do século XIX, com o estabelecimento do Estado Moderno, surge, de fato, um pensamento intitulado de ‘positivismo jurídico’, que passa a difundir uma visão monista do direito, ou seja, o pensamento segundo o qual o único Direito é o Positivo, enquanto que o Direito Natural seria outra coisa que não direito. Tal pensamento só pode consubstanciar-se em virtude do processo de monopolização da produção jurídica por parte de outra fórmula de Estado: não mais visto como mera associação de homens livres, constituintes de uma sociedade pluralista; mas de um Estado (moderno) cuja sociedade assume visível estrutura monista, não mais ditadora da produção jurídica. Desta forma, se antes os filósofos e pensadores indagavam a posição hierárquica entre Direito Natural e Direito Positivo; a partir da era moderna a questão debatida é considerar-se ou não o Direito Natural como Direito, sendo este o cenário que contrapõe, a princípio, juspositivistas (para quem não existe outro direito senão o positivo) e jusnaturalistas (vislumbrando o direito natural como autêntico direito, fundamento ou suplemento daquele). Para os positivistas não seria possível compreender o Direito através de conceitos metafísicos, já que estes, por não serem postos, mas apenas supostos, não seriam passíveis de uma verificação científica, demonstrável através de métodos empíricos. Por tal motivo, os positivistas viam na dogmática jurídica o único objeto de estudo da Ciência do Direito, eis que as normas jurídicas, por serem verificáveis, poderiam ser testadas e comprovadas através da experiência, e submetidas aos princípios de lógica tradicional. O Direito, para os positivistas, encontra sua justificação e seu valor em si mesmo, ou seja, os juízos de valor, ligados a idéia de justiça, não poderiam ser buscados fora do campo da dogmática, como fazem os jusnaturalistas, que procuram justificar o Direito através de juízos preexistentes ao próprio Direito Posto, ora ditados por Deus, ora apurados pela própria natureza humana, mas sempre de forma supostamente absoluta e imutável, permitindo-se julgar as normas jurídicas criadas pelo homem como sendo justas ou injustas, boas ou más, morais ou imorais, segundo tais juízos valorativos amparados no Direito Natural. Assim, de forma contrária aos jusnaturalistas, os adeptos do positivismo jurídico entendiam que a axiologia deveria partir da própria norma jurídica, de forma que os valores lhe seriam implícitos, ou seja, a norma positivada já traria consigo o sentido valorativo escolhido pelo homem, cabendo ao cientista jurídico apenas deduzir tais valores a partir do texto normativo. Esta idéia foi ressaltada de forma mais acentuada pela escola da exegese, para a qual não seria possível atribuir à norma jurídica a pecha de injusta, já que toda norma positivada seria sempre representativa do ideal de justiça, devendo, pois, ser seguida fielmente. Dentro desta perspectiva, ao analisar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, somos forçados a concluir que esta obra se aproxima diretamente do positivismo jurídico, posto que procura afastar da Ciência do Direito toda influência de elementos que são estranhos ao seu objeto próprio, que é a norma jurídica. O próprio princípio da pureza prestigiado por Kelsen8 afasta qualquer possibilidade de se aproximar a Ciência do Direito idealizada pelo jurista austríaco das teorias do Direito Natural, pois, Al calificarse como teoría “pura” indica que entiende constituir una ciencia que tenga por único objeto al derecho e ignore todo lo que no responda estrictamente a su definición. El principio fundamental de su método es, pues, eliminar de la ciencia del derecho todos los elementos que le son extraños. O professor de filosofia do direito, Fábio Ulhoa Coelho9, define que, [...] de um modo geral, positivista tem sido considerado tanto aquele autor que nega qualquer direito além da ordem jurídica posta pelo Estado, em contraposição às formulações jusnaturalistas e outras não formais, como o defensor da possibilidade de construção de um conhecimento científico acerca do conteúdo das normas jurídicas. Kelsen é positivista em ambos os sentidos’. Kelsen afasta-se do Direito Natural por dois pontos relevantes. Primeiramente, por entender que os postulados jusnaturalistas, apenas supostos – já que não verificáveis pela experiência por estarem sujeitos a um relativismo conceitual – escapam aos métodos científicos. Por outro lado, os juízos formulados pelos jusnaturalistas não procuravam descrever o Direito, mas justificá-lo, o que não seria incumbência da Ciência Jurídica, mas da política, ou mesmo da filosofia. Porém, apesar de entender que o único objeto possível da Ciência do Direito seria o Direito Posto, Kelsen distancia-se de vários juspositivistas que lhe antecederam, que ao propagarem a idéia de que todo o estudo jurídico deveria se pautar na dogmática jurídica, 8 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: : introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 15. 9 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 33. entendiam ser possível, através da análise exclusiva das normas jurídicas, apurar juízos axiológicos, supondo que a norma jurídica possuía um valor intrínseco, dedutível pela razão humana. Assim, da mesma forma que Kelsen não admite os juízos valorativos formulados a partir de conceitos metafísicos, também não admite como papel da ciência jurídica a axiologia da norma jurídica. Em outros termos, o princípio metodológico fundamental kelseniano afirma que o conhecimento da norma jurídica deve necessariamente prescindir daqueles outros relativos à sua produção, bem como abstrair totalmente os valores envolvidos com a sua aplicação. Considerar esses aspectos prénormativos e metanormativos implica obscurecer o conhecimento da norma, comprometendo-se a cientificidade dos enunciados formulados acerca dela. 10 Esta exclusão da axiologia do campo de estudo da Ciência do Direito, que coloca a teoria desenvolvida por Kelsen distante tanto da escola do direito natural como de vários juspositivistas de sua época, é que garante a pureza e neutralidade da ciência jurídica idealizada pelo jurista vienense, marco característico de sua obra e que, por outro lado, rendeu inúmeras críticas. 1.3 A idéia de justiça De toda a abordagem até aqui tecida, verifica-se que em toda discussão em torno do Direito Natural e do Direito Positivo – e, ainda, no pensamento juspositivista predominante na era Moderna – está presente, de forma direta ou indireta, a questão Ética que traz intrínseca a idéia de Justiça. O louvor do justo, enquanto belo (e bom) e, portanto, expressão de preocupação de cunho ético e moral, não é peculiar apenas aos filósofos que se expressaram até o surgimento do Estado Moderno e dos filósofos jusnaturalistas pós-Estado Moderno. Também os juspositivistas (aqueles que negam o direito natural como direito) ocuparam-se (e se preocuparam) com a questão da Justiça. 10 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 22. Logo, a perseguição do ideal de Justiça sempre foi o mote das teorias jurídicas, fossem elas de cunho jusnaturalista ou juspositivista. Os pregadores da existência de um Direito Natural utilizam-se da idéia de um Direito preexistente justamente para identificar no Direito Posto o aperfeiçoamento da Justiça, segundo os princípios e conceitos metafísicos amparados nesta concepção de um Direito absoluto e imutável. Grande parte dos juspositivistas, por sua vez, se empenha para deduzir da própria norma jurídica positivada um valor intrínseco, que igualmente revele o ideal de Justiça, sustentando que a Justiça estaria na própria adequação da conduta humana ao ‘dever ser’ estabelecido pelo Direito Positivo. Veja-se que a realização, ou encontro, da Justiça é preocupação dos filósofos desde a Grécia e Roma antigas, estendendo-se até nossos dias, por ser elemento necessário à convivência social harmônica e feliz. Porém, esta busca pela tão aclamada Justiça necessariamente deve passar pelo questionamento natural do que seja Justiça, como defini-la, como conceitua-la, enfim, como encontrar suas possibilidades de conhecimento pelo homem, e mesmo se tal tarefa é realmente possível. Platão afirmou que a Justiça é a virtude que mantém a harmonia geral. Olinto A. Pegoraro11, filósofo atual que escreveu em seus livros a visão de Aristóteles e Platão sobre a Ética, afirma que “[...] viver eticamente é viver conforme a justiça.” Na mesma linha platônica, Aristóteles ponderou que a Justiça é a virtude concernente às relações sociais. Para os romanos, a idéia de Justiça moldava-se no conceito de eqüidade, sendo está uma entidade superior ao jus, que exorbita da esfera jurídica e investe sobre todas as relações humanas. A Justiça, como condição que deve permear as relações sociais, também foi objeto de estudo filosófico de São Tomás de Aquino, ponderando que esta tem por escopo ordenar o homem nas suas relações com os outros homens. A filosofia tomista de cunho teológico, afirmou ser a fé, a esperança e o amor as virtudes fundamentais da revelação, que iluminam o modelo da ética humana, e considerou, por fim, a Justiça como a totalidade das virtudes, demonstrando o liame que a une à Ética. Da mesma forma, falar de Ética impõe-nos pensar na Moral, visto ser aquela a essência filosófica desta. Através das normas morais é possível praticar a virtude (ou as 11 PEGORARO, Olinto A. Ética é justiça. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 9. virtudes), cujos caminhos nos são apontados pelos princípios éticos. A Justiça, portanto, enquanto expressão do bem, é objeto da Moral e objetivo da Ética. Veja-se que as definições de Justiça expostas por vários pensadores e filósofos de todos os tempos, que trataram de forma específica ou indiretamente sobre o tema, nunca conseguiram conceituá-la em sua plenitude. O que fazem estes pensadores é traçar um perfil ideal do que seja Justiça, geralmente atrelado a outros conceitos igualmente relativos e imprecisos, carregados de subjetivismos, como a idéia de virtude, de bom ou mau, de felicidade. Isto acontece porque a idéia de Justiça é, na realidade, um juízo de valor, e, como tal, está, por vezes, atrelado à vontade, sendo apurável apenas pelo conhecimento sensorial, melhor dizendo, por um conhecimento emocional e não racional. Quando se julga que algo é bom ou mau, justo ou injusto, virtuoso ou viciado, se exprime, em verdade, uma opção pessoal, de índole subjetiva e, por isso, relativa. Para exemplificar este relativismo intrínseco à idéia de Justiça, Kelsen12 utiliza-se, em sua Teoria Pura do Direito, da comparação ente uma ordem jurídica comunista e uma ordem jurídica capitalista, assim ponderando: El que considera justo o injusto un orden jurídico o alguna de sus normas se funda, a menudo, no sobre una norma de una moral positiva, es decir, sobre una norma que ha sido ‘puesta’, sino sobre una norma simplesmente ‘supuesta’ por él. Así considerará, por ejemplo, que un ordem jurídico comunista es injusto puesto que no garantiza la libertad individual. Com ello supone, entonces, que existe una norma que dice que el hombre debe ser libre. Ahora bien, tal norma no ha sido estabelecida por la costumbre ni por el mandato de un profeta: solamente ha sido supuesta como constituyendo un valor supremo, inmediatamente evidente. También podemos colocarnos en un punto de vista opuesto y considerar que un orden jurídico comunista es justo puesto que garantiza la seguridad social. Suponemos entonces que el valor supremo e inmediatamente evidente es una norma que dice que el hombre debe vivir en seguridad. Las opiniones de los hombres divergen en cuanto a los valores que han de considerarse como evidentes y no es posible realizar todos estos valores en el mismo orden social. Es necesario, entonces, elegir entre la libertad individual y la seguridad social, con la consecuencia de que los partidários de la libertad juzgarán injusto un orden jurídico fundado sobre la seguridad, y viceversa. Por el mismo hecho de que estos valores son supuestos supremos no es posible darles una justificación normativa, ya que por encima de ellos no hay normas superiores de las cuales se los pueda considerar derivados. Son móviles de orden psicológico los que conducen al individuo a preferir la libertad o la seguridad, y tienen su fundamento en el carácter. 12 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 59-60. El que tiene confianza en si mismo optará probablemente por la libertad, y el que sufre un complejo de inferioridad preferirá sin duda la seguridad. Estos juicios de valor tienen, pues, un carácter subjetivo, porque no se fundan en una norma positiva, sino en una norma solamente supuesta por el que los enuncia. Verifica-se, portanto, que a idéia de Justiça é obtida através de juízo de valor, que, como tal, está sujeito ao relativismo próprio do conhecimento emocional, de índole subjetiva. Assim, tais juízos de valor tornam-se imprestáveis para a ciência, posto que não é dado ao conhecimento racional, um método capaz de apurar, de forma absoluta, seu completo conteúdo, tendo em vista o fato de este ser justamente um conceito relativo. Note-se que Kelsen jamais afirmou que se deve renunciar, por completo, ao postulado de que o direito deve ser justo. O que jurista austríaco conclui em sua Teoria Pura do Direito é que tal valoração não cabe à ciência. Quanto à idéia de Justiça, Kelsen reconheceu tratar-se de um valor absoluto, sendo, portanto, eterna e imutável. Contudo, tratar-se-ia de elemento irascível, ou seja, nenhuma ciência poderia determinar seu conteúdo, variável ao infinito, valendo transcrevê-lo: Además, la idea de justicia no se presenta casi nunca como un valor relativo, fundado sobre una moral positiva, establecida por la costumbre, y por esta razón diferente de un lugar a otro, de una época a outra. En su sentido propio la idea de justicia es un valor absoluto, un principio que pretende ser válido siempre y en todas partes, independientemente del espacio y del tiempo; es eterna e inmutable. Ni la ciencia del derecho positivo ni ninguna otra ciencia pueden determinar su contenido, que varía al infinito. 13 Deste modo, verifica-se que a preocupação de Kelsen não é simplesmente afastar do Direito qualquer influência da idéia de Justiça ou mesmo de outros juízos de valor. O que pretendeu Kelsen foi distanciar da Ciência do Direito a incumbência de perquirir sobre tais juízos, pela simples razão, de que tais juízos de valor são relativos e, consequentemente, não podem ser conhecidos pelos métodos da ciência – pelo menos pela ‘ciência’ tal como concebida por Kelsen, que tem por objetivo a busca de conceitos absolutos. 13 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 60-61. 1.4 O problema do conhecimento para Kelsen A influência dos debates filosóficos travados no final do século XIX e início do século XX, principalmente através do Círculo de Viena e da Escola de Marburgo, como visto, condicionou o pensamento do jurista vienense, Hans Kelsen, a indagar quais seriam as possibilidades de conhecimento científico do Direito. Tal questionamento revela-se ainda mais relevante para Kelsen, quando se constata o momento histórico vivido por este jurista, que começa a propagar seus primeiros estudos por volta do ano de 1911. Nesta época o debate filosófico de maior expressão girava em torno dos fundamentos de validade do Direito, indagando-se quais seriam as justificativas de um Direito Positivo. Diversas teorias procuravam justificar o Direito Positivo através dos mais variados pontos de vista, eis que, a todo o momento, davam-lhe enfoques sob perspectivas diferentes, erguidas com base em métodos e conceitos próprios de ciências sociais diversas, as quais não tinham comprometimento com o conhecimento exclusivo do objeto a que se propunham a estudar, qual seja, o Direito. Margarida Maria Lacombe Camargo14 define bem o momento vivido por Kelsen e as influências filosóficas que colaboraram com a criação de seu pensamento, narrando que o pensamento de Kelsen é visto como influenciado ora pelo neokantismo sudocidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo de Viena, sob o ponto de vista da filosofia e da teoria do conhecimento, citando Miguel Reale, quando descreve o verdadeiro “caos” vivido pelo Direito na segunda década do século XX, assim manifestando: “A ciência jurídica era uma cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Jurisprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.” 15 É neste cenário que Kelsen inicia a construção de uma teoria capaz de delimitar o campo de conhecimento da Ciência do Direito, tentando conferir alguma autonomia em relação às demais ciência sociais, que tentavam buscar para si a descrição, ou melhor, a justificação do Direito, porém sem êxito, na visão do jurista vienense. 14 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 15 REALE, p. 455 apud CAMARGO, op. cit., cap. 3. sub. 3.9. p. 100. Tércio Sampaio Ferraz Júnior16, em prólogo feito à obra de Fábio Ulhoa Coelho, ao se manifestar quanto à Teoria Pura do Direito, esclarece-nos que: O grande objetivo da obra foi discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica. Suas preocupações, neste sentido, se inseriam no contexto específico dos debates metodológicos do final do século XIX e que repercutiam intensamente no começo do século XX. A presença avassaladora do positivismo jurídico da várias tendências, somada à reação dos teóricos da livre interpretação do direito, punha em questão a própria autonomia da ciência jurídica. Para alguns, o caminho dessa metodologia indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e até com princípios das ciências naturais. Para outros, a liberação da Ciência jurídica deveria desembocar em critérios de livre valoração, não faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural. Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios, capazes de superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica. Foi com este propósito que Kelsen propôs o que denominou princípio da pureza, segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor transcendente). Isto valia tanto para o objeto quanto para o método. O que Kelsen identifica como princípio da pureza é sem dúvida o ponto de partida epistemológico para construção de sua ciência jurídica. Como dito pelo próprio jurista vienense: Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objetivo, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.17 Por outro lado, além do princípio da pureza, Kelsen informa-nos que todo conhecimento científico deve ser neutro, ou seja, não deve emitir qualquer juízo de valor em relação ao objeto de estudo, apenas descrevê-lo. Portanto, em seu modelo de ciência jurídica, Kelsen estabelece ao lado do princípio da pureza, a neutralidade científica, pela qual afasta da ciência a incumbência de julgar o próprio 16 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Prólogo. In: COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 15. 17 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 1. Direito, de a ele atribuir um valor ou mesmo justificar este Direito através de um juízo axiológico. Kelsen propõe, portanto, dois cortes metodológicos para definição de sua ciência jurídica: a pureza da ciência do direito, decorrente da estrita definição de seu objeto (corte epistemológico) e de sua neutralidade (corte axiológico).18 Todavia, deve ser destacado que esta segregação proposta por Kelsen, que muitos equivocadamente criticam, alegando gerar uma redução da ciência jurídica a um formalismo exagerado, não significa, como pesam tais críticos, um desprezo completo, por parte de Kelsen, dos juízos de valor e dos conceitos e proposições encontrados por outros campos das ciências sociais, que estabeleçam certo grau de conexão com o Direito. O problema para Kelsen é identificar dentre todos os campos do conhecimento jurídico, aquele que realmente possa descrever o Direito Posto, de forma racional e segundo princípios lógicos, chegando a proposições verdadeiramente científicas, capazes de serem testadas através de uma metodologia própria. Portanto, através do corte metodológico idealizado pelo jurista vienense, viabilizado através da utilização do princípio da pureza e do afastamento da axiologia da norma jurídica, Kelsen consegue separar de um lado o conhecimento científico do Direito e, de outro, a crítica filosófica deste conhecimento científico, onde se encontra toda sorte de juízos axiológicos ou de outros campos igualmente científicos. 1.5 O conhecimento filosófico – o que é Filosofia? Ao termo Filosofia foram atribuídas, ao longo da história, diversas significações e, em todas elas, é possível identificarmos alguns elementos conceituais constantes. Não há dúvidas de que a melhor definição atribuída ao termo foi aquela construída por Platão, para quem Filosofia é o uso do saber em proveito do homem. Em Platão, a Filosofia é a ‘ciência’ em que coincidem o ‘fazer’ e o ‘saber utilizar’ o que é feito, sendo pertinente a metáfora segundo a qual de nada adiantaria saber fazer fogo, se não soubesse utilizar o fogo. 18 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 22. A definição dada por Platão à Filosofia conserva-se, ao menos em essência, em todas as definições atribuídas ao termo ao longo da história, seja na definição de Descartes, de Hobbes, de Kant, de Dewey e mesmo de Wittgenstein. E a vantagem do conceito elaborado por Platão repousa no fato de nada estabelecer sobre a natureza e os limites do saber acessível ao homem ou sobre os objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Neste sentido, [...] pode-se entender esse saber tanto como revelação ou posse quanto como aquisição ou busca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se para a salvação ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a realização de retificações ou mudanças no mundo. 19 Deste modo, qualquer que seja a definição atribuída ao termo Filosofia, as idéias de posse ou aquisição de um conhecimento o mais amplo e válido possível e o uso deste em benefício do homem serão constantes. Não importa qual a corrente de pensamento filosófico seguida ou defendida, ter-se-á sempre a Filosofia como postura de inquietação e perplexidade adotada pelo homem diante do mistério e do caráter problemático do real, da vida, da natureza, do cosmos. Filosofar é uma atitude permanente e circular; é a busca da verdade última, mas não plena, posto que o filósofo sempre perseguirá a atualização e crítica desta verdade. O filósofo é um incansável! Tendo em vista a idéia pacífica – derivada da definição platônica, de que a Filosofia refere-se ao uso do saber acessível ao homem, surge a necessária fixação do juízo de validade deste saber. Aqui emergem duas tendências que atribuem, à Filosófica, significações deveras diferentes. A primeira tendência estabelece a origem divina do saber, sendo este uma revelação ou iluminação supraterrena. A validade do saber, assim, não pode ser questionada, competindo à Filosofia aproximar a verdade revelada da compreensão humana, caminho este que levaria à salvação. Note-se que o trabalho filosófico torna-se um tanto quanto limitado, posto que não pode avançar na direção da contrariedade da verdade revelada. A Filosofia, assim, trabalharia a serviço da conservação das crenças estabelecidas. O saber, como verdade revelada, é 19 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 442. absoluto, imutável. Esta via do pensamento filosófico é seguida por muitos neoplatônicos, pela Patrística e Escolástica e pelas filosófias orientais. São Tomás de Aquino, por exemplo, partindo da interpretação das obras de Aristóteles, em especial da Metafísica e de sua lógica analítica, sustentou que, com base em princípios auto-evidentes e na verdade revelada por Deus na Bíblia, poder-se-ia erguer um arcabouço de conhecimento de acordo com princípios racionais. 20 Já a segunda tendência estabelece que o saber é uma conquista ou produção do homem. À Filosofia compete a busca e organização do saber. Aqui a Filosofia não encontra obstáculos, comprometendo-se com a investigação em qualquer direção, seja para negar, reformar, manter ou atualizar tradições, mitos e crenças. Para esta tendência do saber como conquista ou produção humana, a Filosofia adquire papel de destaque, posto que condiciona o saber efetivo (o conhecimento ou a ciência) ao juízo que ela, Filosofia, emite sobre tal saber. A sujeição do conhecimento, do saber efetivo, ao juízo que dele faz a Filosofia, pode adquirir três vieses diferentes. Num primeiro viés, a Filosofia é tida como único saber possível, submetendo-se a ela as demais ciências, seja como parte, seja como elementos preparatórios. Sob este aspecto, a Filosofia é o único conhecimento possível – ou ele é filosófico ou não é conhecimento. Aqui a Filosofia é concebida como metafísica, concepção esta adotada, em especial, por Hegel e Husserl. Sob um segundo ponto de vista, o condicionamento do conhecimento ao juízo que dele faz a Filosofia é de coordenação e unificação de resultados com vistas a um conhecimento genérico. Assim, a Filosofia é concebida como positivista, sendo a concepção propagada por Bacon, Wundt e Dilthey. Por fim, uma terceira concepção da Filosofia como juízo do saber atribui-lhe a tarefa de avaliação de suas possibilidades e de seus limites em favor do homem, ou seja, identifica a Filosofia como crítica. De acordo com esta concepção, a Filosofia é vista como a doutrina do conhecimento, o que leva muitos a indagarem se, de fato, poderia ser chamada de conhecimento propriamente dito. E isto muito bem se verifica nos ensinamentos de Locke, considerado precursor de tal concepção filosófica, segundo a qual caberia à Filosofia “[...] examinar a capacidade da 20 STRATHERN, Paul. São Tomás de Aquino (1225-1274) em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. mente humana e ver que objetos estão ao seu alcance e quais os que estão acima de sua compreensão.” 21 Kant adotou esta concepção de Filosofia como crítica do saber, parecendo partir do conceito construído por Locke, designando por crítica o processo através do qual a razão empreende o conhecimento de si. Neste campo, são reconhecidas três disciplinas filosóficas: a lógica ou semiótica, referente à interpretação; a estética ou física, referente às coisas como elas são; e a ética ou prática que respeita ao modo de bem dirigir-se para consecução das coisas boas e úteis. A Escola de Marburgo foi defensora do conceito de Filosofia como crítica do saber, ressalvando seus expoentes (Cohen, Cassirer e Natorp) que a Filosofia só tem real valor quando vinculada à ciência, o que, de forma alguma, compromete sua suprema importância, a teor do pensamento platônico (de nada adianta um saber se se desconhece seu uso em favor do homem). Então influenciado pelo pensamento filosófico que dominava a Alemanha do início do século XX, Kelsen atribui um significado crítico à Filosofia como juízo do saber. Kelsen identifica, portanto, um papel relevante para a Filosofia, sobretudo quanto às indagações pertinentes ao Direito, entendendo que caberia a esta justamente a realização de juízos de valor quanto às revelações da Ciência do Direito. Assim, a ciência jurídica limitarse-ia a definir as possibilidades jurídicas pertinentes ao Direito Posto, e a Filosofia, partindo da análise destas possibilidades reveladas pela ciência, realizaria verdadeira axiologia, auxiliada por toda sorte de conhecimentos possíveis sobre o Direito. Esta conclusão é de suma importância para o entendimento da teoria desenvolvida pelo jurista vienense, pois esclarece um ponto crucial na obra de Kelsen, ignorado por seus críticos, que o atacam justamente por concluírem, de forma equivocada, que sua visão do fenômeno jurídico estaria limitada a uma análise puramente formalista do Direito. Na realidade, o que fez Kelsen foi identificar, em um primeiro momento, o que é o direito, através de uma análise puramente científica e, portanto, submetida a métodos lógicos de verificação e comprovação. E, em um outro plano de análise, de cunho filosófico, possibilitou um juízo valorativo do que foi revelado pela ciência, como sendo jurídico. Desta forma, entendendo a Filosofia como crítica do saber, Kelsen atribui a esta o papel de emitir juízos sobre o conhecimento científico revelado pela ciência jurídica, cabendo, nestes juízos de cunho filosófico, toda sorte de influências de outros campos científicos, ou 21 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 448. (grifo nosso). mesmo da aplicação de um conhecimento emocional e valorativo, o que permite ao jurista um julgamento de como deve ser o Direito. E Kelsen identifica, em sua teoria, o momento de incidência deste julgamento filosófico como sendo o de criação da norma jurídica, o que será melhor explicado no decorrer deste estudo. Mantém-se, deste modo, a pureza e neutralidade da ciência jurídica enquanto se apuram as possibilidades jurídicas dadas pelo Direito Positivo, reservando o papel de avaliar e julgar tais possibilidades à Filosofia que, por sua vez, apoiará o legislador ou o aplicador do direito no momento de criação da norma jurídica. Por outro lado, torna-se pertinente a discussão a respeito dos métodos atribuídos à Filosofia, quais sejam, sintéticos ou analíticos. As filosofias sintéticas criam conceitualmente seu objeto, o que fazem sem impor condições para tal processo criativo. Tal método sustenta que a validade de seus resultados depende exclusivamente de sua própria organização interna, dispensando a comprovação ou confirmação de tais resultados por procedimentos independentes dela. As Filosofias de Hegel e Spencer são sintéticas por excelência. “Essa concepção atribui ao procedimento filosófico a produção de seu objeto, tomando como objeto o infinito, o Absoluto ou Deus, que resolve ou anula em si todos os fatos ou todas as coisas finitas.” 22 As filosofias analíticas, por seu turno, reconhecem a existência de dados, os quais ela, filosofia, descreve ou analisa. Tais filosofias não criam seu objeto, mas buscam sua resolução nos elementos que permitem sua compreensão. A Filosofia de Kant é analítica, cuidando o filósofo em questão de diferenciar o método analítico da filosofia do método sintético da matemática. Kant asseverava que a matemática pode construir seus conceitos por dispor de uma intuição pura, espaço-temporal. Já a Filosofia não dispõe de uma intuição pura, senão de uma intuição sensível, de modo que “[...] os objetos da F. [Filosofia] devem, pois, ser dados e por isso só podem ser analisados, e não construídos, pelo procedimento filosófico.” 23 Os precedentes kantianos parecem repousar na filosofia de Locke. Importante destacar que as concepções analíticas, consideram a filosofia como atividade humana e, portanto, limitada em termos de alcance e validade. É característico a toda filosofia analítica a consideração de um ‘problema’, elemento que, se não é inexistente nas filosofias sintéticas, é, ao menos, secundário. 22 23 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 454. Ibid., p. 455. (grifo nosso). Assim, para esta concepção, parte-se inicialmente de um problema concreto, revelado de modo empírico, para depois, sobre ele, se realizar todo o esforço filosófico, emitindo juízo valorativo sobre aquilo que é conhecido, ou seja, apreendido pela razão humana. É analítica a filosofia de Wittgenstein, que a concretizou na análise lingüística do conhecimento, afirmando dever a filosofia atentar apenas ao que pudesse ser vertido em uma linguagem repleta de sentido. Assim, todo enunciado que não possuísse um sentido lógico em relação ao mundo empírico deveria ser desprestigiado. É por tal motivo que a filosofia de Wittgenstein repele os enunciados metafísicos, que, por não poderem ser verificados mediante as regras da experiência, não se traduzem em enunciados repletos de sentido, pois escapam ao que pode ser conhecido pelo homem de forma absoluta. Esta concepção filosófica analítica de Wittgenstein influenciou sobremaneira o chamado Círculo de Viena, que fez propagar as idéias filosóficas conhecidas como positivismo lógico no início do século XX, o qual, baseado nas proposições wittgensteinianas, propagava uma filosofia pautada na análise dos enunciados propostos pela experiência empírica. A Filosofia Kelseniana, como já visto, foi fortemente influenciada pelas idéias de Wittgenstein, principalmente pelo Círculo de Viena, podendo se afirmar que o jurista vienense segue uma tendência filosófica analítica. Todavia, a postura filosófica de Kelsen não chega aos extremos propostos por Wittgenstein, que afirmou, como ressaltado por Fábio Ulhoa Coelho24, que “[...] sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.” Kelsen não nega exatamente a existência de um conhecimento sentimental, emotivo, pelo qual se atribui juízo de valor a determinado objeto, através de uma razão intuitiva, apurada através dos sentidos. O que Kelsen afirma é que tais juízos não podem ser tidos como absolutos, posto que impregnado de subjetivismo, variando conceitualmente, dado o seu relativismo. Para o jurista vienense, o que não é admissível é a influência destes juízos valorativos, advindos de um conhecimento emocional, dentro de uma análise científica do Direito, que requer uma metodologia tendente a resultados absolutos e imutáveis, o que certamente não seria possível com a influência de conceitos relativos alcançados pelos juízos axiológicos, apurados através de um conhecimento sensitivo. 24 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 66. (grifo nosso). 1.6 A Filosofia e a Ciência Se para definirmos o que seja Filosofia partíssemos para uma análise do que historicamente foi reconhecido como sendo de ordem filosófica, não encontraríamos uma delimitação conceitual, pois a Filosofia se dirige para tudo o que desperta o interesse do homem, seja de natureza imaterial, metafísica ou esteja no campo dos fenômenos físicos. Basta que exista uma indagação à razão humana para que a Filosofia se empenhe em responder às dúvidas e problemas colocados diante de si. A Filosofia, portanto, é uma atividade incessante para se conquistar a razão de todas as coisas que despertam a atenção do homem, enquanto ser pensante e inquieto diante os mistérios da natureza e da própria existência. Por ser a tradução da mais alta paixão pelo saber, a Filosofia tende a não se contentar com uma solução do problema, enquanto tal solução não atinja a mais pura razão do problema enfrentado. Tal vertente da Filosofia dá-nos a idéia de uma atividade, uma ação dirigida no sentido de se buscar a verdade suprema de todas as coisas, com a finalidade de se elaborar uma universalidade de princípios que sirvam de solução para os problemas enfrentados pelo homem. E esta busca se mostra incessante, posto que a Filosofia não se limita a encontrar estes princípios universais, já que, antes disto, presta-se a criticar todo o conhecimento já adquirido e tudo o que se tem por realidade. É aqui que se distinguem Filosofia e Ciência, e isto Karl Jasper25 esclarece bem ao afirmar que o objetivo do pensar filosófico “[...] importa conduzir o pensamento empírico e racional até seus limites extremos, até o ponto em que revela suas origens.”, não se questionando, por hora, a autonomia estrutural ou validade das ciências específicas. A Ciência, por sua vez, é a construção do saber ou do conhecimento específico a certo objeto que se procura conhecer, através de métodos e pressupostos particulares, enquanto a Filosofia é crítica de pressupostos. Toda Ciência possui uma construção lógica, que parte de pontos delimitados e de determinados pressupostos ou dados, que se tomam como pontos de partida e condição de validade do conhecimento, o que corresponde a um corte metodológico no campo do 25 JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1980. p. 11. (grifo nosso). conhecimento, para focar estritamente o objeto a ser conhecido, com forte rigor técnico e metodológico. A Filosofia em relação à Ciência vai justamente problematizar os pressupostos tomados como válidos para indagar sua real pertinência, surgindo a Filosofia, nesta hipótese, como crítica do conhecimento científico. Todavia, o trabalho do filósofo assemelha-se em muito ao do cientista na busca pelo conhecimento, visto que ambos procuram coordenar sua razão para apuração de um conhecimento, podendo a filosofia ser considerada, dentro desta concepção, como ciência em sentido amplo. O que distingue, entretanto, de forma categórica, a Filosofia da Ciência propriamente dita, da Ciência positiva, é a característica desta última se organizar como um conjunto de conhecimentos dotados de certeza, já que fundados em relações objetivamente confirmadas através de métodos de verificação sujeitos a uma validade universal, mas não permanente. Pertinente faz-se o conceito atribuído à Ciência por Luís Alberto Warat e Rosa Maria Cardoso da Cunha, rememorado por Nicolau Apóstolo Pítsica e Diogo Nicolau Pítsica26, que: [...] apresentam um conceito muito particular de ciência; como sendo ‘uma série de proposições agrupadas tematicamente, através de esquema organizativo, constituído a partir de princípios lógicos que fundamentam’, a saber: a) verdade b) coerência ou consistência c) dedutibilidade d) decibilidade ou exaustividade. Esta distinção é bem ressaltada pelos positivistas, para os quais às Ciências positivas caberia o papel de descobrir o conhecimento através da experiência e dos métodos de validade sistêmica, restando à Filosofia a incumbência de organizar os resultados apontados pela Ciência, ou mesmo aos seguidores do criticismo kantiano, para os quais a Filosofia se preocuparia com a indagação sobre a validade dos pressupostos e resultados da Ciência positiva. Assim, competiria à Filosofia um juízo de valor sobre o conhecimento revelado pela Ciência. É justamente procurando delimitar estes campos de incidência distintos entre a Filosofia e a Ciência, que Kelsen constrói toda a base de sua Teoria Pura do Direito, na qual pretendeu, e de certa forma conseguiu com êxito, distinguir do campo de todo o saber, que é a Filosofia, aquilo que se poderia conhecer sobre o Direito, de forma científica. 26 PÍTSICA, Nicolau Apóstolo; PÍTSICA, Diego Nicolau. Introdução à ciência jurídica de Hans Kelsen. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 13. Constata-se perfeitamente esta intenção na obra do jurista vienense, quando este realiza o corte metodológico, proposto através da adoção, como método epistemológico, do princípio da pureza e da neutralidade atribuída ao seu modelo de ciência jurídica. Ora, o que fez Kelsen, através deste corte metodológico, foi retirar do campo do conhecimento filosófico, no qual se encontra toda sorte de juízos e proposições sobre o Direito, aquilo que poderia significar, em termos científicos, o que realmente possa ser identificado como Direito, para depois devolver este conhecimento científico aos juízos próprios da Filosofia. Nas palavras do próprio jusfilosofo, o que se pretendeu com a Teoria Pura do Direito foi aproximar, por em estreito contato a província longínqua da ciência jurídica com o frutífero centro de todo conhecimento, que é a Filosofia. 27 1.7 As origens da Filosofia do Direito e da Ciência do Direito A Filosofia, assim exposta, busca conhecer todas as coisas que interessam ao homem, dirigindo seus esforços para descobrir a verdade em tudo que existe e, até mesmo, as razões da própria existência. Dentro desta perspectiva, o homem e suas relações com seus semelhantes destacam-se como as maiores preocupações da Filosofia, desde a Idade Antiga até os dias atuais. A Filosofia, portanto, sempre indagou os princípios causais ou as razões que guiam a ação humana, de forma a permitir um convívio social harmônico. Neste contexto, é possível perceber que, desde o momento em que o homem se organizou em sociedade, necessariamente apareceram as primeiras regras de conduta, estabelecendo direitos e obrigações ao homem, impondo limites à liberdade individual para permitir o convívio em sociedade. Tais regras, antes implícitas e de cunho moral, começam, então, a serem ditadas por esta sociedade, adquirindo força coercitiva, dando, assim, origem ao Direito. O Direito passa a existir como realidade nas organizações sociais, desde as origens das civilizações humanas, tornando-se, a partir de então, objeto de árduo estudo dos filósofos, que 27 CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 35. sempre procuraram definir suas origens, seus motivos de existência, bem como os fundamentos que lhe asseguram o respeito social, e, antes de tudo, seus fins supremos. Ao lado da Moral, o Direito passa a receber justificativas de existência que tinham, inicialmente, um conceito ligado diretamente à noção de Justiça, do bem e do mal, e, sobretudo, de princípios naturais que regem o homem. É por tal motivo que a Filosofia antiga sempre procurou traçar suas formulações teóricas sobre as normas jurídicas atrelando-as ao justo, numa tentativa dar fundamentação aos comandos impositivos e obrigatórios ditados pelo homem, através de uma correlação a ditames pré-existentes, sejam apontados pela natureza, por uma divindade, ou pela própria razão humana. Após um crescente amadurecimento histórico é que a Filosofia, que até então se referia ao Direito de forma implícita, ao lado de normas morais, passa a focar estritamente seu objeto de estudo, o Direito e sua relação com o fato jurídico concreto. É aqui que se observa o surgimento de uma Filosofia do Direito, ciente de seus limites próprios, de suas indagações particulares às normas jurídicas e de suas correlações com as ações humanas e as relações sociais. A preocupação da Filosofia do Direito passa a ser a de justificar a existência do próprio Direito, de um lado esbarrando na existência de um suposto Direito Natural e, de outro lado, na força do Estado como ente criador do Direito, a despeito de suas determinações pré-existentes. É neste momento que surge uma distinção de idéias entre os filósofos do direito, quanto às origens e pressupostos de existência das normas jurídicas, que ensejará na dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Porém, até então, ambas as correntes filosóficas do pensamento jurídico, diga-se, tanto as teorias do Direito Natural como as teorias juspositivistas, procuravam justificar o Direito, definindo sua validade, através da análise de seu conteúdo, atribuindo-lhe juízos de valor, ora amparados na noção de uma justiça pré-existente, ora afirmando que a norma jurídica trazia em si o ideal de justiça almejado pelo legislador e aceito como verdadeiro pelo Estado. Desta feita, tal conteúdo valorativo não podia ser buscado fora da própria dogmática, cabendo ao intérprete da norma a dedução racional de aludido valor. Neste momento, ambos os enfoques dados pelas escolas do Direito procuravam dar a este uma valoração, ou seja, emitiam sobre o direito um juízo axiológico, preocupando-se em apontar como deveria ser o direito e não como ele realmente era. Todavia, o papel de descrever o Direito da forma como é apresentado, procurando conhecer as relações existentes entre as normas jurídicas, o modo de criação do direito, bem como os princípios e métodos de compreensão do fenômeno jurídico, passou a exigir um esforço dos juristas no intuito de encontrar um modo racional de realizar tal operação de conhecimento. Assim, embora já tenhamos, desde os romanos, uma fundação sistemática de uma ordem normativa, com uma metodologia de codificação e uma estrutura racionalmente ligada por princípios, podemos observar uma crescente evolução de uma ciência própria do direito, a partir do momento em que as normas jurídicas são vistas como foco de um exame epistemológico, tencionando encontrar seus princípios de validade. Nesta perspectiva de estudar o Direito com uma visão estritamente científica, encontrando bases sólidas de fundamentação da validade das normas jurídicas, é que alguns pensadores rechaçam a prevalência do Direito Natural como pressuposto de validade das normas jurídicas, encontrando nestas mesmas e nos fatos jurídicos os únicos objetos suscetíveis do conhecimento científico, surgindo, assim, o positivismo jurídico, que se propõe a encontrar as bases do Direito no próprio Direito Positivo, nas normas jurídicas postas. É justamente neste ponto que se enquadra o perfil de ciência de Hans Kelsen. A proposta do mestre de Viena é justamente encontrar métodos científicos para se conhecer o que é o direito e como ele se apresenta, colocando, pois, como objeto único da Ciência do Direito, as normas jurídicas. Seguindo esta proposta, Kelsen vai além do positivismo vigente em sua época, ao propor um verdadeiro corte metodológico, visando extrair do universo de todo o conhecimento dirigido ao Direito aquilo que poderia ser cientificamente apurado. Este corte metodológico, conforme será visto adiante, importa em definir os métodos e princípios próprios da Ciência do Direito, isolando-a de outras formas de conhecimento relacionado ao Direito, que sejam apurados por métodos próprios de outras ciências. Em seu modelo de ciência jurídica, Kelsen afasta ainda a possibilidade se realizar dentro da ciência juízos de valor quanto às normas jurídica, posto que tais juízos axiológicos possuem uma carga de relativismo, que não se amoldam às exigências de certeza e precisão dos enunciados científicos. Importa destacar, desde já, que ao realizar o corte metodológico acima referido, Kelsen não pretende negar as outras formas de conhecimento científico ou valorativo sobre o Direito, mas tão somente retirá-los do campo de estudo da ciência jurídica, deixando margem para que estas outras formas de saber sejam empregadas como crítica às proposições encontradas pela ciência, como típico papel de uma filosofia do direito. Kelsen, portanto, identifica que o conhecimento científico somente pode emitir juízos de validade sobre o Direito, enquanto caberia à filosofia emitir juízos de valor sobre as proposições jurídicas encontradas pela ciência, em verdadeira crítica ao saber, com toda a sua carga ideológica e valorativa própria da filosofia, que se vale de todo tipo de conhecimento possível para emitir seus juízos, inclusive o revelado por outras ciências. Norberto Bobbio explica bem esta diferença entre o conhecimento científico e o conhecimento filosófico sobre o Direito, marcante na obra de Kelsen, ao dispor que: A distinção entre juízo de validade e juízo de valor veio a assumir a função de delimitação das fronteiras entre ciência e filosofia do direito. A atitude do juspositivista, que estuda o direito prescindindo de seu valor, fez refluir à esfera da filosofia a problemática e as presquisas relativas a isso. O filósofo do direito não se contenta em conhecer a realidade empírica do direito, mas quer investigar-lhe o fundamento, a justificação: e ei-lo assim colocado diante do problema do valor do direito. A filosofia do direito pode, consequentemente, ser definida como o estudo do direito do ponto de vista de um determinado valor, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir no direito vigente. Temos assim duas categorias diversas de definições do direito, que podemos qualificar, respectivamente, como definições científicas e definições filosóficas: as primeiras são definições factuais, ou avalorativas, ou ainda ontológicas, isto é, definem o direito tal como ele é. As segundas são definições ideológicas, ou valorativas, ou deontológicas, isto é, definem o direito real tal como deve ser para satisfazer um certo valor. 28 Assim, ao separar o conhecimento científico do conhecimento filosófico sobre o direito, Kelsen não atribui à Filosofia do direito um papel de extrema importância, que seus críticos parecem não ter entendido, que é exatamente a tarefa de julgar o direito criado pelos homens, exercendo verdadeira crítica sobre este objeto do conhecimento, de forma a influenciar decididamente sobre o ato criador do direito. 28 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 138. (grifo do autor). 1.8 O criticismo de Kant O criticismo que marcou a filosofia do final do século IX e foi fortemente retomado no início do século XX, pelos pensadores da chamada Escola de Marburgo, influenciou nitidamente a obra de Hans Kelsen, principalmente quanto à sua intenção de criar uma ciência estritamente jurídica, com seus métodos próprios de conhecimento do Direito Posto. Nas palavras do jusfilósofo brasileiro Miguel Reale29, O criticismo, lato sensu, implica sempre um estudo metódico prévio do ato de conhecer e os modos de conhecimento, ou, por outras palavras, uma disposição metódica do espírito no sentido de situar, preliminarmente, o problema do conhecimento em função da correlação ‘sujeito-objeto’, indagando de todas as suas condições e pressupostos. Não poucas vezes o termo criticismo nos remete, automaticamente, a Kant, sendo certo que, muitas vezes, criticismo e kantianismo aparecem como expressões sinônimas. Isto porque a Filosofia, como crítica do saber, teve seu maior expoente em Kant, que indubitavelmente foi um dos maiores filósofos de todos os tempos e contribuiu decisivamente para a construção de uma sistematização metodológica de apuração do conhecimento, a qual iria influenciar não só Kelsen, como também muitos outros pensadores a partir de então. O filósofo prussiano inicia uma tentativa de passar à prova todo conhecimento para que se pudesse obter a resposta de como se chegar, com uma validade científica, à verdade ou, pelo menos, a afirmações verdadeiras. A preocupação de Kant em relação ao saber é responder a estas três indagações primordiais: o que eu sei; o que devo saber; o que devo esperar. Porém, a resposta às duas últimas perguntas depende da primeira, pois somente sabendo o que realmente conhecemos é que podemos apurar nosso dever e nosso destino. Com a finalidade de encontrar o real conhecimento, Kant constrói seu pensamento filosófico com base em alguns conceitos aristotélicos de juízo, definindo que toda proposição ou juízo lógico consiste num sujeito do qual se diz algo, e um predicado, este último aquilo que se diz do sujeito. Apoiado, ainda, em conceitos aristotélicos, Kant30 classifica os juízos em analíticos e sintéticos. Os primeiros são sempre verdadeiros, pois simplesmente revelam predicados que o 29 30 REALE, Miguel. Introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 81. (grifo do autor). IMMANUEL, Kant. Critica de la razón pura. México: Taurus, 2006. próprio sujeito já contém. Tais juízos analíticos são sempre a priori, não passando de um simples processo de análise, que independe da confirmação pela experiência. Em tal proposição analítica o predicado está contido no sujeito, como na afirmação: “O cavalo branco é cavalo”. O juízo aqui é a priori, pois não será necessário recorrer à experiência para se saber que o cavalo é cavalo. Por sua vez, os juízos sintéticos atribuem um predicado ao sujeito que não se pode apurar pela análise tão somente do próprio sujeito, posto que resultam da união (síntese) de um predicado ao conceito do sujeito, como na seguinte afirmação: “O cavalo é branco”. Segundo os aristotélicos tal juízo seria sempre a posteriori, pois somente após se recorrer à experiência é possível constatar que o cavalo é branco, porque a qualidade de ser branco não é obtida pela simples identificação do sujeito como sendo cavalo. Todavia, em sua obra “Crítica da razão pura”, Kant31 identifica a possibilidade de juízos sintéticos a priori. Este, sem dúvida, foi o principal passo dado pelo filósofo prussiano para o avanço da filosofia de sua época, o que influenciou todo o pensamento moderno. Kant aponta que os juízos sintéticos tomados como fundamentos do conhecimento científico, que se baseia na observação da experiência, transformam-se em juízos que pretendem ser verdadeiros a todo o momento. Ou seja, olhando para as revelações da experiência constroem-se juízos através da chamada intuição sensível, os quais, uma vez apurados, são tidos de forma a priori quando a razão é colocada novamente diante o objeto do conhecimento. É, pois, esta intuição sensível, introduzida conceitualmente por Kant, que permite ao homem conhecer e construir, através da razão, proposições sintéticas a priori, atribuindo predicados lógicos a determinados sujeitos, ou melhor, aos objetos do conhecimento. Tal inovação introduzida por Kant soluciona algumas contradições existentes na Filosofia pregada até então, que por um lado afirmava que todo o conhecimento emana de conceitos metafísicos, de origem divina ou racional, sendo tais conceitos sempre a priori, posto que revelados ao homem ou apurados diretamente pela razão humana, sem, contudo, explicar, como feito por Kant, como seria possível um juízo sobre todas as coisas sem qualquer apoio na experiência; por outro lado, contrapunha-se à filosofia positivista, de cunho puramente empírica, pela qual todo conhecimento somente é possível por meio da experiência, o que limitava a razão humana apenas ao campo da observação e apreensão dos sentidos. 31 IMMANUEL, Kant. Critica de la razón pura. México: Taurus, 2006. Assim, os juízos sintéticos a priori idealizados por Kant, permitiam ao homem conhecer determinados objetos, atribuindo-lhes predicados racionalmente esperados, posto que decorrentes da dedução lógica de um prévio conhecimento já adquirido pelo homem, o que Kant chamava de um juízo de lógica-transcendental. É justamente esta idéia de juízo de lógica-transcendental que permite a construção de um juízo sintético a priori sobre determinado objeto, que possibilitou a Kelsen formular sua premissa de validade do sistema jurídico, conhecida como norma hipotética fundamental. Veja-se que este conceito criado por Kelsen se ampara em uma dedução lógica de que se determinada coletividade constitui um Estado para reger suas condutas, todos os indivíduos pertencentes a este mesmo Estado aceitam suas normas como válidas, conformando-se aos seus ditames. Mas Kant não parou por aí. O grande filósofo inovou também o pensamento de sua época quando trouxe à Filosofia a força do método, criando suas categorias, ou juízos categóricos, através dos quais era possível conhecer profundamente o objeto, sintetizando os dados da experiência. Certamente, esta idéia de apuração de conhecimento por métodos próprios também teve seu papel de destaque na formação do pensamento kelseniano sobre a necessidade de se identificar os parâmetros epistemológicos de uma ciência jurídica, através da realização de um corte metodológico sobre todo o conhecimento filosófico referente ao Direito. CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA PURA DO DIREITO 2.1 O método científico adotado As influências do pensamento filosófico predominante no início do século XX, propagado principalmente pelos filósofos do Círculo de Viena e da Escola de Marburgo, sem dúvidas direcionaram Hans Kelsen a procurar, dentro do universo do conhecimento jurídico, aquilo que realmente poderia ser conhecido pelo homem, com o máximo grau de certeza, para que se pudesse fazer nascer uma verdadeira Ciência do Direito, com seus pressupostos de validade perfeitamente identificáveis e submetidos à prova, a exemplo das demais ciências específicas. Esta busca de Kelsen pela criação de uma ciência que realmente pudesse revelar o que seja o Direito e como ele se apresenta deve-se ao fato de não se ter, até então, uma metodologia científica capaz de responder a tais indagações, com uma certeza própria das ciências propriamente ditas, cujas proposições pudessem ser postas à prova, através de seu enquadramento aos postulados da lógica tradicional. Ou seja, uma metodologia científica capaz de formular enunciados descritivos de seu objeto, o Direito, passíveis de serem avaliados como verdadeiros ou falsos. Para conclusão de seu intento, Kelsen identifica que a filosofia ou mesmo as ditas ciências jurídicas que pretendiam analisar o Direito, na realidade não se preocupava em descrever com precisão seu objeto de estudo, mas sim justificá-lo, realizando verdadeiros juízos de valor e não juízos de fato, como seria o esperado de uma ciência propriamente dita, que se deve dirigir ao campo da realidade. Até este momento, os estudiosos do Direito procuravam identificar a validade da norma através de seu conteúdo, questionando se este era justo ou injusto, bom o mau, ético ou não, procurando deduzir da própria norma jurídica tal juízo axiológico (juspositivistas), ou, como faziam os teóricos do Direito Natural, tentando formular tais juízos de valor através de uma intuição, pautada em um juízo a priori sobre o enquadramento do conteúdo normativo a preceitos preexistentes ao próprio Direito, supondo a existência de tais preceitos de ordem metafísica. Todavia, os valores que se atribuem a um objeto de estudo elegem-se a partir da intuição ou da vontade do homem, não podendo, segundo Kelsen, identifica-los como absolutos, posto serem dados segundo um conhecimento emocional e não racional, sendo, pois, relativos, já que não são passíveis de prova e nem de uma conceituação permanente. Nas palavras do próprio jurista vienense, “[...] los juicios de valor, en cambio, son subjetivos en si porque se basan, en último término, en la personalidad del individuo que juzga y en el elemento emocional de su conciencia. 1 O professor Albert Calsamiglia2, explica-nos que, Según el relativismo axiológico, los criterios de valor últimos y supremos son elegidos por la voluntad del hombre o descubiertos mediante la fe o la intuición, pero no pueden ser probados por la Ciencia. Para esta doctrina, la Ciencia es incapaz de elegir entre valores supremos contradictorios. Este relativismo axiológico é um dos grandes desafios que o jurista vienense enfrentou, decididamente, em sua obra, ao propor uma ciência jurídica pautada em um princípio de neutralidade. O relativismo com que enxergava os pressupostos filosóficos do direito natural e seus princípios metafísicos, bem como o próprio conceito de moral e justiça, fez com que Kelsen identificasse as normas postas como único objeto possível de uma ciência jurídica, seguindo, neste aspecto, as influências do positivismo jurídico que crescia muito à sua época. Esta afirmação é confirmada por Arnaldo Bastos Santos Neto3, ao nos informar que, O relativismo surge na obra kelseniana como um problema epistemológico, o ponto de partida para determinar aquilo que se pode conhecer, ou seja: quais os limites de uma ciência jurídica em sentido estrito. Na impossibilidade de fundamentar o ordenamento com base em juízos de valor ou conceitos absolutos de justiça, Kelsen opta pela sua descrição formal. Foi dentro desta idéia de se evitar o relativismo de conceitos axiológicos que Kelsen criou sua chamada “Teoria Pura do Direito”, através da qual procurou isolar o conhecimento do direito de toda sorte de especulações valorativas. Para o professor Albert Calsamiglia, La “Teoría pura del Derecho” pretende poner fin al caos del ideologismo en la Ciencia Jurídica. La alternativa a esta situación es la construcción de una teoría jurídica que sea objetiva y neutral. Una teoría que no sirva – como todas las tradicionales iusnaturalistas y positivistas – para justificar un poder 1 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 255. CALSAMIGLIA, Albert. Estúdio preliminar. In: KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 10. 3 SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. Para reler Hans Kelsen. In: MARIN, Jeferson Dytz. (Coord.). Jurisdição e processo: efetividade e realização da pretensão material. Curitiba: Juruá, 2008. p. 96. 2 determinado ni una ideologia determinada. El objetivo básico de la “Teoría pura del Derecho” es la construcción de un esquema de interpretación de la realidad jurídica que sea independiente de la ideologia concreta que anima al poder. 4 Por sua vez, igualmente com objetivo de retirar o relativismo conceitual da ciência jurídica é que Kelsen afasta as influências de outras ciências ou outros campos do conhecimento filosófico. Estes últimos, pelo mesmo princípio do relativismo, não poderiam ajudar na investigação do que seja o direito, posto que cada ciência tem seu campo de visão direcionado para uma determinada faceta do conhecimento, chegando sempre a conclusões diversas, conforme o ponto de vista da ciência adotada. Neste aspecto, Kelsen tenta evitar um sincretismo conceitual dentro da ciência jurídica, o que impediria de se chegar a proposições verdadeiramente científicas, ou seja, enunciados permanentemente válidos segundo uma lógica tradicional. Isto acontece porque, ao submeter o estudo do direito aos vários aspectos científicos possíveis, ou seja, ao permitir que o Direito seja identificado através de uma múltipla abordagem, segundo a ótica inerente a cada ciência específica, como a psicologia, a ética, a sociologia, a política, dentre outras que mantêm uma conexão com o Direito, certamente se obtém respostas igualmente múltiplas e, portanto, desprovidas de um caráter unitário próprio das ciências. O professor Paulo de Barros Carvalho5, salienta que, É certo que o mesmo objeto – um dado sistema jurídico-normativo – pode suscitar várias posições cognoscitivas, abrindo campo à Sociologia Jurídica, à Ética Jurídica, à História do Direito, à Política Jurídica e, entre outras, à Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica. Esta última investiga a natureza do ser jurídico, firmando-se como uma atividade intelectual que postula conhecer de que maneira se articulam e de que modo funcionam as prescrições normativas. Importa acentuar que as diversas propostas cognoscentes do direito positivo (História do Direito, Sociologia Jurídica, Antropologia Cultural do Direito, Dogmática Jurídica etc.) têm, todas elas, a mesma dignidade científica, descabendo privilegiar uma, em detrimento das demais. Mas há um ponto que não deve ser esquecido: a cada uma das ciências jurídicas corresponde um método de investigação, com suas técnicas especiais de focalizar o objeto. A Teoria Pura do Direito idealizada por Kelsen procurou construir uma ciência puramente focada em seu objeto de análise, qual seja: o Direito Positivo. Neste sentido, fundou uma ciência estritamente normativa, na qual se percebe o Direito como ordem hierárquica, onde uma norma 4 5 CALSAMIGLIA, Albert. Estúdio preliminar. In: KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 8. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 12-13. possui sua validade não porque seja justa ou porque seja condizente com um enunciado de direito natural, de origem divina ou metafísica, mas simplesmente por estar ligada a normas superiores que lhe dão validade, em uma escala finita, culminando em uma norma fundamental. Segundo nos indica Nicolau Apóstolo Pítsica e Diogo Nicolau Pítsica6, Para Kelsen, a autonomia da Ciência Jurídica requer a libertação de todos os elementos que lhe são estranhos. A Ciência do Direito apenas constrói um conhecimento que responde o que é e como é o Direito, sem procurar explicitá-lo, transformá-lo, justificá-lo, nem desqualifica-lo, a partir de pontos de vista que lhe são alheios. Essa é a exigência metodológica fundamental que cientificamente define o sentido da idéia de pureza. [...] [...] Para Kelsen, o postulado de pureza fundamenta as condições de positividade da Ciência do Direito. A Teoria Pura se apresenta como um programa para elaboração de um saber jurídico, autônomo e auto-suficiente ou, ainda, um conhecimento baseado em uma análise metodológica imanente que exclui as referências de fatores e saberes extra-jurídicos. Ao propor uma análise normativa do direito positivo, sem qualquer influência dos pressupostos ontológicos do direito natural ou de qualquer princípio metafísico que o justificasse, separando o campo de conhecimento do direito de qualquer outra ciência, Kelsen fez surgir uma verdadeira ciência jurídica, cujo espectro de análise pretendeu indicar apenas o que seja e como é estruturado o Direito. O princípio da pureza e a neutralidade atribuídos por Kelsen à ciência jurídica, não procuram justificar o Direito ou creditar-lhe validade sob o ponto de vista da valoração da conduta humana. Antes disto, buscam extrair do próprio conjunto normativo, hierarquizado sistematicamente, a sua própria validade formal, sem nenhuma preocupação de conformar o direito à justiça ou à ética, sendo tais juízos relativos para Kelsen. Assim, impede-se dar ao direito uma justificação absoluta, como queria a filosofia do direito tradicional ou mesmo a ciência jurídica até então. Dentro deste contexto, Kelsen identifica que o papel da ciência jurídica é o de apontar as possibilidades de conhecimento do Direito como ele é, enquanto a indagação quanto ao que deva ser o direito caberia a qualquer campo de estudo da filosofia ou das demais ciências, não interessando diretamente para a ciência jurídica. En lo referente al âmbito del Derecho, Kelsen representa para Ortega, sin lugar de dudas, el modelo de jurista-bárbaro empenado en buscar la depuración que le sean extraños. El objetivo de esa pureza metódica no es otro que evitar a toda costa que la jurisprudência pueda ser confundida con otras ciencias o contaminada por pressupostos sociales, éticos o políticos. La Ciencia del 6 PÍTSICA, Nicolau Apóstolo; PÍTSICA, Diego Nicolau. Introdução à ciência jurídica de Hans Kelsen. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 21. Derecho tiene como principal objeto de estudio al Derecho en si, y pretende responder a la cuestión de que y cómo es el Derecho en cuanto estructura autorreferente, autosuficiente y autocoherente, no a la pregunta de cómo debe ser o cómo deber ser hecho el Derecho. 7 Kelsen constrói, assim, uma ciência puramente jurídica, pela qual se torna possível a análise do Direito com seus princípios próprios, sem apelo para definições introduzidas por outras ciências, ou pressupostos de validade estabelecidos pela filosofia, pela metafísica ou por um suposto Direito Natural. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho8, “Kelsen está preocupado basicamente com o conhecimento do direito e os meios, cautelas e métodos a serem utilizados para assegurar-lhe o estatuto científico.” Todavia, se de um lado a obra de Kelsen foi e é até hoje considerada um marco decisivo na evolução do estudo científico do Direito, por outro não faltaram críticos ferrenhos que o acusavam de criar um formalismo vazio de conteúdo, um reducionismo que não contemplava as dimensões sociais e valorativas, capaz de aceitar como jurídico qualquer tipo de poder, até mesmo o nazismo. O professor Tércio de Sampaio Ferraz Júnior9, em prólogo à obra de Fábio Ulhoa Coelho, ressalta que, “[...] a redução do objeto jurídico à norma causou inúmeras polêmicas. Kelsen foi continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimensões sociais e valorativas, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos.” Estas críticas recebidas por Kelsen após a publicação de sua principal e mais polêmica obra não levaram em consideração a totalidade do pensamento do jurista austríaco, considerando isoladamente a Teoria Pura do Direito, sem a correlação necessária com as idéias políticas de Kelsen, certamente chegando a uma interpretação incorreta de sua obra, como se tentará demonstrar no presente trabalho. Kelsen não pretendeu afastar do fenômeno jurídico as influências de outros campos científicos, ou mesmo de uma filosofia axiológica, que indague sobre a busca do ideal de Justiça. O que pretendeu o jurista vienense foi, em um primeiro momento, apurar o que é jurídico, na forma em que está positivado, para depois entregar a esta filosofia, aliada a todo o conhecimento correlato ao Direito, o papel de julgar as proposições normativas apresentadas pela ciência, de forma amplamente crítica, porém sem a função de justificar o Direito. 7 LLANO ALONSO, Fernando H. Las glosas de José Ortega y Gasset a Hans Kelsen. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Milano, serie 5, anno 83, n. 3, p. 413, luglio/sett. 2006. 8 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 21. 9 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Prólogo. In: COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 15. (grifo nosso). Neste sentido, Nicolau Apóstolo Pítsica e Diogo Nicolau Pítsica10 advertem que, Ora, essa afirmação de que a Ciência do Direito deve preocupar-se com a explicação do domínio normativo, não recusa a idéia de que o Direito possa ser analisado a partir de diferentes prismas. Kelsen considera válida a multiplicidade de abordagens sobre o fenômeno jurídico. Exigia apenas que a complementariedade externa não comprometesse a formulação do critério deliberativo para as proposições da Ciência Jurídica. Por sua vez, Calsamiglia11 também adverte que, El primer punto a destacar es que Kelsen no niega la existencia de diversas fórmulas de Justicia. Lo que si niega es que exista una fórmula de Justicia absoluta válida para todo tiempo y lugar, inmutable, única y universal. Para él, existen varias fórmulas de Justicia que pretenden valer y están en competencia. La Ciencia, con sus métodos y resultados, es incapaz de decidir, entre las diversas fórmulas de Justicia, cuál es la justa. La Ciencia, según Kelsen, no es capaz de resolver la cuestión del comportamiento justo. A preocupação de Kelsen, portanto, é puramente epistemológica, dirigindo-se à possibilidade de conhecer o Direito de uma forma cientifica, através de métodos tendentes a uma certeza unitária e absoluta. Desta forma, cabe à ciência apenas definir as regras do jogo, apresentando as proposições normativas possíveis diante o Direito Posto. Porém, como se verá mais adiante, uma vez apuradas as proposições normativas pela ciência jurídica, Kelsen atribui à autoridade política, aplicadora do Direito, a tarefa de realizar um verdadeiro juízo de valor sobre tais proposições. Tal juízo de valor certamente será influenciado por toda forma de conhecimento científico ou filosófico, de cunho racional ou emocional, metafísico, enfim, todo e qualquer conhecimento que se relacione com o Direito. Desta forma, atribui-se ao criador da norma jurídica a incumbência de julgar o Direito como justo ou injusto, bom ou mau, ético ou não, no momento de optar entre as possibilidades jurídicas reveladas pela Ciência do Direito, que Kelsen denomina como molduras jurídicas ou regras de direito, conforme será melhor explanado no decorrer deste trabalho. No entanto, mesmo cientes de que Kelsen não nega a possibilidade de aplicação de um verdadeiro juízo de valor no momento de criação da norma jurídica, vários críticos de sua obra continuaram seus ataques, sustentando que a proposta idealizada pelo professor de Berkeley, ao retirar o valor da norma e o transferir para a autoridade competente para criar o direito, acabou por 10 PÍTSICA, Nicolau Apóstolo; PÍTSICA, Diego Nicolau. Introdução à ciência jurídica de Hans Kelsen. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 19. 11 CALSAMIGLIA, Albert. Estúdio preliminar. In: KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 11. abrir espaço para que o Direito seja impregnado por qualquer tipo de ideologia política, seja ela boa ou má. Neste aspecto, Albert Calsamiglia12, sintetiza bem as críticas recebidas por Kelsen, escrevendo o seguinte: Lumia escribe: “Se ninguna ideologia puede justificarse a si misma en un plano racional y cientifico, todas las ideologias terminan de hecho por aparecer, en dicho plano, como equivalentes: el cristianismo y el nazismo, el capitalismo y el comunismo. Dado que la decisión entre una y outra se confia en última instancia a una reacción emotiva que se produce en una esfera anterior a lo racional, no resulta ni posible ni razonable condenar esa elección, incluso si la elegida es la ideologia nazi.” Lumia señala que Kelsen es un escéptico porque racionalmente no hay ninguna posibilidad de elección entre las idéias de Justicia contradictorias y porque, según él, Kelsen valora del mismo modo las diversas ideas de Justiça. Vejam que o equívoco destes críticos é acreditar que o Direito poderia dar conta de se auto-revelar como justo ou injusto, como se dissesse por si o que realmente deve ser o direito. O que pretendem, talvez sem ter consciência disto, é encontrar no próprio Direito as convicções subjetivas animadoras de seu espírito, quanto ao que seja a aclamada Justiça. O que Kelsen faz, na realidade, é acabar com a ilusão sustentada por muitos, de que seria possível extrair um valor absoluto das normas jurídicas ou mesmo a partir delas. O próprio professor Calsamiglia rebate a contento estas críticas recebidas por Kelsen e resumidas aqui na expressão de Lumia13, senão vejamos: La crítica de Lumia es una buena muestra de las múltiplas incomprensiones y críticas de que ha sido objeto el relativismo axiológico. Como primer punto, podríamos señalar que Kelsen no niega la existencia de diversas fórmulas de Justiça. Buena prueba de ello la tenemos en el artículo “¿Qué es Justicia?”, en el cual el jurista vienés escribe: “El punto de vista según el cual los princípios morales constituyen sólo valores relativos no significa que no sean valores. Significa que no existe un único sistema moral, sino que hay vários, y que hay que escoger entre ellos. De este modo el relativismo impone al individuo la ardua tarea de decidir por si mismo qué es bueno y qué es malo”. Justamente por tirar da ciência jurídica o papel de valorar o conteúdo ético da norma jurídica é que Kelsen possibilita que o debate sobre tal conteúdo seja levado à mais ampla discussão, que é a filosófica, atribuindo ao homem a tarefa de julgar se tal conteúdo é justo ou 12 LUMIA apud CALSAMIGLIA, Albert. Estúdio preliminar. In: KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 10-11. 13 CALSAMIGLIA, op. cit., p. 74. não, é ético ou não. Assim, desfaz-se a ilusão de que o Direito, enquanto produto do homem, possa revelar por si o valor que o próprio homem lhe atribui. Esta revelação, aliás, explicitada adiante, talvez represente a maior contribuição do notável jusfilosofo, que foi Kelsen, para o bom entendimento do fenômeno jurídico. 2.2 O princípio da imputação Os fatos ou fenômenos naturais estão submetidos a um princípio pelo qual para toda causa se espera um efeito. Este é o princípio da causalidade. Consequentemente, o efeito ou conseqüência de um fato natural, submetido ao princípio da causalidade, é certo, pois dado o fato acontecerá o efeito, como sua conseqüência. Assim, as ciências naturais baseiam-se no princípio da causalidade para estudar, de forma empírica, os fenômenos e fatos naturais, procurando verificar as correlações lógicas entre as causas e efeitos que se percebem fisicamente, definindo como ocorrem tais fatos. Portanto, estas ciências buscam apontar os fenômenos naturais como eles são. Todavia, segundo nos informa Kelsen, quando se tem em mira o Direito, sob o ponto de vista estritamente normativo, ou outro campo igualmente normativo como a moral, o princípio da causalidade não tem aplicação. O que se estabelece entre as normas não é uma relação de causa e efeito, mas de imputação, pela qual se prescreve uma conseqüência que ‘deve’ ocorrer quando realizada uma ação ou ocorrido um fato. Nas palavras do mestre de Viena: Tanto el principio de causalidad como el de imputación se presentan bajo la forma de juicios hipotéticos que estabelecen una relación entre una condición y una consecuencia. Pero la naturaleza de esta relación no es la misma en los dos casos. Indiquemos ante todo la fórmula del principio de causalidad: “Si la condición A se realiza, la consecuencia B se producirá” o para tomar un ejemplo concreto: “Si un metal es calentado se dilatará”. El principio de imputación se formula de modo diferente: “Si la condición A se realiza, la consecuencia B debe producirse”. He aqui algunos ejemplos extraídos del domínio de las leyes morales, religiosas o jurídicas: “Si alguien os presta un servicio débeis agradecérselo”, “si alguien da su vida por la pátria, su memória debe ser honrada”, “aquel que comete un pecado debe hacer penitencia”, “el ladrón debe ser encarcelado”. 14 14 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 26. Quando se trata de ciências normativas, portanto, esta prescrição de conseqüência a determinado ato ou fato é apenas esperada, ditando um ‘dever ser’, pelo princípio da imputação, através do qual uma determinada conseqüência, para que ocorra, deve ser imposta por um ato de vontade; enquanto na natureza, segundo o princípio da causalidade, ocorrido um fato a conseqüência necessariamente ocorre, posto que ligada a uma correlação lógica de causa e efeito. Assim, recorrendo novamente aos dizeres do próprio autor da Teoria Pura do Direito, temos que: En el principio de causalidade la condición es una causa y la consecuencia su efecto. Además, no interviene ningún acto humano ni sobrehumano. En el principio de imputación, por el contrario, la relación entre la condición y la consecuencia es estabelecida por actos humanos o sobrehumanos. 15 Desta forma, as ciências causais descrevem como se dão os fenômenos ou fatos naturais estudados, sendo que, por tal motivo, Kelsen identifica este campo do conhecimento como o do ‘ser’, ao passo que o conhecimento das normas jurídicas se identificaria com o do ‘dever ser’. Por sua vez, Kelsen identifica que o princípio da causalidade também pode ser aplicado às condutas humanas, quando se tem em mira as conseqüências experimentadas a partir de determinados fatos sociais, senão vejamos: El principio de causalidad ha sido también aplicado a las conductas humanas consideradas como hechos pertenecientes al orden causal de la naturaleza; de aqui la constituición de ciencias causales como la psicologia, la etnologia, la historia o la sociologia, que buscan explicar las conductas humanas estableciendo entre ellas relaciones de causa e efecto. 16 Portanto, dentre as ciências sociais existe nítida distinção entre as ciências normativas – nas quais se encontra uma correlação lógica entre um fato e uma conseqüência tão somente esperada, definida simplesmente por um princípio de imputação, ou seja, por uma vontade humana – e as demais ciências que estudam a conduta humana, submetidas ao mesmo princípio da causalidade que rege as ciências naturais. Aliás, esta distinção é de extrema importância para se entender o motivo pelo qual Kelsen estabeleceu, através do princípio da pureza, o isolamento da dogmática jurídica, da análise feita sob o prisma de outras ciências sociais que, diferentemente da ciência jurídica, estão submetidas ao princípio da causalidade. Ora, a conclusão parece óbvia quando se constata que tais ciências 15 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 26. 16 Ibid., p. 24. sociais, por não estarem submetidas ao mesmo princípio que rege a ciência jurídica, qual seja, o princípio da imputação, quando analisam o mesmo objeto de estudo, que é o Direito, chegam a proposições e conceitos diversos. Assim, visto que as normas jurídicas não se estabelecem segundo o princípio da causalidade, mas sim por meio do princípio da imputação – segundo o qual a um ato ou fato ocorrido apenas se espera uma conseqüência definida pela vontade humana – não é possível à ciência jurídica encontrar a lógica de suas proposições, da mesma forma que acontece com as ciências causais. Isto porque, nas ciências causais, prevalece a lógica tradicional. De acordo com tal lógica é possível verificar se uma proposição é verdadeira ou falsa, apurando, de modo empírico, se tal proposição estabelece como conseqüência para determinado ato ou fato, aquela ocorrência já constatada pela experiência. Por exemplo, se a experiência apura que o metal levado ao fogo se expande, uma proposição que conclua que o metal levado ao fogo encolhe é uma proposição falsa. Desta forma, como não é possível aplicar a lógica tradicional sobre as ciências normativas, já que a conseqüência determinada pela norma é somente esperada, sendo definida não por um princípio de causa e efeito, mas por uma imputação determinada pela vontade, Kelsen encontrou, como alternativa epistemológica, a conceituação das normas como válidas ou inválidas. Portanto, Kelsen estabelece, para análise do Direito Positivo, não uma estrutura pautada na lógica tradicional, mas uma coesão sistêmica baseada em uma hierarquia escalonada, na qual o suporte de validade de uma norma está na norma diretamente superior, em uma escala finita, que tem como pressuposto de validade último de todo o ordenamento jurídico, a Constituição. Kelsen enfatiza o problema, afirmando que: Dizer que uma norma que se refere à conduta de um individuo “vale” (é vigente), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma. Já anteriormente num outro contexto, explicamos que a questão de por que é que a norma vale – quer dizer: por que é que o indivíduo se deve conduzir de tal forma – não pode ser respondida com a simples verificação de um fato da ordem do ser, que o fundamento de validade de uma norma não pode ser um tal fato. Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de algo dever ser se não pode seguir que algo é. O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. 17 17 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 215. (grifo do autor). Assim, mesmo não estando submetido ao princípio da causalidade e sim ao da imputação, pelo qual não é possível se realizar um juízo de realidade, posto que a conseqüência de uma norma não é certa, apenas esperada, Kelsen consegue atribuir ao ordenamento jurídico uma coesão sistêmica ao adotar uma ordem hierárquica e escalonada, pela qual é possível, com certa racionalidade, extrair conclusões quanto à validade ou invalidade de um enunciado prescritivo. 2.3 A norma hipotética fundamental Para atribuir certa coerência ao sistema normativo, Kelsen estabelece como característica determinante das normas jurídicas a sua validade. Ou seja, para que uma norma jurídica seja considerada como integrante de um sistema jurídico, como sendo Direito, deve ter reconhecida sua validade. Desta forma, na teoria pura desenvolvida pelo mestre de Viena, o Direito passa a ser considerado como um conjunto de normas válidas em dado momento e em certo espaço, cabendo ao jurista esta investigação quanto à validade da norma. Por sua vez, o conceito de validade para Kelsen é apenas formal, levando-se em consideração apenas o fato de ser esta norma jurídica enunciada por uma autoridade cuja competência esteja previamente definida por outra norma jurídica. Não se analisa o aspecto valorativo do conteúdo da norma ou sua eficácia no mundo social, bastando que ela tenha sido editada na forma definida por ordenamento jurídico, sendo, pois, vigente. Nas palavras do próprio mestre de Viena, temos que: La validez de una norma positiva no es outra cosa que el modo particular de su existencia. Una norma positiva existe cuando es válida, pero se trata de una existencia especial, diferente de la de los hechos naturales, aunque la norma se encuentre en estrecha relación con tales hechos. Para que una norma positiva exista es preciso que haya sido creada por un acto, a saber, por un hecho natural que transcurra en el espacio y en el tiempo. Por outra parte, una norma regula la conducta de los indivíduos; se aplica, pues, a hechos que también transcurren en el espacio y en el tiempo. 18 Kelsen utiliza este recurso empregando uma metodológica análoga à lógica, posto entender que somente é possível verificar se certa proposição normativa é válida ou não, já que 18 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 35. não é possível a utilização da lógica tradicional, para se indagar se certo enunciado prescritivo é verdadeiro ou falso. Eis que, como já explicado, as normas jurídicas não se submetem ao princípio da causalidade, mas tão somente ao princípio da imputação, que não viabiliza uma avaliação de pertinência entre o ato/fato e sua conseqüência, já que no sistema normativo a conseqüência é só esperada. Desta forma, para concretizar seu empenho epistemológico, o jurista austríaco estabelece um método de análise baseado em uma coerência formal do sistema jurídico, através do qual se busca identificar a validade de uma norma jurídica de acordo com a correlação de pertinência que esta revele em relação ao ordenamento jurídico em que está inserida. Esta correlação de pertinência, por sua vez, é estabelecida não por uma razão puramente lógica, mas por uma razão de hierarquia. Sob tal enfoque, é possível perquirir se uma norma é válida quando esta encontra seu pressuposto de validade em uma norma que a antecede, e esta, por sua vez, deve ter sua validade determinada por outra norma imediatamente superior, em uma constante busca de validade e sentido normativo, até se chegar ao pressuposto de validade máximo que é a Constituição. Kelsen cria, assim, o chamado sistema piramidal de normas, no qual a hierarquia normativa é ditada do ápice da pirâmide onde se encontra a Constituição, com suas normas de aspecto geral e abstrato, para as normas inferiores, que por sua vez dão suporte de validade para as que lhe sucedem, até chegar à base da pirâmide, onde se encontram as normas mais específicas e concretas. Todavia, ao criar este sistema escalonado de normas, onde uma norma busca sua validade na que lhe é superior, até chegar ao pressuposto máximo de validade do sistema jurídico, que é a Constituição, logicamente nos deparamos com o seguinte questionamento: sendo a Constituição pertencente ao conjunto de normas postas que compõem o sistema jurídico, no último grau hierárquico deste sistema escalonado de normas, qual seria, então, o pressuposto de validade da Constituição? E Kelsen responde a este questionamento com a idealização de uma norma suposta, para a qual dá o nome de norma hipotética fundamental (Grundnorm). Na definição do jurista austríaco, La norma fundamental es así la hipótesis necesaria de todo estúdio positivista del derecho. Al no haber sido creada según un procedimiento jurídico, no es una norma del derecho positivo; dicha norma no es “puesta” sino “supuesta”. Es la hipótesis que permite a la ciencia jurídica considerar al derecho como un sistema de normas válidas. Todas las proposiciones por las cuales esta ciencia describe su objeto están fundadas sobre el supuesto de que la norma fundamental es una norma válida. Pero esto no significa que la ciencia del derecho afirme la validez de la norma fundamental: se limita a declarar que si la norma fundamental es supuesta válida, el establecimiento de la primera Constitución y los actos cumplidos conforme a ella tienen la significación de normas válidas. 19 Assim, para manter uma coerência às premissas fixadas pelo método científico proposto pela Teoria Pura do Direito, que pressupõe a validade de uma norma jurídica em outra norma jurídica que lhe é superior, Kelsen necessitava manter o fundamento último de validade do ordenamento jurídico dentro de um campo de análise focado estritamente na norma. É aí que surge a chamada norma fundamental, que para Kelsen não é uma norma posta, mas apenas suposta, pela qual se espera, como pressuposto de lógica-transcendental, que todos os indivíduos pertencentes a determinado Estado respeitem suas normas como válidas, conformando-se aos ditames de referido Estado. Para construir sua idéia sobre a Grundnorm, Kelsen ampara-se nos pensamentos divulgados pelo neo-kantianismo de sua época, adotando, como pressuposto transcendental, a identidade entre o Direito e o Estado, sendo este, ao mesmo tempo, criador e legitimador do Direito Positivo. Kelsen parte da premissa de que uma ordem jurídica é constituída por normas criadas pelo Estado, e, sendo assim, somente se poderia imaginar um ordenamento jurídico válido caso aceita a idéia de que o Estado possui legitimidade para criar o Direito. Este pressuposto de lógica-transcendental, a norma hipotética fundamental, é o que dá validade a todo ordenamento jurídico, consistindo tão somente na idéia abstrata de que existe uma convenção de conformidade dos indivíduos às normas criadas pelo Estado. Neste ponto, não faltaram críticas à obra de Kelsen, acusando-o de ter contrariado a própria premissa central de sua ciência, pautada exclusivamente sobre a norma posta como única possibilidade de conhecimento empírico, quando admite o emprego de uma pressuposição para fundamentar toda a validade do ordenamento, caracterizada por uma abstração intitulada pelo jurista como norma hipotética. Kelsen, na realidade, utiliza-se desta abstração, de cunho lógico-transcendental para delimitar o objeto de estudo da ciência do direito às normas jurídica, realizando, assim, um verdadeiro corte metodológico, comum a todas as ciências que se pretendem específicas. Tárek Moysés Moussallem dá-nos uma grande contribuição para o bom entendimento desta proposta de corte metodológico, ao explicar que, 19 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 139. Todo saber científico pressupõe um corte metodológico para que se torne possível o estudo do objeto, caso contrário, estudar-se-ia tudo em um regresso ad infinitum, o que seria incompatível com a pretensão científica. Veja-se: a Medicina (ciência) estuda o corpo humano posto (corte metodológico); não estuda como surgiu o homem, o que seria campo investigatório de outra ciência (Antropologia). Outro exemplo: a história do Brasil é iniciada com o descobrimento em 1500. Antes dessa data, nada importa à ciência histórica brasileira, exceto que se faça unilateralmente o corte metodológico em 1200. Corte metodológico é o ato lingüístico delineador da linguagem do objeto de estudo. Vale ressaltar que a aludida incisão ocorre mediante o processo de abstração, operação lingüística consistente em prescindir partes de um todo. Ademais, essa separação é medida arbitrária do sujeito cognoscente. Não se encontra sujeita a contestações. É pressuposto espistemológico. O corte metodológico compõe o que FERNANDO GEWANDSZNAJDER, baseado em IMRE LAKATOS, denomina “núcleo rígido”: “O núcleo rígido é formado por um conjunto de leis consideradas irrefutáveis por uma decisão metodológica, uma convenção compartilhada por todos os cientistas que trabalham no programa”. Nessa esteira, todo sistema científico trabalha com pontos-limites ou hipóteseslimites, nos quais se circunscreve a investigação. Parte de um ponto-início percorrendo até o ponto-fim, localizado na outra extremidade da demarcação. O cientista preocupa-se com o que se circunscreve do ponto-início até o ponto-fim. Não com o depois deste, nem com o antes daquele. 20 É a partir deste corte metodológico – consistente na aceitação a priori de que o Estado está legitimado a criar às normas jurídicas, e de que todos devem respeito às normas ditadas por este Estado – que se pode visualizar um ordenamento jurídico válido e, por conseguinte, analisálo em suas relações sistêmicas, identificando seus princípios e pressupostos próprios, enfim, estudando-o como ciência estritamente jurídica. 2.4 O sistema do Direito Positivo e o sistema da Ciência do Direito Não se pode confundir o Direito Positivo com a Ciência do Direito, pois são duas realidades completamente distintas. Aliás, como adverte Fábio Ulhoa Coelho21, “[...] uma das distinções mais importantes da teoria kelseniana diz respeito à norma jurídica (Rechtsnorm), de um lado, e à proposições jurídicas (Rechtssatz), de outro.” Comentando esta distinção, o professor Fábio informa que, 20 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 33-34. (grifo do autor). 21 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 25. (grifo nosso). Com tais categorias (norma jurídica e proposições jurídicas), pretendeu-se acentuar a diferença entre a atividade de aplicação do direito e a desenvolvida pelo cientista jurídico. A doutrina é um conjunto de proposições descritivas de normas. Quando a autoridade com competência para editar normas jurídicas (gerais, como a lei; ou individuais, como a sentença judicial) formula a sua prescrição, no sentido de que uma determinada conseqüência deve ocorrer em certa situação, ela externa um enunciado. De outro passo, quando o doutrinador interpreta a norma e procura examiná-la, sob vários ângulos, com vistas a fixar os seus contornos, ele também externa um enunciado. 22 O Direito Positivo apresenta-se como um conjunto de enunciados prescritivos, que são as próprias normas jurídicas, as quais determinam um ‘dever ser’ aos atos e fatos jurídicos, dirigindo-se à conduta humana. Já a Ciência do Direito se apresenta como uma linguagem descritiva, que procura identificar as possibilidades jurídicas de existência da norma, suas relações com o sistema jurídico. Paulo de Barros Carvalho23 identifica esta situação entendendo haver dois sistemas distintos: um sistema do Direito Posto e um sistema da Ciência do Direito, ponderando que [...] o plexo das normas jurídicas válidas está posto num corpo de linguagem prescritiva, que fala do comportamento do homem na comunidade social. Essa rede de construções lingüísticas é o que chamamos de sistema empírico do direito positivo, justamente porque está voltado para uma específica região material: certa sociedade, historicamente determinada no espaço e no tempo. [...] sobre esse discurso prescritivo desenvolve o cientista outra camada lingüística, feita de proposições descritivas, associadas organicamente debaixo de um princípio unitário. É o sistema da Ciência do Direito. Há sistema na realidade do direito positivo e há sistema nos enunciados cognoscitivos que sobre ele emite a Ciência Jurídica. Como já referido, o sistema do Direito Positivo é regido por uma simples razão de hierarquia, que lhe confere coesão, na medida em que se pode apurar a validade ou não de uma norma, avaliando a sua pertinência ao conjunto normativo, através de uma busca de validade dentro do próprio sistema normativo, pelo qual é possível encontrar o pressuposto de validade de uma norma jurídica em outras normas de hierarquia superior. Ao sistema do Direito Positivo não é possível aplicarmos métodos de lógica clássica, pois os enunciados prescritivos comportam lacunas e contradições não permitidas pelos sistemas lógico-científicos. Para sustentar a coesão sistêmica e permitir um método racional de verificação do Direito Positivo, Kelsen introduz uma adaptação do método de lógica tradicional (verdadeiro 22 23 COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 26. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 10-11. ou falso), criando uma lógica própria à realidade do Direito, conhecida como lógica deontica (lógica do dever ser), através da qual é possível afirmar somente se uma norma é válida ou inválida; ou seja, se uma determinada prescrição foi posta por autoridade competente e se é formalmente pertinente ao sistema jurídico na qual inserida. No caso da Ciência do Direito, as lacunas ou contradições próprias dos enunciados prescritivos não podem existir, sob pena de se anular a cientificidade do sistema proposto. Assim, diferentemente do sistema de Direito Positivo, a ciência jurídica rege-se pelo método de lógica tradicional, sendo possível ao jurista avaliar se certa proposição jurídica é ou não embasada em uma norma jurídica válida, podendo se extrair desta constatação um juízo de verdade. Diferentemente da norma jurídica, que possui um conteúdo prescritivo e direcionado à conduta humana, as proposições jurídicas, também chamadas por Kelsen de regras de direito, são enunciadas através de uma constatação de que certa norma jurídica encontra-se vigente e válida dentro do sistema jurídico. Assim, se uma norma prescreve que o fato de furtar coisa alheia deve ser punido com pena restritiva de liberdade, uma proposição jurídica que, ao analisar esta norma prescritiva, enuncia que o ladrão deve ser punido com pena de morte, não pode ser aceita como verdadeira, pois fixa como premissa uma conseqüência prescritiva não comportada pela norma jurídica analisada. Isto não significa que, diante uma norma prescritiva, o intérprete do Direito possa extrair apenas uma única significação. O que se exige é que tal proposição jurídica refira-se, como premissa, a uma norma válida e, portanto, existente no ordenamento jurídico que se analisa. As normas jurídicas são vertidas em linguagem, e como tal comportam uma interpretação sensorial pelo sujeito congnoscente. Assim, dada à ambigüidade comum aos signos lingüísticos, não é possível ao homem apreender um único sentido do texto normativo, podendo, pois, serem múltiplas as significações extraídas de um enunciado prescritivo. O constitucionalista Celso Ribeiro Bastos nos explica que [...] interpretar é atribuir um sentido ou um significado a signos ou a símbolos, dentro de determinados parâmetros. É que a linguagem normativa não tem significações unívocas. Os seus vocábulos comportam mais de um conceito, o que, por si só, já seria bastante para justificar a necessidade da interpretação. Esta viria a reduzir as inteligências possíveis a uma só: a escolhida para decidir o caso concreto. 24 24 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 28. Essa busca de significação realizada através da interpretação dos enunciados prescritivos pode ser direcionada para duas perspectivas diferentes. Num primeiro aspecto pode ser direcionada a analisar os sentidos possíveis das normas jurídicas enquanto inseridas em num conjunto normativo, observando o sistema jurídico em seu viés estático. Por sua vez, o sistema jurídico comporta também um aspecto dinâmico, pelo qual se procura o sentido e o alcance da norma jurídica enquanto destinada à criação de outra norma jurídica, seja de caráter geral e abstrato posta pelo legislador, seja individual e concreta posta pelo aplicador do direito. Sob este ponto de vista dinâmico do direito, constata-se a forma pela qual o direito determina sua própria criação. A Constituição regula a criação legislativa, ou seja, de normas jurídicas gerais e abstratas. Por sua vez, as próprias normas gerais e abstratas criadas pelo legislador regulam a forma de criação de normas individuais e concretas, postas no sistema através das sentenças judiciais, dos atos administrativos de cunho normativo (regulamentos, decisões administrativas) e mesmo dos atos jurídicos de direito privado que adquirem força normativa entre as partes (contratos, ex vi). Quanto à função legislativa, a criação de uma nova norma deverá obedecer às normas superiores que determinam a competência para se criar este novo enunciado prescritivo, o que determinará a sua validade, cabendo ao legislador pautar-se pela não contrariedade em relação às demais normas vigentes, partindo de uma interpretação de normas superiores para se verificar a pertinência do enunciado que se pretende enunciar. Por sua vez, quando o legislador dirige-se para a conduta humana que pretende regular, fixando para determinado fato uma conseqüência, realiza verdadeira opção política, impregnada de carga valorativa, expressa através de um juízo axiológico de índole subjetiva. Situação semelhante acontece com o aplicador do direito que, diante de um fato concreto, prescreverá uma norma individual e concreta com a finalidade de regular determinado fato ou conduta humana. Assim, acontecido o fato concreto no mundo fenomênico, e captado o mesmo pelo direito, caberá a aplicação da conseqüência normativa esperada, conforme definido no esquema normativo. A Ciência do Direito, ao analisar as normas jurídicas diante um caso concreto, realiza verdadeiro trabalho de hermenêutica, buscando o sentido e alcance da norma e a sua adequação ao fato jurídico, ou seja, procurando, através de uma interpretação dos enunciados prescritivos que compõem o direito posto, qual a regra de conduta a ser aplicada ao caso. Nesta busca pelo sentido da norma jurídica, surge ao cientista do direito a árdua tarefa de encontrar, dentro de todo o ordenamento jurídico, o real comando aplicável ao caso concreto. Assim, tendo em vista que o ordenamento jurídico se caracteriza por um campo de linguagem, o direito é suscetível de uma gama de interpretações possíveis, tantas quantas forem as combinações lingüísticas que se apresentem aos sentidos do intérprete. Dentre os diversos enunciados prescritivos que o texto do direito positivo revela, cabe inicialmente um trabalho de busca pelas disposições aplicáveis ao caso concreto, para então apurarem-se as diversas significações lingüísticas encontrados pela apreensão do intérprete. Estes sentidos possíveis devem ser conformados com os demais enunciados prescritivos que se correlacionam, buscando o sentido completo da norma aplicável, dentro de uma análise sistemática do ordenamento jurídico, e verificando os pressupostos de validade da norma jurídica encontrada ante a hierarquia normativa que compõe o sistema. Este trabalho de busca do sentido do texto do direito positivo, sem qualquer possibilidade de valoração do conteúdo normativo, ou seja, isento de qualquer juízo de justiça, de intenção política ou repercussão social da norma, se mostra um tanto formalista, parecendo desprender-se de qualquer pretensão de se apurar o verdadeiro alcance buscado pela norma jurídica, o que tornam possíveis interpretações completamente distantes dos ideais almejados pela sociedade e pelo próprio legislador. Realmente, a interpretação jurídica na obra de Kelsen não visa um conteúdo valorativo da norma jurídica, mas tão somente identificar as possíveis molduras normativas válidas perante o sistema do direito positivo vigente. E quando se diz válida perante o sistema significa dizer que tais molduras normativas encontram amparo na hierarquia do sistema normativo, alcançando sua validade em normas superiores. Estas molduras normativas identificadas pela ciência do direito, na realidade são regras de direito e não normas jurídicas, ou seja, são proposições descritivas do direito positivo, para as quais a ciência, através de técnicas hermenêuticas, conseguiu encontrar suporte e validade dentre do sistema jurídico analisado. E é esta a distinção crucial para se entender bem a teoria de Kelsen. Veja-se que quando a ciência do direito, em sua busca descritiva do direito, identifica regras de direito possíveis dentro de uma moldura normativa válida, não está dizendo a norma jurídica propriamente dita, mas apenas um esquema normativo válido. A norma jurídica, na realidade, é definida sempre por um ato de vontade (subjetivo) do aplicador do direito que, optando por um dos arquétipos descritivos da ciência do direito, faz nascer uma norma jurídica, criando nova norma jurídica posta. Neste sentido: La interpretación del derecho, por ejemplo, un tema ‘técnico’. Kelsen plantea allí, que la tarea de los juristas es una tarea ‘política’. Si se trata de la creación del derecho por el legislador, no hay duda de la politicidade del acto. Si se trata de un juez, lo que este hace es elegir entre varias interpretaciones posibles, y producir, por un acto de voluntad, una norma individual. Es también un acto político. Lo que hay que distinguir aquí, es el papel de la ciencia. La ciencia no crea derecho. El científico, para serlo, debe limitarse a mostrar cuáles son las opciones entre las que el juez pude elegir. Pero ‘el abogado que, em interes de su parte, solo invoca ante el tribunal una de las varias interpretaciones posibles de la norma jurídica aplicable al caso; el escritor que em su comentário caracteriza una determinada interpretación, entre varias posibles, como la única ‘correcta’, no cumplen una función cientifico-jurídica, seno una función cientifico-política. Tratan de ganar influencia sobre la producción del derecho’. 25 Portanto, a aplicação do direito, no momento que aponta a norma jurídica aplicável ao caso concreto, está realizando, por um ato de vontade, a criação de uma norma jurídica individual e concreta, a exemplo do ato praticado pelo legislador, que faz inserir norma jurídica no sistema, porém de ordem abstrata e geral. A criação do direito, seja através do ato do legislador, que faz inserir uma norma jurídica geral e abstrata, seja através do aplicador do direito, que cria uma norma individual e concreta, é definida por Kelsen como um ato de vontade. O que Kelsen pretendeu dizer com isto, e que talvez não tenha sido bem entendido, é que, justamente neste momento de criação do direito, a autoridade investida do poder de criar normas jurídicas está sujeita a toda sorte de influência filosófica, política e cultural, que a irão guiar, inevitavelmente, para um juízo de valor, no momento de opção entre as possibilidades jurídicas que lhe são apresentadas como válidas, pela ciência jurídica. Cabe distinguir aqui, portanto, dois aspectos distintos que se apresentam no momento de criação do direito por seus órgãos legitimados. O aspecto da ciência do direito, que vai apontar as regras de direito, as molduras normativas possíveis e válidas dentro do sistema jurídico, e o aspecto da opção do legislador ou do aplicador do direito, quando da escolha de uma dentre as possíveis molduras normativas reveladas pela ciência do direito. O princípio da pureza pregado por Kelsen encerra-se na própria ciência, enquanto pesquisa os sentidos possíveis da norma jurídica dentro do direito posto. Kelsen não nega em sua obra que no momento de criação do direito, ou seja, no momento em que uma norma é posta, incida a influência de outras vertentes do conhecimento humano. O que nega é o 25 CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. cap. 2. p. 60-61. absolutismo de tais influências, como revelador de um real conteúdo da norma jurídica ou como pressuposto de validade do sistema, eis que, segundo a visão relativista do jusfilosofo austríaco, tais pressupostos nem sempre são absolutos. Portanto, e primeiramente, o que pretendeu Kelsen foi, na realidade, encontrar, através de uma ciência pura do direito, o que realmente é jurídico, extirpando das proposições normativas aquelas que não encontrem sua validade no próprio sistema jurídico. Isto para, num segundo momento, e com liberdade filosófica, realizar a escolha dentre as possibilidades normativas apontadas pela ciência jurídica, criando a norma jurídica, seja ela de caráter geral e abstrato, ou individual e concreto, através de um ato de vontade, ou seja, um ato político/ideológico, sujeito à influência cultural inerente àquele que está revestido da legitimidade concedida pelo direito para inserir normas jurídicas no ordenamento. CAPÍTULO 3 O PAPEL DA ÉTICA E DA MORAL NO PENSAMENTO DE KELSEN 3.1 Noções preliminares sobre Ética e Moral Um dos maiores desafios da Filosofia é a análise da conduta humana. Desde os tempos mais remotos da antiga Grécia, o homem se questiona sobre o valor da ação humana, indagando quais seriam aquelas condutas consideradas corretas ou morais, e, principalmente, quais as razões que levam o homem a se conduzir segundo a moralidade e, enfim, como o homem deve agir. Tais questionamentos filosóficos estão abrangidos pelo problema ético, ou seja, este é o objeto que a Ética pretende conhecer enquanto campo de estudo da Filosofia. Sob uma perspectiva crítica da filosofia enquanto juízo do saber, tem-se a Ética como uma das disciplinas filosóficas, ao lado da lógica e da estética. Como disciplina filosófica, a Ética é essencialmente especulativa e jamais será normativa, característica esta exclusiva do seu objeto de estudo, qual seja, a Moral. A Ética, como doutrina filosófica, ocupa-se da conduta humana, e como tal, pretende o estabelecimento do comportamento ético, considerado, portanto, essencialmente bom ou dentro da perspectiva da moralidade. Possui, assim, um conteúdo valorativo, no sentido de ‘atribuir’, ao seu objeto de análise – o comportamento humano – a qualificação de bom ou mau, podendo se dizer que é, assim, a doutrina do valor do ‘bem’. A Ética também possui um aspecto científico, quando se foca no conhecimento das normas morais, procurando identificá-las e conceituá-las através de métodos epistemológicos próprios. Por sua vez, a Moral é conjunto de normas de conduta que se apresentam como corretas, boas e que retratam a essência do bem. É, pois, a princípio, de índole puramente prática, passível de revelação pela experiência, caracterizando um conjunto de regras aceitas pelo costume. A moral, portanto, apresenta-se no campo normativo, como um conjunto de regras ou leis que ditam como deve se guiar a conduta humana, enquanto a Ética se ocupa justamente de atribuir valor às condutas humanas, verificando se são boas ou más, bem como se compromete a perquirir as razões que fazem o homem conduzir-se por tais regras morais. Dentro da proposta de analisar as razões que fazem com que o homem se conduza de acordo ou não com regras morais, a Ética assumiu, durante a evolução do pensamento humano, vários conceitos filosóficos, tendo sido alvo de explanação de vários pensadores, desde a Antiguidade. Platão já buscava conceituar a Ética considerando-a como subordinada à metafísica. Para este filósofo, a noção de Bem buscado pela Ética encontrava-se no mundo das idéias, atingível pela elevação da alma, através da razão do homem. Era, pois, no mundo das idéias onde se encontrava a verdade permanente e imutável sobre o Bem. A Ética, segundo Platão, é tida como a busca pela prática das Virtudes da alma, determinadas pela natureza da própria alma do homem, sendo estas virtudes identificadas e atingidas pela razão, através da contemplação do mundo das idéias. É, portanto, através da contemplação do mundo das idéias que o homem consegue atingir a verdadeira virtude, a prática do Bem, como forma de vida que leva à inteligência e ao prazer buscados pelo homem. Platão dividia a alma em três partes, a saber, a razão (cabeça), a vontade (peito) e o apetite (baixo-ventre), partes estas que deveriam ser dirigidas para a busca de suas respectivas virtudes: a inteligência, a coragem e a temperança. Atuando como um todo harmônico pelo alcance das três virtudes, o homem se eleva e atinge a prática da quarta e suprema virtude: a Justiça. Aristóteles, por sua vez, tentou organizar a Ética como uma disciplina filosófica, procurando identificar os problemas morais que atingem o homem e que devem ser superados para se alcançar a felicidade e o sentimento de realização pessoal. Para tal empenho, Aristóteles cria a idéia da medida justa da virtude, pela qual procura identificar a virtude sempre em comparação com seus extremos contrários. Assim, o homem virtuoso seria aquele que consegue, através de uma sabedoria prática, escolher o melhor para si e para os outros, pautando-se pelo equilíbrio e harmonia entre os excessos e as definiências das condutas. Desta forma, Aristóteles acredita que a virtude estaria na escolha do homem em relação ao seu modo de agir, posto que lhe seria possível identificar a prática do bem, através da razão e de seu dicernimento, como sendo aquela que se apresenta como um meio termo entre dois vícios, um caracterizado por falta e outro por excesso de uma qualidade. Por exemplo, a coragem poderia ser identificada como uma virtude que se encontra entre a temeridade (falta) e a audácia (excesso). Mais tarde, Santo Agostinho e São Tomas de Aquino irão reviver os conceitos de Ética em Platão e Aristóteles, respectivamente. Santo Agostinho traz a idéia de elevação da alma para a compreensão da virtude, que, porém, diferentemente de Platão, seria revelada por Deus. Assim, a ascensão ao mundo das idéias de Platão é substituída pela necessidade de ascensão até o Criador, que revelaria as virtudes ao homem, as quais lhe permitiriam a conquista da felicidade. São Tomás de Aquino, por sua vez, estabelece que a contemplação das ações dos homens permite verificar as virtudes que levariam ao caminho de Deus, sendo este o último fim do homem. Na Filosofia moderna também encontramos vários pensadores que utilizaram-se dos conceitos de Platão e Aristóteles para definir suas idéias sobre Ética. Porém sem escapar às definições de virtude e prática do Bem para alcançar os fins esperados pelo homem, como a felicidade, o prazer, o sentimento de realização pessoal, ou mesmo a harmonia e o equilíbrio da vida em sociedade. Até aqui, os filósofos concordavam em um aspecto: que a prática do bem e da moralidade era conduzida por interesse do homem, ou seja, para se atingir um determinado fim. Não obstante, surgiram novas idéias sobre Ética, que lhe deram uma outra concepção, deixando de entendê-la simplesmente como uma busca a determinada finalidade, através da prática do bem, para atribuir-lhe, ainda, a tarefa de perquerir quais forças que levam o homem a agir moralmente. Portanto, são duas as principais concepções desta disciplina filosófica, sintetizadas nas adjetivações que lhes concorrem, quais sejam, ‘ética do fim’ e ‘ética do móvel’. A primeira cinge-se na análise do fim visado pela conduta humana, enquanto que a segunda aprecia os motivos do comportamento do homem ou das forças que o determinam, sendo certo que, em um ou outro caso, a idéia de ‘bem’ é sempre presente. Deste modo, ora o ‘bem’ é identificado com a idéia de ‘felicidade’, como feito por Platão e Aristóteles na Antiguidade e por Hegel na Era Moderna; ora é coincidente com a noção de ‘prazer’ ou de ‘desejo’, a teor das concepções de Hobbes e Locke no advento do Renascimento. Para esta corrente filosófica, é o fim almejado pela conduta que guia a ação humana. O homem dirige seus atos em busca de um bem maior. Portanto, é este bem maior que determina a conduta como moral, seja ele Deus ou a felicidade do homem. Por sua vez, a segunda concepção de ética traz como marca característica a mudança de enfoque com relação à conduta humana, analisando-a sob o ponto de vista dos motivos ou causas que conduzem a ação do homem para o bem. Esta corrente filosófica conhecida como ética do móvel, analisa a questão da ação humana sob o enfoque subjetivo, ponderando sobre as forças que conduzem o homem, não interessando o fim como direção da ação, mas como consequência de uma conduta moral. Nesta concepção de ética, a razão aparece como autoridade final para a moralidade, sendo a vontade humana o objeto de estudo filosófico. Questiona-se aqui o porquê de se conduzir moralmente e não para que devo me conduzir moralmente. O homem é, pois, colocado no centro de análise filosófica, devendo as normas morais serem fruto da razão humana e não conduzidas pelo fim que se pretende, seja ele qual for (a felicidade, o bem, o prazer ou mesmo a busca de Deus). Immanuel Kant é quem irá propor um grande avanço no estudo filosófico da ética, ao estilo da ética do móvel, quando publica sua segunda obra de grande repercussão, qual seja, a “Crítica da Razão Prática”. Após empreender seus esforços para responder a primeira grande pergunta da Filosofia (O que posso conhecer?) Kant empenha-se em responder uma segunda grande questão: O que devo fazer? 1 Kant acreditava que a moral não poderia ser apurada com fundamento na experiência, ou seja, na observação dos costumes ou qualquer outra forma empírica de verificação de seu conteúdo, pois não estava sujeita ao princípio da causalidade comum aos fenômenos. A moral, para o filósofo prussiano, seria estabelecida puramente pela razão, como reguladora da ação. A ação, para ser considerada moral, deveria partir de um sentido de dever ditado pela razão, não se admitindo como conduta moral aquela ação praticada por um interesse ou por obediência a uma lei coercitiva ou costume imperativo. Antes disto, a conduta moral deve ser livre de qualquer influência externa, sendo praticada de forma que aquela ação possa ser tida como lei de conduta para todos os homens. Kant descreve duas classes de mandamentos que dirigem a ação humana: os imperativos hipotéticos, que estão subordinados a uma condição, como um castigo ou uma recompensa capaz de guiar a conduta; e os imperativos categóricos, que comporiam a base da moralidade, sendo puramente determinados pela razão, que identifica tais imperativos como 1 Posteriormente, Kant iria escrever sua obra “Crítica do Juízo”, pela qual dirige sua especulação filosófica para a resposta da terceira grande pergunta: Qual o destino da coisa e do homem? Assim, Kant fecha sua trilogia que define o que chama de “criticismo transcendental”, pelo que ficou conhecido como o “filósofo das três críticas”. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. aqueles que se enquadram na máxima expressa por Kant: “Aja como se a máxima de sua ação fosse para tornar-se pela sua vontade uma lei natural geral.”2 Desta forma, os imperativos categóricos idealizados por Kant são construídos pela pura razão e identificam uma conduta como moral quando enquadrada ao imperativo categórico estabelecido pela razão para que aquela determinada ação ocorra. A noção de imperativo categórico criada por Kant para justificar a prática de uma conduta moral assume nítido cunho metafísico, além de um caráter absoluto, o que vai ser, mais tarde, combatido por Hans Kelsen, que, apesar de ser considerado neo-kantiano, rechaça a idéia da existência de imperativos categóricos absolutos capazes de conduzir a ação humana de forma a moldá-la à moralidade. Dentre os filósofos neo-kantianos da Escola de Marburgo, Hermann Cohen é quem influenciará de forma mais decisiva o pensamento kelseniano, ao tratar das bases filosóficas da ética e da formação do Estado, aproveitando-se de conceitos kantianos encontrados, principalmente, na obra intitulada “Crítica da razão prática”. Cohen colabora com a teoria que será formulada por Kelsen ao realizar uma identificação entre o Estado e o Direito, propondo a necessidade de se encontrar uma unidade sistemática que domine todas as normas supostas como Direito positivo vigente. Todavia, ao avançar nos conceitos de imperativos categóricos para fundamentar, através de juízos metafísicos de lógica transcendental, alguns princípios absolutos de caráter ético-normativos, o pensamento de Cohen foi prontamente rechaçado por Kelsen, o qual, por sua noção relativista, não aceitou tais princípios éticos como absolutos e como pressupostos de validade do sistema normativo. Aliás, não é demais relembrar que, no campo das virtudes éticas, a Justiça é ‘a’ virtude por excelência. Segundo Kelsen, justamente por variar ao infinito, a Justiça, enquanto virtude última, não é passível de apreensão em sua totalidade pelo homem, pelo que, para ele, afirmar, como feito por Platão, que a Justiça é a felicidade, nada mais seria do que iludir o problema, posto que restaria igualmente sem resposta a pergunta acerca do que é felicidade. Porém, um valor que foge à razão humana não pode, para Kelsen, ser o fundamento de validade da ordem jurídica. Portanto, embora se tenha buscado conceituar a Ética como proveniente da razão humana e embasada em princípios permanentes e absolutos, tal tarefa não prosperou, posto 2 KANT, Immanuel. Crítica de la razón práctica. 6. ed. Salamanca: Sígueme, 2006. p. 49. que ora as definições criadas se pautavam em conceitos metafísicos irrascíveis ao homem, provenientes de uma divindade ou de uma razão plena não constatável pela experiência, ora partiam de um conhecimento emocional e, portanto, subjetivo sobre as condutas morais. É justamente a falta de um conceito passível de dedução racional, que leva Kelsen a sustentar a existência de um relativismo inerente aos conceitos éticos formulados pela Filosofia, em especial o conceito de Justiça, os quais seriam imprestáveis, por tal motivo, a definir uma moral absoluta e imutável em relação ao tempo e ao espaço em que constatada. 3.2 A Ética e a Moral na visão de Kelsen Em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen considera a Ética como uma ciência que busca estabelecer proposições epistemológicas sobre seu campo de estudo, que são as normas morais, visando identificá-las, conceituá-las, e propondo as formas de conhecimento próprio do sistema normativo da Moral. Deste modo, Kelsen traça um paralelo entre a moral e o direito, entendendo que ambos são ordens positivas, ou seja, normas postas ou criadas por atos cumpridos em dado espaço e tempo, sendo estas as palavras do mestre de Viena: El derecho y la moral son órdenes positivos en tanto y en cuanto sus normas han sido “puestas” o creadas por actos cumplidos en el espacio y en el tiempo: costumbres seguidas por los miembros de una comunidad, ordenes de un profeta, actos de un legislador, etcétera. Una ciencia del derecho o una ética científica solo pueden tener por objeto el derecho positivo o una moral positiva. Dichas disciplinas describen normas positivas que prescriben o autorizan una conducta determinada y afirman que en tales condiciones tal individuo debe conducirse conforme a una norma dada. 3 Sobre este conjunto de normas morais é que se dirige a Ética. É esta ciência que se incumbe de atribuir valores às condutas humanas, no sentido de identificar, em meio às relações sociais, aquelas ações tidas como corretas e, portanto, de conformidade com a moralidade aceita pela sociedade na qual são verificadas. 3 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 18. O estudo kelseniano foca a análise da realidade. Interessa-lhe a investigação das normas postas, sejam de natureza moral, cuja análise se dará pela Ética, sejam de natureza jurídica, que compõem o objeto de estudo da Ciência do Direito. Segundo sua concepção, somente as normas verificadas no campo da realidade são suscetíveis de estudo científico. Demais normas que não tenham sido postas por uma sociedade ou criadas por uma autoridade competente, são somente ‘supostas’, e, portanto, escapam do conhecimento científico propriamente dito, sendo verificadas apenas em um campo puramente filosófico. Desta forma, Kelsen entende que a moral deve ser vista como um conjunto de normas de condutas aceitas em dada sociedade, sendo as razões de tais condutas de índole subjetiva, sujeitas a um relativismo, no que respeita a valoração do que se tem por bom e justo e, pois, por moral. Todavia, embora trate o conceito de ética e moral dentro de uma concepção positivista, Kelsen não nega, em nenhum momento, a Ética como Filosofia disposta a buscar as máximas da razão da conduta humana ou os fins que guiam tal conduta para a moralidade. Kelsen4 reconhece, por exemplo, a impossibilidade de negar a ligação entre a Política e uma ética-filosófica: Desde que a Filosofia existe, se ha intentado relacionarla com la Política. Este intento ha tenido tanto éxito que actualmente es una verdad incontestable afirmar la conexión entre teoría política y la parte de la Filosofia que llamamos ‘ética’. O que o professor de Berkeley rechaça é o absolutismo dos pressupostos filosóficos, Eis que sua visão relativista aponta para a mutabilidade dos pressupostos da moral, no espaço e no tempo, já que, em sua visão, a moral é um produto cultural. Neste ponto, o jurista vienense combate com vigor as idéias de filósofos que acreditaram ser possível encontrar uma resposta racional, absoluta e imutável, para a questão formulada pela Ética acerca de como deve ser a conduta humana qualificada pela moral. Em sua obra “Que é Justiça?”, Kelsen critica os imperativos categóricos de Kant, que, segundo este filósofo, seriam dados pela razão humana de forma permanente, afirmando o seguinte: 4 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 113. Los ejemplos concretos que Kant utiliza para ilustrar la aplicación del imperativo categórico son preceptos de la moral tradicional y de la ley de su época. Contrariamente a lo que pretende la doctrina del imperativo categórico, los preceptos no se deducen de este principio, debido a que no puede deducirse nada de una fórmula vacía. Pero cualquier precepto de cualquier orden establecido es compatible con el principio que dice únicamente que el individuo debe actuar de acuerdo con las normas generales. Por tanto, el imperativo categórico, al igual que la regla “A cada cual lo suyo” o que la regla de oro, puede servir para justificar cualquier orden social. Esta posibilidad explica por qué estas fórmulas, a pesar de su vacuidad – o tal vez a causa de ella –, se siguen aceptando, y seguramente lo seguirán siendo siempre como respuestas satisfactorias a la pregunta sobre qué es la Justicia. 5 O jurista vienense segue dirigindo suas críticas a Aristóteles que, a exemplo de Kant, tentou compreender os problemas éticos de modo científico. Aquele o fez por meio da contemplação da conduta humana, procurando criar um sistema de virtudes buscadas pelos homens para alcançar determinados fins. Kant, por seu turno, o fez por meio da razão pura. Todavia, para Kelsen, ambos não conseguiram encontrar pressupostos seguros de uma conduta moral. Segundo o mestre de Viena, Aristóteles opina que el moralista puede encontrar la virtud que busca de la misma manera que el geômetra puede encontrar el punto eqüidistante de los dos extremos de una recta. De ahí que la virtud sea un medio entre dos extremos, que son vícios (uno por exceso y otro por defecto). Así, la virtud de la valentia es el punto medio entre el vicio de la cobardia, por defecto, y el vicio de la audácia, por exceso. Se trata de la famosa doctrina del medio (mesotes). Un geômetra sólo puede dividir una recta en dos partes iguales sabiendo cuáles son los dos puntos extremos; y, en el caso de conocerlos, el punto medio de la recta viene determinado por ellos. Del mismo modo, Aristóteles sólo puede encontrar la virtud que busca, según su sistema geométrico, si conoce los dos vícios. Pero, si sabemos cuáles son los vicios, también sabemos cuáles son las virtudes, ya que la virtude es lo opuesto al vicio. Si la falsedad es un vicio, la veracidad es una virtud. Aristóteles da por sentada la existencia del vicio. La evidencia le hace presuponer que los vicios son los que la moral tradicional de su época consideraba como tales. Ello implica que la ética de la doctrina del mesotes sólo aparenta resolver el problema que plantea – determinar qué es el mal y el vicio, y, por tanto, qué es el bien y la virtud –, ya que lo segundo está implícito en lo primero. Aristóteles deja la solución de este problema en manos de otra autoridad – la autoridad que representa la moral y la ley positivas –, es decir, el orden estabelecido. 6 5 6 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 54. Ibid., p. 55-56. Portanto, sejam princípios metafísicos apurados pela razão ou revelados por uma entidade divina, sejam conceitos embasados na verificação das condutas humanas, os juízos valorativos formulados pela Ética jamais podem ser considerados como verdades absolutas. Isto porque, segundo Kelsen: El problema de los valores es en primer lugar un problema de conflicto de valores, y este problema no puede resolverse mediante el conocimiento racional. La respuesta a estas preguntas es un juicio de valor determinado por factores emocionales y, por tanto, subjetivo de por sí, válido únicamente para el sujeto que juzga y, en consecuencia, relativo. 7 Assim, Cualquier sistema de valores, especialmente un sistema de valores morales y la idea central de Justicia que lo caracteriza, es un fenômeno social que resulta de una sociedad y, por tanto, difere según la naturaleza de la sociedad en que se presenta. 8 Torna-se possível concluir que, segundo Kelsen, a Moral, para poder ser conhecida de forma racional, deve ser considerada como conjunto de normas positivadas por uma certa sociedade, em dado tempo e espaço, cabendo à Ética a apuração e sistematização metodológica de tais normas morais, da mesma forma que à Ciência do Direito cabe o conhecimento científico das normas jurídicas postas. 3.3 Moral e Direito na visão de Kelsen O fato de Kelsen considerar a Moral como conjunto de normas de conduta, não significa dizer que, para ele, o Direito e a Moral se confundem, ou que um sistema normativo se sobrepõe ao outro, ou, ainda, que deve haver necessariamente um campo de intersecção entre a Moral e o Direito Positivo. Como é possível constatar em sua obra, o mestre de Viena nega a idéia de que o Direito e a Moral tenham um fundamento ético comum, como difundido por Vicente Ráo. Nega, também, que o mesmo deva representar um mínimo ético, ou seja, que o Direito deva 7 8 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 39. Ibid., p. 42. ter aquele mínimo de conteúdo ético que mereça força coercitiva para a convivência harmônica da sociedade, como entendia Jellinek. 9 O que Kelsen10 prega é que, embora ambas sejam normas de conduta, deve se entender que há uma separação entre as normas morais e as normas jurídicas, isto porque, segundo as próprias palavras do professor de Berkeley, Cuando en una regla de derecho expressamos que la consecuencia debe seguir a la condición, no adjudicamos a la palabra “debe” ninguna significación moral. Que tal conducta sea prescrita por el derecho no significa que lo sea igualmente por la moral. La regla de derecho es un instrumento que sirve para describir el derecho positivo tal como ha sido establecido por las autoridades competentes. De aquí se desprende que el derecho positivo y la moral son dos órdenes normativos distintos uno del otro. Esto no significa que sea menester renunciar al postulado de que el derecho debe ser moral, puesto que, precisamente, sólo considerando al orden jurídico como distinto de la moral cabe calificarlo de bueno o de malo. Tal distinção é de suma importância para o entendimento da obra de Kelsen. Ora, se o Direito e a Moral confundem-se ou se dão suporte de validade um ao outro, não há que se falar em um Direito que não seja Moral, ou, pelo contrário, uma Moral que não seja Direito. Tal situação impediria que uma norma jurídica pudesse ser julgada como boa ou má, ou conforme uma ordem moral. Somente a separação entre tais ordens normativas permite avaliar se o direito atende aos preceitos morais, ditados pela ética ou não. É justamente isto que Kelsen11 nos informa, ao afirmar que, Para que el orden moral sea distinto del orden jurídico es preciso que el contenido de las normas morales no se confunda con el de las normas jurídicas, y que no haya, por consiguiente, relación de delegación del derecho a la moral o de la moral al derecho. Gracias a esta condición resulta posible pronunciar un juicio moral sobre un orden jurídico considerado en su conjunto o sobre cualquiera de las normas que lo constituyen. Mediante este juicio puede comprobarse la conformidad u oposición entre tal norma moral y tal norma jurídica, es decir que desde el punto de vista de la moral la norma jurídica es buena o mala, justa o injusta. Hay aquí un juicio de valor emitido sobre la base de una norma moral y, por consiguinte, extraño a la ciência del derecho, puesto que no es pronunciado sobre la base de una norma jurídica. 9 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994. p. 95. 10 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 55. 11 Ibid., p. 56. Portanto, ao repelir a idéia de que o Direito Positivo funda-se na Moral, Kelsen evita, em um primeiro momento, que o Direito seja justificado por uma Moral, que, por ser relativa, algumas vezes se confunde com a idéia ético-política de quem detém o poder. Por outro lado, ao distinguir o que é jurídico do que é moral, Kelsen permite uma valoração do conteúdo das normas jurídicas segundo os ditames da moral, o que deverá ocorrer, não no momento de conhecimento científico das proposições normativas, mas no momento de criação do direito. Desta forma, é imperioso reconhecer que o ‘formalismo’ e ‘neutralidade’ kelsenianos, talvez mais que qualquer outra empreitada teórica, esteve a serviço da edificação de uma teoria que, efetivamente, possibilite a indagação sobre a moralidade das normas jurídicas. Tal indagação não ocorrerá no campo da ciência – sendo certo que autorizada tal indagação no processo de descrição do direito, não teríamos ciência jurídica, mas pseudo-ciência a serviço de uma ideologia – mas no campo de outras formas de conhecimento (inclusive do conhecimento moral) que encontram passagem de incidência num momento do processo de criação do direito, caracterizado pela enunciação de um ato puramente de vontade. 3.4 O ato de aplicação e criação do direito como juízo de valor ético Entendendo a Teoria Pura do Direito como a teoria de uma ciência jurídica pura, através da qual se procura identificar o que é o direito, ou melhor, o que é jurídico e válido dentro do espectro normativo do direito positivo, é possível constatar que a Ética e a Moral não irão ter, por razões lógicas de incidência do próprio princípio da pureza, qualquer influência sobre as proposições descritivas desta ciência jurídica. Isto porque, a ciência jurídica pura, na forma como idealizada por Kelsen, não quer conhecer nada além do que seja revelado pelo próprio direito positivo, enquanto sistema ordenado de normas postas e vigentes em dado espaço e tempo. A proposta da ciência do direito, para o professor de Berkeley, é de estabelecer, além dos princípios que norteiam o sistema jurídico, seus métodos próprios de descrição e classificação, seus pressupostos de validade e as regras de direito possíveis dentro do ordenamento jurídico, ou seja, as molduras normativas que se podem extrair do direito posto. Não cabe ao cientista indagar além das possibilidades jurídicas de solução que o caso concreto apresenta, ponderando qual seja a forma mais justa ou ética dentre as possíveis. Isto porque indagações deste viés filosófico, no âmbito da ciência do direito, por seu relativismo próprio, não permitiriam uma descrição científica confiável, com respeito ao que é jurídico ou não, podendo-se chegar a toda sorte de proposições descritivas, dado o caráter subjetivo que tais temas filosóficos carregam. Todavia, se na ciência jurídica que se queira pura não é possível indagar sobre questões metajurídicas, como ética e moral, Kelsen não nega que tais questionamentos possam ser feitos em outro momento, qual seja, o de criação das normas jurídicas. O ato de criação de normas jurídicas, seja pelo legislador ou pelo aplicador do direito, como visto anteriormente, é um ato de vontade, sujeito às influências filosóficas, políticas e culturais, que estão presentes no intelecto da autoridade legitimada pelo direito para inserir normas jurídicas no sistema. Portanto, neste momento de criação de normas jurídicas, tanto o legislador quanto o aplicador do direito realizam verdadeira axiologia, exercem um juízo de valor quanto ao conteúdo da norma jurídica. Al aplicar la norma, la autoridad legal escoge uno de estos significados y le atribuye la furerza del Derecho. [...] La elección entre los significados de una norma legal por parte de la autoridad legal en su función aplicadora del Derecho es un acto creador de Derecho. Esta elección es una función política en la medida en que no está determinada por una norma superior legal. Si la elección entre los distintos significados de una norma leal no viene determinada por una norma legal superior, está determinada por normas que no son legales, es decir, por normas políticas. Por tanto, puede decirse que la interpretación auténtica de la ley por parte de la autoridad legal es una interpretación política. Por outra parte, la tarea de un científico del Derecho que interpreta un lenguaje legal consiste en mostrar los posibles significados y dejar que la autoridad legal competente escoja el que considere más apropiado según unos princípios políticos. Al mostrar las posibilidades que la ley que debe aplicarse ofrece a la autoridad legal, el científico del Derecho está sirviendo cientificametne a la función aplicadora del Derecho. Y, al revelar la abigüedad de los términos utilizados y, por tanto, la necesidad de mejorarlos, está sirviendo de modo científico a la función creadora del Derecho. 12 Este juízo de valor, fruto do ato de vontade emergente do processo de criação da norma, não ocorre no sentido de busca de uma razão pré-existente e absoluta – o que não é admitido por Kelsen como possível, já que tal juízo, na maioria das vezes é irrascível ao homem – tratando-se apenas de suposição impossível de confirmação científica, ou melhor, 12 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 274-275. de uma concepção subjetiva, que comporta um relativismo intrínseco, quase sempre sujeito à modificação de sentido em razão do tempo e do espaço. Antes disto, este juízo de valor revela uma intuição a priori do que deve ser a norma jurídica, pela qual se direciona a vontade criadora do direito. Veja-se que falamos aqui em um ‘dever ser’ do próprio direito (qual o fim buscado pelo direito) e não um ‘dever ser’ referente à conduta humana, que, como vimos, é dado pela própria norma jurídica. Dentro desta perspectiva, podemos dizer que a criação da norma jurídica pode se aproximar de um ideal de Justiça, de propostas morais e juízos éticos, ou, ao contrário, afastar-se de tais ideais. Estas constatações não são capazes de invalidar o direito, ou melhor, a norma jurídica criada, já que o plano de validade se perfaz com a conformação da norma jurídica ao sistema normativo vigente. Todavia, é no consenso social que a norma jurídica encontra a confirmação de seu conteúdo. É a vontade da maioria que irá confirmar ou infirmar se a norma jurídica atingiu os objetivos que se supunha dela esperar. Assim, Óscar Correa13 entende que, “[...] para no perder la especificidad del derecho, del sentido con que éste se dirige a los hombres, Kelsen ha defendido siempre la consideración de la normatividad como ‘validez’, aun cuando ésta esté condicionada por la ‘eficacia’” é dizer, de uma eficácia alcançada no meio social. Desta forma, uma norma jurídica que se afaste por completo do mínimo de senso de justiça, poderá não encontrar, no meio social, sua aceitação e, por conseguinte, a paz social esperada. Tal norma jurídica, certamente, mais cedo ou mais tarde, será repelida do sistema jurídico pelos próprios meios dispostos pelo direito. 3.5 A influência da moral e da ética científica na aplicação do direito A Ética, em uma visão positivista, como já dito anteriormente, pode ser vista como ciência que busca encontrar, através de métodos e princípios próprios, as condutas morais postas, ou seja, aquelas condutas humanas aceitas como moralmente válidas em dada sociedade. 13 CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 12. Esta, aliás, é a concepção que Kelsen traz em sua Teoria Pura do Direito, quando trata a Ética em seu aspecto científico, colocando-a ao lado da Ciência do Direito, de forma que a esta caberia o estudo das normas jurídicas postas e àquela a análise de uma moral positiva. Foi afirmado também que, na visão kelseniana, embora a moral e o direito sejam normas prescritivas positivadas em dado espaço e tempo, tais normas não se confundem, e sim pertencem a ordens normativas distintas, com características próprias. A norma jurídica é posta por autoridades competentes definidas pelo Estado, possuindo força coercitiva amparada no poder estatal, ao passo que as normas morais são introduzidas pela própria sociedade, que ao identificar uma conduta como imoral, prescreve como conseqüência deôntica uma reprovação social, ou de ordem íntima e, pois, subjetiva. Ressalta-se aqui, a concepção do jurista vienense, segundo a qual somente considerando o Direito como algo distinto da Moral é que se pode emitir juízo a respeito de uma norma jurídica ser ou não condizente com as normas morais, posto que só é possível comparar-se objetos distintos. Melhor dizendo, caso o Direito e a Moral se confundissem, estando o conteúdo das normas morais sobrepostos ao das normas jurídicas ou vice-versa, de forma que um fosse fundamento de validade do outro, somente poderíamos dizer que aquela norma jurídica é sempre moral ou, do contrário, que a ordem moral é sempre jurídica. Neste sentido, vale relembrar Kelsen14, quando diz que: “[...] gracia a esta condición resulta posible pronunciar un juicio moral sobre un orden jurídico considerado en su conjunto o sobre cualquiera de las normas que lo constituyen.” Existindo esta separação entre as normas morais e as normas jurídicas, é possível, como dito pelo próprio jusfilósofo austríaco, um juízo de valor sobre a norma jurídica, para que se possa qualificá-la como condizente com a moral ou não. Todavia, segundo o próprio mestre de Viena, este juízo de valor não tem incidência na análise feita pela ciência do direito, já que a mesma, na forma em que foi idealizada na Teoria Pura do Direito, deve ser isenta de qualquer juízo metajurídico, limitando seu espectro de análise à dogmática jurídica. Então, como seria possível realizar este juízo valorativo, de cunho ético, no tocante à coincidência ou não de uma norma jurídica com a ordem moral, se para Kelsen a ciência jurídica não seria capaz de realizar tal avaliação? Em resposta a tal indagação podemos afirmar que um juízo de valor ético, que considera uma norma condizente ou não com a moral, terá lugar no momento de sua criação, 14 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 56. através da opção realizada pelo legislador ou pelo aplicador do direito, que poderá escolher, dentre as regras de direito possíveis, reveladas pela ciência jurídica, aquela que se coaduna ou, ao menos, não contraria as normas morais apontadas pela ciência ética. E como este juízo valorativo poderia de fato influenciar a criação da norma jurídica? Para responder a esta indagação, de cunho prático, nada melhor do que recorrermos aos exemplos. Assim, tomemos como objeto de análise a figura do nepotismo na administração pública. O nepotismo caracteriza-se pela contratação de parentes por servidores de qualquer dos três poderes do Estado, que detenham competência para contratação de servidor em cargo de confiança. Veja-se que a contratação de servidor público deve ser precedida por concurso público, que avalia o candidato quanto à sua aptidão para preencher determinada função ou cargo público. Todavia, existem normas jurídicas postas pelos vários entes públicos, e, portanto, válidas, estabelecendo a possibilidade de se contratar sem concurso público quando se tratar de cargo de confiança. Tais normas, em geral, não proíbem que os cargos de confiança sejam preenchidos por parentes de detentores de mandato político ou cargo administrativo, que exerçam poderes de contratação. Assim, por não haver norma expressa prescrevendo a proibição quanto à contratação de parentes para preencherem vagas de cargos de confiança, é possível ao intérprete do Direito, ao analisar o caso em questão, concluir que é pertinente ao sistema jurídico uma regra de direito que enuncie ser permitida a conduta de contratar parentes sem concurso público, desde que para cargos de confiança. Por sua vez, independentemente de qualquer alteração legislativa, é igualmente possível ao jurista considerar que o princípio da finalidade e da eficiência do ato administrativo, inseridos no texto constitucional, possuem como um de seus significados semânticos a proibição do administrador contratar uma pessoa que não possua qualificação adequada para um cargo público, simplesmente por ser seu parente, ainda que o cargo a ser preenchido seja de confiança. Desta forma, vemos, no exemplo dado, a possibilidade de construção de duas regras de direito embasadas em normas jurídicas válidas dentro do sistema normativo brasileiro, porém antagônicas entre si. Por sua vez, a sociedade brasileira há muito tempo identifica no nepotismo uma atitude contrária à moral, posto que representa um privilégio do administrador público que visa, através desta conduta, apenas o benefício pessoal e de seus familiares, em detrimento do bem público. Assim, diante de um caso concreto de nepotismo, não qual se contrata um parente sem qualificação para um cargo de confiança, caberá ao julgador uma opção entre as duas proposições jurídicas que lhe são dadas pela Ciência do Direito. Neste momento, caso entenda que a situação concreta colocada a julgamento representa uma violação à norma moral posta pela sociedade brasileira, segundo a qual o nepotismo significaria uma atitude não pautada pela ética, poderá o julgador optar pela regra de direito que estabelece a proibição do nepotismo, estando tal proibição contida nos princípios que norteiam a administração pública em geral. Ao realizar esta opção, o julgador firma um nítido juízo de valor, de cunho éticopolítico, criando uma nova norma jurídica, individual e concreta, para regular o caso posto em julgamento. Da mesma forma, o legislador, ao constatar no meio social, através do emprego de um conhecimento ético, que o nepotismo é uma conduta que viola um preceito moral posto pela sociedade brasileira, poderá criar norma jurídica, geral e abstrata, prescrevendo a proibição de tal conduta, inclusive impondo sanções à sua violação. Portanto, verifica-se através do exemplo dado, ser possível tanto ao legislador, quanto ao aplicador do direito, formular juízos valorativos a partir das molduras traçadas pela ciência do direito, com fundamento em normas morais reveladas por uma ética científica, optando, no momento da criação da norma jurídica, por aquele enunciado prescritivo possível, que se amolda a uma norma moral posta e previamente identificada. 3.6 O papel da ética filosófica na criação do direito Como vimos até este momento, a Ética pode ser concebida sob dois aspectos. Em um primeiro aspecto, aparece como campo da filosofia, como considerada por vários filósofos, sobretudo pelo pensamento kantiano e dos neo-kantianos. Já em um segundo aspecto, como Kelsen a concebe, a Ética aparece como ciência incumbida de identificar e estudar as normas morais postas, ou seja, aceitas como válidas em uma determinada sociedade, assim verificadas no espaço e no tempo. Embora Kelsen se refira à Ética como ciência da moral em sua obra Teoria Pura do Direito, o mesmo não nega sua faceta filosófica, pela qual se pretende encontrar os motivos determinantes da conduta humana, seja pela análise dos fins que conduzem a conduta para a moralidade, seja através do ponto de vista de uma razão a priori, que determina a conduta humana através do que Kant chamou de imperativos categóricos. O que Kelsen diz é que tais juízos filosóficos sobre as razões da conduta humana, por vezes, são irrascíveis ao homem, consistindo quase sempre em suposições subjetivas, visto estarem ligadas ao pensamento do homem e não a pressupostos de validade que as confirmem de modo absoluto, como pretendido por tal campo de conhecimento. Porém, é justamente neste aspecto, como pensamento do homem sobre o que seja moral ou não, enquanto juízo de valor, que a Ética participa da criação do direito. Ora, o legislador quando cria uma norma geral e abstrata irá ponderar sobre o que pretende com aquela norma; se ela deve se aproximar da justiça ou não; e, sobretudo, se ela se coaduna com as máximas da Ética, de forma que poderá ser influenciado, neste momento, por seus conceitos ético-filosóficos, presentes em seu intelecto como componente de sua cultura adquirida. Portanto, no momento de criação de uma lei, o legislador pratica um ato de vontade político/ideológico, que estará impregnado por seus juízos ético-filosóficos. Da mesma forma, o aplicador do direito, quando cria uma norma individual e concreta, direcionada a um determinado fato, poderá optar, entre as regras de direito que lhe são reveladas como possíveis pela ciência do direito, por aquela que mais se amolde aos conceitos éticos encontrados em seu pensamento. Não quer isto dizer que, em tal momento de criação da norma, está-se afirmando o que realmente seja o justo, o moral, ou, enfim, a verdade. Tais conceitos éticos, que influenciam a opção da autoridade legitimada a criar norma jurídica, como diz Kelsen, estão sujeitos a um relativismo, posto que não são submetidos a pressupostos de validade, já que escapam da realidade para se inserirem em um campo de abstração, dentro do pensamento afetivo do homem, possuindo um caráter subjetivo e mutável. Portanto, o criador da norma jurídica, seja geral e abstrata, seja individual e concreta, parte das molduras dadas pela ciência do direito (das regras jurídicas que encontram validade em uma norma superior), mas nelas não se esgota. O criador da norma jurídica “[...] no solo tiene en cuenta a la norma superior, sino también a otras normas no jurídicas relativas a la moral, a la justicia o lo que se denomina ‘bien público’, ‘interés del Estado’, ‘progreso’.”15 Assim, sendo a norma jurídica fruto de um processo criativo e, em última análise, um ato de vontade, está sujeita, em si mesma, a um juízo axiológico quanto à sua justiça ou injustiça, derivado de uma análise político-ideológica. Na realidade, o valor atribuído à norma somente será posto a prova à medida em que alcance um certo grau de consenso social, conseguindo uma aceitação da maioria, em um puro aspecto democrático. Ou seja, é na paz social, na harmonia do pensamento da maioria dos indivíduos de uma sociedade, que se encontra o ideal de Justiça, do que seja ético e moral. 15 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 171. CAPÍTULO 4 A JUSTIFICATIVA DO PENSAMENTO DE KELSEN 4.1 Kelsen: um teórico do Estado A grande falha de interpretação da Teoria Pura do Direito, que leva a uma crítica equivocada do pensamento kelseniano, provém, sem dúvidas, do fato de se tomar esta obra mais polêmica de Kelsen sem uma correlação necessária com as idéias que defendeu em seus tratados sobre o Estado e, principalmente, sobre a política e a democracia. Está é a mesma constatação que faz Arnaldo Bastos Santos Neto1: Resulta que esta apropriação da obra kelseniana, efetuada de modo unilateral pelo estudo exclusivo da TPD redunda numa leitura empobrecida do jurista vienense, gerando mitos teóricos que se incorporam ao senso comum dos juristas, como o mito do Kelsen “apologista da lei e do formalismo”, ou do Kelsen “legitimador do totalitarismo e do nazismo”, ou do Kelsen “teórico da obediência cega à autoridade” e outros. Ora, Kelsen2 expressamente combateu o totalitarismo, bem como repudiou uma autoridade absoluta: [...] ningún individuo tiene derecho a imponer su voluntad a los demás. Decir que los juicios de valor solo tienen una validez relativa – principio éste básico en el relativismo filosófico – implica que los juicios de valor opuestos son lógica y moralmente posibles. Dado que todos gozan de la misma libertad e igualdad, uno de los princípios fundamentales de la democracia es que cada cual respete la opinión política de los demás. No es posible encontrar la tolerância, los derechos de las minorias, la libertad de pensamiento y de expresión, que tanto caracterizan a la democracia, dentro de um sistema político que se base en la creencia en valores absolutos. Esta creencia lleva irremisiblemente, desde siempre, a una situación en la cual el que cree poseer el secreto del bien absoluto quiere tener el derecho de imponer su opinión y su voluntad a los demás que están equivocados. Kelsen iniciou suas obras defendendo uma concepção de Estado democrático, segundo a qual valores relativos, como justiça, não poderiam ser ditados como fundamentos absolutos 1 SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. Para reler Kelsen. In: MARIN, Jeferson Dytz (Coord.). Jurisdição e processo: efetividade e realização da pretensão material. Curitiba: Juruá, 2008. p. 92. 2 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 123. de um Estado, posto que, como este Estado está amparado pelo Direito, esta fundamentação serviria como legitimação do poder totalitário. O relativismo defendido por Kelsen é o ponto crucial que assegura o próprio Estado democrático, já que respeita posicionamentos diversos acerca de valores éticos, políticos e de justiça, permitindo que todos participem, assegurando o pluralismo, a tolerância e a defesa das minorias. Desta forma, ao deslocar do campo da ciência do direito a tarefa de atribuição de valor à norma jurídica, considerando o ato de criação do direito como ato de vontade e não de afirmação do direito, Kelsen afasta a possibilidade de justificação de qualquer poder pelo direito, buscando garantir a realização do amplo debate acerca dos valores almejados – não dos valores ‘últimos ou supremos’ – aos demais campos do conhecimento. Ao retirar o valor da norma como fundamento de sua validade, Kelsen permite que tal axiologia seja feita como crítica e, como tal, aceitando toda sorte de discussão acerca dos valores da norma, o que somente irá encontrar pacificação na democracia, e não no próprio direito ditado pelo Estado. 4.2 As correlações entre a Teoria Pura do Direito e a Teoria do Estado de Kelsen A Teoria Pura do Direito propõe o desvendamento do que seja puramente jurídico, sem qualquer influência ontológica da filosofia, da política ou de qualquer outra ciência. Desta forma, permite que se estabeleça, através de uma relação de pertinência da norma jurídica ao sistema que está inserida, o fundamento de validade do Direito, dentro de si mesmo, sem qualquer apoio em juízos valorativos quanto ao conteúdo normativo. Com tal proposição, Kelsen pretendeu retirar da ciência do direito qualquer conhecimento em relação às razões que dariam um fundamento de validade de cunho políticofilosófico ao Direito. Assim, ainda que formal, a ciência jurídica idealizada por Kelsen é capaz de emitir proposições descritivas válidas sobre o Direito, apontando as possíveis molduras normativas que mantêm uma correlação lógica de pertinência com o sistema normativo, apontando, assim, as regras de direito. Porém, é neste ponto que se tem a necessidade de recorrer ao conjunto do pensamento de Kelsen, para entender que a criação do direito não pára nas revelações feitas pela ciência do direito. O processo de formação do direito, de sua criação, vai além do formalismo da ciência pura, para adentrar outras formas de conhecimento, inclusive as emotivas, uma vez que, para Kelsen3, ao “[...] describir el Derecho mediante las reglas de derecho, la ciencia jurídica no ejerce la función correspondiente a la autoridade legal.” Segundo Kelsen4: [...] la autoridad legal competente, no la Ciencia del Derecho, es quien decide si en un caso determinando una conducta dada es legal o ilegal. Los juicios acerca de la Justicia no pueden ser comprobados objetivamente. No es posible incluirlos dentro de la Ciencia del Derecho. Los juicios acerca de la Justicia son juicios de valor morales ou políticos [...]. Portanto, o processo de criação do Direito não está imune à valoração, à axiologia. Esta apenas não fundamenta nem está contida na Ciência do Direito, que cuida apenas da descrição de seu objeto. O próprio pensador vienense firmou que Es imposible decidir de un modo racional y científico entre dos juicios de valor que se oponen. En último término, deciden nustro sentimiento, nuestra volundad, no nuestra razón; el elemento emocional de nuestra conciencia, no el racional, es el que decide en este conficto. 5 É justamente a partir das proposições descritivas que a ciência puramente jurídica revela que o legislador ou aplicador do direito, no momento de criação da norma jurídica, irá exercer um ato de vontade, de cunho político-ideológico, optando pela regra jurídica que se mostre a mais adequada ao seu pensamento, o qual estará, certamente, impregnado de toda sorte de influências filosóficas dos diversos campos do conhecimento. A teoria kelseniana, portanto, debita ao homem a responsabilidade de afirmar o que é justo ou injusto, tarefa diante da qual este se acovarda, delegando-a ora a Deus, ora ao Estado, ora ao próprio Direito, para, depois, sentir-se confortável em atribuir-lhes carência ética, quando ético deveria ser o homem. Kelsen chama o homem à consciência do dever: 3 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p.269. Ibid., p. 150-151. 5 Ibid., p. 39-40. 4 Deste modo el relativismo impone al individuo la árdua tarea de decidir por sí solo qué es bueno y qué es malo. Evidentemente, esto supone una responsabilidad muy seria, la mayor que um hombre puede asumir. Cuando los hombres se sienten demasado débiles para asumirla, la ponen en manos de una autoridad superior: en manos del gobierno o, en última instancia, en manos de Dios. Así evitan el tener que elegir. Resulta más cômodo obedecer una orden de un superior que ser moralmente responsable de uno mismo. Una de las razones más poderosas para oponeerse apasionadamente al relativismo es el temor a la responsabilidad personal. Se rechaz el relativismo y, todavia peor, se interpreta incorrectamente, no porque sea poco exigente moralmente, sino porque lo es demasiado. 6 Kelsen, em sua filosofia, reconhece que a natureza humana inclui impulsos egoístas, violentos e anti-sociais, que devem ser socialmente controlados. Por tal motivo, o criador do direito, enquanto homem que é, pode ver-se tentado – como muitas vezes ocorre, a exaltar seus sentimentos mais recônditos e socialmente indesejáveis. Neste cenário de considerações, à Ciência do Direito atribui-se uma função limitadora da ação do homem, enquanto julgador ou legislador, sem que esta limitação, contudo, signifique anulação de sua vontade. Diria-nos Kelsen7: “Frente a la violencia y el egoísmo originario, la normatividad; frente al editor de las normas, la democracia.” Portanto, é neste ponto, no momento de criação do direito, que Kelsen liga à ciência do direito sua concepção política de Estado, a fim apontar que a criação da norma jurídica é um ato político, que se submeterá ao império da democracia. Observe que a Ciência é independente da Política, mas o inverso não deve dar-se: Aunque la Ciencia deba separarse de la Política, la Política no debe separarse de la Ciencia. Evidentemente, um gobernante, para lograr sus fines, pude usar como médios los resultados que le ofrece la Ciencia [...] Pero, como ya se há dicho, la Ciencia no puede determinar el fin último de la Política. 8 A democracia, para Kelsen, não só é o meio mais hábil para coexistência harmônica dos valores e, portanto, termômetro da aceitação das normas jurídicas postas, como também é o único ambiente propício ao florescimento de uma verdadeira ciência: Dado que la democracia, por su naturaleza intrínseca, implica libertad, y la libertad implica tolerância, no existe forma de gobierno alguna que sea más favorable a la Ciencia que ella. La Ciencia solo pude properar en un clima de libertad. Y este clima de libertad no depende únicamente de una libertad 6 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 59-60. CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 37. 8 KELSEN, 1992, op. cit., p. 262-263. 7 externa, es decir, de su independência respecto a cualquier tipo de influencia del libre juego de argumentos y contraargumetnos. Ninguna doctrina puede ser abolida en nombre de la Ciencia, ya que el alma de la Ciencia es la tolerancia. 9 O Kelsen do senso comum dos juristas contemporâneos, que é frio e apologista do dogmatismo técnico-formal e do desprezo das mazelas da realidade social, não parece ser o mesmo Kelsen que, ao falar de quem seja o homem que reverencia a democracia, mais que filosofa, poetiza, afirmando ser: Aquella persona en quien la experiencia de sí mismo no es tan fundamental ni tan rotundamente diferente de las demás experiencias, las experiencias de los demás [...] Es el tipo de personalidad... el tipo de hombre que, al mirar hacia el outro, oye una voz dentro de sí que le dice: ése ere tú... experimenta al outro... como un igual y un amigo, y no se siente único, sin comparación y sin igual. 10 Os críticos da ‘pretensiosa’ cientificidade do Direito Positivo em Kelsen, defensores da tomada de atitudes, pelo e fora do Direito, que resultem na maior eficácia e efetividade da aplicação da justiça identificada com os interesses das maiorias11, não parecem ter lido um Kelsen igualmente proclamador da Democracia como cenário da discussão e participação sociais: El princípio vital de toda democracia, por lo tanto, no es, com se ha supuesto a veces, la libertad económica del liberalismo, porque puede darse tanto en una democracia socialista como en una liberal, sino más bien la libertad religiosa y de conciencia, el principio de tolerância y, más especialmente, la libertad de la cinecia, conjugada con la creencia en su posible objetividad. 12 O senso comum dos juristas contemporâneos furta da Teoria Pura do Direito e da Teoria do Estado kelsenianos o viés ético-político que lhes é próprio e sustentam que é justamente este viés que a cultura jurídica atual parece carecer13, deixando “[...] oculto el Kelsen que hace precisamente eso que le reclaman: hablar del derecho como espacio político, donde se enfrentan clases sociales, partidos y concepciones del mundo.” 14 9 KELSEN, Hans. ¿Qué es justicia? Barcelona: Ariel, 1992. p. 62. CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. cap. 2. p. 52. 11 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Acadêmica, 1995. p. 170. 12 CORREAS, op. cit., p. 53 13 WOLKMER, op. cit. 14 CORREAS, op. cit., p. 14. 10 4.3 A legitimação do Estado pelo Direito Quando se afirma que o Direito é válido porque é justo, porque é moral ou porque está de acordo com um Direito Natural ou, ainda, busca-se qualquer outra razão de validade que não o próprio Direito, acaba-se por impedir que se faça um juízo crítico de seu conteúdo, pois, nesta concepção, todo Direito está, previamente, justificado. Assim, surge a falsa idéia de que devo respeitar o Direito porque é justo ou porque se conforma com a moral, com o Direito Natural. Porém, tais conceitos de justiça, moral ou mesmo do que seja Direito Natural escapam da apreensão humana, por serem irrascível ao homem, aparecendo apenas como um juízo suposto e, portanto, de índole cultural, subjetiva e variável. Ora, o que é justo e moral para uma civilização submetida à determinada cultura pode não ter a mesma definição para outra sociedade, que vive sobre diferente influência cultural. Da mesma forma, um indivíduo tomado isoladamente pode ter uma concepção diferente do que seja justo ou moral em relação aos demais membros de uma mesma sociedade. Portanto, os valores atribuídos ao Direito não são absolutos e, por tal motivo, são imprestáveis para definir a validade de uma norma jurídica. Veja-se que, assumindo a lógica de que uma norma só é válida se for justa, e sendo o conceito de Justiça relativo, tal raciocínio poderia dar ensejo ao descumprimento de uma norma jurídica existente e proferida por autoridade competente, caso esta norma não se amoldasse a uma concepção de justiça defendida por um determinado grupo social. Porém, não é isto que ocorre, já que toda norma inserida no sistema jurídico deve ser seguida por todos os indivíduos a ela submetidos, uma vez que ao Estado se confere força coercitiva para fazer valer o Direito. Por outro lado, se aceitarmos como absolutos os valores atribuídos ao Direito como fundamento de sua validade, de forma que todo Direito é válido por ser expressão de um valor supremo, estamos, na realidade, legitimando o Estado, já que é ele quem dita as normas jurídicas e cria o direito posto. Kelsen nega à Ciência do Direito o poder de legitimar o Estado pelo direito (e viceversa), vez que, como dito, a legitimação ou justificação impõe a atribuição de um valor, coisa que é incapaz de fazer a ciência, competindo tal empresa a outros campos do conhecimento: La negativa de la Teoría pura a legitimar el Estado por el derecho no significa que considere toda legitimación del Estado como imposible. Sostiene solamente que la ciencia del derecho no está en condiciones de justificar el Estado por el derecho o, lo que es lo mismo, de justificar el derecho por el Estado. No piensa, además, que corresponda a una ciencia justificar cosa alguna. Un justificación es un juicio de valor, que tiene siempre un carácter subjetivo y atañe a la ética o a la política. 15 Assim, possibilitar ao direito justificar o Estado, tornaria possível a imposição de ideologias para justificar o Direito, já que é sempre o valor atribuído pelo Estado, através da concepção daqueles que detém o poder, que irá prevalecer como o bom, o moral ou o justo. Todavia, com sua Teoria pura “Kelsen precisamente hace lo contrario: quitar apoyo a cualquier Estado.” 16 Deste modo, Kelsen, filósofo do Estado, defensor da democracia, em suas obras políticofilosóficas que ficaram pouco conhecidas, sempre demonstrou a preocupação de impedir a justificação, pelo Direito, de uma dominação política, através de um Estado totalitário. É com esta preocupação que Kelsen procurou criar uma ciência jurídica capaz de isentar a validade do Direito de qualquer imposição filosófica de seu conteúdo, o que, certamente, levaria à imposição de uma ideologia política para justificar o Direito e fazer dele, em última razão, um instrumento de dominação. Para Kelsen17, somente “[...] la política, que no es ciencia sino acción, podrá juzgar la legitimidade del poder. Y kelsen tiene una filosofía para juzgar: el orden es legítimo si ha sido creado democráticamente.” Justamente, ao retirar da apreciação do que seja jurídico a idéia do conteúdo valorativo da norma jurídica é que Kelsen conseguiu separar a validade do direito de qualquer concepção pré-jurídica, de cunho ideológico, para situar estas concepções em um outro plano, de análise crítica sobre o direito posto. Graças a sua obra mais polêmica, a Teoria Pura do Direito, Kelsen conseguiu retirar do Direito sua própria justificação ideológica, trazendo-a para o campo dos debates políticos, de forma a tornar possível a apuração do conteúdo valorativo do Direito através da democracia. Sólo una teoría ‘pura’ permite discutir, políticamente el contenido del derecho. Precisamente porque separan la forma del contenido. Claro está, esa discusión no será ‘científica’ según Kelsen; esa discusión será política15 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 197-198. CORREAS, Óscar. Presentación. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 11 17 Id. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 62. 16 ética, filosófica. Kelsen parece decir: salgámonos de campo de la ciencia. Pongamonos, todos por igual, en el campo de la ética. Y hagamos política: confrontemos nuestras ideas de justicia, todas las cuáles tienen el mismo derecho a existir, y ganemos el consenso de nuestros conciudadanos. Y respetemos el resultada. Eso se llama democracia. 18 4.5 A limitação do Poder Político pelo Direito Ao fundar a Teoria Pura do Direito, pautando-a na neutralidade e no princípio da pureza, de forma a repelir da ciência do direito qualquer juízo de cunho axiológico ou fundado em outras ciências sociais ou na filosofia, Kelsen, como já dito, deixa ao criador da norma, a tarefa de valorar o direito, optando pela proposição jurídica que revele o melhor conteúdo segundo suas convicções. Aparentemente, essa neutralidade exaltada por Kelsen, bem como o fato de atribuir ao homem, e não ao direito, a tarefa de emitir juízos de valor, poderia levar-nos a acreditar que um direito assim pensado não imporia limites ao julgador. Desta forma, seria possível imaginar que a teoria de Kelsen aceitaria a figura de um julgador acima do Direito, capaz de impor suas convicções pessoais de forma absoluta e ilimitada, dizendo livremente o que é justo, o que é bom, o que é ético, simplesmente de acordo com sua ideologia. Este julgador ilimitado parece bem representado na figura do presidente Magnaud que, de 1889 a 1904, presidiu o Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, e que, segundo nos informa Chaïm Perelman, ao citá-lo em seu trabalho “Lógica jurídica”19, atraiu a atenção de vários juristas de sua época, devido a forma completamente livre com que decidia seus processos. Segundo Perelman, para o presidente Magnaud, não importava a lei, a doutrina, nem a jurisprudência, pois o mesmo se comportava como a encarnação do direito, que pretendia ver, por si mesmo e à primeira vista, o motivo da própria decisão. Certamente, um julgador com tal postura diante das normas jurídicas representa uma insegurança e uma instabilidade social. Uma espécie de anarquia jurídica, capaz de arruinar as 18 CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. cap. 2. p. 49. (grifo do autor). 19 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes. 1999. p. 97-98. relações sociais e, principalmente, os negócios jurídicos, já que não haveria qualquer freio aos julgamentos. Todavia, esta figura do presidente Magnaud, citada por Perelman, não caberia na teoria de Kelsen, justamente pela força dos conceitos de sua ciência jurídica. Veja que, da mesma forma que o jurista vienense consegue evitar uma justificação do Estado pelo Direito, quando retira deste último o valor ideológico, transferindo-o para o criador da norma, também impõe limites ao momento de enunciação de uma nova norma jurídica, seja por ato do legislador, seja, principalmente, pelo ato do julgador, que cria uma norma individual e concreta para regular uma determinada conduta humana. Estes limites impostos ao aplicador do direito são dados justamente pelas proposições jurídicas reveladas pela Ciência do Direito. Ora, no momento em que a ciência jurídica, através da interpretação das normas postas, revela as molduras jurídicas possíveis dentro do ordenamento, só é dado ao aplicador do direito optar por uma dentre as proposições jurídicas que encontram pertinência em relação ao sistema jurídico. Estas proposições jurídicas variam, todavia, de acordo com as significações lingüísticas que lhe possam ser atribuídas pela sintaxe e pela semântica, não variando, pois, ao infinito ou para qualquer direção. Assim, somente se um enunciado proposto pela ciência jurídica encontrar correlação lógica com o sistema de normas analisado, é que poderá ser considerada como verdadeira proposição jurídica, susceptível de ser transformada em norma jurídica por ato de vontade do aplicador do direito. Dentro desta idéia, se um juízo de valor realizado pelo aplicador não consegue encontrar uma proposição jurídica verdadeira, através de uma interpretação do sistema normativo posto, não poderá o aplicador converter tal juízo em norma jurídica válida, posto que a mesma não seria pertinente ao sistema, devendo ser repelida pelos meios dispostos pelo próprio Direito. Por exemplo, ainda que um julgador considere que a carga tributária no país é muito alta, concluindo, através de um juízo de valor, ser injusto o pagamento do imposto sobre a renda, não poderá enunciar uma norma jurídica isentando o contribuinte do pagamento de tal exação, por que não encontrar pela interpretação do sistema jurídico, qualquer regra jurídica verdadeira que ampare um enunciado prescritivo com tal conteúdo liberatório. Uma proposição jurídica que descreva a não incidência do imposto de renda para o contribuinte, não estando amparado por uma norma jurídica válida, que lhe conceda a possibilidade de isenção ou remissão do tributo, deve ser considerada falsa, pois, através de um juízo de realidade, próprio da ciência do direito, não foi possível encontrar no sistema jurídico uma norma correspondente àquela regra de direito que se pretendia adotar. Por outro lado, analisando a questão de cobrança de encargos bancários excessivos, poderá se construir, com apoio na ciência do direito, uma regra de direito que permita a cobrança de tais encargos, amparando tal permissão nas normas jurídicas que regulam o sistema bancário e que dispõem no sentido da livre pactuação das taxas bancárias. Todavia, apoiando-se em norma jurídica inserida no ordenamento pelo Código de Defesa do Consumidor, que prescreve a proibição de cláusulas contratuais que fixem condições abusivas ao consumidor, poderá ser construída a regra de direito pela qual as taxas bancárias devem ser limitadas. Neste caso, o julgador se vê diante de regras de direito diametralmente opostas, porém ambas verdadeiras, pois encontram suporte em normas jurídicas vigentes no ordenamento pátrio. Assim, o julgador, diante do caso concreto que lhe é apresentado, poderá optar pela regra de direito que lhe pareça mais justa, criando uma norma jurídica específica para regular aquele caso concreto que lhe é posto para decidir, realizando um ato de vontade, pautado em seu juízo subjetivo de valor. Portanto, somente quando a interpretação do sistema normativo permitir encontrar, dentre as interpretações possíveis das normas jurídicas válidas, regras de direito distintas, é que o julgador estará livre para escolher, dentre as possibilidades que lhe são apresentadas pela ciência jurídica, aquela que lhe pareça mais justa, mais ética, ou que se apresente como a melhor opção, em qualquer sentido que avalie segundo suas convicções políticoideológicas. Assim, é justamente a ciência jurídica que irá dar limites ao poder de criação do direito atribuído à autoridade competente, no momento em que revela as molduras jurídicas possíveis ante o sistema normativo vigente. 4.6 Ética e a Moral: fundamento de validade do Direito ou fator de influência na aplicação do Direito? Quando se considera a Ética e a Moral como fundamento de validade do Direito, assume-se a posição de que toda norma jurídica válida o é por ser condizente com tais fundamentos éticos e morais. Assim, cria-se a presunção de que devo respeitar o Direito do modo como posto pelo Estado, pois este se encontra legitimado por seus valores supremos. Em outros termos, se aceita a força coercitiva do Direito porque este se funda em pressupostos de validade absolutos e, pois, indiscutíveis. Portanto, nesta circunstância, a Ética e a Moral servem para dar legitimidade ao Direito e, em última análise, ao Estado, que, na realidade, expõe tão somente a concepção filosófica daqueles que detêm o poder, do que seja ético ou moral, de forma a coincidir tais conceitos com suas concepções particulares. Por sua vez, quando se coloca a Ética e a Moral fora do fundamento de validade do Direito, mas como integrante do juízo crítico realizado no momento de criação da norma jurídica, permite-se a realização de todo tipo de debate acerca de seu conteúdo valorativo, posto que se assume como relativa a concepção de tais valores e, portanto, mutável de acordo com a cultura carregada pelo criador do direito, seja o legislador ou o aplicador do direito. Assim, não sendo absoluto o valor atribuído à norma, mas tão somente um valor relativo, inserido através de um juízo particular da autoridade competente para criar o direito, tal juízo se depara com a possibilidade de ser criticado e revisto a qualquer momento, o que ocorrerá no meio social através da democracia. Portanto, para Kelsen, é na democracia que o direito encontrará seu conteúdo valorativo, o qual será alcançado com o consenso social e não através de uma imposição ideológica ditada pelo Estado. Assumindo a idéia de que não existem verdades absolutas sobre o que seja ético ou moral, a aceitação democrática da norma jurídica posta é que passará a definir sua conformação com tais conceitos, de forma que uma norma jurídica que não corresponda ao senso comum de ética e moralidade certamente não encontrará no meio social a pacificação de opiniões em relação a tal norma, que será tida por não-justa, sendo certo que o próprio Direito, através de seus mecanismos de autocontrole, incumbir-se-á de, mais cedo ou mais tarde, repelir tal norma do sistema jurídico. Assim, Lo único justo es que todos tienen el derecho a proponer su concepción de lo justo en la arena política; y el que convenza a más conciudadanos debe disponer del poder mientras mantenga el consenso para su gobierno. Es esta la única manera, piensa Kelsen – y millones pensamos como el – de mantener la paz, de superar los conflictos entre las distintas voluntades que quisieran establecer las normas según las cuales los otros deben regir sus conductas. 20 A Ética e a Moral, portanto, dentro da leitura aqui proposta da teoria kelseniana, adotada em sua faceta político-filosófica, não devem ser tomadas como fundamento de validade do Direito. Devem ser consideradas como componentes indispensáveis e decisivos no processo de criação mesmo do Direito, dando subsídios à emanação do ato de vontade humano que pretenda ser justo. 20 CORREAS, Óscar. Presentación. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. p. 13. CONCLUSÃO O presente trabalho propôs-se a prestar uma contribuição à Kelsen, no sentido de tentar inocentá-lo da culpa que lhe tem sido atribuída pelos rumos (desastrosos) tomados pelo Direito. A aversão à idéia (mal compreendida) de criação de uma ciência pura do direito, impediu, e continua impedindo, lançar o olhar sobre os fundamentos que levaram Kelsen a buscar uma assim ciência, pura e neutra. De fato, Kelsen defendeu a criação de uma ciência jurídica desvencilhada e independente de juízos valorativos, erguida e estruturada sobre suas próprias condições de pensabilidade, fundamentando, em um movimento ascendente, todo o arquétipo elaborado no último elemento de validade do direito: a norma fundamental. Note-se que a ciência jurídica em Kelsen apenas oferece possibilidades normativas; não a norma em si mesma, fruto da vontade do criador do direito, seja o julgador, seja o legislador. Grosso modo, a ciência jurídica kelseniana se ocupa do estabelecimento das possíveis normas jurídicas que guardam pertinência, que são comportadas pelo ordenamento jurídico, através de um juízo de validade excludente das possibilidades não pertinentes ou não comportadas pelo sistema. A norma jurídica, por sua vez, não é dada pela ciência jurídica, senão construída pelo ato de vontade do criador do direito. Deste modo, não é equivocado dizer que uma assim ciência jurídica detém um minúsculo papel – senão inexistente, como querem alguns – no processo criativo do direito, uma vez que a norma não é produto da ciência, senão de um ato de vontade. Teria lugar, assim, a indagação: qual a função da ciência jurídica nos moldes kelsenianos, se é que tem alguma? Para Kelsen, a ciência jurídica, tal como por ele idealizada, é um instrumento limitador da discricionariedade do julgador, posto que, dadas as molduras comportadas pelo ordenamento jurídico, impõe àquele direcionar seu trabalho criativo a partir de tais molduras. A ciência pura do direito conclama a si a árdua e heróica tarefa de brecar, ou ao menos desacelerar, o desencarrilhado trem do poder. Todavia, ainda que seja negado que a ciência pura do direito tenha logrado o cumprimento de sua proposta – como o sustentaram e ainda sustentam seus milhares de opositores – poucos ou nenhum deles se propuseram a deitar olhar sobre o que de fato anima o pensamento kelseniano, e isto já seria suficiente para redimir a Kelsen. Poucos retrocederam à Teoria da Ciência Pura do Direito a fim de descobrir porque Kelsen desejou uma assim ciência; o que justificaria sua necessidade. Ora, por detrás do discurso kelseniano repousa a consciência de que o direito jamais poderá dar ao homem a medida exata da Justiça. O direito, como produto do homem, jamais deste se desvinculará, ganhando vida e razão próprias a ponto de virar-se para o mesmo homem que o criou e dizer: isto é justo; aquilo é injusto. Aqui, deixou-se de observar que Kelsen apenas procurou estabelecer limites, não ao direito, mas à própria discricionariedade humana. Não se percebeu que Kelsen estava convicto de que a norma jurídica, como expressão do ato volitivo humano, é pura opção político-ideológica. Passou despercebido, de igual forma, que Kelsen reverenciava os juízos axiológicos, porém não lhes negava a capacidade de silenciar os anseios democráticos quando elaborados pelo poder, dado, em especial, seu caráter relativo. Portanto, as entrelinhas foram marginalizadas – ou excluídas – dos debates críticos acerca do pensamento kelseniano, ocultando que não só o conhecimento científico lhe era precioso, mas também o conhecimento emotivo e relativo, dado seu grau subjetivo. Ao ‘purificar’ a ciência do direito, pretendeu atribuir ao homem o dever de se conduzir eticamente, de modo que, mais que expressar sua própria vontade, deveria caminhar na busca de valores estabelecidos socialmente como relevantes. Quem deve ser ético é o homem e não o direito, e isto parece ter dito Kelsen. Dentro da proposta do presente trabalho, e ao contrário do que se possa imaginar, não se pretendeu uma defesa de seu pensamento, mesmo porque, como expressão de uma postura filosófica, a Teoria Pura do Direito é apenas mais uma das infinitas posturas filosóficas acerca do Direito, prestando-se como objeto de críticas, negações, reparações, adaptações. O que se buscou aqui foi a condenação da alienação, da carência, em especial, de conhecimento ético-filosófico por parte do criador da norma, ainda que a partir da Teoria Pura do Direito, uma vez que, no momento de criação do direito, por ele restará canalizada para norma toda sua carga ideológica. Tentou-se demonstrar que, ainda que através da defesa da possibilidade de uma ciência pura do direito, os componentes emotivos e ideológicos estarão presentes no processo de formação do direito. Por um lado, o intuito do trabalho, dentro da idéia disseminada dos ‘rumos (desastrosos) tomados pelo Direito’, foi o de firmar que ‘a culpa, não é de Kelsen’. Por outro lado – e isto parece mais proveitoso pedagogicamente – o intuito da presente pesquisa visou firmar que, ainda que a partir de uma teoria filosófica tida por formalista, é possível, e necessário, que o ensino jurídico se incumba e se comprometa com a formação de homens capazes de dialogar, consigo e com os outros, acerca de outras formas de conhecimento que sejam benéficas à criação de normas jurídicas mais comprometidas com anseios individuais e sociais expressos pela via democrática. Ainda que a partir de Kelsen, é importante desfazer a ilusão de que o Direito, produto humano, seja capaz de revelar, por si próprio, o valor que o mesmo homem pretendeu lhe atribuir. É imperioso retirar da ciência jurídica, qualquer que seja ela, a tarefa de valorar o conteúdo ético da norma jurídica, atribuindo tal mister ao homem, conferindo-lhe a possibilidade do amplo (e democrático) debate filosófico sobre tal conteúdo. Enfim, de um modo mais específico, o reforço das grades curriculares no que respeita, em especial, ao estímulo do debate da Ética e da Moral como formas de conhecimento, parece-nos providência das mais urgentes, a fim de convocar o estudante do Direito, futuro ator do cenário jurídico, a tomar consciência de seu dever. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ADOMEIT, Klaus. Filosofia do direito e do Estado: filósofos da idade moderna. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001. v. 2. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. (Obra-prima de cada autor, 53). BASTOS, Celso Ribeiro. 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