Sobre o positivismo jurídico

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Sobre o positivismo jurídico
O termo “positivismo1” não é unívoco, pois designa tanto o positivismo sociológico
ou positivismo eclético, ou seja, a doutrina de Augusto Comte, e as que a ela se ligam ou se
assemelham, como o estrito positivismo jurídico. O positivismo, ao arredar o direito natural, procura
reconhecer tão-somente o direito positivo, no sentido de direito vigente e eficaz em determinada
sociedade, limitando assim o conhecimento científico-jurídico ao estudo das legislações positivas,
consideradas como fenômenos espácio-temporais.
Para os positivistas2, não há ligação necessária entre direito e moral, e a análise dos
conceitos legais é um procedimento mais valioso, diferentemente das avaliações e questionamentos
sociológicos e históricos. E o melhor método de analisar e entender o direito implica suspender
julgamentos morais até que se estabeleça o que se pretende elucidar – o próprio direito.
Não se pode duvidar que o positivismo jurídico é um fenômeno quantitativamente
majoritário no início do século XX, mas qualitativamente considerado por ser tido como um fenômeno
universal, isto porque tem acompanhado o espírito dos juristas atuais que nele encontram o seu habitat
teórico.
A eliminação do “direito natural3” como fundamento moral do direito realizou-se,
dentre outros fatores pela amoralização lógico-técnica de Hans Kelsen, que com sua Teoria Pura do
Direito, o positivismo jurídico parece ter alcançado a mais completa eliminação da moral ou do direito
natural. Segundo Kelsen é incontestável que a norma deve ser moralmente justa, mas essa justiça não
pode ser estudada pela ciência jurídica, que só descreve normas. Cognoscível é apenas o valor legal, ou
validade, que consiste na conformidade, objetivamente verificável pela razão, de uma norma com outra
que lhe é superior. Daí que sua teoria pura então exclui o que não pode ser objetivamente conhecido,
incluído a moralidade do direito, ou suas funções sociais e políticas.
Por tal razão a ciência jurídica deve tão-somente procurar a base de uma ordem legal,
ou seja, o fundamento objetivo e racional da sua validade legal, não num princípio metajurídico de
moral ou direito natural, mas numa hipótese de trabalho lógico-técnico-jurídica, supondo aquela ordem
legal validamente estabelecida. Logo, a validade da norma jurídica é explicada pelas normas jurídicas
hierarquicamente superiores, sendo que a validade da norma constitucional é justificada pela norma
hipotética fundamental, que não é positiva, mas lógica, e supostamente válida, sob pena de tornar
inválida toda a ordem jurídica dela dependente. Kelsen chegou a um positivismo jurídico radical, que
Vem do latim “positum”, referindo-se à lei posta. O coração do positivismo é a visão de que a validade de qualquer lei
pode ser traçada por uma fonte objetivamente verificável.
2
São os principais expoentes do positivismo jurídico: Jeremy Bentham, John Austin, Hans Kelsen, H. L. A. Hart e Joseph
Raz.
3
Na escola do direito natural, o direito consiste numa série de proposições derivadas da natureza por um processo de
racionalidade, o que é fortemente criticado pelo positivismo, rejeitando a visão de que o direito exista independentemente
da ação humana.
1
concebe o direito positivo como sistema normativo: tornou a ciência jurídica completamente alheia a
aferições valorativas, a influencias políticas e às forças bio-psicossociais.
O racionalismo dogmático de Hans Kelsen é uma repercussão ideológica de sua
época, é uma conseqüência da decadência do mundo capitalista-liberal, marcada pela Primeira Guerra
Mundial, parte do desencantamento do mundo descrito por Max Weber. Essa teoria pe fruto da época
denominada por uma “racionalização do poder”, que reconhecia a existência de ordens jurídicas de
conteúdo político diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que era exibido nos povos
europeus ocidentais. Deveria constituir-se numa teoria do direito que tivesse condições conceituais
para admitir a existência, ao lado do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista,
nazista. Daí a sua vocação adiáfora da mais absoluta neutralidade em face do conteúdo político, ético,
religioso, das normas jurídicas. A teoria pura nasce, portanto, como uma crítica das concepções
dominantes na época sobre os problemas do direito público e da teoria do Estado.
Kelsen reagiu à anarquia conceitual que a “má consistência científica do jurista tinha
reduzido a meditação científica do direito” ao identifica-la à ciência natural. A teoria pura é, pois, uma
tentativa de fundamentação autônoma da ciência jurídica, delineada por um método de trabalho.
Kelsen entendeu que, sendo o direito uma realidade específica, não seria de bom
alvitre transportar para a égide da ciência jurídica métodos válidos para outras ciências. O jurista deve
investigar o direito a partir de métodos próprios, o que só é possível a partir de uma pureza metódica.
A ciência do direito foi por ele submetida a uma dupla depuração.
A primeira procura afasta-la de quaisquer influências sociológicas, liberando-a da
análise de aspectos fáticos que, porventura, estejam ligados ao direito, remetendo o estudo desses
elementos sociais às ciências causais (sociologia, psicologia jurídica, etc.), uma vez que, na sua
concepção, ao jurista stricto sensu não interessa a explicação causal das instituições jurídicas. A
sociologia jurídica estuda a origem do direito, investigando as causas ou fatores sociais que
impulsionaram a autoridade jurídica a prescrever normas, os efeitos acarretados por esses
mandamentos e as razões pelas quais os homens cumprem ou não tais preceitos. Todas essas
investigações sociológicas nada têm que ver, segundo Kelsen, com a ciência jurídica, pois está já
recebe a norma feita. Os resultados obtidos pela sociologia jurídica apenas são importantes para o
legislador, que tem por missão estabelecer normas reguladoras do comportamento humano no seio de
uma sociedade.
A segunda purificação retira do âmbito de apreciação da ciência jurídica a ideologia
política, os aspectos valorativos, ou seja, toda e qualquer investigação moral e política, relegando-as à
ética, à política, à religião e à filosofia da justiça. Segundo a doutrina em tela, a justiça é uma questão
insuscetível de qualquer indagação teórico-científica, porque constitui um ideal a se atingir, variável
de acordo com as necessidades da época e de cada círculo social, dependendo sempre de uma avaliação
fundada num sistema de valores. Dentro de um sistema de referência a justiça é uma e em outro é outra.
Toda valoração supõe a própria aceitação de uma ideologia, assim sendo, cabe o seu estudo à filosofia,
já que o conhecimento filosófico contém também uma natureza crítico-axiológica. O conhecimento
jurídico é ciência e não política. A ciência do direito, a fim de manter seu valor objetivo e absoluto, não
deve fazer considerações teleológicas e axiológicas, que são da alçada da política jurídica. Além disso,
para Hans Kelsen, a ciência tem por missão precípua conhecer seu objeto, daí a nítida tendência
antiideológica da teoria pura do direito, uma vez que a ideologia emana da vontade e não do
conhecimento.
Feitas tais purificações anti-sociológicas e antiideológicas, Kelsen constitui, como
objeto específico da ciência jurídica, a norma de direito. O jurista teórico deve tão-somente conhecer e
descrever tal norma, mediante proposição jurídica.
Kelsen combate, portanto, o sincretismo metodológico de uma ciência do direito
imbuída de sociologismo e política.
Ser e dever ser – contraposição entre o mundo físico, regido pela lei da causalidade
(ser), explicado pela sociologia e política, e o mundo das normas, regido pela imputabilidade, do que se
deve fazer (dever ser), explicado pela ciência do direito.
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