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BRUNA NATHALY SILVEIRA
POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO
INCLUSIVA E O SERVIÇO SOCIAL
TOLEDO-PR
2012
1
BRUNA NATHALY SILVEIRA
POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO
INCLUSIVA E O SERVIÇO SOCIAL
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao
Curso de Serviço Social, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, como requisito parcial à obtenção
do grau de Bacharelado em Serviço Social.
Orientadora: Profa. Dra. Esther Luiza de Souza
Lemos
TOLEDO-PR
2012
2
BRUNA NATHALY SILVEIRA
POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO
INCLUSIVA E O SERVIÇO SOCIAL
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao
Curso de Serviço Social, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, como requisito parcial à obtenção
do grau de Bacharelado em Serviço Social.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Professora Dra. Esther Luiza de Souza Lemos
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
_______________________________________
Professora Ms. Ineiva Terezinha Kreutz Louzada
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
_______________________________________
Professora Dra. Maria Isabel Formoso Cardoso e Silva Batista
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Toledo, 22 de novembro de 2012.
3
À todos os sujeitos que historicamente lutaram
e lutam pelo reconhecimento e garantia de
seus direitos.
4
“A Educação é a arma mais poderosa
que você pode usar para mudar
o mundo”
(Nelson Mandela)
5
SILVEIRA, Bruna Nathaly. Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva e o Serviço Social. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Serviço
Social). Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidades Estadual do Oeste do Paraná –
Campus – Toledo-PR, 2012.
RESUMO
O objeto de estudo do presente Trabalho de Conclusão de Curso – TCC refere-se à Política de
Educação Inclusiva no Brasil, implementada a partir de 2008, num contexto histórico
marcado pela defesa de direitos das pessoas com deficiência. O interesse pelo tema se deve
pela participação em projetos de iniciação científica entre os anos de 2008 a 2012, como
estudante do Curso de Serviço Social. A presente investigação tem como problema central a
pergunta: quais as interfaces entre a concepção de educação inclusiva expressa na “Política de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva” e os princípios ético-políticos do
serviço social brasileiro? A partir deste problema de pesquisa, o trabalho objetivou analisar as
interfaces entre a concepção de educação inclusiva expressa na Política de Educação Especial
e os princípios ético-políticos do Serviço Social brasileiro. Para tanto foi realizada pesquisa
pesquisa bibliográfica e exploratória, baseada em autores com produção significativa sobre o
tema. O procedimento metodológico contou com a seleção bibliográfica das obras dos autores
que fundamentam o Serviço Social: Maria Lúcia da Silva Barroco, Marilda Vilela Iamamoto
e José Paulo Netto; os autores clássicos que discutem a formação do Estado e a especificidade
da política social no Brasil:Florestan Fernandes, Evaldo Vieira, Elaine Behring, Vicente
Faleiros; autores que debatem particularmente a Educação Inclusiva: Enicéia Mendes, Maria
Teresa Égler Mantoan e Gilberta Januzzi. Além da pesquisa bibliográfica, a presente pesquisa
analisou documentação referente a legislação brasileira referente à política de educação e a
normatização do Serviço Social. Considera-se que a interface entre a concepção de educação
inclusiva expressa na Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e
os princípios ético-políticos do Serviço Social brasileiro é a noção de direitos humanos. A
política de educação no Brasil tem demandado a inserção do Serviço Social. O presente
trabalho permitiu identificar uma área específica que necessita ser aprofundada visando a
qualificação da formação e do exercício profissional.
Palavras-chave: Educação Inclusiva; Serviço Social; Direitos Humanos.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................
07
1 A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO NO BRASIL E A ATENÇÃO AS PESSOAS 10
COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS...............................................
1.1 O ESTADO BRASILEIRO E A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO..................................... 10
1.2 OS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DA
PESSOA COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS ................................... 20
2 O SERVIÇO SOCIAL E A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS.................. 28
2.1 A RUPTURA DO SERVIÇO SOCIAL COM O CONSERVADORISMO................... 28
2.2 A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS E O PROJETO ÉTICO POLÍTICO 35
DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO...............................................................................
3 A INTERVENÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NO ÂMBITO DA POLÍTICA DE
EDUCAÇÃO ESPECIAL: A DEFESA INTRANSIGENTE DOS DIREITOS
49
HUMANOS..........................................................................................................................
3.1 SERVIÇO SOCIAL NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO................................................... 49
3.2 A PARTICULARIDADE DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NA
PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA................................................................ 56
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 61
REFERÊNCIAS .................................................................................................................
63
7
INTRODUÇÃO
O Serviço Social é compreendido como uma profissão situada na reprodução das
relações sociais, das relações de classes e o movimento contraditório do capital que as produz.
Trata-se de uma profissão que se desenvolve a partir da contradição burguesa para intervir no
que se denomina “questão social”. Esta é compreendida como a relação contraditória entre
capital e trabalho, expressa nas diversas esferas sociais por diferentes manifestações. É a
expressão das desigualdades sociais e assume perfis de manifestações diferenciados conforme
as particularidades históricas do desenvolvimento do capital.
Como o conjunto das expressões da contradição capitalista, a “questão social” não
pode ser pensada sem a intermediação do Estado. Não se dissocia do trabalho livre, já que sua
gênese reside na produção coletiva e na emergência da classe trabalhadora e sua manifestação
e luta por direito e consequente ingresso na esfera política. O reconhecimento da classe
trabalhadora e as suas manifestações por direitos resultam numa gama de estratégias
governamentais para corresponder a essa necessidade social: serviços e políticas sociais. As
politicas sociais, portanto, se configuram ao mesmo tempo como estratégias governamentais
para intervenção na sociedade, de modo atender a demanda social imposta pelas expressões
da “questão social” e é resultado da luta dos trabalhadores pelo reconhecimento de seus
direitos (IAMAMOTO, 2001). Nesse sentido, a “questão social” e suas formas de
enfrentamento propostas pelo Estado se colocam na base do Serviço Social, sendo suas
múltiplas expressões o alvo da atuação profissional. Tendo em vista o exercício profissional
do Serviço Social via políticas sociais para o enfrentamento das expressões da “questão
social”, as ações governamentais propostas para a área da Educação, também se configuram
como um espaço sócio-técnico de intervenção do assistente social.
Tendo em vistas as definições acima descritas, o presente trabalho de conclusão do
curso tem como o objeto de pesquisa a Política de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva. O interesse pela área da Educação Inclusiva se deve pela participação da
acadêmica no projeto de pesquisa intitulado “Preconceito em relação aos incluídos na
educação inclusiva”, iniciado no ano de 2008, no qual a temática da política de Educação
Inclusiva começou a ser estudada pela acadêmica. Assim como a participação da mesma em
um projeto de iniciação científica durante o período de 2010-2011, denominado “Estudo
teórico-bibliográfico sobre a Educação Inclusiva a partir da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) nº 9.394/96” e, um segundo projeto de iniciação científica nos
8
anos de 2011-2012 denominado “Pesquisa documental sobre a Política de Educação Inclusiva
durante o período de 1996 a 2011”.
O desenvolvimento da segunda proposta de iniciação científica citada inquietou a
acadêmica sobre a relação entre a Educação inclusiva e o Serviço Social e, sobre isto, fez o
seguinte questionamento: quais as interfaces entre a concepção de educação inclusiva
expressa na “Política de educação especial na Perspectiva da educação inclusiva” e os
princípios ético-políticos do serviço social brasileiro? A partir deste problema de pesquisa,
este trabalho objetivou analisar as interfaces entre a concepção de educação inclusiva
expressa na Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e os
princípios ético-políticos do Serviço Social brasileiro.
Definiu-se como objetivos específicos: historicizar a formação social, econômica,
política e cultural do Estado brasileiro e a intervenção no âmbito da educação como direito
social, particularmente na atenção às pessoas com necessidades educacionais especiais;
compreender os princípios ético-políticos que orientam a atuação do serviço social no Brasil;
e relacionar os princípios ético-políticos do Serviço Social e a intervenção no âmbito da
política de educação especial.
Para tanto, esta pesquisa se caracteriza pela pesquisa bibliográfica, exploratória e pela
abordagem qualitativa de dados.
Para chegar ao objetivo proposto, primeiramente foi
realizada a seleção do material correspondente a discussão de autores que fundamentam o
Serviço Social, como Maria Lúcia da Silva Barroco, que em diversas obras discute a questão
da ética na profissão, Marilda Vilela Iamamoto e José Paulo Netto que também tratam dos
fundamentos da profissão. Também foram selecionados alguns autores clássicos que discutem
a formação do Estado e as especificidades da política social no Brasil, como Florestan
Fernandes, Evaldo Vieira, Elaine Behring, dentro outros. Assim como, os autores que
debatem particularmente a Educação Inclusiva, como por exemplo, Enicéia Mendes, Maria
Teresa Égler Mantoan e Gilberta Januzzi. Também se realizou uma pesquisa documental com
base em documentos de domínio público, como as publicações do Conselho Federal de
Serviço Social brasileiro e as políticas dispostas pelos sites do governo federal. Os autores
selecionados o foram tendo em vista que suas discussões embasam o campo teórico do
Serviço Social, e os materiais utilizados para a pesquisa foram obras publicadas, como livros
e artigos científicos e obras não publicadas, como teses e dissertações na área. Foi realizada
leitura sistemática do material e fichamento de citação dos mesmos, para posterior análise e
redação do texto para responder ao problema de pesquisa.
9
O trabalho foi estruturado em três capítulos. O primeiro capítulo apresenta a
construção da atenção às pessoas com necessidades especiais no país, e neste sentido,
apresenta-se em dois pontos de discussão, o primeiro aborda especificamente a formação do
Estado brasileiro e a construção da política de educação no Brasil, para contextualizar a
formação da própria política de educação especial; e apresenta no segundo ponto a articulação
destas reflexões com os movimentos sociais que empreenderam a luta pelos direitos humanos,
e que tiverem como consequência a formulação da educação especial, e posteriormente da
educação inclusiva.
Em um segundo momento, o capítulo seguinte discute os princípios ético-políticos que
orientam a atuação do Serviço Social no Brasil e os direitos humanos, no entendimento de que
a ruptura da profissão com o conservadorismo culminou no compromisso com um projeto
ético-político vinculado as demandas da classe trabalhadora, e neste sentido, a profissão
assume também o compromisso ético e político, materializado no Código de Ética
profissional de 1993, com os direitos humanos. Para tanto, o segundo capítulo apresenta
discussão em dois momentos, o primeiro, discutindo o processo de ruptura do Serviço Social
com o conservadorismo, e o segundo momento, discutindo sobre o projeto ético-político do
Serviço Social e a concepção de direitos humanos defendida pela profissão.
E, em um terceiro capítulo, discutem-se as especificidades que envolvem a profissão e
a intervenção na educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Para isto, a
discussão se apresenta primeiramente sobre a construção da atuação do Serviço Social na
educação e posteriormente, as especificidades da política de educação inclusiva.
Tendo em vista que a intervenção do Serviço Social nesta especificidade da política
educacional, que é a política de educação inclusiva, é ainda um espaço emergente, as
produções teóricas sobre a temática, que relacionam a profissão com as particularidades desta
política também são recentes. Sendo assim, o presente trabalho contribui para ampliar o
debate sobre as relações descritas, ampliando também o leque de compreensão profissional
sobre este espaço de intervenção.
10
1. A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO NO BRASIL E A ATENÇÃO AS PESSOAS COM
NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS
1.1 O ESTADO BRASILEIRO E A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO
No discurso social e político dos dias atuais, a política de educação inclusiva tem sido
objeto de inúmeras reflexões, em diferentes áreas do conhecimento. As discussões sinalizam o
desenvolvimento de novas alternativas governamentais, que assegurem um sistema de ensino
preparado para atender as necessidades educacionais de todos os alunos, ampliando o acesso e
qualidade de ensino aos grupos que historicamente estiveram à parte do sistema de ensino.
A história da construção da política de educação inclusiva se remete as iniciativas da
sociedade civil e posteriormente do governo brasileiro para a inclusão dos alunos com
necessidades educacionais especiais no sistema regular de ensino. Como proposta assegurada
legislativamente, a educação inclusiva se situa no âmbito da política educacional brasileira. E,
a própria política educacional é compreendida como setorização do desenvolvimento das
políticas sociais no país. Este processo é atrelado à própria formação do Estado brasileiro,
dado as configurações e características deste mesmo movimento de construção da nação que
tiveram grandes implicações sobre a conquista de direitos sociais, sobre a natureza e
organização das políticas sociais, e por consequência, sobre a política educacional e política
de educação inclusiva.
Portanto, a construção da educação inclusiva advém da história da organização via
Estado no contexto brasileiro, já que, a exclusão no campo educacional manifestou-se,
sobretudo na figura da pessoa com deficiência. E revelam, ao mesmo passo, a construção da
própria política educacional do Brasil.
A política de educação inclusiva aponta que as determinações para a organização da
mesma proposta não aconteceram de forma arbitrária, mas relacionam um processo de
construção humana em dadas condições existentes que possibilitaram sua emergência.
Destarte, faz-se necessário, assim como apontado por Januzzi (2006), retomar o passado para
compreender o presente e clarificá-lo, dando margem a novas perspectivas de direções para a
mesma política.
Sobre as políticas sociais, Faleiros (1991) esclarece que de fato, estas não podem ser
descoladas da realidade conjuntural nas quais se encontram. Para o autor, elas são: “[...] o
resultado de conjunturas e articulações entre classes que expressam forças sociais em dado
momento específico, mas que se insere em um contexto mais amplo: o modo de produção
capitalista” (FALEIROS, 1991, p. 55).
11
O autor afirma a estreita ligação de causa e consequência entre o desenvolvimento do
modo de produção capitalista no país e o desenvolvimento das políticas sociais. Assim como,
Vieira (2001) também afirma tal vínculo ao apontar que a política social e a política
econômica não podem ser postas em análise separadamente, pois ambas sintetizam-se em uma
unidade que exprime a intervenção do Estado nas relações sociais e na produção, sinalizando
o avanço das bases capitalistas em dadas sociedades.
Sob este pressuposto de indissociabilidade entre política social e política econômica,
especificamente nas relações empreendidas pela produção burguesa, Vieira (2001, p. 18)
conceitua as políticas sociais como “[...] as estratégias governamentais [que] pretendem
intervir nas relações de produção (no caso da política econômica) ou intervir no campo dos
serviços sociais (no caso da política social) [...]”. São, portanto, estratégias governamentais
formuladas em linhas de programas, projetos e planos, para intervenção em áreas diversas da
organização social como a educação, saúde, habitação, assistência social, previdência, e
influem direta ou indiretamente na economia que sustenta tal organização. O autor ainda
exemplifica tal relação ao afirmar que
Por exemplo: nós podemos dizer que a política social se relaciona com a
educação pública, com a saúde pública, com a habitação pública, com a
previdência social, com o lazer, com as condições de trabalho, mas
evidentemente que as questões relacionadas com financiamento têm
diretamente vinculação com a política social, embora esteja no campo da
política econômica (VIEIRA, 2001, p.18).
Se a política social – que aqui é particularizada na reflexão sobre a política
educacional, e posteriormente, a política de educação inclusiva – relaciona-se intrinsecamente
à política econômica, especificamente ao desenvolvimento das bases da organização da
sociedade capitalista, faz-se necessário compreender de que forma o capitalismo esteve
entrelaçado à formação do Estado brasileiro, ao desenvolvimento das políticas educacionais, e
a construção e caraterização da política de educação inclusiva no país.
Sobre a formação do Estado brasileiro, nas suas configurações mediante a entrada da
produção e organização capitalista no país, Fernandes (1987) esclarece que é preciso
compreender os meandros pelos quais o país transcorreu desde a Independência para o real
entendimento de sua formação. Para o autor, a Independência significou um importante
momento para a formação do Estado brasileiro na medida em que demarcou o fim da era
colonial (embora ideologicamente, as bases coloniais permaneceram a sombra da organização
12
do Estado) e inaugurou o que ele denomina de “época da sociedade nacional” (FERNANDES,
1989, p. 31).
É fato que desde a Independência, Portugal havia deixado sob o território brasileiro
uma tradição pouco cívica, uma população analfabeta, escravocrata, com base em uma
economia latifundiária, monocultural e um Estado absolutista. Pouco ou nada se havia de uma
nação, já que a colonização, além da dominação, extermínio e escravização dos povos
indígenas que habitavam em território nacional, fundou a colônia brasileira por razões
sumariamente econômicas (NOGUEIRA, 1998).
Embora não houvesse na historia nacional uma organização das massas para
empreender a luta política pela Independência, fazendo desta uma mobilização pacífica e
segura, o fato de ter rompido com o estatuto colonial já significou um grande movimento para
a formação do Estado brasileiro, já que deixa de colocar-se a mercê das imposições externas
para organizar-se por dentro, a partir de sua movimentação interna, condição esta que
possibilitou a formação de uma sociedade nacional (FERNANDES, 1989).
É importante compreender que, o rompimento com o estatuto de colônia associou-se
aos fundamentos do capital por meio do liberalismo. Fernandes (1989) aponta que o
liberalismo forneceu as concepções gerais e as bases de pensamento que fundamentaram a
reestruturação sociocultural do país em seu processo de modernização, mas não pôde evitar
que a reprodução da dominação escravocrata nas relações sociais da nova nação. O autor
ainda destaca que o liberalismo “[...] não afetou (nem poderia afetar) os aspectos da vida
social, econômica e política que continuaram a gravitar em torno da escravidão e das formas
tradicionais da dominação patrimonialista [...]” (FERNADES, 1989, p. 36).
O estatuto patrimonialista anunciado pelo autor constituiu importante característica da
formação do Estado brasileiro, e continuou a caracterizar a organização do poder no país não
apenas no início de sua formação, mas ressoou e ressoa sobre a intervenção do Estado até os
dias atuais.
Ao encerramento da colônia brasileira para a formação da nação e do Estado
brasileiro, não houve no país o que se compreende propriamente como uma revolução
burguesa, que associou as bases da entrada e do desenvolvimento do capital no país ao
encerramento do antigo processo de produção. Houve, na verdade, uma transfiguração das
antigas estruturas em novas organizações, baseadas no capital (FERNANDES, 1989).
Nogueira (1998) esclarece esta questão ao afirmar que
13
A revolução burguesa brasileira esteve categoricamente vinculada à
conciliação, à busca de composições e acertos concebidos como forma de
compensar os grupos e interesses mais identificados com as fases
econômicas sociais que desejavam superar. Nada disso impediu o
‘progresso’, a modernização ou o desenvolvimento, que chegaram mesmo a
conhecer extraordinária pujança (NOGUEIRA, 1998, p. 92-93).
Os mesmo agentes que impunham dominação durante as oligarquias permaneceram no
controle, apenas com nominação diferenciada (FERNANDES, 1989). Isso significa que a
organização do poder público no país, desde sua gênese, esteve ligada ao poder privado, que
detinham a supremacia sobre a organização da colônia, e permaneceram durante o processo
de modernização do país. A subsunção do interesse público ao privado, dadas na
caracterização patrimonialista no país, foi a condição de formação do Estado brasileiro. Para
Fernandes (1989), os novos cidadãos brasileiros eram os mesmos senhores das oligarquias,
que usavam-se da nomeação de cidadão para intervir na ordenação da nova nação;
As figuras coloniais se transfiguram nos cidadãos do novo tempo. Mais
especificamente, os senhores das oligarquias se caracterizaram como os
senhores-cidadãos e empreenderam, com base no liberalismo, a defesa da
liberdade, justiça, nacionalidade, combate à escravidão, progresso e causa da
democracia (FERNANDES, 1989, p.36).
Trabalhavam e sinalizavam o caminho da autonomia e supremacia do povo brasileiro,
mas de uma pequena parte que se auto nominou “povo brasileiro”. Mantém-se a dominação
da nação por parte daqueles que já o tinham quando as oligarquias imperavam. A organização
de um Estado e a aparente revolução burguesa serviram de camuflagem da manutenção do
governo brasileiro da mesma classe que o antes detinha o poder político. As elites tendiam a
afirmar-se como a sociedade civil na formação do estado brasileiro. Neste sentido,
para objetivar-se e agir politicamente, no patrocínio de seus interesses gerais,
os estamentos dominantes precisavam do aparato administrativo, policial,
militar, jurídico e político inerente à ordem legal. E precisavam dele não
privada e localmente, mas no âmbito da Nação como um todo
(FERNANDES, 1989, p. 45).
A própria formação da política social no país segue este mesmo processo, designada
pelas especificidades do desenvolvimento do capital na nação. Já se sabe que no Brasil não
houve uma revolução burguesa propriamente dita, tampouco, para a conquista das políticas
sociais também não houve grandes manifestação da classe operária que pressionasse a
administração pública para a questão. As manifestações populares só iniciaram num período
14
posterior à abolição dos escravos, mas especificamente na primeira década do século XX.
Para Behring e Boschetti (2010),
[...] a criação dos direitos sociais no Brasil resulta da luta de classes e
expressa a correlação de forças predominantes. Por um lado, os direitos
sociais, sobretudo trabalhistas e previdenciários, são pauta de reivindicações
dos movimentos e manifestações da classe trabalhadora. Por outro,
representam a busca de legitimidade das classes dominantes em ambiente de
restrição de direitos políticos e civis1 (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p.
78)
E esta, é outra manifestação da contradição fundante do próprio capital por intermédio
das bases liberais.
Para esta organização na qual uma classe permanecia na dominação, a educação
também se configurava como privilégio destes mesmos “cidadãos”. De certo, a história da
política educacional brasileira evidencia que a educação foi alvo das preocupações
governamentais sempre nos momentos em que os segmentos dominantes da sociedade
manifestaram precisão dela. À medida que um novo modo de produção – o capitalismo –
emergiu, exigindo uma nova configuração de mão-de-obra, a educação popular foi sendo
articulada para suprir esta necessidade, até o momento em que as reivindicações populares
passaram a tê-la como um direito (JANUZZI, 2006).
É fato que, pela Independência, passaram a ser meios da burocratização
patrimonialista, construiu-se um estado nacional mediante a herança colonial ao mesmo
tempo em que se usou do liberalismo se como condição para o rompimento com o estatuto
colonial. Assim como afirma Fernandes (1989, p. 68) “[...] o que ocorreu com o estado
nacional independente é que ele era liberal somente em seus fundamentos formais, [...] na
prática, ele era instrumento da dominação patrimonialista ao nível político [...]”. Enquanto
meio de dominação patrimonialista o Estado tratava-se como um Estado nacional preparado
para servir os interesses econômicos, sociais e políticos dos dominantes e, enquanto fonte de
garantia de direitos, configurava-se como um Estado nacional liberal, democrático e moderno
(FERNANDES, 1989).
Nesse contexto, o acesso das pessoas com deficiência ao universo escolar foi
paulatinamente sendo construído a medida que também se construiu e ampliou o acesso da
população em geral ao sistema de ensino. E, ao longo da construção de um sistema de ensino
1
Direito civil e político: direito à vida, à integridade física, ao voto, à liberdade, etc. Direitos sociais e culturais: à
saúde, à educação, habitação, etc. Direitos econômicos: ao trabalho e salário digno (PEREIRA; VINAGRE,
2007).
15
regulamentado como uma política educacional, a exclusão apresentou-se, sobretudo na figura
da pessoa com deficiência (COSTABILE; BRUNELLO, 2005). Pela análise da construção da
educação da pessoa com deficiência – em um contexto nacional e mundial – que se propõe
alternativas de questionamento e enfrentamento à exclusão na educação, como a educação
inclusiva. Portanto, a educação inclusiva construiu-se a partir do desenvolvimento da
educação especial2 no país. Concomitante ao desenvolvimento da política educacional, a
política de educação inclusiva também enlaça interesses burgueses, ambas são mediadas pela
contradição própria do modo de produção vigente.
Para Januzzi (2006) enquanto era conveniente, as pessoas com deficiência
continuaram segregados da sociedade, e as iniciativas de construção dos espaços educacionais
para estas pessoas foram a princípio, empreendidas em função da necessidade de economizar
os fundos públicos com asilos e manicômios, considerando que, se educados, estas pessoas
poderiam se inserir no universo de trabalho. E, neste mesmo sentido, a própria escola
encarrega-se de selecionar aqueles que consideram anormais, aqueles que não correspondem
as expectativas da classe dominante da sociedade, pautadas num modelo de normalidade
criado a partir do conjunto de valores que a sociedade obedece em dado momento da história.
Os primórdios da construção da educação das pessoas com deficiência remontam ao
século XVI. Esse período denota o início da construção de uma intervenção governamental
para a educação dos deficientes, embora emoldurada como iniciativa do governo delegada a
organizações privadas, caráter próprio da constituição patrimonialista do Estado brasileiro. As
primeiras manifestações para a educação das pessoas com deficiência mantinham um caráter
institucionalizado e, advieram mediante a disseminação das ideias liberais no país, entre os
séculos XVIII e XIX, o que reforça os objetivos de mercado impressos em tais tentativas
(JANUZZI, 2006).
As mesmas preocupações de elite se manifestaram no âmbito educacional. Suas
reivindicações propiciaram a discussão do ensino primário pelo governo, mas foram
abandonadas e levaram a organização de algumas poucas escolas, que atendiam apenas um
pequeno grupo de cerca de 2% (dois por cento) da população, e ainda eram localizadas em
territórios restritos (JANUZZI, 2006). Nesse período, a educação das crianças com deficiência
teve poucas manifestações e nas configurações já mencionadas, como empreendimentos de
2
Embora a relação com a educação especial na construção da educação inclusiva, vale ressaltar que a inclusão
supera a inserção apenas dos sujeitos da educação especial, considerando que não se remete apenas a educação
dos deficientes, mas a todos os grupos marginalizados que não participavam do sistema de ensino.
16
pessoas sensibilizadas a temática que tinham apoio governamental precário, já que a
preocupação da nação estava em elevar o país ao progresso dos demais estados liberais.
No final do século XIX surgiram as primeiras escolas especiais, destinas à educação
das crianças com deficiência. Por educação especial compreende-se “[...] o conjunto de
serviços educacionais não disponíveis não disponíveis nos ambientes sócio educacionais
‘normais’ ou ‘regulares’ [...]” (FERREIRA, 1995, p. 17). Portanto, ela abrange todos os
serviços, atendimentos e outros procedimentos destinados a pessoa com deficiência, pautada
em um currículo diferenciado com conteúdos especiais, com metodologia especial, materiais
didáticos especiais e recursos humanos especiais, embora ainda empreendesse os mesmos
objetivos da escola regular (idem ibdem). Da França vieram escolas especiais para cegos e
surdos, embora o ensino para os deficientes se prolongasse em precariedade até a metade do
século seguinte.
A precariedade de tais serviços destinados à educação geral e a educação das pessoas
com deficiência são decorrentes das já mencionadas características que fundaram o Estado
brasileiro. Para Nogueira (1998) o próprio processo de formação do Estado nacional criou e
fez com que a administração pública convivesse com grandes déficits nas configurações de
gestão pública, reflexo do atrofiamento das relações entre as dimensões do fenômeno estatal e
as dimensões da sociedade civil. A isso, o autor também atribui responsabilidade ao caráter
patrimonialista da formação do Estado. Estas características produziram uma intervenção
estatal compreendida como ineficaz e ineficiente, no sentido de responder as demandas da
real sociedade civil brasileira com intervenções mediadas por políticas sociais.
Sobre este momento da formação do Estado e da construção de sua intervenção,
Nogueira (1998) compreende que,
Desde cedo, portanto, o setor público, esteve instrumentalizado pelas
oligarquias locais/regionais e pelos grupos econômicos dominantes. Acabou,
então, por ser fortemente condicionado por interesses, hábitos e estilos do
mundo privado, que buscou formatar o espaço público como uma fonte de
privilégios pessoais ou grupais e de distribuição de cargos, benesses e
prebendas. Como é evidente, tal intimidade entre o mundo público e o
mundo privado dificultou a convivência da burocracia estatal com padrões
superiores de racionalidade, eficiência e organicidade (NOGUEIRA, 1998,
p. 91).
A partir da década de 1920, multiplicaram-se a criação das escolas especiais, dando
expressividade ao desenvolvimento da educação especial no país (FERREIRA, 1995). Tal
manifestação foi parte de um movimento nacional que impulsionou o avanço na conquista de
17
direitos sociais no país, em um período de grande agitação e fomento da população em
resistência ao antigo regime oligárquico, que imperou no país até 1920/1930. O rompimento
com as bases oligárquicas possibilitou a emergência de um novo regime de governo, que
trouxe consigo significativos avanços nos direitos sociais. Embora ainda marcado pela
contradição fundante da própria política social, que parte das pressões populacionais e ao
mesmo passo é instrumento de “abafamento” social, o período foi um marco na história do
desenvolvimento dos direitos sociais da nação, com importantes rebatimentos sobre a
organização da educação geral e da educação das pessoas com necessidades educacionais
especiais.
Desde 1920, fatores internos e externos começaram a operar grandes transformações
no antigo sistema oligárquico brasileiro, com grandes consequências no campo econômico,
que favoreceu a eclosão de diversos movimentos operários no país. Depois dos operários, o
militares é que empreenderam agitos em função das condições do país. A exemplo destas
movimentações, em 1922 os jovens oficiais do Rio de Janeiro revoltaram-se. Novamente em
1924, os militares de São Paulo é que se organizaram e chegaram a governar a cidade por
alguns dias. Estes uniram-se com outros militares do sul do país em uma marcha que
percorreu vários quilômetros país a fora, conhecido como Coluna Prestes, pela liderança de
Luiz Carlos Prestes (CARVALHO, 2002).
De certo, os militares detinham grande influência no país durante o início da Primeira
República, considerando que foram eles os protagonistas da proclamação da República em
1889. Entretanto, as oligarquias haviam assumido a supremacia de governo nos anos
seguintes. Sobre isto, as movimentações militares a partir de 1922 pretendiam recuperar o
poder militar perdido. Essa fomentação militar caracterizou movimentos de oposição a
estrutura oligárquica até então presente no país, assim como ocorrido em outras áreas da
sociedade brasileira, como na cultura. Em 1922, a organização da Semana da Arte Moderna
em São Paulo também caracterizou uma movimentação de resistência empreendida por
artistas plásticos, músicos e escritores de expressividade nacional, que pelas artes exibiam
suas críticas ao mundo cultural dominante na realidade brasileira (CARVALHO, 2002).
A década de 1930 no Brasil é considerada por Carvalho (2002) como um período
decisório para os direitos sociais, pelas constantes e aceleradas mudanças sociais e políticas
do período. No início desta mesma década, encerrou-se no Brasil a Primeira República com a
Revolução de 1930
Embora a sumária relevância das conquistas do período sobre a organização da
intervenção do Estado brasileiro e o consequente avanço na conquista de direitos sociais,
18
Nogueira ainda aponta as heranças coloniais presentes na estrutura, organização e intervenção
do Estado. Ele afirma que,
Mesmo mais tarde, já na fase da industrialização e do protagonismo estatal, a
burocracia continuaria sentindo os efeitos dessa constituição. Apesar de
fortemente estimulada pela Revolução de 30, a burocracia brasileira
terminaria por ser ‘vencida’ na sua disciplina pela pressão direta dos
interesses econômicos dominantes, a que sempre se manteve muito
receptiva, especialmente quando se permitiu ao funcionário público
acumular o exercício simultâneo e generalizado da atividade na empresa
privada e na pública (NOGUEIRA, 1998, p. 91-92).
A Revolução de 1930 instaurou no país um período no qual Vieira (2001) nominou de
controle da política. A ditadura instaurada por Getúlio Vargas ao mesmo passo em que
manifestou as bases da herança colonial, onde a intervenção estatal assume um padrão
assistencialista (já que se configurava como a concessão de “favores” da classe dominante,
que se auto denominou de sociedade civil brasileira, fundando e assumindo a administração
do Estado), expressa na famosa expressão “pai dos pobres”. Embora neste período, houvesse
uma dada ampliação em alguns setores, como os trabalhistas e previdenciários em função da
movimentação dos trabalhadores, outras concessões foram realizadas como instrumento de
afirmação da administração elitizada operante (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).
No campo da educação, diversas tentativas de reformas importadas dos Estados
Unidos, também tiveram grande influência sobre a organização social do país e,
sumariamente sobre a educação das pessoas com deficiência. Neste período, a educação das
pessoas com deficiência e a educação geral foram fortemente influenciadas por um discurso
médico-pedagógico, que agudizou a exclusão na educação – e a exclusão destas da educação.
Este discurso, empreendido por Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho,
falava em nome da saúde pública. Pregava-se a necessidade de higienizar a população para
que o país se desenvolvesse. Higiene esta que se perpetuava nos corpos e mentes da
população, tendo em vista que as pessoas pobres e com deficiência eram responsabilizadas
para miserabilidade do país e também por reproduzir um tipo psíquico inferior às demais
pessoas – da elite brasileira (PATTO, 1998).
As deficiências foram associadas a problemas de saúde como sífilis, tuberculose e
doenças venéreas. Articulado a estes preceitos, as escolas especiais foram criadas para
propagar a educação das crianças “anormais”, considerando que a educação, juntamente com
a saúde, foi considerada instrumento para regenerar a população. A criação e disseminação
das escolas especiais neste período não tiveram como motivação a educação destes alunos,
19
mas as preocupações médico-pedagógicos – e em nome da ordem e progresso da nação – que
legitimaram a exclusão dos deficientes do sistema de ensino, e da sociedade como um todo,
para evitar a germinação dos considerados desajustados sociais (JANUZZI, 2006).
Ênfase também foi dada ao estudo das diferenças individuais e características que
levam ao apartamento dos “normais” e “anormais”, dos correspondentes ao sistema e dos não
correspondentes. O sucesso pessoal foi valorizado, e ideologicamente propagada a ideia de
que alguns tipos humanos não são bons em desempenho para a sociedade. Estes tipos
humanos são aqueles considerados por Apple (1982, p. 194) como “[...] histórica e
ideologicamente condicionados [...]” a tal posição social. A ideologia dominante, categoria
associada a estes preceitos, transfigura a educação em reprodutora do modelo social
dominante (FERREIRA, 1995).
Durante este período, as motivações e interesses para a educação das pessoas com
deficiência voltadas ao trabalho e desenvolvimento econômico da nação, configuraram uma
intervenção estatal ainda precária, mas assumida e executada pelo governo, em escolas
especiais públicas – já que em períodos anteriores a tarefa de educar a pessoa com deficiência
era delegada a iniciativa privada. O reformismo empreendido pela educação atingiu também
outras áreas como a saúde. As campanhas sanitaristas descobriram um Brasil fundado na
miséria e precariedade de vida, portanto, carente de intervenção para atenuar tais condições
sócio econômicas.
Sobre a educação das pessoas com deficiência, esta permanecia delegada as escolas
especiais, que embora assumidas indiretamente pelo Estado, ainda cumpriam sua função de
maneira precária, discriminatória e excludente. Mesmo com tantos avanços no campo social
imputado pelo populismo, o Estado mantinha-se por duas bases: uma racional-legal e outra
patrimonialista. Estas bases alimentavam um Estado macrocefálico, nas palavras de Carvalho
(1988), já que tinha uma grande cabeça com braços pequenos: administração restrita à corte e
intervenção para as províncias e municipalidades limitadas pela herança social da formação
do Estado. O autor ainda afirma que desde o Império ao populismo dos anos 30, este caráter
permaneceu ávido na administração pública brasileira.
Sobre esta mesma administração, Nogueira (1998) afirma que embora o citado caráter
hereditário da formação do Estado brasileiro, os anos 1930 também se caracterizaram pelo
amadurecimento do Estado, que passou a se organizar e efetivar como uma instituição
“político-jurídico-administrativa”. Veremos a seguir que este processo não foi sem lutas e
reivindicações por parte daqueles que detém necessidades sociais.
20
1.2 OS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DA
PESSOA COM NECESSIDAES EDUCACIONAIS ESPECIAIS
O processo pelo qual o Estado brasileiro organizou-se se fez ao mesmo passo em que
sua intervenção no campo educacional e na educação especial foi também se construindo,
atreladas às necessidades imputadas pela emergência do capital e pela conquista dos
trabalhadores pelos seus direitos.
A promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Organização das
Nações Unidas no ano de 1948, apresentou alguns princípios que fomentaram os movimentos
em prol da educação das pessoas com deficiência. A declaração aponta os direitos inerentes à
pessoa humana e amplia a dimensão de direitos que até então eram privativos de
determinados segmentos sociais. Neste processo, assegurou à pessoa com deficiência o direito
à educação. Também enfatizou a luta contra a discriminação e qualquer outra manifestação de
preconceito, características também atreladas à exclusão das pessoas com deficiência da
educação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).
O Artigo XXVI Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma tais garantias:
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será
obrigatória. A instrução técnico profissional será acessível a todos, bem
como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será
orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e
do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 1).
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha sido promulgada em
1948, foi somente a partir de 1960 – uma década depois da disseminação acelerada das
escolas especiais – que movimentos sociais, fundamentados na própria declaração,
fomentaram diversos questionamentos à segregação de modo geral, portanto, também da
segregação dos alunos com deficiência do sistema de ensino regular. Tais movimentos
empreendiam a luta em função da pessoa humana, questionavam as bases de pensamento
hegemônicas e afirmavam-se como organização coletiva.
Estes movimentos situam-se como questionamentos a realidade posta, e formam o
leque de nuances pelas quais os questionamentos à situação escolar das pessoas com
deficiência se construíram. Havia-se instituído uma forma de educar os considerados
“ineducáveis”, nas palavras de Mendes (2006), entretanto, pela organização de um sistema
21
paralelo à educação geral/regular. Portanto, embora “educados”, as pessoas com deficiência
continuavam segregadas.
As respostas a estes questionamentos foram apresentadas por diversos países nas
configurações de bases legais3 para assegurar o acesso e permanência dos alunos com
deficiência ao sistema regular de ensino (MENDES, 2006). Estava preparado o contexto para
a formulação da proposta de integração escolar, disseminada mundialmente a partir de 1970.
A integração tem como base o princípio da normalização. Este princípio se originou
nos países nórdicos e, pressupõe que as pessoas com deficiência tem o direito de gozar de um
estilo de vida considerado normal para a sua cultura, com a mesma oportunidade de
participação na comunidade que os demais (MENDES, 2006). Esta mesma ideia é
apresentada por Mantoan (1993) ao esclarecer que o princípio da normalização tem como
objetivo ampliar o acesso das questões comuns em uma dada cultura às pessoas que por
alguma razão foram prejudicadas em seu desenvolvimento. Portanto, a integração pautada na
normalização fundamenta a ideia de que todas as crianças devem participar do mesmo
ambiente escolar e desenvolver as mesmas atividades. Para Faleiros (1980), este mesmo
caráter normalizador está presente na própria constituição e desenvolvimento das políticas
sociais em geral, como um caráter ideológico que propaga a estigmatização e controle de uma
parte da população.
A partir da disseminação do princípio da normalização nos países Europeus e pela
América do Norte, diversas ações com o objetivo de integrar as crianças com deficiência
possibilitaram a desinstitucionalização destas crianças e sua consequente inserção nas escolas
regulares (MENDES, 2006).
A integração criou uma inserção parcial dos alunos com necessidades educacionais
especiais nas classes regulares, orientada pelo desenvolvimento individual destes alunos, ou
seja, o grau de inserção do aluno na classe regular depende exclusivamente do avanço ou
retrocesso no desenvolvimento de cada aluno. Esse sistema foi materializado pela criação das
classes especiais dentro das escolas regulares. Os alunos com deficiência, ou qualquer outra
necessidade educacional especial dividiam a frequência escolar entre os dois espaços, classe
regular e classe especial (MANTOAN, 1993).
A mesma autora ainda afirma que a integração se organiza com base em um sistema
de cascata, com diferentes níveis de inserção na classe regular. Para ela, a cascata
possibilitava o trânsito do aluno “da classe regular ao ensino especial” (MANTOAN, 1993,
3
Pode-se considerar que a partir deste momento da historia humana, começou-se efetivamente a construção das
bases legislativas que culminaram na política de educação inclusiva.
22
p.4). Mendes (2006) acrescentou ao debate sobre a integração os diferentes níveis desta
cascata, apresentando-os como: classe comum, classe com serviços suplementares, classe
especial em período parcial ou integral, escola especial, lares e hospitais.
Os diferentes níveis de integração nas classes regulares objetivavam oferecer o
atendimento conforme a necessidade e desenvolvimento de cada aluno. Nota-se que a tônica
da proposta de integração escolar é o aluno. A proposta se desenvolve centrada na adaptação
do aluno para corresponder à estrutura escolar. A escola e a classe regular não se modificam
em correspondência as necessidades dos alunos, mas os alunos se modificam para
corresponder ao que a escola oferece.
Ferreira (1995, p. 32) esclarece que neste período, embora a insuficiência da proposta
integradora para o enfrentamento da exclusão, houve uma ampliação do acesso à escola com a
abertura das classes especiais pelo Estado. Isso significa que o Estado já havia elaborado sua
intervenção para a inserção das pessoas com deficiência nas escolas regulares em moldes de
uma política social, chamada de política de integração escolar.
Durante a década de 1980, esta proposta foi amplamente difundida em esfera mundial.
Nesta mesma década, na realidade brasileira, ocorria que o país se organizava a partir do
enfrentamento e fim da ditadura militar, imposta desde os anos de 1964. As constantes
manifestações da sociedade civil no contexto de encerramento do regime ditatorial
apresentavam um cenário propício à ampliação de direitos políticos, civis e sociais. Fruto de
intenso debate, em 1988, foi aprovada a Constituição Federal que, formulada num contexto de
avanço e consolidação de direitos, também apresentou o direito à educação como afirmação
legislativa no Brasil.
Sobre a Constituição Federal de 1988, Vieira (2001) esclarece que,
Em nenhum momento a política social encontra tamanho acolhimento em
Constituição brasileira, como acontece na de 1988 (artigos 6º a 11): nos
campos da Educação (pré-escolar, fundamental, nacional, ambiental etc.), da
Saúde, da Assistência, da Previdência Social, do Trabalho, do Lazer, da
Maternidade, da Infância, da Segurança, definindo especificamente direitos
dos trabalhadores urbanos e rurais, da associação profissional ou sindical, de
greve, da participação de trabalhadores e empregadores em colegiados dos
órgãos públicos, da atuação de representante dos trabalhadores no
entendimento direto com empregadores. O capítulo II, do Título II (Dos
Direitos e Garantias Fundamentais), alude aos direitos sociais, pertencentes à
Constituição de 1988 (VIEIRA, 2001, p. 4).
Em relação à política educacional, Vieira (2001) ainda afirma que a Constituição de
1988 concedeu amplos direitos neste campo, apresentando a maior importância que área
23
assumiu. A mesma constituição ainda descreve a intervenção no campo da educação assumida
essencialmente pelo Estado, em seu Artigo 205, apontando a educação como dever do Estado:
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2012ª, p. 33).
Nota-se que a Constituição Federal de 1988 apresenta a educação como direito,
descreve o princípio da universalização do acesso à educação pública, gratuita e de qualidade,
na medida em que expressa a educação voltada ao desenvolvimento das potencialidades
humanas subsidiando o aluno com os recursos necessários para sua aprendizagem. O mesmo
artigo faz menção à educação das pessoas com deficiência, afirmando a preferência do
atendimento na rede regular de ensino, assim descrito “[...] atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (BRASIL,
2012ª, p. 34).
Isso significa que, a educação das pessoas com deficiência também passou a ser
assumida pelo Estado. Embora tal enunciação no âmbito brasileiro – e a disseminação da
proposta de integração escolar no cenário mundial – ainda não se via no país possibilidade de
educar ao mesmo tempo e espaço, pessoas com e sem deficiência. O autor ainda aponta que a
concepção da educação enquanto direito só pode ser pensada dimensionando-a a partir da
Constituição Federal de 1988.
No final desta mesma década, algumas críticas começaram a apontar as debilidades do
modelo integrador difundido mundialmente. Mendes (2006) aponta que a maioria destas
críticas discursava sobre a origem e significado do termo integração, que implicava na sua
objetivação de forma equivocada. Para eles, o termo integração designa a união de uma parte
ao todo, fazer parte de um todo. A partir deste sentido, a integração escolar apontava como
fundamento apenas o acréscimo da pessoa com deficiência ao todo do universo escolar. E, de
fato, a base de funcionamento do processo integrador recai sobre a adaptação do indivíduo
para pertencer a estrutura escolar, que não se dispõe a nenhuma modificação em função do
aluno.
Tal impressão também reafirma a ideia de que este mesmo processo impõe uma
individualização de um movimento que é social. Ao supor a adaptação do aluno e sua
progressiva inserção nas classes regulares, pautadas no desenvolvimento individual do aluno,
a integração responsabiliza o aluno por suas mazelas, dificuldades, capacidade de unir-se ao
universo escolar regular e, portanto, o responsabiliza pela exclusão que o assola: a exclusão se
24
converte em um “problema individual”. Quando, na realidade, a exclusão se remete à
estrutura social, é parte constitutiva de seu funcionamento da sociedade de mercado
(SAWAIA, 2010).
Tendo em vista os questionamentos apresentado ao processo da interação escolar, no
final de 1980, a literatura norte americana apresentou pela primeira vez o uso da palavra
inclusão. Dois movimentos de reforma na educação regular dos Estados Unidos resultaram na
formulação deste termo, que posteriormente se difundiu para os movimentos europeus e para
as demais partes do mundo (MENDES, 2006).
O primeiro movimento foi designado de proposta da Iniciativa da Educação Regular.
Esta proposta pregava a união dos recursos da escola comum e da escola especial, de forma
que os alunos estivessem inseridos nas escolas comuns. Esta proposta não dispensava o uso
de serviços da educação especial separadamente, entretanto, assegurava que os alunos fossem
apoiados dentro da sala comum, inutilizando a sala de recursos ou classe especial antes
pressupostos pela integração. A segunda proposta, a Inclusão Total, posicionou-se de forma
radical pela presença em tempo integral dos alunos com deficiência nas classes comuns de
acordo com a sua faixa etária. A segunda proposta não tinha a preocupação com o
desenvolvimento intelectual do aluno, mas com sua participação, independente das
necessidades educacionais dos alunos. Processo este, que reforçava a exclusão em sala de aula
tendo como parâmetro para tal as disparidades no desenvolvimento intelectual dos alunos
(MENDES, 2006).
As duas propostas apresentam algumas concepções comuns e outras divergentes. A
partir da convergência destas propostas na ideia da necessidade de unificar o ambiente escolar
para alunos com ou sem deficiência, as escolas norte americanos começaram a empreender
duas correntes de inserção dos alunos: educação inclusiva e inclusão total. O termo educação
inclusiva surgiu nos anos de 1990, com as ideias do termo inclusão, já manifesto em outras
áreas de compreensão, mas aplicado ao universo escolar – não na sala de aula ou no aluno
(MENDES, 2006).
Embora, a origem do termo educação inclusiva esteja ligada a uma reforma do ensino
regular norte americano, a ideia da inclusão educacional amplia-se em seu sentido, superando
o conceito de reforma. Apresenta-se como um novo paradigma educacional, já que imprime
um novo sentido ideológico para a organização da educação. Ao mesmo passo e relevância,
alguns movimentos europeus também foram fundamentais para a disseminação da ideia de
uma educação inclusiva, como o encontro realizado na Espanha, que resultou na Declaração
de Salamanca, em 1994. Este documento foi assinado por diversos países assegurando o
25
compromisso dos mesmas com a luta contra a exclusão na educação e o consequente trabalho
para a educação das pessoas com deficiência (JANUZZI, 2006).
A educação inclusiva não pode ser considerada uma continuidade da proposta da
integração escolar. Diferentemente da integração, a inclusão centra-se na modificação da
escola, da estrutura e dos métodos para atender a especificidade do aluno. Neste sentido, a
organização escolar é que deve se desenvolver e modificar-se para receber o aluno. A
responsabilidade pelo processo educativo e desenvolvimento dos alunos passa a ser da escola.
Assim como assegura Januzzi (2006), a educação inclusiva,
[...] em vez de focalizar a deficiência da pessoa, enfatiza o sistema de ensino
e a escola, bem como as formas e condições de aprendizagem, em vez de
procurar, no aluno, a origem de um problema, define-se pelo tipo de resposta
educativa e de recursos e apoios que a escola deve proporcionar-lhe para que
obtenha sucesso escolar; por fim, em vez de pressupor que o aluno deva
ajustar-se a padrões de ‘normalidade’ para aprender, aponta para a escola o
desafio de ajustar-se para atender a diversidade de seus alunos (JANUZZI,
2006, p. 188).
Os reflexos deste processo começaram a se disseminar na realidade brasileira também
a partir de 1990, entretanto, com outras configurações (MENDES, 2006). No país se
organizava outros avanços no campo da conquista de direito sociais, embora a conjuntura
social pressionasse a organização nacional para o rumo contrário.
Em um contexto mundial, a reestruturação produtiva e uma consequente (contra)
reforma do Estado imputavam novas configurações às políticas sociais, com refração direta
sobre a política educação inclusiva. Este processo assim ocorreu devido a crise econômica
vivenciada em escala mundial nos anos de 1980 e 1990. A responsabilidade por tal
instabilidade no campo econômico foi atribuída ao Estado e seus gastos com o que se
nominava de Estados de Bem Estar Social. Sendo assim, clamou-se por uma nova
fundamentação ideológica que ajustasse o Estado as novas necessidades e configurações
econômicas. Para isto, as bases neoliberais se apresentaram contundentemente (NOGUEIRA,
1998). Estas novas configurações pressionaram o Estado para reduzir ao máximo sua
intervenção na economia. Em contra partida, ao mesmo tempo em que se clamou por tal
posição estatal, o acirramento da “questão social” ampliavam suas expressões, aumentando a
demanda pela intervenção do Estado (FIORI, 1997).
É necessário compreender que neste contexto de restrições da política social, houve no
país uma ampliação da conquista destes direitos em diversos campos, como a elaboração da
Lei Orgânica da Assistência Social (1993), e a organização do Sistema Único de Saúde (1990)
26
para a área da saúde (NOGUEIRA, 1998). Para a área da educação, nesta década, no campo
legislativo brasileiro havia começado a consolidação da proposta da integração 4 escolar, com
o documento nominado de Política Nacional de Educação Especial, publicada pelo Ministério
da Educação em 1994 (MENDES, 2006).
Também no início de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente previu a educação
como elemento fundamental e indissociável para o desenvolvimento infantil, assegurando o
direito à educação como prioritário (BRASIL, 2012b). O mesmo documento configurou-se
como um marco decisório no campo da defesa de direitos da criança e do adolescente, na
formulação de uma política social própria para intervir sob este aspecto. Nota-se ainda que
neste período, o Estado havia assumido a responsabilidade pela educação das pessoas com
deficiência e formulado uma politica própria para estes alunos. A intervenção do Estado para
a inserção dos alunos com deficiência na educação regular se formulava legislativamente.
Em 1996, foi elaborada pelo Ministério da Educação uma nova lei orientadora para o
sistema educacional brasileiro, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9394/96. Esta
lei designa como educação especial a modalidade de ensino oferecida e exercida
preferencialmente nas escolas regulares, para os alunos com necessidades especiais, como
função imputada ao Estado. Ainda aponta a possibilidade de atendimento especializado e, nas
escolas regulares, pressupõe técnicas, métodos, currículos e uma organização específica para
atender as necessidades destes alunos (BRASIL, 2012c).
É importante clarificar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 foi criada
num contexto de restrição da intervenção do Estado, mas significou uma radical mudança nos
rumos da educação nacional, tendo em vista que confirmou os princípios descritos na
Constituição Federal de 1988, delegando ao poder estatal a tarefa de empreender o sistema
educacional. Vieira (2001, p. 21) aponta tal questão ao afirmar que, “[...] no Direito
Educacional, a Constituição Federal de 1988 e, em seguida, a Lei nº 9.394/96 (LDB) mudam
essencialmente no campo educacional o regime privado, sujeitando este regime aos princípios
constitucionais que guiam a educação brasileira”.
No ano de 2001, dois novos eventos demarcaram o avanço do percurso em direção a
política de educação inclusiva no campo legislativo brasileiro. O Plano Nacional da Educação
4
No período do auge da proposta da integração escolar em esfera mundial, em 1970 e 1980, ainda proliferavam
no Brasil as escolas especiais, e se consolidava as bases para o desenvolvimento de tal modalidade de
atendimento as pessoas com deficiência, conforme esclarece Mendes (2006, p. 379) “o início da
institucionalização da educação especial em nosso país coincidiu com o auge da hegemonia da filosofia da
‘normalização’ no contexto mundial, e passamos a partir de então a atuar, por cerca de trinta anos, sob o
princípio de ‘integração escolar’, até que emergiu o discurso em defesa da ‘educação inclusiva’, a partir de
meados da década de 1990”.
27
enunciou diversos aspectos relativos ao desenvolvimento da educação especial nas escolas
regulares, entretanto, com os instrumentos da proposta da integração escolar. Tal documento
afirmou a participação dos alunos com deficiência na classe regular, com atendimento
especializado nas salas de recursos, nas classes especiais ou nas escolas especiais. Também
enfatizou a necessidade da formação dos profissionais para atender os alunos com deficiência
(BRASIL, 2012d). Em seguida, as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na
Educação Básica, também apresentaram os aspectos organizativos da educação especial.
Expressaram o uso do termo inclusão na legislação brasileira, e reafirmaram as estruturas que
operacionalizam a educação especial na educação regular (BRASIL, 2012e).
Em 2003 o Ministério da Educação lançou o Programa Educação Inclusiva: direito à
diversidade, que objetivou orientar os estados e municípios para a implementação da
educação inclusiva, prevista para o ano de 2005. O programa se consistiu em um processo de
preparação das escolas para a educação inclusiva, por meio da formação de gestores e
educadores que atuariam na transformação de sistemas escolares em sistemas escolares
inclusivos. O programa foi elaborado para auxiliar municípios pólos na construção de escolas
inclusivas, que posteriormente disseminariam as instruções para a implementação do
programa nas demais escolas (BRASIL, 2012f).
No ano de 2005 foi elaborado o Documento Subsidiário à Política de Inclusão, que
apresentou significativas alterações na estruturação da educação inclusiva. O documento
previu que as classes especiais, as salas de recursos e as escolas especiais fossem
progressivamente extintas para admissão de um novo modelo de atendimento especializado,
especificado posteriormente (BRASIL, 2012g). Posteriormente uma série de documentos
foram produzidos culminando com a aprovação da Política de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva no ano de 2008 (BRASIL, 2012h).
Desde então, estados e município tem trabalhado na adaptação de suas escolas para
transformá-las em escolas inclusivas e fazer cumprir a legislação então aprovada para a
questão.
28
2 O SERVIÇO SOCIAL E A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
2.1 A RUPTURA DO SERVIÇO SOCIAL COM O CONSERVADORISMO
O Serviço Social se configura como uma profissão situada na divisão social do
trabalho a partir do antagonismo de classes (CARVALHO; IAMAMOTO, 2008). É, portanto,
uma profissão situada na reprodução das relações sociais. Sobre a definição do Serviço Social,
o Conselho Federal de Serviço Social brasileiro, após as discussões realizadas na Conferência
Mundial de Serviço Social, em 2012, esclarece que a profissão assim se define:
O/a assistente social ou trabalhador/a social atua no âmbito das relações
sociais, junto a indivíduos, grupos, famílias, comunidade e movimentos
sociais, desenvolvendo ações que fortaleçam sua autonomia, participação e
exercício de cidadania, com vistas à mudança nas suas condições de vida. Os
princípios de defesa dos direitos humanos e justiça social são elementos
fundamentais para o trabalho social, com vistas à superação da desigualdade
social e de situações de violência, opressão, pobreza, fome e desemprego
(CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012b, p. 1).
A definição de Serviço Social apresentada enfatiza o compromisso da categoria
profissional com os direitos humanos e a justiça social, elementos estes que compõem o
posicionamento profissional contrária a lógica da desigualdade imputada pelas configurações
da produção burguesa.
Os princípios que orientam a profissão para o direcionamento acima citado
referenciam-se no projeto ético-político profissional, consenso decorrente das lutas da
categoria profissional para romper com as bases conservadoras que fundamentavam a
profissão. Esse movimento designa o próprio processo de construção da profissão.
Para Iamamoto (1994) o Serviço Social emergiu como parte do movimento social
empreendido pela Igreja, articulando as bases confessionais e a ação da Igreja a necessidade
de formação social e doutrinaria de grupos leigos que se relacionavam com a Igreja,
denominados pela autora, de laicato. A autora ainda esclarece que com o fim do sistema
oligárquico, a Igreja perdeu o seu poder de dominação, em função da abertura do Estado para
a entrada do capital no país, entre as décadas de 1920 e 1930. A relação entre Igreja e Estado
ficou tensionada, o que levou a Igreja a se fortalecer na busca de recuperar o sistema
hierárquico que lhe conferia poder. Para isto, empreendeu-se veemente em organizar e
preparar seus grupos intelectuais laicos para evangelizar a sociedade, reconvertê-la aos
princípios que antes governavam a vida em sociedade.
29
Este movimento é denominado por Carvalho e Iamanoto (2008) como Reação
Católica, e objetivou recristianizar a sociedade burguesa com base em um comunitarismo
cristão, retirando da sociedade tanto princípios liberais como a ameaça comunista. Como
recurso a esta missão, a Igreja também trabalhou pelo reconhecimento de suas funções e
influência no Estado.
Com a entrada do capitalismo e a produção industrial no país, as refrações da “questão
social” se intensificaram. As mobilizações da classe operária até 1930 constrangeu a Igreja, o
Estado e a classe dominante – que se punha no aparato do Estado formulando sua intervenção
– a se posicionarem diante da “questão social”. A compreensão da Igreja sobre as expressões
da “questão social” são baseadas nas encíclicas papais descritas na Rerum Novarum5,
documento este que também direcionava as ações da Igreja para os chamados problemas
sociais. Sobre isto Iamamoto (1994) afirma que,
Para Igreja, “questão social”, antes de ser econômico-político, é uma questão
moral e religiosa. A sociedade é tida como um todo unificado, através de
conexões orgânicas existentes entre seus elementos, que se sedimentam
pelas tradições, dogma e princípios morais de que a Igreja e depositária
(IAMAMOTO, 1994, p.18 grifo da autora).
Para Carvalho e Iamamoto (2008), no seio do movimento da Reação Católica surgiram
algumas instituições assistenciais como a Associação das Senhoras Brasileiras, no Rio de
Janeiro, e a Liga das Senhoras Católicas em São Paulo, que já apresentavam diferenciações
quanto às atividades tradicionais da caridade. Estas instituições tiveram relevância
considerando que é a partir de seu desenvolvimento que se colocaram as bases para a
expansão do Serviço Social na década seguinte.
Os autores ainda destacam que o elemento humano e a base que viabilizou o
surgimento da profissão se formularam pelo misto entre a caridade tradicional e o apostolado
social, aqueles dirigidos à classe operária. Como consequência deste mesmo processo, em
1932 surgiu em São Paulo o Centro de Estudos e Ação Social de São Paulo (CEA), apontado
por Carvalho e Iamamoto (2008) como a expressão original do Serviço Social no Brasil. Tal
centro, assim como outros grupos, impulsionaram a emergência do Serviço Social como
5
Nesta encíclica, o Para Leão XIII descreve a defesa aos trabalhadores, fazendo uma crítica as condições nas
quais os trabalhadores eram submetidos nas fábricas. Ainda expõe a defesa dos salários, os deveres do
trabalhador e se posiciona contrario ao trabalho de mulheres e crianças e ao marxismo, defendendo também a
propriedade privada como direito de garantia de independência. A encíclica aponta que a situação do operário só
poderá ser resolvida dentro do catolicismo, e para o conflito vivenciado entre capital e trabalho, Leão afirma a
necessidade de harmonizar estas classes que se complementam (SILVA JÚNIOR; BATISTA, 2008).
30
agente para a formação doutrinária e militância dirigidas a resolução dos problemas sociais.
Iamamoto (1994) esclarece essa implicação na emergência da profissão ao afirmar,
O serviço social aparece aos militantes desses movimentos como alternativas
profissionalizantes as suas atividades de apostolado social, num momento de
profundas transformações sociais e políticas. A ação social e a ação católica
logo se tornam uma das fontes preferenciais de recrutamento desses
profissionais (IAMAMOTO, 1994, p. 19).
Ao mesmo passo em que Centro de Estudos e Ação Social apresentou tal demanda
pela especialização dos agentes por uma formação técnica, também apresentou outras
demandas oriundas do próprio Estado. Para Netto (2001), estas demandas decorrem da
assunção dos agentes de novas funções, que solicitaram um posicionamento diferente da
caridade tradicional que se colocasse ausente das intenções dos agentes.
Sobre isto, Netto (2001) aponta que o período descrito situa as determinações sociais,
políticas, econômicas, teóricas e culturais de um dado momento histórico que possibilitaram a
emergência da profissão. Para o autor, sem que houvesse as condições concretas formuladas
pela confluência destes elementos, não seria possível compreender a história do Serviço
Social. O autor ainda esclarece que o fato das protoformas do Serviço Social relacionarem-se
intimamente à Igreja cria, para alguns autores, o falseamento de que a constituição da
profissão se deu por um processo de continuidade da Igreja, como se a profissão se
constituísse da filantropia organizada
Para o autor, é inegável a relação da profissão com as formas de filantropia e
assistencialismo organizadas pela Igreja deste a emergência do capital. Entretanto, esta
relação de continuidade coexistiu com uma relação de rompimento, decisiva na constituição
do Serviço Social como profissão. Aos poucos, os agentes profissionais assumiram novos
papeis em projetos interventivos cuja ação independe da intenção do profissional. E é esta
entrada dos agentes em novos papeis que rompem com a caridade, e marca a
profissionalização do Serviço Social (NETTO, 2001). Portanto, a profissão emerge de um
contexto que demanda sua intervenção, a princípio surge ligada aos movimentos femininos da
Igreja, mas rompe com este estímulo ao adentrar em novos campos. Sobre a
profissionalização do Serviço Social, Netto (2001) afirma que,
O caminho da profissionalização do serviço social é, na verdade, o processo
pelo qual seus agentes – ainda que desenvolvendo uma auto representação e
um discurso centrados na autonomia dos seus valores e da sua vontade – se
inserem em atividades interventivas cuja dinâmica, organização, recursos e
31
objetivos são determinados para além do seu controle. [Os agente ...] passam
a desempenhar papeis que lhes são alocados por organismos e instâncias
alheios às matrizes originais das protoformas do Serviço Social [...]
(NETTO, 2001, p. 71-72).
Pela do Centro de Estudos e Ação Social é fundada em 1936 a primeira escola de
Serviço Social. A partir da década de 1940, expandiu-se a necessidade de profissionais
diplomados. Para Carvalho e Iamamoto (2008) as atividades desenvolvidas pelos
profissionais eram restritas, e ainda carregavam os elementos do discurso da doutrina da
Igreja. Os autores ainda afirmam que neste período inicial da profissão, a caridade passou a
usar os artifícios da ciência e da técnica, desenvolvendo um serviço direcionado à pessoa
humana.
A caridade passa a utilizar os recursos que a ciência e a técnica lhe
oferecem; mobiliza, além dos sentimentos, a inteligência e a vontade para o
serviço da pessoa humana. O Serviço Social representa uma evolução dos
antigos métodos, favorecida pelas descobertas cientificas, pelo
desenvolvimento dos estudos sociológicos e, principalmente, pela
intensidade e complexidade dos problemas sociais presentes. Isso o distingue
das antigas formas de assistência (CARVALHO; IAMAMOTO, 2008, p.
201).
Outro elemento que diferencia o Serviço Social da caridade tradicional é a própria
formatação da intervenção, já que propõe uma ação educativa com as famílias operárias,
como medidas de prevenção aos problemas sociais – as antigas formas de caridade pautavamse mais especificamente sobre a cura destes problemas (IAMAMOTO, 1994). Neste
momento, a profissão ainda desconhecia o caráter de classe destes problemas sociais, como
resultado do antagonismo de classes, e atua sob uma perspectiva doutrinária e moralizadora.
Tais ações exprimem o caráter conservador que mediatizou a emergência da profissão,
laço este que só foi rompido pela categoria após um longo processo de amadurecimento das
várias dimensões do Serviço Social. Sobre o conservadorismo, Iamamoto (1994) ainda aponta
que a profissionalização e institucionalização do Serviço Social se deram sob a influência de
vertentes empiristas das Ciências Sociais, principalmente do pensamento norte americano.
Para a autora, o pensamento conservador supõe um modo de vida do passado resgatado para
interpretar o presente, como um conteúdo próprio e viável ao capitalismo6.
6
Iamamoto (1994) esclarece a viabilidade do pensamento conservador ao capital ao afirmar que quando se
recorre “as categorias típicas do racionalismo capitalista, elabora-se a exaltação deliberada de formas de vida que
já foram historicamente dominantes, e que passam a ser consideradas válidas para a organização da sociedade
atual” (idem ibdem p. 22).
32
A influência norte americana expressou-se também a partir do 2º Congresso PanAmericano de Serviço Social, em 1945, que reafirmou o peso das bases de discussão norte
americana sobre a profissão na América Latina. Com esta fundamentação, a profissão no
Brasil caracterizava sua intervenção para os casos individuais (CARVALHO; IAMAMOTO,
2008). O 1º Congresso Brasileiro de Serviço Social se realizou em 1947.
Em 1950 já estava se gestando no interior da profissão um processo de erosão das
bases tradicionalistas que até então fundamentavam o Serviço Social. Esse movimento se
exprime no final desta mesma década, quando movimentos jovens da profissão empreendem
questionamentos sobre o histórico de subalternidade da profissão, exigindo novas bases
teóricas e culturais. Para Barroco (2001) este movimento já indica uma agitação
questionadora ao Serviço Social tradicional.
Nos anos seguintes, a ditadura militar imprimiu um conjunto de determinações que
possibilitaram a emergência de um processo de renovação no Serviço Social. Netto (2001)
compreende que este processo de renovação da profissão se exprime por três vertentes:
modernização conservadora, renovação do conservadorismo e a intenção de ruptura.
Durante a década de 1960, os marcos da ditadura militar configuraram um período de
negação da liberdade, o que propiciou a construção das lutas em função da mesma. Netto
(1991) afirma que a inquietação por ruptura com as bases tradicionais da profissão estava
ligada justamente ao crescimento e fortalecimento dos movimentos populares democráticos
que efervesciam nesta luta em função da liberdade. As incidentes contestações 7 políticas e
culturais que enfrentavam a ditadura propiciaram o fortalecimento dos questionamentos aos
valores vigentes, ampliando a capacidade de escolha. Momento este que para Barroco (2001)
é favorável à ruptura com esses valores dominantes.
No período pós 1964, o Estado fez novas demandas à profissão, que consolidam a
necessidade de um projeto de renovação em seu interior. Neste período, a necessidade de
renovação da profissão e a conjuntura social, política e econômica, que ao mesmo passo
celebrava o conservadorismo e vivenciava os questionamentos à ditadura, possibilitaram
espaço para a percepção de outros projetos profissionais.
No Serviço Social, o processo de renovação da profissão iniciado pela vertente
modernização conservadora, se manifestou na mudança de discurso, métodos e no próprio
projeto profissional nas estratégias de controle da população trabalhadora. A profissão passou
a aperfeiçoar seus métodos, o instrumental operativo e as metodologias de análise. O discurso
7
Barroco (2001) lembra que este movimento de questionamento é vivenciado por outros países da América
Latina.
33
profissional se aproximou das Ciências Sociais, assumindo uma perspectiva fundamentada no
positivismo, voltada a mudança de hábitos, comportamentos e atitudes do trabalhador para
adequá-los ao momento histórico do país. Este diálogo com as teorias das Ciências Sociais se
manteve ligado à base tomista8, presente desde a emergência da profissão (IAMAMOTO,
1994).
Durante o período em que esta vertente se manteve ávida, a profissão elaborou outros
Códigos de Ética, nos anos de 1965 e 1975. Estes códigos permaneceram fieis ao
tradicionalismo profissional. Ainda mantinham uma orientação tomista, que reproduz a
ideologia centrada na visão humanista cristã, com uma perspectiva acrítica, despolitizada e
deslocada das relações sociais (BARROCO, 2001).
Embora com a mesma orientação, o Código de 1965 apresentou algumas modificações
em relação ao Código de 1948. Em 1948, a profissão foi tratada como um elemento
homogêneo, o que em 1965 é rompido para anunciar a existência de várias concepções na
profissão, denominada de pluralismo. Em 1975, esta dimensão foi excluída do código
formulado neste ano. Assim como neste mesmo código outras dimensões como a democracia
também são retiradas, processo este que exibe o movimento da profissão em adaptar-se as
demanda da ditadura.
Netto (1991) aponta que o Código de 1975 já indicava outra vertente do movimento de
renovação da profissão, a reatualização do conservadorismo. Este momento se caracterizou,
sobretudo pela assunção da fundamentação fenomenológica para orientar a profissão. Mais
especificamente, sobre as concepções do personalismo, que se caracteriza por qualquer
doutrina que afirme o primado da pessoa humana sobre os elementos materiais que o
sustentam. Portanto, a centralidade da teoria fenomenologia expressa pelo personalismo está
na pessoa humana.
Para Barroco (2001) o uso da fenomenologia pela reatualização conservadora se
apresentou como um método de ajuda psicossocial fundado na valorização do relacionamento
humano e inaugurou a perspectiva psicologizante das relações sociais. As mazelas dadas pela
“questão social” foram desvinculadas dos processos sociais e individualizadas.
A doutrina tomista baseava-se na dimensão humana, mas orientada para a adaptação
em função das demandas sociais, assumindo um caráter mais positivo, centrado na sociedade
e na harmonia dos indivíduos para o bom andamento da ordem social. Já o personalismo
centra-se no ser humano em detrimento à sociedade. E neste sentido, as duas posições
8
Doutrina propagada pela Igreja e advinda das postulações de Tomás de Aquino: centralidade da dignidade
humana (SILVA, 2003).
34
colocam-se como opostos. Essas duas vertentes que influenciam o serviço social marcam os
projetos de intervenção que marcam o enfrentamento da “questão social” desde o fim do
século XIX, até o período posterior as duas grandes guerras mundiais.
A erosão do conservadorismo no Serviço Social possibilitou a emergência de um
movimento de renovação e o pluralismo que, ao identificar outras perspectivas ideológicas e
políticas para a profissão, possibilitou também a manifestação de uma vertente crítica. Nestes
mesmos anos, uma parcela dos profissionais faz a opção em participar civil e politicamente do
momento do país, ampliando sua consciência crítica. A profissão se aproximou do marxismo
e iniciou sua trajetória rumo ao compromisso com a classe trabalhadora. O Serviço Social
começou a produzir uma literatura voltada à compreensão do significado da própria profissão,
engajando-se nos debates latino-americanos e na busca de elementos que permitisse a
superação de seus equívocos (BARROCO, 2001).
Em 1980 e 1990, essa vertente se expressou no que Netto (1991) nomina de intensão
de ruptura. Esse movimento começou a ser gestado no interior das universidades, e o autor
destaca a experiência de Belo Horizonte como um importante momento de fomento desta
perspectiva.
Nesta experiência, o grupo de jovens da Universidade Católica de Belo
Horizonte elaborou o Método de Belo Horizonte9, que se caracterizou por uma critica teórico
e prática ao tradicionalismo profissional, propondo uma alternativa para romper com o
conservadorismo presente na profissão. O movimento da intenção de ruptura se fortaleceu no
âmbito acadêmico, recuperando as postulações do Método de Belo Horizonte.
A profissão se engajou politicamente na resistência à ditadura, rompendo com os
valores burgueses e assumindo a escolha por valores emancipatórios, movida pela intenção de
romper com seus próprios entraves. No fim de 1970, o chamado Congresso da Virada10, do III
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), demarcou a organização da profissão
nas lutas dos trabalhadores, a resistência à ditadura, a oposição aos fundamentos
conservadores de tradicionalistas da profissão e a defesa da democracia (BARROCO, 2001).
Sobre o Congresso da Virada, a autora ainda afirma que,
A partir desse marco, no contexto da reorganização política da sociedade
civil, em defesa da democracia e da ampliação de direitos civis e sóciopolíticos, os valores ético-políticos inscritos no projeto profissional de
ruptura adquirem materialidade, o que se evidencia na organização política
da categoria, na explicitação da ruptura com o tradicionalismo profissional e
9
O método foi interrompido em 1975, pela demissão de seus formuladores e gestores (NETTO, 1991).
Neste congresso, os profissionais substituíram a mesa de honra, composta pelos representantes da ditadura, por
uma homenagem aos trabalhadores que lutaram pela democracia e pela liberdade (BARROCO, 2001).
10
35
no amadurecimento da reflexão de bases marxistas (BARROCO, 2001, p.
167-168).
A aproximação da profissão com o marxismo possibilitou a superação de equívocos
antes recorrentes no que tange auto representação da profissão, que passou a ser
compreendida como pela sua inserção na divisão do trabalho. Mesmo após a clara assunção
dos fundamentos marxistas como base para o projeto de ruptura, a profissão continuou seu
processo da amadurecimento dentro da sua fundamentação teórica (BARROCO, 2001).
Esta questão se evidenciou, por exemplo, em relação aos Códigos de Ética formulados
em 1986 e 1993. Ambos exprimiam o projeto de ruptura, entretanto, como momentos
diferenciados do processo de amadurecimento da profissão dentro da teoria marxista. O
Código de 1986 expressou formalmente a ruptura com o tradicionalismo, afirmando a
assunção de uma ética profissional objetivadora de valores anticapitalista. Entretanto, a
discussão sobre os fundamentos éticos que embasariam a o projeto de ruptura da profissão
permaneceram carente neste período (BARROCO, 2001). A superação destas fragilidades
apresentadas no Código de 1986 foi concretizada no Código de 1993, que apresentou o debate
ético. Firmou-se neste período o compromisso da categoria com um projeto ético-político de
caráter crítico, vinculado às classes subalternas, em defesa a democracia, aos direitos
humanos, e orientado para a emancipação humana (idem ibdem).
A orientação marxista assumida pela profissão dado o rompimento com o
tradicionalismo, com a herança conservadora no Serviço Social, assim como a assunção de
novos princípios ético-políticos pela categoria profissional não significa que o
conservadorismo foi superado no interior da categoria por completo. Esta superação se coloca
como uma luta cotidiana da categoria profissional.
2.2 A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS E O PROJETO ÉTICO POLÍTICO DO
SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO
A história do Serviço Social brasileiro evidencia que o conservadorismo influenciou a
profissão fortemente. Os Códigos de Ética profissionais, construídos ao longo do
desenvolvimento da profissão, exemplificam esta relação: o primeiro Código organizado, em
1947, assinalou a gênese conservadora da profissão e o Código de 1986, assinalou o
rompimento com a concepção tradicional, amadurecido posteriormente no Código de Ética de
1993.
36
Barroco (2009) afirma que a grande particularidade que assinalou o rompimento com a
tradição conservadora foi defesa de um projeto ético político vinculado a uma perspectiva de
sociedade de enfrentamento as precariedades dos valores éticos da sociedade burguesa.
Para compreender de que modo a profissão construiu um projeto profissional pautado
em tais configurações, é necessário compreender o que são os projetos profissionais. Netto
(2006) esclarece que os homens sempre agem teleologicamente, isto é, as ações humanas são
orientadas para um objetivo/fins. Ação humana individual ou coletiva, com base nas
necessidades, cria um projeto, com a antecipação de finalidades que se quer alcançar, com a
implicação de determinados valores que legitimam tal projeto e os meios para alcançá-lo.
Dentre os projetos coletivos, há também os projetos profissionais, que apresentam a imagem
de uma profissão, com os valores que a legitimam socialmente, assim como os requisitos
teóricos e práticos, os objetivos e as funções para o exercício profissional (idem ibdem).
A partir da década de 1980, a profissão iniciou a construção de um projeto profissional
de rompimento com as bases conservadoras do Serviço Social. Esse processo se materializou
no Código de Ética de 1986. Sobre o Código de 1986, Barroco (2001) esclarece que de fato
ele foi a expressão formal da ruptura ética com o conservadorismo no Serviço Social, levando
as reformulações que marcaram o projeto comprometido com as classes subalternas, numa
nova direção ético-política. O Código de 1986 ainda carecia de amadurecimento dos
pressupostos éticos que orientaram o movimento de ruptura e as novas bases da intervenção
profissional. Não apontavam uma revisão para as disciplinas que subsidiam esta reflexão, a
filosofia e a ética.
Embora teoricamente não problematizada, a ética que expressa um projeto de ruptura
se manifestou neste código. Nas formulações de 1986, já não se apresentavam valores antes
propagadas como orientadores da profissão, como o mecanicismo, o voluntarismo, e o
moralismo. Fato este dado em consequência do amadurecimento teórico e político da
profissão pela apropriação do pensamento marxista (BARROCO, 2001).
Barroco (2001) afirma que para ampliar a reflexão ética ainda carente no referido
Código de Ética de 1986, fez-se necessário novas alterações, materializadas no Código de
1993, consolidando o projeto de ruptura profissional. Portanto, as formulações de 1993
apresentavam um novo conjunto de valores e princípios orientadores da profissão, que se
coloca na contramão da ideologia dominante e na propagação da ideologia das classes
trabalhadoras.
A mesma autora ainda esclarece que a ética profissional é uma dimensão característica
do Serviço Social. Para ela é a ética profissional que vincula a profissão às determinações que
37
legitimam o Serviço Social na divisão social do trabalho, que a localiza nos marcos da
sociedade capitalista, demarcando a partir daí a sua origem enquanto profissionalização do
trabalho e sua trajetória histórica. Neste sentido, a ética profissional se objetiva mediante a
ação moral, que se dá no exercício pratico da profissão pelas normas, pelos deveres, pelos
valores que orientam o profissional via Código de Ética, pelas concepções teóricas que
sustentam a profissão e pela reflexão destes aspectos como ação ético-política (BARROCO,
2001).
Sob estes valores éticos, Barroco (2009) aponta que a adesão a um projeto profissional
e o pertencimento dos profissionais se dá na medida em que o mesmo corresponde às
necessidades dos profissionais, aos seus ideais e a visão de sociedade que os mesmos
empreendem. Netto (2006) ainda esclarece que dentre os projetos coletivos, os projetos
societários são aqueles que reclamam uma dada imagem de sociedade a ser construída, com
base em valores que justificam esta imagem de sociedade e determinam a escolha dos meios
para sua construção. Os projetos societários elencam propostas macrossociais para o conjunto
da sociedade e são, simultaneamente, projetos de classe, que concorrem pela adesão da
sociedade, tendo como base a democracia política. Neste sentido, os novos valores assumidos
pelo Serviço Social, caracterizados pela vinculação aos interesses da classe trabalhadora e
rompimento com a hegemonia da sociedade de mercado, supõe uma nova visão de sociedade.
Portanto, a ética profissional do Serviço Social se vincula a novas escolhas políticas, que
reclamam outra perspectiva de sociedade: a construção que relaciona ética profissional a uma
nova perspectiva societária denomina-se projeto ético-político.
Diante destas considerações sobre o projeto ético-político do Serviço Social,
construído historicamente num movimento de ruptura com as bases conservadoras que
emolduravam a profissão e expresso a partir das postulações do Código de Ética de 1993, é
necessário compreender que a ética é elemento integrante da prática social humana,
objetivando-se no cotidiano e nas formas de práxis que levam a ampliação da consciência
humana (BARROCO, 2008). O desenvolvimento ético do ser humano leva a construção de
alguns conceitos que se relacionam intrinsecamente as novas bases éticas assumidas pela
profissão. Cabe, portanto, compreender esta construção humana enquanto ser ético para
compreender os conceitos que fundamentam o projeto ético-político do Serviço Social.
Para Barroco (2001), a constituição ontológica do ser social é que confere sua natureza
ética. Ao transformar a natureza em função de suas necessidades, pelo trabalho, o ser humano
constitui-se como um ser diferente dos demais existentes. O trabalho, como categoria central
para a construção ética do ser humano, instaura um novo ser ao passo que permite ao homem
38
romper com a supressão das necessidades imediatas, como atividade puramente instintiva.
Pelo trabalho, o ser humano cria uma atividade, compreendida pela autora, como atividade
prática-social: uma práxis social. Para ela, a práxis consiste na transformação da natureza em
um produto antes inexistente, produto este em respostas as necessidades sociais de dado
momento histórico do desenvolvimento humano. A mesma autora esclarece que,
Como práxis, o trabalho é a base ontológica primária da vida social;
mediação que efetiva objetiva e subjetivamente o intercâmbio entre os
homens e a natureza, pondo em movimento um processo incessante de
(re) criação de novas necessidades; ampliando os sentidos humanos,
instaurando atributos e potencialidades especificamente humanas
(BARROCO, 2009, p. 5).
Criar alternativas para supressão de suas necessidades só é possível porque há no
homem um salto ontológico, que marca o momento no qual o homem se distancia dos demais
seres, iniciando seu processo de construção enquanto ser social (BARROCO, 2008). A
capacidade teleológica do ser humano, como já mencionada em Netto (2006), o faz planejar a
finalidade sua ação antes que a execute. Essa capacidade, ao aliar-se ao trabalho, faz com que
os homens desenvolvam-se como seres conscientes. Portanto, o trabalho é práxis que se
coloca como mediação para responder as necessidades humanas, e o faz desenvolver-se como
ser consciente, racional levando a transformação de seus sentidos livre e criativamente. A
autora ainda esclarece esta questão ao afirmar que, “o homem se desenvolve como um ser
consciente, universal e livre, capaz de produzir sem a necessidade física e, de fato, quanto
mais dela se afastar, mais livre será sua produção e sua autoconsciência de sujeito
transformador da natureza” (idem ibdem p. 21).
É nesta construção histórica do ser humano que se criam as possibilidades dele agir
como ser ético, já que, enquanto se distancia dos demais seres na sua relação com a natureza,
ele cria mediações que ampliam seu domínio sobre a natureza e sobre ele próprio
(BARROCO, 2009). A mesma autora ainda afirma que,
A ética – entendida como modo de ser socialmente determinado – tem sua
gênese no processo de autoconstrução do ser social. Sob este prisma de
análise social e histórica, entende-se que o ser social surge da natureza e que
suas capacidades essenciais são construídas por ele no processo de
humanização: ele é autor e produtor de si mesmo, o que indica a
historicidade de sua existência, excluindo qualquer determinação que
transcenda a historia e o próprio homem (BARROCO, 2008, p. 20 grifo da
autora).
39
A ação transformadora do homem, ao criar alternativas para suas necessidades –
alternativas estas que se recriam conforme surgem novas necessidades – abrem possibilidades
de escolha entre as alternativas criadas. O desenvolvimento da consciência imputa ao homem
a necessidade de decidir conscientemente (BARROCO, 2008).
Tais escolhas são baseadas em valorações. A decisão/escolha é feita por meio de
juízos de valor. Portanto, a escolha consciente do ser humano contém um posicionamento de
valor que o faz decidir entre as alternativas criadas para sua sobrevivência social. Sendo
assim, compreende-se que a escolha entre as alternativas criadas não se trata de apenas
escolher entre uma ou outra, mas se refere a uma posição de valor, escolher entre aquilo que
tem e que não tem valor. Neste sentido, liberdade de escolher entre as alternativas, o valor
que as mesmas possuem, a consciência para esta escolha e as próprias alternativas são
elementos que se articulam (BARROCO, 2001).
Sendo assim, a ética envolve a transformação do ser humano na medida em que exige
do mesmo o uso da escolha entre valores, exige posicionamento, portanto, exige o
desenvolvimento da consciência humana, e isto se dá pela construção do próprio ser social em
seu processo de humanização pela mediação do trabalho. Tudo aquilo que se desenvolveu
pelo trabalho é compreendido como riqueza humana, e esta riqueza é que permitiu ao homem
criar-se enquanto ser social. O agir eticamente suscita o uso da consciência, e a consciência,
como criação do próprio homem mediada pelo trabalho, pertence à riqueza do gênero
humano. Portanto, a ética envolve as conquistas humano-genéricas, e faz com que o homem
tome contato/se eleve a estas conquistas, com a sua produção. Como categoria transformadora
do ser social, ela permite que ele próprio objetive a liberdade, a sociabilidade, a capacidade
teleológica e a emancipação do gênero humano (BARROCO, 2009).
Na sociedade de mercado, a contradição fundante entre capital e trabalho, a exploração
do trabalhador e a divisão entre as classes sociais restringe o agir eticamente, tendo em vista
que no processo de produção material e, portanto, do próprio ser, ela o afasta de seu produto,
o que se denomina de alienação. O desenvolvimento do gênero humano como produção
material e subjetiva do ser social não é apropriado por todos os indivíduos, pelas
características da produção burguesa, na qual o trabalhador se afasta de seu produto, que
passa a pertencer ao dono dos meios de produção (BARROCO (2008).
A partir do exposto, questiona-se então, de que forma se propaga na sociedade
burguesa esta perspectiva alienante que limite a realização do agir eticamente? Sobre isto,
Barroco (2008) esclarece que a moral é parte da historia do ser social, portanto,
ontologicamente o elemento moral é uma mediação entre as relações sociais construídas pelo
40
homem. Ela é o elemento que media a relação do individuo com aquilo que pertence ao
gênero humano, é o elo entre o singular e o humano-genérico. É também a moral que regula o
comportamento dos indivíduos, participa na formulação das regras sociais, dos costumes, dos
hábitos, normas, deveres e de tudo mais que regula a conduta dos indivíduos na vida em
sociedade.
A moral – assim como a ética – também exige o uso da consciência, é criada pelos
homens, mas a escolha destes em relação a moral depende do contexto histórico em que vive.
Assim como, o ato moral que supõe a adesão consciente dos homens a valores éticos também
depende das condições socais e históricas nas quais esta moral se concretiza. Dependendo do
contexto social no qual esta moral se objetiva, ela permite ao ser humano mais contato com
questões individuais ou com questões coletivas/humano-genéricas. E como já elucidado, esta
segunda dimensão é que permite de fato a expressão ética dos indivíduos enquanto ser social
(BARROCO, 2008).
Na sociedade de mercado, a moral é responsável por perpetuar ideologicamente os
interesses da classe dominante. Na medida em que a moral se expressa como reguladora das
relações sociais na sociedade burguesa, imputa aos homens a assunção dos valores da mesma
classe dominante, tendo em vista que neste sistema econômico e social a liberdade de
escolhas de valores dados pela ética, é restrita em função da alienação, produto do próprio
meio de produção (BARROCO, 2001).
Para Barroco (2008) na sociedade capitalista a moral contribui para o controle social
pela difusão dos valores que objetivam a manutenção desta mesma sociedade. Esta
reprodução se faz mediante o cotidiano da vida social dos indivíduos. Neste cotidiano a moral
tende a se tornar concreta de modo alienado, reproduzindo os valores e escolhas com base em
juízos de valor que atendem apenas as necessidades imediatas do individuo particularizado,
singular. As escolhas são acríticas e não se voltam a supressão das necessidades com base na
coletividade, não são voltadas ontologicamente as necessidades humano-genéricas, muito
menos propiciam o contato com as riquezas produzidas nesta mesma dimensão.
Como já elucidado, a moral como laço, como mediação entre o indivíduo singular e a
dimensão humano-genérica, não responde apenas aquilo que se coloca como necessidade
individual, que representa e reproduz a alienação. A moral envolve também o uso da
consciência, de escolhas que se afastem da cotidianidade, e que elevam o indivíduo a sua
dimensão humano genérica. Esta outra face permite ao homem agir como um sujeito ético. Na
medida em que propicia a crítica ao cotidiano e as formas de reprodução da alienação nele
41
intrínsecas possibilita que o homem ultrapasse sua dimensão particular para o coletivo, para o
ser ético.
Tal concepção converge para a assertiva de que em dadas condições históricas e
sociais que motivem o individuo a escolher por valores emancipatórios, este pode ter a
possibilidade de estabelecer outras mediações que rompam ou ultrapassem a singularidade e
os faça ascender à condição de ser ético. A reflexão ética propicia a crítica a cotidianidade, a
moral nela reproduzida, e leva a ampliação das escolhas conscientes do individuo, agora
voltadas a dimensão humano-genérica, que reclamam a riqueza humana, a emancipação, a
liberdade e o compromisso com projetos da esfera coletiva (BARROCO, 2009). É com estes
valores – liberdade, emancipação humana, riqueza humano-genérica, a escolha consciente –
que o projeto ético político do Serviço Social se compromete. Ao vincular-se a um novo
projeto societário, a profissão reclama as condições sócio históricas para a efetivação destes
valores éticos.
Articulada a estes valores, o Código de Ética de 1993 ainda expressa como princípios
fundamentais que orientam a profissão:
Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas
políticas a ela inerentes –autonomia, emancipação e plena expansão dos
indivíduos sociais. Defesa intransigente dos direitos humanos e recuso do
arbítrio e do autoritarismo. Ampliação e consolidação da cidadania,
considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos
direitos civis sociais e políticos das classes trabalhadoras (CONSELHO
FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012a, p. 17).
O referido código aponta a categoria trabalho como elemento central na construção do
homem como sujeito ético e criador de valores, revelando que em sua construção enquanto ser
ético o ser humano articula valores que são ético-políticos como: “[...] a liberdade, a justiça
social e a democracia, e ao conjunto de direitos humanos (civis, políticos, sociais, culturais e
econômicos) defendidos pelas classes trabalhadoras [...]” (BARROCO, 2009, p. 18). Dentre
estas categorias, destaca-se o compromisso do Serviço Social, dado pelas especificidades já
apresentadas, com a garantia de direitos e os direitos humanos.
Para prosseguir na compreender da relação do Serviço Social com os direitos
humanos, faz-se necessário ainda recorrer a história que situa a construção deste direitos e
possibilita a compreensão das várias dimensões que o emoldura. É neste sentido que Pereira e
Vinagre (2007) afirmam a necessidade de situar o conceito dos direitos humanos nas suas
origens, a partir das experiências que lhe deram vida, na historia das sociedades que em dados
42
momentos exprimiram avanços sob a conquista de direitos e em outros momentos, aspirações
conservadoras que movimentavam-se na contramão destas conquistas.
Para as autoras, a história se situa na antiga Grécia clássica, durante os séculos V e IV
antes de Cristo, período este no qual os gregos iniciavam as primeiras formas de participação
na esfera pública. Esta participação na organização e formação do governo para os gregos é
também, associada a compreensão das raízes da democracia, ideia esta que acompanha o
desenvolvimento, afirmação e efetivação dos direitos humanos. Os antigos gregos
manifestavam-se por meio das assembleias, nas quais decidiam sobre a vida coletiva e sobre o
exercício dos cargos que iriam executar as decisões coletivas. E, embora a participação grega
sinalizasse um grande avanço no sentido de construção da democracia para o período em
questão, ainda eram excluídos desta atividade os escravos, as mulheres e os estrangeiros.
Configurava-se como um exercício seletivo de participação política, portanto, de direito
político (PEREIRA; VINAGRE, 2007).
Entretanto, antes que se pudesse haver a distinção entre os direitos políticos, civis,
sociais e econômicos, as autoras apontam a necessidade de refletir sobre o que se denomina
de jusnaturalismo, conceito este que funda posteriormente a doutrina dos direitos do homem.
Este conceito foi apresentado por John Locke, ainda no século XVII, para fundamentar seu
pensamento sobre os direitos do homem. A tese do autor apresentava a concepção de que
existiam direitos naturais dos indivíduos, direitos estes que já nascem com os indivíduos, e
por esta razão, independem do lugar que os mesmo ocupam na sociedade. Situou entre os
direitos naturais o direito à propriedade, que incluía o direito à vida e a bens materiais, e o
direito à liberdade, compreendidos como direitos inalienáveis do ser humano (PEREIRA;
VINAGRE, 2007).
Esta concepção representava certo avanço em relação às concepções feudais, já que a
organização feudal baseava-se numa estratificação social com base no nascimento. Esta
trajetória social e histórica, que atribui ao sujeito direitos naturais, caminha no sentido de
posteriormente reconhecer os sujeitos diferentes, com foco “na família, nas minorias étnicas e
religiosas, na criança, na mulher, no idoso, no doente, no doente mental, nas pessoas com
deficiência, inclusive os direitos da natureza que precisam ser respeitados” (PEREIRA;
VINAGRE, 2007, p.17).
As autoras ainda apresentam a concepção elaborada por Marx a respeito da
perspectiva de direito com base no jusnaturalismo. Marx associa a ascensão do modo de
produção capitalista, que se apropriou das concepções jusnaturalistas para afirmar-se
ideologicamente. Já se tem clarificado que o regime feudal organizava-se por estamentos.
43
Cada estamento exercia uma função política na ordem social francesa – o clero encarregavase das atividades espirituais, a nobreza administrava e defendia o grupo social e na base dessa
ordem estavam os pequenos artesãos, produtores, professores e a própria burguesia, todos
aqueles que responsáveis pela produção e movimentação econômica (PEREIRA; VINAGRE,
2007).
A Revolução Burguesa e a assunção do capital como modo de produção deslocou a
antiga ordem social pautada nos estamentos, conforme os privilégios de nascimento, para uma
nova organização social, designada pela posição ocupada na produção por classe social. O
movimento de base produtiva foi incentivado por moções intelectuais que lhe deram respaldo.
O antigo regime feudal legitima-se pelo pensamento religioso, que justificava todas as ações e
a forma de organização social vigente. O adentro do capital trouxe novas bases de
pensamento, pautadas no racionalismo. O iluminismo e a centralidade no conhecimento e
razão humana, do controle sobre a natureza e da cientificidade estava imbuído no decorrer do
século XVIII, associado a emergência do modo de produção capitalista. Essa relação revela
que a produção burguesa utilizou o jusnaturalismo de base racional para fundamentar sua
organização. A razão acentua a liberdade como inerente à natureza humana (TRINDADE,
2002).
A compreensão do direito afirmava que qualquer privilegio era antinatural, já que
todos os homens nascem iguais – ideias advindas das concepções jusnaturalistas de direitos
inerentes à natureza humana. E neste sentido, as bases jusnaturalistas e sua concepção de
direito natural foram absorvidas pelo liberalismo, fundamento ideológico que sustentou o a
emergência e organização do capital (PEREIRA; VINAGRE, 2007).
O liberalismo defendia liberdade econômica, compreendendo que o Estado deveria
cumprir o papel de resguardar a liberdade econômica e da propriedade. Para Trindade (2002)
o entendimento deste processo se faz necessário tendo em vista que é no contexto da
Revolução Francesa – revolução burguesa – que é proclamada a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão. Este documento acolheu da doutrina jusnaturalista quatro direitos
naturais: à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão.
Pereira e Vinagre (2007) citam a perspectiva apontada por Marx de que esses direitos
revelam claramente o enlace com os interesses de uma classe específica. Os chamados
direitos humanos eram compreendidos como direitos dos membros da sociedade burguesa,
que atribui ao homem o direito de liberdade, que na verdade se configura como o direito do
homem de se separar de sua comunidade, individualizar-se. Esta perspectiva também é
apresentada por Trindade (2002) que também esclarece a crítica de Marx ao direito
44
apresentado nos moldes da sociedade capitalista. Como já se esclareceu o processo que
individualiza o homem, separando-o da comunidade, é o mesmo processo que na sociedade
burguesa limita o ser social de seu agir eticamente. Portanto, restringe também a liberdade de
escolha consciência entre valores, e afasta o ser da riqueza humano-genérica, que de fato, é o
que lhe é de direito.
Portanto, o direito à liberdade na sociedade burguesa é o direito a dissociação do
indivíduo da comunidade, de sua limitação em si mesmo. Trindade (2002) amplia a
apresentação desta crítica ao afirmar a ausência de sentido em discutir os direitos humanos em
uma perspectiva apenas imediatista, sem perceber as diversas determinações que inferem na
organização dos mesmos. O que se destaca desta proposição do autor é que os direitos
humanos, como construções sócio históricas, decorrem das necessidades provocadas pelas
lutas de classes e da manifestação de grupos particulares, como as mulheres, negros,
indígenas, etc. Portanto, ao ser postos em análise, os direitos humanos devem ser alocados
diante da contradição presente na sua gênese. Representam conquistas ao mesmo passo em
que manifestam os interesses da mesma sociedade que esteve na base de sua fundação. As
bases do capital representam um embate aos direitos humanos na medida em que levam a
produção social para uma apropriação individual, particularizando aquilo que se remete as
conquistas do gênero humano. Processo este que, como já esclarecido, afasta o homem da sua
dimensão coletiva, de sua ação ética.
O grande marco para os direitos humanos no século XX foi a Segunda Guerra
Mundial. As atrocidades do período da guerra imputaram ao mundo a necessidade de
estabelecer medidas de proteção e, portanto, de regulação das ações dos Estados em relação à
pessoa humano. Criaram-se instrumentos internacionais para proteger o ser humano, numa
perspectiva de que esta questão não se restringe apenas às decisões de cada Estado nacional
em particular, mas se remete a um processo que envolve o ser humano, portanto, o mundo.
Neste sentido, o pós-guerra intensificou o processo de tornar internacional a questão dos
direitos humanos, manifesto na instituição de estruturas como a Organização das Nações
Unidas (ONU) em 1945 e posteriormente a promulgação e adoção dos países da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (TRINDADE, 2002).
Cabe ressaltar que ao final da segunda grande guerra, o mundo havia-se dividido entre
dois projetos societários. A hegemonia da organização burguesa encerrou a guerra e o pósguerra, demarcado pelo encerramento a Guerra Fria. Se a Declaração Universal dos Direitos
Humanos foi promulgada ao final da guerra, concomitante a emergência do capital como
organização mundial, novamente se revela na história dos direitos humanos os fundamentos
45
do direito pela perspectiva ideológica do capital. A perspectiva de direitos hoje em vigor se
liga, desde a sua gênese, as bases burguesas de pensamento (PEREIRA; VINAGRE, 2007).
Por este viés, compreende-se que a questão dos direitos humanos tem uma dupla face.
Fundamenta-se ideologicamente na perspectiva do projeto capitalista de sociedade, quando se
referem aos direitos inerentes à natureza humana – como já apresentada, esta é uma
concepção do universo burguês – ao mesmo passo em que representam um importante
instrumento para o reconhecimento e consolidação dos direitos construídos e conquistados
pelo homem, numa perspectiva emancipatória.
De certo, a Declaração aponta os direitos fundamentais da pessoa humana que são,
portanto, universais, inalienáveis, invioláveis e interdependentes. São direitos: civis e
políticos, como o direito de igualdade em lei, à vida, à integridade física, de participação
política, à liberdade, direito de organização, religião, etc.; os direitos sociais e culturais, como
saúde, educação, transporte, habitação, cultura; os direitos econômicos, como o direito ao
trabalho, ao salario digno; e os direitos ambientais, como o direito a água potável, ao
saneamento, à preservação do meio ambiente (PEREIRA; VINAGRE, 2007).
Para o cenário brasileiro, enquanto colônia, o país não tinha nenhuma autonomia
enquanto nação. Nos períodos posteriores, entre o Império até a Primeira República, houve
contundentes violações dos direitos humanos. No que tange aos direitos políticos no país,
estes eram restritos a uma elite. Não se falava de direitos sociais, e o pouco que se fazia neste
sentido era realizado por instituições filantrópicas e privadas, reafirmando o laço clientelista e
patrimonialista que envolveu a formação do Estado brasileiro (TRINDADE, 2002;
VINAGRE; PEREIRA, 2007).
Sobre a conquista dos direitos citados, tanto políticos como sociais, a Revolução de 30
foi um movimento de grande expressividade para tal. A partir da revolução deflagrada na
década de 1930, o movimento operário ganhou visibilidade e suas reivindicações por direitos
políticos e sociais os fizeram aparecer na cena pública como sujeitos políticos – que
demandavam principalmente seus direitos trabalhistas. Esse contexto sinalizou avanços em
relação as proposições vivenciadas durante a Primeira República, sob a qual a atuação estatal
frente a “questão social” se dava pela ação policial. Sobre os direitos políticos, o período da
década de 1930, obteve, por exemplo, a conquista do voto feminino (TRINDADE, 2002;
PEREIRA; VINAGRE, 2007).
Mesmo com esta conquista no campo do direto político, sua efetivação oscilou em
maior ou menor escala conforme a conjuntura que cada período histórico permitia. Por
exemplo, nos períodos em que a ditadura imperou sobre a sociedade brasileira, os direitos
46
políticos foram brutalmente restritos. Assim como, os direitos civis também sofreram tais
repressões. Ao mesmo passo em que se reduziam os direitos civis e políticos, houve uma
relativa ampliação dos direitos sociais, principalmente sobre o campo previdenciário. O
regime militar, por exemplo, investiu na ampliação previdenciária como direito social ao
mesmo passo em que restringiu os direitos civis e políticos. Após 1970, grupos particulares se
organizaram para lutar por direitos políticos. Assim como, o sistema religioso empreendeu a
batalha pelos direitos humanos. A assunção do Estado brasileiro aos direitos humanos se deu,
segundo Pereira e Vinagre (2007) sob alguns marcos específicos11. A homologação de
algumas leis específicas e a criação da Secretaria de Direitos Humanos, dos Conselhos de
Direitos e as Comissões de Direitos Humanos, também atuaram nesta mesma perspectiva de
afirmação dos direitos humanos.
Os direitos mencionados na Declaração apresentam conceitos que se remetem ao
projeto ético-político do Serviço Social por uma relação particularizada pelos fundamentos da
profissão. Como bem esclarecido, a concepção de direitos humanos contém ao mesmo tempo
os enlaces de pensamento burguês, dados pela sua construção social e histórica e apresentamse sob outros conceitos que possibilitam sua compreensão como elemento integrante de uma
perspectiva que rompe com os mesmos fundamentos do capital que se colocam na sua gênese.
A assunção e garantia de direitos inerentes à natureza humana pressupõe alguns
elementos para a sua pela efetivação. Já se tem esclarecido que são vários os limites à
efetivação destes direitos nas configurações da produção burguesa. Sendo assim, esta garantia
só é de fato possível na medida em que o ser humano, enquanto ser singular entra em contato
com as conquistas histórias do gênero humano, como a liberdade e universalização da riqueza
humana, sendo estes, valores éticos que designam uma nova formação social por um projeto
societário distinto do universo do capital. Esta mediação entre o singular e o humano
genérico, para Barroco (2001) é dada pela dimensão ético-moral, categorias estas
ontologicamente pertencentes e construídas pela formação do próprio ser.
O projeto ético-político do Serviço Social direciona-se a esta mesma perspectiva de
sociedade e, ao vincular-se as demandas da classe trabalhadora, afirma-se pela perspectiva da
realização do ser social enquanto ser ético. A referência do projeto ético político à liberdade
11
“Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em 01/02/1994;
Convenção Interamericana para Prevenir a Punir a Tortura, em 20/07/1989; Convenção Contra Tortura e outros
Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28/09/1989; Convenção sobre os Direitos da Criança, em
24/09/1990; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24/01/1992; Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, em 24/01/1992; Convenção Inter-Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, em 27/11/1995; Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição a Pena de
Morte, em 13/08/1996 [...]” (PEREIRA; VINAGRE, 2007, p.46).
47
como um valor central alude a projeção profissional à emancipação humana, compreendida
como expansão do ser social na defesa de objetivos coletivizados. O compromisso da
profissão com a ampliação de direitos aponta os direitos humanos à universalização dos
direitos – universalização esta que é valor ético que se desenvolve pela perspectiva de
sociedade assumida pelo projeto ético político do Serviço Social (PEREIRA; VINAGRE,
2007).
Para Pereira e Vinagre (2007) assumir a questão dos direitos humanos como valor e
objetivo profissional não significa assumir uma postura messiânica, mas é compreender que
há limites concretos à universalização dos direitos humanos nas configurações sociais,
políticas, econômicas e culturais da sociedade capitalista. É compreender que a direção do
projeto ético político supõe a crítica aos limites objetivos aos direitos humanos, a partir de
suas determinações e possibilidades reais das configurações nas quais o mundo se encontra,
no entendimento de que a luta pelos direitos humanos é um instrumento estratégico para uma
nova ordem social. As autoras ainda apontam que “[...] os direitos humanos podem ser
situados em relação ao projeto ético-político do Serviço Social como um campo de
possibilidades de luta emancipatória a ser realizada coletivamente [...]” (PEREIRA;
VINAGRE, 2007, p. 55 grifo do autor).
A Carta de Palmas, redigida e publicada pelo Conjunto CFESS-CRESS (Conselho
Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço Social) como parte do relatório
final do 41º Encontro Nacional CFESS-CRESS, realizada em Palmas/Tocantins em 2012,
expressa a concepção da categoria sobre os direitos humanos, que foi a temática discutida
durante o encontro. A carta esclarece que para a categoria profissional a luta pelos direitos
humanos implica numa luta anticapitalista, e defende os seguintes princípios:
1) A compreensão dos Direitos Humanos como algo que não se restringe aos
direitos civis e jurídico-políticos, mas que diz respeito aos direitos
econômicos, sociais e culturais; 2) A superação da visão ´legalista` dos
direitos, trazendo-os para o âmbito da luta de classes e das contradições
inerentes à (re)produção das relações sociais capitalistas [...]; 3) A
compreensão crítica radical dos Direitos Humanos na sociedade
contemporânea, que instrumentalize uma atuação realista, desmistificando as
concepções liberais que naturalizam as desigualdades e as visões abstratas
que tratam o homem ou a ´dignidade humana` sem levar em conta as
particularidades históricas em que a humanidade se (des)constrói; 4) A
necessidade de uma articulação com os movimentos de defesa dos Direitos
Humanos, vinculando-a com a ´questão social`, com as políticas públicas
[...]; 5) A compreensão das especificidades da luta pelos Direitos Humanos
no âmbito das entidades profissionais como o Conjunto CFESS-CRESS,
articulando-a com os eixos: fiscalização, capacitação e denúncia
(CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012d, p. 53).
48
O excerto apresenta claramente que o Serviço Social compreende os direitos humanos
criticamente, alocando-os na luta de classes, nas particularidades histórico sociais de sua
gênese e da própria construção do gênero humano. Concepções estas que amplia e supera a
construção do direito liberal e sua perspectiva mistificada de direitos humanos. O Código de
Ética profissional aponta claramente que a defesa dos direitos humanos é elemento
constitutivo da profissão e, portanto, do profissional. Quando esta defesa é negligenciada por
parte dos profissionais, o próprio código se encarrega de dispor sobre as penalidades cabíveis.
Para Pereira e Vinagre (2007), a defesa dos direitos humanos no campo educacional
pelo Serviço Social se dá no exercício profissional mediante a articulação da profissão com
outros profissionais e com outras áreas do saber, pautada na interdisciplinaridade, com uma
práxis voltada à emancipação humana. Desta forma, as políticas que objetivam garantir
legislativamente estes direitos, embora os diversos e já elucidados imites, representam
grandes avanços no sentido de buscar o reconhecimento da diversidade humana no processo
de construção do Ser social.
49
3 A INTERVENÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NO AMBITO DA POLÍTICA DE
EDUCAÇÃO ESPECIAL: A DEFESA INTRANSIGENTE DOS DIREITOS
HUMANOS
3.1 SERVIÇO SOCIAL NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO
A construção da educação como espaço sócio técnico de intervenção do Serviço Social
remonta o próprio processo histórico de construção do Serviço Social enquanto profissão
institucionalizada. A reflexão sobre o campo educacional e a profissão envolve também a
construção de uma concepção de educação correspondente ao projeto ético-político
profissional, que orienta os debates e as particularidades do exercício do assistente social na
política educacional – e nas políticas sociais como um todo – de modo a objetivar e fortalecer
a luta em defesa pela educação emancipadora (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO
SOCIAL, 2012c). Portanto, se a presença do Serviço Social no campo da educação remonta o
período de origem da própria profissão, a compreensão da construção deste campo se inicia
também pela década de 1930.
Durante esta década, a conjuntura social e política do Brasil concentrava na adoção da
industrialização para impulsionar o progresso da nação. A recente formação de um Estado
nacional assumia o caráter patrimonialista, que qualificava o Estado como instrumento dos
interesses da classe dominante no país, a mesma que se mantinha no controle durante as
antigas oligarquias, e que neste novo momento, se denominava povo brasileiro, para o qual se
dirigia os interesses do Estado (FERNANDES, 1987).
O que se releva deste período no campo educacional é que a necessidades de
desenvolvimento imputada ao país pela industrialização e o populismo que se iniciava com
tais propostas, reclamavam uma reforma no sistema educacional, de modo à preparar o grande
contingente populacional a este período e as necessidades econômicas da nação. Foi esta a
razão de algumas reformas educacionais ocorridas durante este período (PATTO, 1998).
Durante esta década, a educação pautava-se pela perspectiva da burguesia que
consolidava seu poder sobre a nação. A escola se configurava como um espaço para poucos, e
estes poucos pertencentes a classe dominante. Neste momento da realidade brasileira, a escola
passou a ser compreendida como um espaço salvador das condições nas quais se encontravam
a maioria da população. O não acesso a escola era, portanto, elemento que gerava ignorância e
marginalidade (SAVIANI, 1997).
A escola, portanto, foi utilizada como instrumento de ajustamento social e controle da
população na medida em que por ela objetivou-se os preceitos da classe dominante em
50
regenerar a população para trazê-las ao novo momento da sociedade brasileira. Para este fim,
o movimento da Escola Nova foi apresentado por Anísio Teixeira como uma reforma no
sistema educacional que propiciaria tais transformações sociais. A reforma teve como base
pensadores da educação norte americana, como John Dewey e Willian Kilpatrick (WITIUK,
2004).
A Escola Nova preconizava uma renovação pedagógica na qual o ensino das séries
iniciais transformou-se em gratuitos, e destinava-se a educar aqueles considerados
delinquentes. Portanto, surgiu como uma ação de médicos juristas destinada a adaptar os
homens ao progresso da sociedade e, com base em concepções higienistas, seus objetivos se
transfiguravam em xenofobia, racismo e moralismo. A Escola Nova apresenta-se como uma
reforma de dupla face: enlaçava os interesses da classe dominante, já que, foi formulada em
função da necessidade de industrialização do país; assim como, uma nova educação
representa também o rompimento com as bases oligárquicas e sob este enfoque, reivindicava
uma nova estrutura educacional, pública, obrigatória, leiga e de responsabilidade do Estado.
Sobre esta face do escolanovismo, Wutiuk (2004) esclarece que “[...] este movimento
reivindicava uma ação mais decisiva do Estado em prol da educação pública, gratuita,
obrigatória e leiga [...]” (WITIUK, 2004, p. 33).
Os ideais da reforma foram compreendidos na Constituição Federal de 1934, que
dedicou um capítulo à educação. Em oposição aos interesses da burguesia industrial expressos
no escolanovismo, a Igreja, aliada aos interesses da burguesia agrária, caracterizada pela
antiga oligarquia que ainda detinha o poder, defendiam uma educação voltada à classe
dominante, dedicada as famílias mais abastadas. Uma nova Constituição aprovada em 1937
compreendeu ambos os interesses (WITUIK, 2004).
Esta cedência aos interesses do movimento laico católico, a associa ao Estado em
função da preocupação com a ordem e disciplina social, por meio de um controle social. A
Igreja passou a empreender ações tanto para a burguesia industrial como para o proletariado,
por meio de associações, e em especial da Liga das Senhoras Católicas. A Liga passou a
intervir nas vilas operarias, priorizando a atenção a crianças e mulheres, para minimizar as
consequências do desenvolvimento capitalista (WITUIK, 2004).
São estas mesmas instituições da Igreja que compreendem as protoformas do Serviço
Social. Isso significa que, o Serviço Social sempre esteve ligado ao campo educacional, desde
as suas proformas à sua emergência como profissão institucionalizada e compreendida na
divisão sócio-técnica do trabalho (IAMAMOTTO, 1994). Portanto, sinaliza-se que a presença
51
do Serviço Social na educação se deu deste a década de 1930, embora sua formalização e
discussão dos órgãos que regulamentam a profissão tenha se dado em períodos posteriores.
Na década seguinte, 1940, o Serviço Social já caracterizado como profissão dissociada
institucionalmente de suas protoformas – calcadas na intervenção da Igreja – iniciou o que
Imamotto (1994) denomina de modernização conversadora, que exibe o vinculo ideológico
com as bases conservadoras da fundação da profissão. Neste momento, a profissão assume
uma perspectiva psicologizante, que responsabiliza o indivíduo pelas suas mazelas,
conferindo-lhe também uma capacidade individual de superação de sua condição.
Com esta perspectiva profissional, o Serviço Social empreendia uma ação sócioeducativa operada em meio ao proletariado e suas famílias. O exercício profissional tinha
funções preventivas e curativas para os problemas sociais individualizados pela perspectiva
adotada (WITUIK, 2004).
A mesma autora ainda cita Pinheiro (1985) para esclarecer que esta mesma
perspectiva pragmática e individualizadora estava presente também no âmbito da política
educacional e no cotidiano das escolas. Segundo Pinheiro (1985 apud WITUIK, 2004), o
Serviço Social era requisitado a intervir no cotidiano escolar para visitar as famílias dos
alunos, a fim de conhecer a realidade dos mesmos e aconselhar os pais sobre os hábitos
considerados sadios a criança e a família. Sobre a função do Serviço Social na escola, a autora
ainda afirma que,
Sendo a escola um dos aparelhos privados significativos para a manutenção
da hegemonia, o Serviço Social será requisitado para o exercício de
atribuições que harmonizam as relações no processo de vigilância da moral e
da sociabilidade das famílias empobrecidas. As modalidades interventivas
serão objetivadas para a integração social dos indivíduos no espaço escolar,
comunitário e doméstico, reforçando a identidade subalterna por meio da
inculcação de valores dominantes e da interferência no seu modo de vida
com adoção de condutas comportamentais adequadas aos parâmetros morais
(WITUIK, 2004, p. 24).
A intervenção profissional do Serviço Social participava na reprodução dos
interesses da classe dominante por meio da escola. Seu exercício personificava os laços do
controle social imputados à classe trabalhadora para a necessidade da burguesia nacional de
industrialização do país. Tal atividade profissional constitui-se pela influencia norte
americana. O chamado Serviço Social de caso, grupo e comunidade teve origem nas escolas
americanas como modelo a ser implantado no Brasil. Especificamente para o campo da
Educação, nos Estados Unidos, o Serviço Social Escolar já vinha se desenvolvendo desde
52
1906, e também foi adotado para emoldurar o exercício da profissão nas escolas brasileiras,
também com o método do Serviço Social de casos individuais. A profissão buscava nos
atendimentos individuais de crianças, pais e professores, e visitas domiciliares, aplicar
instrumentais de investigação para detectar a etiologia dos problemas de aprendizagem. E, era
compreendido como o ela entre a escola e a família.
Ao Serviço Social Escolar cabe o atendimento, através do Serviço Social de
Caso, à população mais empobrecida, dentro da concepção vigente de
questão social como caso de polícia e de acesso à educação como forma de
repasse de valores e princípios. O Assistente Social atua junto ao educando e
sua família identificando os problemas sociais que repercutem no
aproveitamento escolar propondo ações ou requisitando serviços que
possibilitem a adaptação do escolar ao seu meio e ao ambiente escolar,
promovendo o ajustamento social.
Percebe-se uma tendência de
estigmatização e culpabilização dos indivíduos, sob as bases do
funcionalismo que hierarquiza as relações sociais e procura identificar
disfunções na sociedade (WITUIK, 2004, p. 26 grifo da autora).
O excerto acima destaca a ideia de adaptação dos sujeitos presente no exercício do
Serviço Social, sempre dimensionado pela ideia de ajustamento social dos indivíduos em
função das necessidades da sociedade de mercado. Destaca-se que naquele período, cabia ao
Serviço Social contribuir para curar os desajustados sociais colaborando para que a escola se
desenvolvesse como um ambiente harmonioso para a criança, para o seu reajustamento as
ordens de sociedade hegemônica. Almeida (2001) esclarece esta questão ao afirmar que “[...]
a educação, organizada sob a forma de política pública, se constituiu em uma das práticas
sociais mais amplamente disseminadas de internalização dos valores hegemônicos na
sociedade capitalista [...]” (ALMEIDA, 2001, p. 12).
Ainda durante a década de 1940, novas reformas foram empreendidas no sistema
educacional, dadas as necessidades apresentadas pela Segunda Guerra Mundial, que exigia
maior contingente populacional preparado ao trabalho. Estas reformas se consolidaram na
Constituição aprovada em 1946, que atribui ao governo federal a responsabilidade de legislar
sobre as bases da educação nacional, criando também a obrigatoriedade da educação
(SAVIANI, 2003). Esta questão reforma a solicitação do Serviço Social na escola, para atuar
na busca de permanência dos alunos na escola e consequentemente no trabalho contra a
evasão escolar, nos problemas de aprendizagem e nos desvios de comportamento (WITUIK,
2004).
Nota-se que as funções delegadas à profissão no sistema escolar reforçam a vinculação
da profissão com o projeto político do Estado, portanto, com o projeto de sociedade do
53
capital. De certo, nota-se pelas considerações acima descritas que historicamente, a
intervenção do Serviço Social na escola se construiu mediante a intervenção individual, de
caso. Até a década o fim da década de 1950, o exercício da profissão se manteve nas mesmas
configurações, compreendendo também que a própria profissão, durante este período,
permanecia enlaçada ao conservadorismo. Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
nº 4024, incidiu sobre o Serviço Social na educação na medida em que institui
legislativamente a assistência social escolar, legitimando o espaço da profissão no universo
escolar (WITUIK, 2004).
Foi somente num período pós a década de 1990, em correspondência ao
amadurecimento da profissão, expresso no projeto ético-político do Serviço Social, que se
visualizou expressiva ampliação da profissão na educação. Em 1995, os Congressos
Brasileiros de Assistentes Sociais referenciaram o grande aumento da produção teórica sobre
o Serviço Social na educação (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012c).
No ano de 2000, foi apresentado o parecer jurídico número 23/2000, elaborado pela
doutora Sylvia Terra, sobre a implantação do Serviço Social nas escolas até o ensino médio. O
parecer menciona o direito a educação, acesso e permanência dos alunos nas escolas e como a
profissão se insere no contexto educacional em face destes direitos. Em 2001, o Conjunto
CFESS/CRESS (Conselho Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço
Social) posicionou-se em relação ao âmbito educacional no 30º Encontro Nacional do referido
conjunto. No mesmo ano, o CFESS organizou um grupo de estudos dedicado ao Serviço
Social na Educação, que trabalhou para a ampliação do debate sobre a temática objetivando
contribuir para a discussão sobre o tema no cenário nacional (CONSELHO FEDERAL DE
SERVIÇO SOCIAL, 2012c).
Nos encontros seguintes do Conjunto CFSS/CRESS, realizados em 2001 e 2002,
apontou-se a necessidades de mapear as produções sobre a inserção dos profissionais na
educação em todo território nacional. No 33º e 34º encontros, ocorridos nos anos de 2004 e
2005, já em posse do levantamento das produções sobre os profissionais no referido campo de
atuação, fez-se o indicativo para a elaboração de parâmetros nacionais para regulamentar o
exercício profissional no sistema educacional. Neste mesmo período, o professor Ney Luiz
Teixeira de Almeida elaborou um parecer sobre os projetos de lei que até então versavam
sobre a atuação profissional neste campo (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL,
2012c).
Em 2007, no 36º encontro, consolidou-se a formação de um grupo de trabalho
composto com representantes de todas as regiões para aprimorar as discussões e deliberações
54
sobre o tema. Até o ano de 2009, o Grupo de Trabalho Serviço Social na Educação
sistematizou os dados referentes as legislações de todos os estados e municípios sobre a
inserção profissional na educação, assim como fez o mapeamento dos projetos de Lei que
representavam a questão (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012c).
Em 2010, o referido grupo de trabalho apontou a necessidade de assessoria para
ampliar e aprofundar o debate sobre o tema, para o qual, o professor Ney Luiz Teixeira de
Almeida foi indicado. A partir deste ano, foi realizado novamente um levantamento sobre a
inserção profissional nas escolas em todo Brasil, identificado tais profissionais, levantamento
da produção teórica sobre a temática, elaboração de um roteiro orientador das discussões e a
produção de um documento intitulado “Subsídios para o Debate do Serviço Social na
Educação” em 2011 (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012c). O debate dos
órgãos que regulamentam a profissão sobre a temática culminou – e se encontra – nos dias
atuais, na realização do Seminário Nacional de Educação em 2012.
Do processo descrito sobre a inserção do Serviço Social na educação, salienta-se a
concepção de educação que norteia a intervenção profissional neste campo, fundamentada
pelo projeto ético-político da profissão. Para Almeida (2007), o Serviço Social trabalha com
uma perspectiva crítica de educação, dimensionando-a a partir dos determinantes sociais,
políticos, econômicos e culturais que se entrecruzam no sistema educacional e, tem como
horizonte para sua intervenção uma educação emancipadora. Isto significa que,
A educação que se quer emancipadora não se restringe à educação
escolarizada, organizada sob a forma de política pública, mas não se constrói
a despeito dela, visto que sob as condições de vida da sociedade capitalista é
ela que encerra a dimensão pública que mediatiza, de forma institucional e
contraditória, o direito ao acesso aos bens e equipamentos culturais de nosso
tempo. Por essa razão a educação escolarizada ao passo que se constitui em
expressão da dominação e controle do capital é ao mesmo tempo objeto das
lutas das classes subalternas pela sua emancipação política. A arena da luta
política e da disputa pela direção dos projetos societários e educacionais
determina na sociedade capitalista a possibilidade de diferentes contornos da
relação do Estado com a sociedade civil (ALMEIDA, 2007, p. 3).
Portanto, a educação é compreendida como espaço de reprodução da ideologia
dominante ao mesmo passo em que se configura como elemento parte de uma luta das classes
trabalhadoras pela emancipação política, na disputa entre projetos societários contrários. Sob
esta perspectiva, o autor ainda afirma que o campo educacional torna-se para o assistente
social lócus para a concretização dos valores que orientam a profissão (ALMEIDA, 2000). O
autor ainda destaca que é necessário compreender e articular um processo que envolva a luta
55
por direitos com base na perspectiva crítica assumida pela profissão, que se diferencia da
concepção pedagógica da hegemonia capitalista.
A intervenção do Serviço Social na educação contribui para fortalecer a ideia de
educação como um direito social. E, dentro da própria política educacional, outras políticas
são construídas e com base na compreensão crítica, podem ser objeto e espaço de intervenção
profissional do assistente social. Sobre as legislações aprovadas que hoje orientam o Serviço
Social na Educação, o projeto de lei apresentado pelo Deputado José Carlos Elias, nº 60/2007
em 2007, dispõe sobre a inserção das áreas de Psicologia e Serviço Social na educação básica
do ensino público. Assim como, a aprovação do projeto de lei 3.688/2000, que trata da
inserção dos assistentes sociais na educação básica também representou um grande avanço
para esta luta da categoria profissional (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL,
2012d).
Neste sentido, o Seminário Nacional de Serviço Social na Educação realizado em
2012, apresenta o seguinte esclarecimento sobre a inserção profissional neste campo:
A presença dos/as assistentes sociais na política educacional remete à
reflexão acerca da necessidade do entendimento da educação como um
processo social numa dimensão integral, envolvendo os processos sócio
institucionais e as relações sociais, familiares e comunitárias que fundam
uma educação cidadã, articuladora de diferentes dimensões da vida social
como constitutivas de novas formas de sociabilidade humana, nas quais o
acesso aos direitos sociais é determinante (CONSELHO FEDERAL DE
SERVIÇO SOCIAL, 2012d, p. 2).
Neste sentido, o exercício do Serviço Social na Educação orienta-se na busca de
garantia de: acesso da população ao sistema educacional regular (forma e pública); de
permanência dos alunos nestas instituições, a garantia de qualidade dos serviços na educação;
de gestão democrática e participativa na própria política de educação; e, a articulação com
outras áreas para a garantia do direito à educação e outros direitos implicados neste processo
(CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012c). E a orientação que seque a
inserção do assistente social no contexto da educação envolve ainda a clareza dos processos
que envolvem a construção da educação como política mediada pelos interesses de mercado e
a compreensão de educação pautada numa perspectiva crítica, que ultrapassa a concepção rasa
e imediatista de reprodução da lógica hegemônica e engendra uma educação orientada à
emancipação.
56
3.2 A PARTICULARIDADE DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NA
PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Já se tem esclarecido que a inserção do Serviço Social na educação acompanhou o
processo pelo qual a própria profissão rompeu com suas bases conservadoras. As primeiras
demandas pela profissão neste campo foram acompanhadas de uma intervenção adaptativa,
que objetiva readequar os sujeitos à sociedade, como método de cura e prevenção dos
problemas sociais. A educação era compreendida como mero instrumento de perpetuação dos
interesses da classe dominante, em um país emoldurado pela hegemonia de um único grupo
social deste a fundação de seu Estado.
O processo de amadurecimento da profissão propiciou a ruptura com o tradicionalismo
e a assunção de uma nova perspectiva teórica, fundamentada no marxismo, que conferiu ao
Serviço Social a orientação para um projeto ético-político vinculado as demandas da classe
trabalhadora, com uma concepção crítica das relações sociais situadas no antagonismo de
classes, a defesa da democracia, da liberdade, dos direitos humanos, uma perspectiva
emancipatória e particularmente a defesa de um projeto societário anticapitalista.
A profissão assumiu também uma concepção crítica da própria educação,
compreendida nas suas determinações enquanto produção da ordem burguesa e espaço de
reprodução da ideologia hegemônica, mas também como espaço de emancipação e, portanto,
como parte da luta trabalhadora pelos seus direitos. Como espaço de reprodução ideológica
burguesa, o campo educacional também manifesta ao mesmo tempo diversas expressões da
“questão social” e as possibilidades de enfrentamento a elas.
A educação é compreendida mediadora de um projeto de sociedade, é situada nos
determinantes sociais de cada tempo e espaço, mas engendra um papel estratégico. Dentro de
uma perspectiva crítica a educação pode participar para a concretização de um projeto
societário que, quando remetido à crítica ao universo produtivo da sociedade de mercado, leva
ao desvelamento das contradições da mesma sociedade, situando a educação nesta totalidade e
apontando as possiblidades de enfrentamento as expressões da” questão social” nela alocadas.
Dentre as possibilidades de enfrentamento às refrações da “questão social” no campo
da educação, a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, foi
aprovada em 2008 pelo governo Federal, como uma proposta para lidar com a exclusão no
sistema de ensino. A política de educação inclusiva objetiva garantir o acesso ao sistema
escolar dos alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e
superdotação/altas habilidades. Ainda orienta o sistema de ensino para garantir a qualidade da
57
educação de todos os alunos, de forma que, aqueles que se colocam como público alvo da
política tenham os mesmos direitos de participação e aprendizagem garantidos. Assim como
também orienta a educação regular para o atendimento educacional especializado, a formação
dos professores, acessibilidade, participação da comunidade e família no processo de inclusão
escolar (BRASIL, 2012h).
A educação inclusiva apresenta a ideia de que o sistema escolar deve estar preparado
para atender as especificidades de todos os alunos. A centralidade está na modificação do
sistema de ensino para atender o aluno, e não na adaptação do aluno para corresponder à
escola, como se viu em outros momentos da educação – como na proposta de integração
escolar. A política de educação inclusiva ainda especifica que a proposta de reestruturação
que embasa a perspectiva inclusiva na educação é resultado das discussões e estudos no
campo da educação e da defesa dos direitos humanos. Sinaliza que a partir da Declaração de
Salamanca, produzida em 1994, fica estabelecido o princípio de que o sistema educacional
deve atender todos os alunos, independente das suas especificidades, como uma das
alternativas de enfrentamento da exclusão na educação (BRASIL, 2012h).
Nota-se destas proposições que embora a política de educação inclusiva se configure
como uma proposta de enfrentamento da exclusão no sistema regular de ensino, por hora, ela
se dirige apenas a um público alvo específico. Considerando que a perspectiva inclusiva foi
adotada pela educação especial, a referida política não abarca outras especificações, como a
exclusão étnica ou social, por exemplo. Ela se destina ao público alvo da educação especial,
para garantir o acesso dos mesmos ao sistema educacional regular. Mas o que se destaca
destas proposições é a afirmação de que a educação inclusiva se orienta pela perspectiva de
direitos humanos. Em outros trechos da mesma política, o texto identifica e confirma a
fundamentação e orientação da política de educação inclusiva nos direitos humanos, assim
descritos,
A educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na
concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como
valores indissociáveis, e que avança em relação à idéia de eqüidade formal
ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro
e fora da escola (BRASIL, 2012h, p. 5).
O excerto elucida o compromisso da perspectiva inclusiva com os direitos humanos e
sinaliza outro conceito fundamental, referindo a compreensão histórica da produção da
exclusão na escola e nos demais espaços que a circunda. A exclusão é o que provoca a
necessidade de incluir.
58
Sobre a exclusão, Wanderley (2010) afirma que não se trata de um fenômeno recente,
muito menos restrito aos países pobres. A exclusão fez-se historicamente presente na
realidade social do homem em diversos momentos. Ainda que se observem manifestações da
exclusão em períodos que antecedem a emergência da produção burguesa como hegemônica
na sociedade, há uma relação específica entre o desenvolvimento da sociedade capitalista e a
exclusão, como esclarece o autor a exclusão é concebida como um fenômeno social cujas
determinações devem ser buscadas nos princípios do funcionamento da sociedade moderna,
ou seja, da sociedade de mercado.
A ordem social da produção capitalista pressupõe a contradição entre classe
trabalhadora e os donos dos meios de produção e, essa relação de polaridade aponta a
exclusão como fundamento do capital. Sawaia (2010) conceitua a exclusão como:
[...] um processo multifacetado, uma configuração de dimensões materiais,
políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético que só existe
em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um
estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os
outros. Não tem uma única forma, nem é uma falha do sistema, devendo ser
combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrario, ele é
produto do funcionamento do sistema (SAWAIA, 2010, p. 8).
Para autora, a contradição presente na estrutura do capital revela que a exclusão
contém em si sua negação, a inclusão; e não pode existir sem ela. Esta qualidade apresenta a
exclusão como idêntica a sua negação, ou seja, a exclusão transmuta-se em uma inclusão
social perversa. Portanto, a sociedade exclui para posteriormente incluir de maneira precária,
criando o que a autora nomina de uma dialética exclusão/inclusão (SAWAIA, 2010). Esse
processo cria uma inclusão ilusória, quando de fato os grupos supostamente incluídos estão
excluídos.
Como fundamento da produção material e subjetiva da sociedade de mercado, a
dialética exclusão/inclusão manifesta-se em diversas instâncias da mesma sociedade.
Portanto, apresenta-se também sobre o desenvolvimento do sistema educacional. A educação
torna-se um instrumento de reprodução de um tipo humano necessário à produção burguesa.
E, conforme esclarece Mézáros,
A educação que poderia ser uma alavanca essencial para a mudança, tornouse instrumento daqueles estigmas da sociedade capitalista: fornecer os
conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão
do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores
59
que legitima os interesses dominantes, [...] tornou-se uma peça do processo
de acumulação de capital e de estabelecimento de um consenso que torna
possível a reprodução do injusto sistema de classes (MÉSZÁROS, 2008,
p.15).
Sendo assim, a exclusão à qual a política de educação inclusiva se referencia é
produtora e produto da ordem burguesa, e sua apreensão histórica designa o movimento
descrito de entendimento da alocação da exclusão nos moldes da estrutura burguesa que ela
sustenta. Portanto, a compreensão da política de educação inclusiva pautada nos direitos
humanos se refere a uma posição contraria à ordem burguesa.
Ao refletir sobre a concepção de direitos humanos tem-se um aprofundamento na
referência da política de educação inclusiva neste posicionamento político. A concepção de
direitos humanos enlaça ao mesmo tempo os interesses burgueses, presentes na sua gênese,
mas é compreendida como um conceito/elemento que pode se referir a outra perspectiva de
sociedade. Direitos humanos significam para a sociedade burguesa o direito da propriedade
privada, apenas de alguns, mas também podem significar aquilo que é do gênero humano e
neste sentido referem-se às conquistas humano genéricas, que envolvem a consciência, a
liberdade, a universalização, sendo o contato com esta riqueza humana só é possível pelo agir
eticamente. A objetivação dos direitos humanos se dá mediante estes elementos. Na ordem
burguesa, a efetivação destes elementos é limitada, tendo em vista que os mesmo só se
realizam pela mediação do trabalho, como produto concreto da ação humana, e é justamente
em relação à categoria trabalho que a ordem burguesa impõem suas limitações ao alienar o ser
humano de sua produção (BARROCO, 2008). Portanto, a efetivação de direitos humanos só
tem plena possibilidade a medida que o ser social se apropria das suas produções, que o criam
enquanto ser consciente.
Todos estes conceitos se vinculam ao compromisso assumido pelo Serviço Social a
partir de 1993. A profissão é orientada por um projeto ético-político que assume a luta pelos
direitos humanos na sua concepção crítica. Pela concepção de direitos humanos o Serviço
Social pode se inserir na discussão sobre a política de educação inclusiva, compreendendo a
concepção de educação inclusiva também por uma perspectiva crítica, que a coloca nas
determinações sócio históricas que a engendram.
Esta relação é confirmada por Almeida (2011), que aponta a universalidade do acesso
à educação como um princípio dirigido aos segmentos sociais que necessitam de sua garantia,
situando-o no campo dos direitos humanos e dos direitos sociais e, ainda acrescenta que a
60
intervenção do Serviço Social neste campo deve pautar-se por esta dimensão da
universalização do acesso à educação como direitos humanos e sociais. O autor afirma que,
A universalização do acesso à educação se traduz, portanto, em um princípio
que ultrapassa a compreensão seletiva e restrita de que as políticas sociais
devem ser dirigidas a determinados segmentos sociais, particularmente aos
que delas necessitam, situando a educação no campo dos direitos humanos e
sociais, concebendo a política educacional enquanto política efetivamente
pública que coloca ao alcance de todos os conhecimentos a cultura e a
tecnologia socialmente produzidos, como uma herança de nosso tempo. A
atuação do/a assistente social na política de educação deve pautar-se neste
princípio, já presente em nosso Código de Ética (ALMEIDA, 2011, p. 51).
A inserção do Serviço Social nesta política não pode ser deslocada da dinâmica social,
política, econômica e cultura que historicamente incidiram sobre o sistema educacional
inviabilizando a universalidade do acesso e permanência à educação. Também é
imprescindível a análise e compreensão dos discursos que permeiam as diferentes ações
dentro da própria política de educação inclusiva de suas vinculações ideológicas e os projetos
de educação que competem na sociedade (ALMEIDA, 2011). Especificamente o uso do termo
inclusão na educação, se não situado nas condições acima mencionadas pode obscurecer seu
significado sócio histórico, e reproduzir o sentido legalista atribuído pela ordem burguesa à
política de educação inclusiva,
A larga disseminação do termo “inclusão”, que atravessa diferentes políticas
sociais e a própria política educacional, tem contribuído, significativamente,
para obscurecer essas preocupações, produzindo um discurso que, embora
seja bastante receptivo no campo educacional, não se aprofunda nas
determinações da não garantia do acesso universal à educação e da dimensão
crônica que o fenômeno da evasão assume (ALMEIRA, 2011, p. 52).
Para o mesmo autor, o Serviço Social tem o desafio de empenhar-se em decifrar a
aparente conformidade criada em torno da educação inclusiva, o que requer desde a
compreensão da inserção da profissão neste âmbito, a compreensão da própria educação, da
educação inclusiva e de todas as ações que dela partem para garantir o acesso e permanência à
educação, no entendimento da sua construção histórica como direito social, portanto, como
parte dos direitos humanos.
Para Iamamoto (1998) o grande desafio da profissão na sua inserção nas políticas
sociais, e aqui, especificamente na política de educação inclusiva, é redescobrir as alternativas
para formular sua intervenção com base nas dimensões que sustentam a profissão – teóricometodológica, ético-político e técnico-operativo – para o enfrentamento da “questão social”.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Serviço Social é uma profissão que intervém nas relações sociais no contexto da
sociedade de classes. Esta gera contradições e diferentes expressões da “questão social”, as
quais são mediatizadas pelo Estado e respectivas políticas sociais, dentre estas, encontram-se
as políticas educacionais. A área tem demandado a inserção do Serviço Social, neste sentido,
o presente trabalho permitiu identificar a Política de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva como área específica que necessita ser aprofundada visando a
qualificação da formação e do exercício profissional.
Como proposta recente no campo educacional – aprovada em 2008 – as produções
teóricas sobre as relações do Serviço Social e as particularidades desta política são poucas e
recentes. Sobre este, um questionamento se salta: quais as interfaces entre a concepção de
educação inclusiva expressa na Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva e os princípios ético-políticos do Serviço Social brasileiro?
Para refletir sobre este enlace, é necessário compreender as configurações que
envolvem esta política na sua formulação, e que são decorrentes do processo de construção
das políticas sociais em geral no Brasil. A emergência das políticas sociais no contexto
brasileiro assume as configurações da formação do próprio Estado da nação, caracterizado, na
sua gênese, por um caráter patrimonialista, que mistura os interesses públicos e privadas. A
dualidade de interesses personificados na intervenção do Estado perpetua-se até os dias atuais.
Sendo assim, a política de educação inclusiva também manifesta esta dupla face: é formulada
pelo Estado e expressa os interesses do capital à medida que, apresenta a inclusão sem
compreender criticamente os determinantes que a media.
A concepção que a legislação traz de educação inclusiva é centrada na adaptação do
sistema escolar para atender as necessidades dos alunos, de forma que a escola esteja
preparada para lidar com a diversidade que compõe a sociedade. Sob deste entendimento, que
dimensão é esta que possibilita perceber este rompimento? A política de educação inclusiva
organizou-se a partir dos questionamentos em prol dos direitos humanos, e os tem como base
para a sua formulação. Sobre a defesa dos direitos humanos, o Serviço Social expressa por
meio do seu Código de Ética de 1993, o posicionamento claro em favor e defesa dos direitos
humanos. E, a concepção de direitos humanos assumida pelo Serviço Social possibilita a
compreensão do lastro de rompimento com a lógica instrumental da razão capitalista presente
na política de educação inclusiva.
62
À medida que a profissão alcança dado amadurecimento, pela sua inserção nos
movimentos sociais, a interlocução e assunção da teoria marxista como fundamentação e
orientação profissional, ela rompe com o tradicionalismo e o conservadorismo presente deste
a sua gênese. O Código de Ética de 1993 materializa este rompimento ao apresentar os
valores éticos e políticos que fundamentam a profissão. É neste mesmo código, como já
elucidado, que se apresenta a defesa intransigente dos direitos humanos, da democracia, da
liberdade, e designa um projeto ético-político vinculado às demandas da classe trabalhadora e
comprometido com valores éticos e políticas anticapitalistas.
Particularizando a questão dos direitos humanos, na compreensão construída pelo
Serviço Social, designa o compromisso com aquilo que é da produção do gênero humano e
pela universalização destes direitos. O ser humano se constrói materialmente e subjetivamente
pela categoria trabalho. É esta categoria que permite o desenvolvimento da consciência
humana e da vida em sociedade, assim como a liberdade, a escolha, a universalização.
Compreende-se que estes valores não podem ser efetivados em plenitude nos moldes da
sociedade capitalista, considerando que a mesma usurpa o principal mediador da construção
humana, que é o trabalho. Nas dimensões da produção burguesa, o processo de trabalho afasta
o ser humano de sua produção, o afasta de sua riqueza humano genérica, impossibilitando a
realização do ser social e dos valores subjacentes à tal construção. Sendo assim, ao
posicionar-se na defesa destes valores, o projeto ético político do serviço social defende
também um projeto societário diferente da ordem burguesa.
Esta compreensão de direitos humanos que os relaciona às conquistas humanogenéricas e a uma perspectiva societária contrária ao capitalismo tem a possibilidade de serem
explicitadas na dimensão da política de educação inclusiva que pode conter um
posicionamento crítico às bases do capital. Portanto considera-se que a interface entre a
concepção de educação inclusiva expressa na Política de Educação Especial na perspectiva da
Educação inclusiva e os princípios ético-políticos do Serviço Social brasileiro é a noção de
direitos humanos.
De certo, ainda há inúmeras determinações desta relação que necessitam ser
investigadas para aproximar os laços entre esta política e o exercício profissional do Serviço
Social. O que se apreente desta investigação é que, a ciência do processo que situa o exercício
profissional nas dimensões da política de educação inclusiva amplia a compreensão da
profissão sobre a temática, que se sabe, ser ainda um campo emergente e carente de
produções. Para o exercício profissional, poderá subsidiar a formulação de novas ações para a
área fundamentadas no desenvolvimento dos princípios que a profissão defende.
63
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