Introdução

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O PROJETO DE ESTADO BEM-ESTAR SOCIAL E A AMÉRICA LATINA: A
PARTICULARIDADE DA SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA
Profa. Dra. Berenice Rojas Couto ([email protected])
Edla Hoffmann ([email protected])
Fabiana Aguiar de Oliveira Guimarães ([email protected])
Tatiana Reidel ([email protected])
Tiago Martinelli ([email protected])
Vanessa Maria Panozzo ([email protected])
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Núcleo de Estudos de Políticas e Economia Social (NEPES)
1ER. CONGRESO LATINOAMERICANO DE HISTORIA ECONÓMICA
IV JORNADAS URUGUAYAS DE HISTORIA ECONÓMICA
MONTEVIDEO, 5-7 DICIEMBRE 2007
SIMPOSIO:
5. LAS EXPERIENCIAS DE CONSTRUCCIÓN DE “MODELOS DE BIENESTAR” EN AMÉRICA
LATINA Y EL PARADIGMA DE OCCIDENTE.
RESUMO
As economias capitalistas avançadas do pós-segunda guerra mundial constituíram, a
partir de idéias keynesianas, um projeto de estado de Bem-estar que perdurou por toda
“era do ouro”, sendo colocado em xeque, a partir da década de 70 do século XX,
quando uma nova reestruturação capitalista entra em cena. Debate-se a perspectiva de
compreender como a estruturação do sistema econômico indicado pelos organismos
multilaterais (FMI, Banco Mundial) incidiu e incide no sistema de proteção social
latino-americano. Neste contexto, o presente artigo procura discutir que inflexões esse
projeto teve em sociedades de capitalismo periférico, como a América Latina e
particularmente o desdobramento ocorrido no Brasil, na constituição do sistema de
seguridade social, pós-1988. Aborda-se a conformação de um sistema de proteção social
no Brasil que se reestrutura através da proposta da “contra reforma” do Estado,
alterando a relação entre o Estado e a sociedade civil, com iniciativas que vêm se
configurando em programas de fomento filantrópico e do mercado, retrocedendo às
práticas assistencialistas de tutela que limitam os processos emancipatórios dos
usuários.
PALAVRAS-CHAVE
Proteção Social – Reestruturação Capitalista – América Latina
1
1- Introdução
O presente artigo enfrenta o desafio de debater a constituição de sistemas de
proteção social em sociedades periféricas, como as da América Latina e em especial a
do Brasil. Parte-se da premissa que é fundamental entender as transformações
societárias de capitalismo na contemporaneidade e como essas transformações afetam
os chamados sistemas de proteção social.
No item 2 debate-se a perspectiva de compreender como a estruturação do
sistema econômico indicado pelos organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial)
incidiu e incide no sistema de proteção social latino-americano. Neste contexto, o
presente artigo procura discutir que inflexões esse projeto teve em sociedades de
capitalismo periférico, como a América Latina e particularmente o desdobramento
ocorrido no Brasil, na constituição do sistema de seguridade social, pós-1988.
Adensam-se as discussões, sobre a constituição do sistema de proteção social na
expectativa da compreensão de como se conformam as políticas sociais nos países da
América Latina, inseridos no rol dos países que compõem o Terceiro Mundo. Busca-se
essa discussão a partir das instituições e dos organismos que gerenciam as diferentes
políticas criadas para dar conta das desigualdades sociais.
No item 3 encontra-se evidenciada a trajetória da proteção social brasileira até a
Constituição de 1988. Demonstra-se que o caminho percorrido indicou a criação de um
sistema seletivo, dirigido a pouco, aqueles que se inscreviam no mercado formal de
trabalho, e que em 1988, a garantia legal vai expandir-se na direção do atendimento das
necessidades sociais na ótica da universalização dos direitos sociais.
O item 4 fará um breve colocação sobre a seguridade social na Constituição
brasileira e os desafios encontrados na realidade brasileira para efetivar essa garantia.
Por fim, o artigo indica a necessidade de continuar a os estudos sobre o tema’’ no
sentido de desvelar a ótica da reforma do Estado que está em curso no Brasil
atualmente.
2
2- As transformações societárias do sistema capitalista na contemporaneidade
Vários autores contemporâneos discutem as transformações estruturais do
capitalismo que objetivaram superar as suas crises cíclicas e que, ao mesmo tempo,
acentuaram as mazelas oriundas do conflito entre capital e trabalho. Anderson (1996) e
Antunes (2005a; 2005b), apontam as características que conformaram a convulsão
mundial do sistema capitalista, iniciada no final da década de 1960 e que perdurou até
os anos de 1970. Contudo, no Brasil, a crise teve maior repercussão em 1980. Segundo
esses autores, após a era de ouro1 para a acumulação do capital, o sistema emergiu em
uma onda de declive da taxa de lucro e estagnação da economia. Fato que os capitalistas
justificam estar ligado aos altos custos da força de trabalho, em decorrência das leis
trabalhistas; ao esgotamento do padrão de produção taylorista-fordista; ao maior
investimento no capital financeiro (especulativo) em detrimento do produtivo; à falência
do Estado de Bem-Estar Social, devido a sua crise fiscal. Frente a esse diagnóstico, que
traçou as principais causas dessa minimização dos lucros nos anos de 1980, há uma
retomada do pensamento neoliberal, que vinha em disputa pelo controle ideo-político e
econômico dentro da classe burguesa, desde a década de 1940, corrente teórica liderada
por Friedrich Hayek, que defendia a proposta de um Estado mínimo e de auto-regulação
do mercado.
No intuito de superar a paralisia econômica, os organismos internacionais —
Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) — baseados na análise
economicista do cenário da década de 1970, receitaram um “remédio” amargo para
combater o déficit de acumulação. A chamada “ofensiva neoliberal” objetivou
“revitalizar” a dinâmica do capital, articulando mudanças econômicas, políticas, sociais
e ideológicas, que visaram atingir diretamente os pilares da crise. Essas “produziram”
diversas metamorfoses no “mundo do trabalho” (ANTUNES, 2005a), dentre as quais: a
reestruturação produtiva, uma nova onda de globalização e, sobretudo, os ajustes
neoliberais, que redefiniram o papel do Estado e da sociedade civil.
A “modernização” da produção mudou a organização e a gestão do trabalho, de
taylorista-fordista para a acumulação flexível (modelo toyotista), substituindo trabalho
vivo por morto, incorporando alta tecnologia na produção, tais como a microeletrônica e
a robótica, elevando, assim, a composição orgânica do capital (SALAMA, 1975). O que
se observa, na moderna fábrica da “era pós-industrial”, é uma “planta arquitetônica”
enxuta, com um quadro de trabalhadores altamente qualificados e polivalentes, voltados
24 horas para as necessidades da empresa. Esse segmento de trabalhadores tem direitos
garantidos, e seus salários estão submetidos à lógica do desempenho individual. O custo
dessa força de trabalho está relacionado à necessidade de flexibilização dos direitos
trabalhistas ou de “benefícios”, e seu preço deve ser negociado diretamente entre o
empregado e o empregador, sem a intervenção dos sindicados e/ou do Estado, pois, a
regulação social do trabalho para os capitalistas, não permite a remuneração “justa” dos
trabalhadores que se mostram mais competitivos e qualificados. Antunes (2005b), ao
descrever “a nova morfologia do trabalho”, faz referência à captura da subjetividade do
trabalhador e descreve que:
Hoje, muito mais que durante a fase de hegemonia taylorista/fordista, o trabalhador
é instigado a se autocontrolar, a auto-recriminar-se e, até, autopunir-se quando a
produção não atinge a meta desejada (chegando, até mesmo, a situações extremas
como o desemprego e o fechamento de empresas, ao suicídio a partir do fracasso no
1
A era de ouro do capitalismo emergiu no Pós-Guerra e sustentou-se até os anos de 1960, afirmando-se
mediante o modelo de organização e gestão do trabalho taylorista/fordista e políticas econômica e
social baseadas no Keynesianismo (HOBSBAWM, 1995).
3
trabalho), ou se recrimina e se penitencia quando não se atinge a chamada
“qualidade total”, típica da fase da superfluidade, do caráter involural das
mercadorias, com suas marcas e signos, que faz que, muito freqüentemente, quanto
mais “qualidade total” os produtos tenham, menor vida útil (ANTUNES, 2005b,
p.53).
A chamada “nova fábrica de consensos” (MOTA, 1998), que transforma os
trabalhadores em “colaboradores”, ocasiona a identificação quase orgânica dos mesmos
com os interesses e necessidades dos empregadores, o que, por conseguinte, repercute
negativamente na ação coletiva e nos espaços legítimos de luta de classe, tais como os
sindicatos. Essas metamorfoses do “mundo do trabalho” (ANTUNES, 2005a) geram a
fragilização do tecido social em duas perspectivas: de um lado, incide diretamente na
identidade de classe, em si e, sobretudo, para si (JOFFILY, 2002); e, de outro,
inviabiliza o acesso à parte da riqueza socialmente produzida, seja através do salário,
seja das políticas sociais ligadas ao trabalho protegido. E, aos indivíduos incapazes de
vender sua força de trabalho, resta a autoculpabilização por sua situação de
desempregado.
Essa reengenharia de recursos humanos também preconiza a utilização de um
contingente de trabalho “hifenizado” (ANTUNES, 2005a), composto pelos
trabalhadores terceirizados, temporários, não especializados. Essa diversidade de
relações contratuais entre o capital e o trabalho e o desemprego estrutural têm como
função estimular a competitividade entre os trabalhadores, que, para os neoliberais, é a
mola propulsora do progresso da humanidade, objetivando libertar os indivíduos das
“amarras” de um Estado de Bem-Estar Social considerado pelos liberais como
paternalista, que os leva à desmotivação. Contudo, essa complexificação da classe
trabalhadora reatualiza velhas formas de socialização do trabalho, tais como: o trabalho
desprotegido no domicílio, o infantil, o escravo, dentre outros. Neste sentido, a terceira
onda de reestruturação produtiva provocou alterações objetivas e subjetivas estruturais
na relação entre o capital e o trabalho, com a finalidade de aumentar a exploração e o
controle do primeiro sobre o segundo. A produção de “subjetividade capitalista”
(GUATTARI, 1986) está interligada ao mundo que se concebe globalizado não somente
no que se refere aos mercados, pois a “aldeia global” do capitalismo difunde uma
cultura que produz identidades “interligadas” pela liberdade de consumo, na mesma
medida que fragmenta e isola os sujeitos que não apresentam as condições individuais
de pertencerem ao seleto grupo de “cidadãos clientes”2, que têm direito a ter direitos,
através do acesso mercantilizado aos mesmos.
A atual onda de globalização do capital imprimiu uma nova divisão
internacional do trabalho, dentre suas características esta a centralização da gestão da
produção, que se polariza nos países de capitalismo avançado, esses apenas se utilizam
da mão-de-obra, geralmente desqualificada, dos países de capitalismo periférico, sendo
que a produção não é para consumo interno dos produtores, mas para os que organizam
e controlam a produção das mercadorias. Para os subdesenvolvidos, está atribuída a
função de manufaturar as mercadorias, sendo de responsabilidade das indústrias das
nações de capitalismo central realizar todo o processo criativo, assegurando, assim, o
monopólio do conhecimento científico e da alta tecnologia.
2
Bresser Pereira faz a seguinte distinção entre o cidadão-usuário e cidadão-cliente e expressa claramente
sua idéia contrária à universalização das políticas sociais: “[...] o cidadão-usuário não paga, enquanto o
cidadão-cliente paga pelos serviços recebidos. A distinção pode ser útil para distinguir os casos em que
os serviços do Estado são cobrados por envolveram direito universal (ensino básico, por exemplo)
daqueles que não o são. É tolice se supor que o cidadão deva ser sempre usuário, jamais pagando por
serviços prestados pelo Estado”. (PEREIRA, 2002, p. 111).
4
Na ditadura do capital globalizado, há concentração de riqueza e poder e
mundialização da pobreza e de uma cultura que a naturaliza, difundindo uma forte
banalização da desigualdade, que transforma a miséria, no imaginário social, em parte
da “paisagem urbana” (TELLES 2001). Neste sentido, o dual (OLIVEIRA, 2003), na
atualidade, compõe a sociedade “pós-moderna”, cujo imperativo ‘é convivência
harmônica entre o arcaico e o moderno, entre a riqueza e a extrema miséria. A pobreza,
como outrora, não é questionada, e a ela é atribuído o status de mal necessário. Ela
cresce no mesmo ritmo do trabalho precarizado e do desemprego estrutural, com mais
evidência nos países da América Latina que convivem com as mazelas sociais de um
capitalismo extremamente selvagem, caracterizado por um alto grau de concentração e
centralização, se comparado ao de outros países, como os europeus, com uma longa
experiência de Estado de Bem-Estar Social.
Nesse contexto, autores como Telles (2001) e Soares (2000) referem-se às novas
expressões da questão social, no mundo globalizado, como a “nova pobreza”. Freitas
(1996) caracteriza-a como sendo a “subclasse”3, sendo esta a expressão da agudização
da questão social nos tempos de globalização.
Frente a isso, o Consenso de Washington prescreveu “recomendações” para a
política econômica e social dos países, que tiveram, e ainda têm, um grande impacto
social negativo para a classe trabalhadora, principalmente nos países de Terceiro
Mundo, reconfigurando-se o tamanho do Estado, suas funções e responsabilidade frente
à questão social, e repassando à sociedade civil o encargo do enfrentamento de suas
expressões. Defende que para os homens libertarem-se do “caminho da servidão”, há
necessidade do “[...] livre jogo das forças de mercado, sem nenhuma interferência, [...]
que levaria a uma melhor utilização dos fatores produtivos em beneficio de toda a
coletividade” (SOARES, 2000, p. 15). Contudo Soares (2000) refere que, resguardando
suas especificidades, o neoliberalismo é um “retorno à ortodoxia”, o retorno à origem
do pensamento liberal.
Em outras palavras, propõe um Estado com características muito similares ao
liberal, classificado como “o terceiro neutro” entre a sociedade civil, controlando apenas
os desejos e as vontades dos homens, ou seja, voltado para a garantia da ordem e da
segurança nacional. Dessa forma, o Estado reassume seu papel repressivo e
assistencialista no enfrentamento da questão social, executando políticas sociais de
caráter focalista, seletivo e repressor frente às necessidades e às “revoltas” da população
“sobrante” (CASTEL, 2005).
Para os desajustados, violentos e delinqüentes, o Estado reassume a função de
exercer a contenção “mecânica” dessa população, conduzindo a atenção à pobreza sob o
arcaico e conhecido binômio assistencialismo e repressão. Para tanto, o Estado tem
investido expressivamente4 em políticas da área de segurança pública, na perspectiva de
3
4
[...] o fenômeno da subclasse — como expressão do desemprego prolongado, bem como de
transformações sociais mais amplas na organização da sociedade — revela vários aspectos da questão
social; pauperização, desorganização familiar, preconceito racial, guetização de coletividades em
bairros das grandes cidades, preconceito sexual e de idade e desenvolvimento de uma espécie de
subcultura de coletividades segregadas (FREITAS, 1996, p. 31-32).
Em seus estudos, Behring apresenta dados de fontes governamentais do País, que demonstrando essa
realidade: “[...] a execução orçamentária do Departamento Penitenciário Nacional que realiza gestão do
Fundo Nacional Penitenciário. Em 2001, gastou-se R$ 237,6 milhões com a construção, ampliação e
reforma das prisões, enquanto a assistência e a profissionalização dos presos custou R$ 5,6 milhões.
Este fundo, em 1994, tinha uma dotação de R$ 24,2 milhões e, em 2001, lá gastava R$ 258,1 milhões,
num crescimento exponencial. O investimento na contratação de trabalhadores para a ressocialização
dos presos oscila entre 6 a 13% do gasto nos vários Estados brasileiros, com exceção de Santa Catarina,
com admirável investimento de 44% dos recursos neste item” (BEHRING, 2004, p. 177-178).
5
criminalização da pobreza. Carvalho (2004) refere que, aos “cidadãos de terceira
classe”, os desempregados ou que estão na informalidade, “biscateiros”, os mendigos,
ou seja, para todos aqueles que estão à margem da “cidadania da carteira de trabalho
assinada” (TELLES, 2001), resta o “direito” ao Código Penal. Este é o caminho para o
“Estado Penal” (BEHRING, 2004), que percorre quase exclusivamente as vielas dos
“guetos” das “subclasses” (FREITAS, 1996), que se tornaram o centro das ações que
visam domesticar e encarcerar os sujeitos, principalmente os coletivos, que tentam
romper com esse sistema de exclusão e exploração.
Em última instância, o Estado deve ainda assegurar à iniciativa privada
mecanismos que promovam o crescimento econômico, seja através da desoneração dos
grandes capitais, seja pelas isenções de impostos, e que garantam uma fatia de mercado
lucrativa na execução de políticas sociais, nas áreas de saúde, educação, assistência
social, previdência social, dentre outras. É o que Silva (2004) denomina de gestão
híbrida das políticas sociais. Essa gestão retoma antigas práticas de “tratamento” da
pobreza “passiva”, como a caridade exercitada pela filantropia e pelo voluntariado. Para
os “cidadãos clientes” (PEREIRA, 2002), que podem pagar por atendimentos privados,
o mercado vem ampliando uma gama de serviços chamados de “interesse público nãoestatal” (PEREIRA, 2002). Essa “nova” gestão das políticas sociais defendida pela
denominada nova esquerda, e/ou esquerda renovada, principalmente no governo do
Presidente Fernando Henrique Cardoso, nos anos de 1995 a 1999 e de 1999 a 2002, vem
causando um franco processo de desmonte do sistema de proteção social que teve seu
início com a Constituição Federal de 1988.
Entretanto o que a história revela é que tais práticas conservadoras não
asseguraram aos sujeitos um padrão digno de existência. Dessa forma, as políticas
sociais públicas, de responsabilidade estatal, são contraditórias, pois, ao mesmo tempo
em que é uma concessão do Estado burguês à classe trabalhadora, se constituem
também como uma das expressões concretas do resultado das resistências e lutas da
mesma, transformando-se em um importante instrumento potencializador dessas
mesmas lutas. A questão imperativa para a compreensão da redefinição do papel do
Estado frente às exigências do capitalismo contemporâneo é, em primeira instância,
definir do quê se fala ao se caracterizar a “crise” do Estado, bem como buscar desvelar
as raízes da emergência do neoliberalismo como a resposta por excelência para superar
tal crise.
Considerando que um dos traços que marcam a formação econômica e as
políticas brasileiras é o conservadorismo, para a manutenção dos padrões de dominação.
Historicamente os planos de crescimento econômico aperfeiçoaram, no Brasil,
formaram uma das balizas do habitat natural de um velho e conhecido mamífero que se
“multiplica” nas costas brasileiras, “o ornitorrinco”5 (OLIVEIRA, 2003). Ao criar a
miragem de milagres econômicos, com as suas receitas de bolo 6, que teve como
resultado o crescimento da riqueza socialmente produzida na mesma proporção que sua
centralização e concentração, ficando nas mãos de pequena parcela da população.
Frente a esse cenário a burguesia vem realizando essa redefinição do Estado de
Bem-Estar Social, a partir das seguintes justificativas: uma crise, em decorrência de
Figura de analogia utilizada por Francisco de Oliveira para representar a “sociedade e a economia em
seus impasses e combinações esdrúxulas” (OLIVEIRA, 2003, p. 125).
6
“A política econômica da época, coordenada por Delfim Neto, tinha como parâmetro de exemplificação
a receita de bolo, sendo que, primeiro, a economia tinha que crescer, para, depois, os resultados serem
divididos. A conseqüência dessa orientação teve como produto a alta concentração de renda no Brasil.
Segundo dados apresentados por Habert (1996), em 1980, 1% da população concentrava renda quase
igual aos 50% da população mais pobres” (COUTO, 2004, p. 128).
5
6
fatores financeiros, ideológicos e filosóficos (PASTORINI, 2004). Em termos teóricos,
Rosanvallon (1995) refere que houve três crises de dimensões diferentes, que
constituíram as três etapas seqüenciais da queda do Estado Social, vivenciadas nas
últimas três décadas do século XX. Estas crises são a de ordem financeira, que data dos
anos de 1970, a ideológica, que marcou sobretudo os anos 1980, e a filosófica, iniciada
na década de 1990.
Evidentemente, o Estado Social, ao ser sustentado financeiramente pela classe
trabalhadora, através do emprego protegido, pode desequilibrar suas finanças entre
custos e receita, em uma sociedade que não se estrutura mais mediante esse vínculo de
trabalho. A ausência de emprego protegido vem ruindo com algumas precondições do
sistema de seguridade social do pós-guerra, que são: o da solidariedade de classe, e o
pacto social intraclasses, feito com a burguesia até final da década de 1960. Considerase, ainda, que as análises socioeconômicas de cunho neoliberais sobre a crise nas
finanças do Estado, desconsideram o fato da queda na taxação dos grandes capitais, ao
contrário, é negada a possibilidade de ampliação dessa contribuição para o fundo
público.
Todavia, os teóricos reformistas do Estado não preconizam, em suas explicações
sobre déficit das contas públicas, as análises conjunturais e estruturais do capitalismo
dito “pós-industrial”. Lançam seus argumentos na ineficiência do Estado, no que tange à
administração dos recursos públicos, e na impossibilidade de atender de forma universal
aos “sobrantes” (CASTEL, 2005). Para assegurarem o êxito da aplicação de um
conjunto de medidas para a redefinição do papel do Estado e da sociedade, buscaram
uma certa coesão social entre a população. Nesse sentido, concomitantemente às
justificativas do desequilíbrio das finanças e da gestão social do Estado, também
apresentam as ideológicas, as filosóficas e as políticas.
Na dimensão ideológica, ocorre a emergência de teorias que defendem a
configuração de uma “nova questão social”, como sendo resultado dessa sociedade pósindustrial, constituída por “fenômenos atuais de exclusão que não remetem às antigas
categorias da exploração” (PASTORINI, 2004, p. 51) e por uma visão de homem e de
mundo que nega a processabilidade histórica da gênese da questão social. Segundo
Rosanvallon (1995), a entrada do Estado-providência em crise filosófica foi
acompanhada do advento de uma “nova questão social”, aparecendo uma nova
paisagem social, onde surgem dois problemas maiores, que são: a desintegração dos
princípios organizadores da solidariedade; e o fracasso da concepção tradicional de
direitos sociais para oferecer um marco satisfatório no qual pensar a situação dos
excluídos. Nesse sentido, em termos filosóficos, apresentou-se um novo pacto
societário, centralizado na sociedade civil, pois não admite que haja possibilidade de
centralidade do Estado frente às demandas da “nova questão social”, ou seja, as
múltiplas formas de exclusão social. E, dessa forma, é questionada a noção de justiça do
Estado Social, devido ao caráter universalizante do direito, pois o acesso automático e
legalmente garantido não viabiliza a equidade7, o que vai exigir “novas” ação e função
política para o Estado, não mais como espaço legítimo do interesse público ou como
7
Eqüidade aqui assume o seguinte conteúdo: “[...] a equidade significa o igual direito a um tratamento
equivalente [...] permite enriquecer e reinventar a idéia de igualdade de oportunidades. A eqüidade das
oportunidades não consiste somente em compensar no ponto de partida as desigualdades da natureza ou
as disparidades de fortuna: aponta para dar, de maneira permanente, os meios para melhorar a
existência; seu objeto consiste em dar aos indivíduos os meios para fazer frente a todos os azares que
não são da ordem classicamente assegurada (acontecimentos familiares, problemas pessoais, rupturas
profissionais reiteradas, etc)” (ROSANVALLON, 1995, p. 210).
7
regulador social, mas como promotor de uma arcaica, com roupagem de moderna,
noção de civismo, baseada na ajuda e na caridade.
Essa visão ideológica e fundamentalmente política coloca em xeque as
concepções de cidadania que foram historicamente conquistadas na modernidade, tanto
a liberal, de corrente teórica democrática, quanto, e principalmente, a marxista. A
perspectiva de cidadania, para os neoliberais, contrapõe-se à visão de “cidadania plena”,
definida por liberais como Marshall — elaborada em 1949, na Inglaterra, como sendo o
exercício dos direitos civis, políticos e sociais (“A maioria destes direitos deveria ser
assegurada por um Estado de Bem-Estar Social” (GOHN, 2005, p. 24; CARVALHO,
2003)) — e também por marxistas como Coutinho (2000), que faz referência ao acesso
à riqueza socialmente produzida, incluindo os meios de produção, como sendo a
expressão da “democracia radical”. Essas concepções de cidadania plena estão
enfrentando um processo de disputa com a cidadania “voluntarista” do neoliberalismo e
de mercantilização dos direitos.
Nesse contexto, enquanto o mercado é visto como o lócus privilegiado da
eficácia e da eficiência, o Estado, o público, transformou-se no lugar da incompetência,
da corrupção generalizada. Tais pressupostos são difundidos pela mídia, abrindo um
espaço para a refilantropia das políticas sociais. Ao mercado, cabem as ações e serviços
lucrativos, de aporte tecnológico de alto custo, a pobreza “sem fins lucrativos” é de
responsabilidade da solidariedade da sociedade, com investimento do capital social do
voluntariado, que, por vezes, é financiado pela própria pobreza, mediante as redes
familiares ou comunitárias localizadas nas periferias das cidades.
O “Estado-providência ativo” (ROSANVALLON, 1995), composto pelo
“pluralismo de bem-estar”, desafia a esquerda e a academia a analisarem, a partir dessa
ótica de “reforma gerencial”, onde se localiza a esfera pública. Nessa lógica a “terceira
via”, o público não-estatal, é apresentado como o espaço legítimo, onde se materializam
os pressupostos que garantem a esfera do interesse social/coletivo/público e também o
individual, porque o Estado, ao ter o poder concentrado, o que corrompe o sistema, se
torna incapaz de garantir o atendimento das necessidades sociais. O que implica ainda
uma crise ética e estética também do Estado na execução das políticas sociais.
Contudo a intervenção estatal exigida pela nova dinâmica do capitalismo
distingue-se da prevista pelos cepalinos8 na década de 1950. Agora não é mais voltada
para a criação de condições para o crescimento da economia interna, mas com vistas à
inserção nacional na nova divisão internacional do trabalho, o que conduz à criação dos
grandes oligopólios de capitais. Estes não mais organizados a partir de grandes
complexos industriais, mas por grandes investimentos em capitais flutuantes.
8
No início dos anos de 1950 até o golpe militar de 1964, o Brasil vivenciou a ascensão do modelo
nacional-desenvolvimentista. O diagnóstico da Comissão Econômica Para a América Latina (CEPAL)
identificou que os países de capitalismo periférico, da América Latina eram dependentes dos países de
capitalismo central, a exemplo dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, em virtude da divisão
internacional do trabalho (os países de capitalismo periférico eram responsáveis pelo abastecimento das
matérias-primas das mercadorias que eram manufaturadas nos países de capitalismo central, que
detinham a tecnologia para tal). Na perspectiva de elevar a economia dos países da América Latina ao
patamar da dos países desenvolvidos, prevê uma série de medidas que visam mudar o modelo
econômico latino-americano de agrário-exportador para urbano industrial. Para tanto, o receituário
cepalino prescreveu ao Estado a função de ser o provedor das necessidades do capital para a
industrialização do país, voltada para o mercado. Assim, o Estado foi responsável em prover as
condições para essa transição: construindo rodovias, investindo em comunicações, financiando as
quedas do café no mercado exterior (círculo virtuoso do café), cedendo a algumas pressões da classe
trabalhadora, dentre outros. Desse modo, o Estado dos países da América Latina passou a sofrer
influência do modelo de Estado keynesiano, ao dever atender às reivindicações do capital, bem como a
demandas da classe trabalhadora (MANTEGA, 1984)
8
3- A participação dos Organismos Multilaterais nas decisões sobre proteção social
nos países do Terceiro Mundo
Desde a década de 40 do século XX, a configuração do sistema financeiro
internacional vem tomando corpo. Tanto o Banco Mundial quanto, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) tem suas origens na Segunda Guerra Mundial, quando na reunião
em Bretton Woods9, foram definidas suas funções, basicamente sob o controle do
dinheiro no mundo, estabilização das taxas de câmbio e apoio às políticas de ajuste do
balanço de pagamento.
Diante da comunidade mundial, esses organismos tornam seus “produtos”
vendáveis, com seus discursos e metas de terminar com a pobreza no mundo. A
interferência desses organismos nas formulações econômicas impactam diretamente nos
desenhos dos sistemas de proteção social, pois seus esforços em combater a pobreza vão
trazer aos países da América Latina a tarefa de romper com a trajetória de construção de
projetos de estados de bem-estar social e vão incidir sobre a entrada dos mecanismos de
controle social propostos pelo ideário do neoliberalismo. Assim, a focalização e a
descentralização serão exaltadas como mecanismos eficientes de atentar para a
reorganização da proteção social a ser oferecida, onde se retoma a primazia do privado,
agora porém público, e do afastamento do Estado da garantia dos direitos sociais.
Nessa lógica, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2006, o
principal trabalho de pesquisa anual do Banco Mundial, apresenta, mais uma vez, seu
enfoque na eqüidade, definida como igualdade de oportunidades entre as pessoas, para o
desenvolvimento, dando ênfase à mercantilização.
Por resultar em alocações menos eficientes de recursos e instituições menos
eficazes, a desigualdade é inimiga do desenvolvimento de longo prazo.
Conseqüentemente, existe um papel legítimo para a ação pública na promoção da justiça
e busca da eqüidade, garantindo que esta ação reconheça a primazia das liberdades
individuais e o papel dos mercados na alocação dos recursos (BANCO MUNDIAL,
2005).
Vale lembrar um importante organismo da América Latina, a Comissão
Econômica Para a América Latina e Caribe (CEPAL)10, que também define, através de
sistematizações disponibilizadas depois de suas reuniões de cúpula, parâmetros para o
continente latino-americano. Recentemente foi lançando no Brasil, mais um balanço
para mensurar a pobreza, o Compendium os Best Practices in Poverty Measurement
(EXPERT..., 2006).11 Destacam-se os documentos intitulados Panorama Social da
América Latina12 e, principalmente, Enfrentando o Futuro da Proteção Social:
acesso, financiamento e solidariedade (COMISSÃO..., 2006), elaborado pela CEPAL.
“[...] Conferência de Bretton Woods, realizada em New Hampshire (Estados Unidos) em 1944, quando
44 países aliados na II Guerra Mundial assinaram os artigos do acordo do FMI e o Banco Mundial foi
criado, com o intuito de auxiliar a reconstrução das economias dos países devastados pela guerra”
(HOUTART, 2002, p. 76).
10
“A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) foi criada em 1948, pelo
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e tem sua sede em Santiago, Chile. Sua
missão é promover o crescimento econômico regional e sub-regional mediante o desenvolvimento de
estudos, promoção de conferências intergovernamentais e assessoria técnica a governos” (MARTINS,
2006, p. 268).
11
O Compêndio é resultado dos trabalhos do Grupo do Rio, criado, em 1997, pela Comissão de
Estatística das Nações Unidas, presidido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e
secretariado pela CEPAL.
12
O recente estudo de Oliveira (2005) aprofunda a análise crítica desses documentos, vistos como
propostas de enfrentamento à pobreza, e da adesão desses programas pelos governos da América
Latina.
9
9
Esse material apresenta a “[...] solidariedade com fins de proteção social de maneira
integral, isto é, tanto dentro como fora do mundo do trabalho, e nesse contexto, retraçar
os mecanismos de transferência que permitam plasmar essa solidariedade integral”
(COMISSÃO..., 2006, p. 8). Aponta um sistema de proteção social em que o
crescimento deve basear-se na competitividade sistêmica, na consolidação da cidadania
e na necessidade de um pacto social de proteção relativamente ao pacto fiscal e ao pacto
de coesão social (COMISSÃO..., 2006, p. 6-7). Reafirma, assim, os ideais pautados
pelos organismos internacionais, constituindo-se, inclusive, como integrante da
hegemonia.
Em conformidade aos ideários do Consenso de Washington13, a CEPAL passou
apoiar a abertura comercial e financeira da América Latina (MARTINS, 2006, p. 269).
Dessa maneira, essas instituições têm seus objetivos pautados na lógica de
mercado, com fins de ampliação da dominação sobre o capital, o trabalho e os bens
naturais do meio ambiente. Assim, os programas do ajuste estrutural visam a “[...]
desvalorização cambial, liberalização comercial, corte dos gastos sociais, privatização
de empresas estatais, redução salarial, desregulamentação, restrições à expansão do
crédito e elevação das taxas de juros” (GONÇALVES, 2003, p. 56).
A questão a ser pensada é sobre a necessidade de manter os países do Terceiro
Mundo14 sob dependência desses organismos, geralmente situados em países
desenvolvidos e que direcionam as políticas econômicas mundiais.
Os países da América Latina estão inseridos no rol dos países do Terceiro
Mundo, dado os acordos firmados com os organismos internacionais, como Banco
Mundial, Organizações das Nações Unidas e Fundo Monetário Internacional. A
América Latina é alvo de estratégia e manutenção econômica dos países desenvolvidos,
que buscam, nas mazelas sociais, o crescimento através de incentivos à industrialização,
ao consumo e, sobretudo, à implementação de um projeto societário voltado aos ideais
capitalistas. Portanto, essas iniciativas, ao invés de proporcionarem um real
desenvolvimento desses países, pelo contrário, criam uma maior dependência,
transferência de riqueza produzida e aumento das desigualdades.
Desenvolve-se a discussão da redução do papel do Estado e da exaltação do
“cidadão-consumidor”15 (MOTA, 2005), com o intuito de demonstrar a necessidade de
reformar o sistema de proteção social. Presencia-se uma forte inserção dos organismos
internacionais no sistema de proteção social latino-americano, propondo a
“A expressão Consenso de Washington surgiu da denominação dada por John Williamson, economista
e pesquisador do Institute of International Economics, sediado em Washington, para a convergência de
pensamentos para as políticas públicas dos anos 80, a partir dos governos de Ronald Reagan e George
Bush. [...] Williamson resumiu as teses que embasaram o Consenso de Washington em dez pontos
estratégicos: 1) disciplina fiscal; 2) priorização do gasto público em saúde e educação; 3) realização de
uma reforma tributária; 4) estabelecimento de taxas de juros positivas; 5) apreciação e fixação do
câmbio, para torná-lo competitivo; 6) desmonte das barreiras tarifárias e pára-tarifárias, para
estabelecer políticas comerciais liberais; 7) liberalização dos fluxos de investimento estrangeiro; 8)
privatização das empresas públicas; 9) ampla desregulamentação da economia; e 10) proteção à
propriedade privada” (SADER, 2006, p. 345).
14
Em contraposição aos países desenvolvidos, o chamado G8 — Alemanha, Canadá, Estados Unidos,
França, Itália, Japão, Reino Unido e Rússia (convidada devido a sua importância geopolítica) —, criouse o G20 composto por: África do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Cuba, Egito, Filipinas,
Guatemala, Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Tailândia, Tanzânia, Uruguai,
Venezuela e Zimbábue. Disponível em: <http://www.g-20.mre.gov.br/members_port.asp>. Acesso em:
jan. 2007.
15
Termo utilizado para definir o sujeito político nuclear da sociedade regulada pelo mercado (MOTA,
2005, p. 24).
13
10
desconstituição da seguridade social e a ampliação da execução das políticas sociais
através do terceiro setor.
Verificam-se alguns mecanismos que servem de desmonte da seguridade social,
dentre estes, destacam-se: a despolitização, a tecnificação dos interesses públicos
desqualificadores dos processos democráticos, no intuito da fragmentação do tripé das
políticas, desconstituindo o princípio universalizante; o encurtamento da seguridade, ou
seja, através dos discursos da globalização, reestruturação produtiva, desnacionalização
do capital, visa-se a uma redução da força política da seguridade; e, por fim, o
maniqueísmo de se ter um sistema de um tipo ou de se ter um sistema de outro tipo
(VIANNA, 1999).
Entretanto as lutas por melhoras na constituição do sistema de proteção social
continuam, sendo cada vez mais necessárias a percepção da sociedade de que “[...] as
políticas de proteção garantem a cobertura de vulnerabilidades à redução de riscos
sociais e defendem um padrão básico de vida. É preciso entender que proteção social
não é assistencialismo ou assistencialização, no sentido pejorativo de tutela” (SPOSATI,
1997, p. 29).
Faz-se necessário a problematização dos interesses que podem ser de utilização
pública, ou, principalmente, pelo cunho econômico de utilização privada. Tem-se,
ainda, do mundo inteiro, a cada ano, a direção a ser dada a esse ou a aquele país mais
pobre, a partir dos Relatórios de Desenvolvimento Humano, o espaço em que se
encontram as pessoas mais pobres, assim como as mais ricas (PROGRAMA DAS
NAÇÕES..., 2005). Existem justificativas que tornam as políticas sociais seletivas e
focalizadas, como a identificação dos bolsões de pobreza, enquanto estratégia de
favorecimento ao mercado, descartando a participação do Estado, privilegiado, pelos
“programas solidários”; a cultura de benemerência, através do voluntariado; filantropia
empresarial, através do contemporâneo termo de responsabilidade social; investimento
em capital humano, como os programas de inclusão digital; retomada de crescimento
econômico, pelos programas de geração e emprego e renda; cooperação global com a
criação dos fundos internacionais de investimento (SILVA, 2004, p. 108-109).
Importa problematizar o avanço das tecnologias e do conhecimento, a forma e o
acesso que em mais um ciclo de reordenamento do capitalismo,16 esse sistema utiliza,
usando mecanismos cada vez mais avançados, que são criados com o objetivo de
melhorar a qualidade de vida da humanidade, mas que, de forma perversa, são
empregados meramente com fins econômicos e de controle sobre qualquer “desvio” que
possa prejudicar os objetivos em prol do capital.
16
“A cultura do capitalismo seculariza tudo o que encontra pela frente e pode transformar muita coisa em
mercadoria, inclusive signos, símbolos, emblemas, fetiches. Tudo se seculariza, instrumentaliza,
desencanta. Essa é uma exigência da racionalização formal, pragmática, definida em termos de fins e
meios objetivos, imediatos. Uma racionalização cada vez mais vazia de valores gerais e particulares
que não podem traduzir-se nos termos do status quo” (IANNI, 2003, p. 73).
11
4- A trajetória da constituição do sistema de proteção social no Brasil
Para Hobsbawm (2000) a história de século XX pode ser dividida em três eras:
A primeira o autor denomina de Era da catástrofe – marcada pelas duas grandes guerras,
pelas ondas de revolução global em que o sistema político e econômico da URSS surge
como uma alternativa histórica para o capitalismo e pela virulência da crise econômica
do sistema do capital de 1929. E no outro pólo, também nesse período, os fascismos
surgem como proposta mundial frente ao descrédito das democracias liberais. A
segunda Era é considerada como os anos dourados — décadas de 1950 e 1960 — que
em sua paz congelada, viram a viabilização e estabilização do capitalismo, responsável
pela promoção de uma extraordinária expansão econômica e profundas transformações
sociais. E a terceira é denominada como a Era do desmoronamento final — entre 1970 e
1991— onde caem por terra os sistemas institucionais que previam e limitavam o
barbarismo contemporâneo, dando lugar a brutalização da política e a irresponsabilidade
teórico-prática da ortodoxia econômica neoliberal, o que abriu as portas para um futuro
incerto para o mundo do trabalho (ANTUNES, 2005).
Nesta distinção feita pelo autor no que se refere ao tempo e acontecimentos,
retoma-se a Grande Depressão de 1929, com seus efeitos inflacionários, redundando
num aumento do desemprego (ANDERSON, 1996), fatores que exigiram do Estado
Capitalista uma franca regulação estratégica. Neste sentido, o Estado teve de assumir
despesas consideráveis para sustentar o emprego e oferecer melhores condições de vida
da força de trabalho. Para tal, valeu-se de um corpo doutrinário que lhe deu suporte
teórico e político por mais de trinta anos, o Keynesianismo que serviu de base para o
regime de produção taylorista/fordista de produção.
A doutrina Keynesiana, divergindo da teoria econômica clássica, que defendia a
auto-regulação do mercado, tem como princípio a intervenção estatal tanto na esfera
econômica como na social. Assim, foram tomadas medidas, neste período, que visavam
não propriamente a socialização da produção, mas a socialização do consumo, dentre
tais medidas destacam-se: a regulação do mercado; garantia de pleno emprego; a
formação e controle de preços; a emissão de moedas; a distribuição de renda, de forma
diretas através do trabalho e/ou indireta através de políticas sociais; o investimento
público; o combate à pobreza que tinha como princípio fundamental a proteção social
básica, como um direito de todos, independente da renda dos cidadãos e da sua
capacidade de contribuição para o financiamento do sistema. A partir da II Guerra
Mundial, o Estado passou a intervir sistematicamente no processo econômico
ampliando suas funções, surgindo, nos países de desenvolvimento avançado, o Estado
de Bem-Estar Social. Esta nova concepção de Estado tinha funções reguladoras e
planificadoras, pois o Estado minimiza a luta de classe e preserva o sistema. A
implementação de políticas sociais entra nesse jogo e correlação de forças numa
tentativa de equilíbrio do Estado e consolidação de sua hegemonia. Para atender os
interesses do desenvolvimento industrial, políticas sociais se apresentam, em parte,
como estratégias controladoras e cooptativas, ou seja, desmobilizam as organizações da
sociedade civil, incorporando parte dos movimentos sociais em instituições que
atendem parte das reivindicações dos trabalhadores.
Ao analisar a realidade brasileira, percebe-se que até a década de 30 o
liberalismo, que norteava o comportamento econômico, orientava também o plano
político e, o Estado deveria limitar ao mínimo o seu papel, protegendo a propriedade e o
capital e, sendo assim os indivíduos deveriam ser deixados “livres” para agirem e
produzirem riquezas. Desta forma, o sistema capitalista, com fundamentos liberais, não
admitia a ingerência do Estado no domínio econômico e nas relações entre o trabalho e
12
o capital. Porém influenciado pela crise estrutural do capital e pelos fatos sócio-políticos
que marcam o cenário brasileiro no período de 1930, que tem como marca histórica a
Revolução 30, o Estado assume funções oriundas das idéias Keynesianas intervindo no
processo acelerado de industrialização do País e, frente a isso, o trabalho rural,
predominante no contexto, foi colocado à própria sorte, enquanto o trabalhador urbano,
devido sua força de pressão, conquista alguns direitos sociais, através de legislações
específicas e focalizadas para alguns segmentos da classe trabalhadora, dentre essas
destacam-se as leis trabalhistas. O setor agrário, em movimento de implementação da
agroindústria, intensifica as dificuldades do trabalhador rural, expulso da terra, ou
trabalhando em precárias condições. A industrialização e o crescimento do comércio
levou ao processo de formação de vilas de trabalhadores onde as condições das
habitações precárias e a quase inexistência de saneamento eram realidades. Contudo, os
direitos sociais foram historicamente apresentados aos trabalhadores sob a forma de
vantagens e/ou benefícios prestados por um Estado paternalista e patrimonialistas,
traços de uma cultura política17 que inverte e regula a cidadania (FLEURY, 1996).
No momento em que no plano internacional, impulsionado pela crise capitalista
dos anos de 1930, o Estado busca dar sustentação ao mercado, o governo Vargas
(1930), de caráter populista, chama para si à responsabilidade de gestão e execução de
políticas sociais, dentre elas a da assistência social, com programas assistencialistas que
objetivavam regular a tensão social nos centros urbanos, tratando a questão social18 não
apenas como um caso de polícia, mas também de política (MARTINELLI 2001;
IAMAMOTO, CARVALHO 2005). Com características distintas do Estado Social
(Welfare State) Europeu, do final do século XIX, que teve um forte papel regulador
tanto na economia quanto no que se refere à amplitude dos direitos de cidadania
universalizante, no Brasil, a proteção social se estendia ao trabalho de carteira assinada,
dando origem ao modelo de seguro social, pois até a década de 1930 a assistência social
e demais políticas, eram desenvolvidas prioritariamente pelo setor privado, em especial
pela Igreja Católica, através de suas obras sociais filantrópicas, com o viés da benesse e
da caridade. No entanto, atrelado a execução de uma nova forma de “caridade” estatal o
Estado manteve sua ação controladora, juntamente com a burguesia, reprimindo as
manifestações de resistência, mediante um complexo conjunto de aparelhos
institucionais de repressão, visando estabelecer a ordem e o ajustamento, na perspectiva
de garantir uma aparente harmonia social do sistema capitalista. Assim, o Estado geria o
17
Alvarez; Dagnino e Escobar (2000) explicita as características das culturas políticas da América Latina,
descrevendo-as da seguinte forma: “São muito influenciadas por aquelas que prevaleceram na Europa e
na América do Norte e, contudo, se diferenciam delas. Foram influenciadas por princípios tais como:
racionalismo, universalismo e individualismo. Porém esses se combinaram historicamente de maneira
contraditória com outros destinados a garantir a exclusão social e política e até a controlar a definição
do que conta como político em sociedades extremamente hierarquizadas e injustas. Essa hibridização
contraditória alimentou a análise sobre a adoção peculiar do liberalismo como ‘idéias fora do lugar’ ,
que serviu aos interesses econômicos e políticos das elites do século XIX. Tinham uma concepção
oligárquica de política, transferida das práticas sociais e políticas dos latifúndios, onde os poderes
pessoal, social e político se superpunham, constituindo uma única e mesma realidade. E não só o
público é apropriado pelo privado, como as relações políticas são percebidas como extensão das
relações privadas — torna uma relação de favor, o personalismo, o clientelismo, práticas políticas
comuns. Quando nas primeiras décadas do século XX, não surpreende que essa mesma tradição tenha
inspirado o populismo. Mais do que a alegada ‘irracionalidade das massas’, o que estava por trás da
liderança identificada como ‘pai’ e salvador dos pobres — era ainda a lógica dominante do
personalismo”. (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 27-28).
18
Entende-se por questão social o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista
madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se
amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma
parte da sociedade (IAMAMOTO,1998).
13
processo de provisão social, e as diferentes expressões da questão social eram tratadas
com repressão e assistencialismo (PEREIRA, 2002).
No que se refere às necessidades da maioria da população, o Estado limitava-se
a reparações pontuais, emergências e a respostas fragmentadas as reivindicações sociais
dos trabalhadores e da camada populacional empobrecida dos centros urbanos.
No período de 1930-1937, com a regulamentação de algumas leis, há a criação
do Ministério do Trabalho e Comércio, incorporação dos sindicatos ao Ministério do
trabalho, a carteira profissional (regulamentação de profissões), lei de férias
remuneradas e jornada de trabalho de 08 horas. Neste contexto, em meados da década
de 1940, com o desenvolvimento da industrial, o Estado investe em infra-estrutura
básica para dar condições para instalações das indústrias; e o crescimento da pobreza
urbana favoreceu a criação de instituições, com objetivo principal de permitir e
favorecer o processo industrial do País. Entre os anos de 1940 e 1950 acirram-se os
conflitos no campo, quando posseiros e fazendeiros disputavam a posse da terra. A
partir dos anos de 1950 os camponeses se organizam na luta pela reforma agrária.
Frente às reivindicações do trabalho as políticas sociais se colocavam de forma
focalizada na relação com questão social, atingindo somente alguns segmentos da
população, tratando algumas problemáticas específicas, visando a integração social.
Destacam-se a criação de instituições prestadoras de assistência pública, tais como:
Instituto de aposentadoria e pensões (IAPAS); Departamento de Assistência Social do
Estado de São Paulo; Ministério dos Negócios da Educação e Saúde, com competência
para cuidar de assuntos relacionados ao ensino, á saúde pública e á Assistência Social e
em 1942 a LBA (Legião Brasileira de Assistência Social), com o objetivo de prestar
assistência às famílias dos soldados brasileiros que lutavam na segunda-guerra
(COUTO, 2004). Sendo assim, no Brasil do pós-guerra, constata-se que as políticas
sociais implementadas se transformam em privilégios de algumas categorias sociais,
desfigurando o sentido de direitos e, as políticas sociais têm sido apontadas como “uma
gestão, ainda que conflitiva, da força de trabalho para que ela se reproduza nas melhores
condições para o capital” (FALEIROS, 1980, p.48).
As estratégias de integração no governo de Juscelino Kubitschek (1955-60) sob
orientação cepalina, passavam pelas práticas de Desenvolvimento de Comunidade
estimulada pela ONU, na perspectiva de manter a hegemonia e possibilitar o
desenvolvimento nacional — a melhoria das condições de vida, do meio, da
comunidade deveria se acontecer com a participação dos grupos e líderes ativos.
A década de 1960 é marcada pela crise do modelo desenvolvimentista e pelo
crescimento do capital estrangeiro. Intensificam-se os programas de educação e
ampliam-se as leis previdenciárias e trabalhistas. Na política habitacional promoveu
saneamento básico e infra-estrutura nos centros urbanos. Esta também foi à década que
marcou no País, bem como em toda a América Latina, o inicio de uma de suas faces
mais cruéis na relação entre Estado e Sociedade Civil, com governos de ditaduras
militares. Havia, na época da ditadura militar, um controle do acesso às teorias
marxistas no seio da classe operaria brasileira, pois o medo da ascensão do comunismo
foi um dos motivos que mobilizaram as elites do País, financiadas pelos EUA, a
realizarem o golpe de Estado. Essas ações tiveram o intuito de manter e criar as bases
para a hegemonia do capitalismo no mundo e, ao mesmo tempo, minar as bases e as
possibilidades de expansão do comunismo na América Latina. São essas as principais
justificativas para o golpe militar de 1964, apoiado pela classe média, pelos partidos de
cunho liberal, pelas oligarquias rurais e principalmente pelas burguesias nacional e
internacional, que vislumbravam, nos movimentos sociais da época, uma ameaça ao
sistema capitalista. Os militares assumiram o poder com a finalidade de acabar com o
14
comunismo e com o anarquismo que orientava as organizações sindicais e conduzir o
País a um crescimento econômico milagroso (CARVALHO, 2004).
O resultado dessa época foi a “esquizofrênica” divisão do País em “dois Brasis”
(COUTO, 2004). O primeiro, o da repressão, da tortura, do aviltamento das pessoas, do
aniquilamento da diferença. O segundo, o do “ufanismo verde amarelo”, do patriotismo
cego, do clientelismo. Os direitos civis e políticos não existiam, ou melhor, como não
poderia deixar de ser em regime ditatorial, o que vigorou foi o regime de exceção.
Sendo assim, esses direitos pareciam apenas “figuras de retórica” nas Constituições
desse período19, pois foram substituídos pelos Atos Institucionais. No que tange aos
direitos sociais, estes tiveram uma função de cooptação da população ao projeto de
crescimento capitalista implantado pelo Governo militar.
Nesse sentido, o sistema de “proteção social do tipo meritocrático particularista”
(COUTO, 2004) buscou pacificar a relação entre capital e trabalho e caracterizou-se
pela ausência de controle social dos recursos advindos das políticas sociais, como a
previdência social e a saúde, executadas pelo Instituto Nacional de Assistência Médica
da Previdência Social (INANPS), que financiaram várias obras de industrialização no
País. Para exemplificar esse sistema de proteção, citam-se ainda as seguintes
instituições, mantidas e criadas nessa época: a Legião Brasileira de Assistência (LBA),
de 1942, que, a princípio, atendeu às famílias dos pracinhas e, posteriormente, ao final
da Segunda Guerra Mundial, passou a ser referência no planejamento e na execução da
política de assistência social às populações carentes (os bons pobres); a Fundação
Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem), que encarcerava os jovens subversivos a
“ordem e progresso”; o Banco Nacional de Habitação (BNH), que supria as exigências
de moradia da classe média, dentre outras.
A derrocada da ditadura militar iniciou-se no penúltimo governo militar, de 1974
a 1979, do Presidente Ernesto Geisel, que já preparava a abertura política. A
redemocratização do País consolidou-se no Governo Figueiredo, de 1979 a 1985. Os
movimentos sociais em prol da redemocratização articularam-se nesses 21 anos de
ditadura, mesmo nos períodos de maior repressão. A década de 1980 foi engendrada por
um resistente movimento popular, que convergiu para as principais cidades do País, na
defesa de eleições diretas para Presidente da República. Esse movimento é chamado de
Diretas Já. Nessa época, foram criados novos partidos, como o Partido dos
Trabalhadores (PT); formaram-se associações de profissionais liberais, como a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB); ocorreram as grandes greves no “ABC” paulista,
organizadas pelo sindicato dos metalúrgicos; houve mobilizações e organização
nacional dos estudantes através da União Nacional dos Estudantes (UNE), sendo que
esta última desempenhou um papel imprescindível de resistência contra o regime
ditatorial durante toda a sua duração.
O milagre econômico ruiu frente à deflagração da crise econômica que a
população herdou desse período. Dentre os resultados herdados, destacam-se:
“ampliação do déficit público, o endividamento externo, a crise fiscal, dada a diferença
entre o volume despendido pelo governo com a área social e o volume de arrecadação
dos recursos” (COUTO, 2004, p. 133-134). Sendo assim, o final da década de 1970 o
cenário social foi marcado por movimentos populares, sindicais e da classe artística, que
emergiam clandestinamente em busca de liberdade e inclusão social. As reivindicações
por educação, saúde, moradia, (necessidades imediatas), direito a voto, à organização
19
Sobre a conformação dos direitos civis, políticos e sociais expressos nas Constituições brasileiras desde
a Proclamação da República até a Constituição Federal do Brasil de 1988 e sua imbricação histórica nas
esferas políticas econômicas e sociais, ver: O Direito Social e a Assistência Social na sociedade
brasileira: uma equação possível? (COUTO, 2004).
15
partidária, podem ser condensados a direitos sociais, ampliando a pauta dos movimentos
organizados pela conquista da cidadania. Alguns movimentos impunham um significado
maior em duas exigências, juntamente ao direito às necessidades básicas, também
reivindicavam cidadania política.
Essa crise na economia brasileira decorreu de fatores endógenos, mas também
devido à última grande crise do capitalismo, nos países industrializados “centrais”, na
década de 1970, que afetou a economia mundial e a América Latina mais intensamente
na década de 1980 (SOARES, 2000).
A transição do regime militar para o regime democrático possibilitou um
tensionamento mais expressivo entre sociedade civil organizada e o Estado, culminando
no movimento das diretas e o constituinte. Os anos 1980 foram marcados por uma crise
econômica e social; ampliação do debate democrático pelo reconhecimento e dando
legitimidade aos movimentos sociais, incluindo-os de alguma forma no debate préconstitucional. A política econômica se organizava em uma tríade do capital estatal,
nacional privado e internacional. Na década de 1970 a pobreza já é reconhecida como
uma questão estrutural da economia capitalista, neste período há a desarticulação de
várias instituições do Estado, fruto do milagre econômico, que será melhor entendia na
década de 1980.
A década de 80, do século passado vai ser palco de grandes debates na sociedade
brasileira quanto a formulação de um sistema de proteção social. Caudatária de uma
sociedade absurdamente desigual, de uma dívida externa enorme, em ebulição na luta
contra o autoritarismo da ditadura militar vai encaminhar no plano legislativo a
construção de uma nova Constituição, que ao ser elaborada, em alguns aspectos vai
bater de frente com o ideário neoliberal e com os compromissos assumidos pelo
governo brasileiro com os organismos multilaterais.
16
5- O sistema de proteção social e a Constituição de 1988: garantindo a Seguridade
Social
Ao tratarmos do conceito de seguridade social é preciso que situemos essa
discussão no cenário brasileiro. Ao menos do ponto de vista legal é possível identificar
que a Constituição de 1988 constituiu-se em instrumento na defesa e formulação de um
projeto de Estado Social, com similaridade aos projetos criados na Europa do pósguerras.
No campo das políticas sociais, o Brasil tem uma história de pouca efetividade
da presença do Estado, enquanto mecanismo de redistribuirão da riqueza socialmente
produzido, reduzindo sua ação a programas residuais e pontuais. Portanto, é importante
salientarmos que os mais diversos programas sociais tem se caracterizado pela função
de amenizar a situação de vida da população brasileira, sendo revestidos de uma lógica
privatista e não pública. Via de regra, correspondem muito mais a questões consideradas
vulneráveis aos programas políticos do governo. Conforme Yazbeck “[...] as políticas
sociais no contexto das prioridades governamentais, nos últimos vinte anos, vem-se
caracterizando por sua pouca efetividade social e por sua subordinação a interesses
econômicos [...]” (1993, p. 35).
No Brasil, é na área da previdência que surgem as primeiras conquistas dos
trabalhadores e que se evidencia, desde a década de trinta, o grande tensionamento
existente entre a relação capital e trabalho. Para a política social é fundante discutirmos
na ótica da relação de trabalho, e mais que isso do trabalho assalariado, que constituiu o
patamar de negociação entre o Estado e aquele que luta por ver garantido alguns direitos
sociais. E por muito tempo, as conquistas nessa área ficaram limitadas a
contratualidade, encetada pelo financiamento dessa política por verbas advindas dos
próprios trabalhadores, de seus empregadores e do Estado, para que os benefícios
fossem acessados.
Por volta dos anos 1940, enquanto na Inglaterra, com Beveridge cria-se o
sistema de seguridade, no Brasil criam-se vários mecanismos de proteção a quem está
inserido no mundo do trabalho (é de 1941 a primeira iniciativa de um plano único de
benefícios, custeio e estrutura administrativa da Previdência, e de 1943 a Consolidação
das Leis do Trabalho). Portanto, enquanto a Europa está preocupada com os resquícios
da Guerra e aposta em um novo, reordenamento social, constituindo uma política de
proteção social - o Welfare State, o Brasil entra num processo acelerado de
industrialização e vê no novo mercado de empregos a possibilidade de enfrentar suas
mazelas sociais.
As relações sociais eram caracterizadas pelo clientelismo, autoritarismo, as
políticas criadas alinhavam-se a lógica de cooptacão dos trabalhadores, atendendo a
pressões isoladas de grupos. Essa política conservadora baseava-se na meritocracia e
auferia benefícios de forma desigual, ficando o Estado com o papel de arbitrar quanto a
esses benefícios.
Pós-1964, a política social assume uma caráter de controle da pobreza pelo
Estado, e em que pese a grande expansão de programas sociais, esses são constituídos
de forma autoritária, e revestido de um caráter tecnicista.
É na luta pela democracia em nosso País, que vemos desenhado o conceito de
seguridade social como um patamar de cidadania, e a identificação da necessidade do
Estado estar presente no movimento de garantia dos direitos sociais da população.
Portanto, a Constituição de 1988, traduz em seus artigos 194 e 195, a
necessidade de instituirmos um sistema de proteção social, a seguridade social,
constituída pelo tripé da saúde, previdência social e assistência social. Traduzindo-se,
17
assim a noção de política social apontada por Pereira (1998) como “aquelas modernas
funções do Estado de produzir, instituir e distribuir bens e serviços categorizados como
direito de cidadania”.
O que é adensado a essa discussão é o direito garantido a quem necessitar, sem
que para isso deva haver um sistema de contribuições, como o da previdência. Trabalhase com o conceito de universalidade, participação ativa, descentralização,
democratização e ampliação de direitos.
É nos movimentos populares e na luta legislativa pela Constituição de 1988 que
podemos identificar um novo desenho para alterar a presença do Estado Brasileiro em
relação a sua responsabilidade frente as questões sociais. No seu artigo 194 estabelece
que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos a saúde, a
previdência e a assistência social”. Além disso, no seu parágrafo único, o artigo
determina que “compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade
social, com base nos seguintes objetivos:
I- universalidade da cobertura e do atendimento;
II- uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços as populações urbanas
e rurais;
III- seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV- irredutibilidade do valor dos benefícios;
V-eqüidade na forma de participação no custeio:
VI- diversidade na base de financiamento;
VII-carater democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a
participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.
Nos artigos que se seguem até o 204, a Constituição trata de determinar como o
tripé da seguridade deverá ser estabelecido. Portanto, a saúde aparece como direito de
todos e dever do Estado, a previdência será devida mediante contribuição, enquanto que
a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição.
O estatuto legal então rompe com a lógica fragmentada e busca através da
seguridade social dar um sentido amplo a área social, trabalhando na lógica da
ampliação dos direitos sociais e da inserção da responsabilidade do Estado frente a essas
políticas.
Em que pese o movimento constitucional e os parâmetros legais, é no confronto
com os interesses explicitados na sociedade brasileira que identificamos o que nos
aponta Vieira (1997), a realidade brasileira configura-se pela presença de “política
social, sem direitos sociais” .
A década de 1980, expressa no Brasil a época da tentativa de alinhamento com o
pensamento neoliberal, ao mesmo tempo em que há a garantia constitucionais universais
nunca antes explicitadas no Brasil. Na contramão do movimento pela garantia universal
dos direitos sociais, o País vai viver a crise capitalista mundial com retrações nos postos
de trabalho, aumento da informalidade, o debate sobre a necessária privatização e
mercantilização das políticas sociais. A presença do Estado é requerida para o
fortalecimento da economia e é desprezada no campo da política social, que ganha
densidade na transferência de responsabilidades para a sociedade civil que deve cuidar
dos ineptos para o mercado. Assim, contraditoriamente, o Brasil debate-se entre dois
sistemas básicos de proteção social, aquele defendido pela Constituição de 1988 e o
indicado pela reforma proposta ao estado brasileiro que é reaquecida nesse início de
novo século, com inúmeras propostas de reformas no campo previdenciário e com
alterações substanciais no campo da saúde e da assistência social.
18
6- Considerações
No Brasil, foi no contexto de “crise” econômica e de transição de regimes de
governos que começou, ao menos no plano legal, a materialização da Constituição de
1988, com os preceitos dos direitos sociais, de ampliação da seguridade social, de
universalização dos serviços sociais públicos, abertura democrática para a participação
dos usuários na gestão do sistema, financiamento e criação de conselhos para as
políticas públicas, redefinindo o papel do Estado.
As conquistas constitucionais, que estão embasadas num projeto de Estado
democrático, vão ser explicitadas quando no mundo, o capitalismo tenta uma nova
forma de reorganização, com o ideário neoliberal. A queda do projeto do socialismo real
dá nova força a velha idéia de que o mercado é capaz de regular tudo. Agora não temos
mais o inimigo a espreitar. A falta de alternativa enfraquece a luta e dá espaço a
discussão que vem de encontro a ação do Estado na área social, e retoma-se como
absurdo o custo social, entendido não mais como investimento.
Nesse período, tem-se no continente latino-americano uma nova configuração
política em relação aos governos de esquerda. Vive-se um momento de resistência
perante as grandes economias mundiais. As propostas referentes à proteção social
contam com o apoio popular e passam a ser alvo de discussão nos diferentes âmbitos da
sociedade.
A agenda latino-americana propõe-se a resgatar o papel do Estado e conformar
um sistema de proteção social que seja incisivo na erradicação das desigualdades.
Destacam-se as ações democráticas empenhadas por estes governos, assim como as
estratégias para a configuração de um sistema de proteção social pautado na seguridade
social enquanto a confluência de políticas sociais públicas.
O contexto internacional é marcado por reformas estruturais do Estado, por
grandes transformações no mundo do trabalho, e por retrações no campo da proteção
social. Alguns países latino-americanos, por peculiaridades do processo de
redemocratização que caracteriza essa fase, resistem ao sistema imposto pelos
organismos internacionais, demarcando sua singularidade nos processos globais. Essa
resistência, no Brasil, se dá no campo jurídico formal, com a constituição do sistema de
seguridade social, embora os reflexos do ideário neoliberal possam ser observados na
demora da regulamentação dos direitos ou na sua impossibilidade de materializar-se
pela falta de recursos financeiros, e pela retórica de que o mercado tem que ser
retomado como fonte de prestação de serviços, mercantilizando a proteção social.
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