Aspectos terapêuticos na Hipercolesterolemia Familiar Introdução A Hipercolesterolemia Familiar (HF) é uma situação onde se identificam mutações no receptor do colesterol-LDL. A sua prevalência na comunidade é de cerca de 1/500 e o diagnóstico clínico baseia-se na história familiar, no depósito de colesterol nos tecidos e no valor elevado do colesterol-LDL. O tratamento dos doentes com HF passa por alterações do estilo de vida, medidas terapêuticas farmacológicas, aconselhamento e seguimento prolongado. Iremos passar em revista estes pontos, depois de uma breve discussão sobre o que são valores anormais de lípidos na criança/adolescente. Valores anormais de lípidos na criança/adolescente Interessa aqui discutir o que são valores anormais de lípidos na criança/adolescente. Num estudo em 15.628 crianças americanas e canadianas com idade entre 0-19 anos, o colesterol total médio encontrado foi de 160 mg/dL, sendo o percentil 95 de 200 mg/dL. O colesterolLDL médio foi de 100 mg/dL, sendo o percentil 95 de 130 mg/dL (Figura 1). No National Health and Nutrition Examination Survey III (1988-1994), que incluiu 7.499 crianças/adolescentes com idades entre os 4 e os 19 anos, o percentil 95 do colesterol total era de 216 mg/dL e o do colesterol-LDL de 152 mg/dL. Entre os 9 e os 11 anos o colesterol total médio era de 171 mg/dL, verificando-se que o colesterol diminui nas idades mais elevadas, que as raparigas têm colesterol superior aos rapazes (p<0,005) e que a idade, o sexo e a raça influenciam os níveis lipídicos. O Screening and Treatment for Lipid Disorders (Haney, 2007), recomenda que para se identificar uma criança Carlos Perdigão Professor Agregado de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Lisboa. Fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia. Membro de diversas sociedades científicas da área da sua especialidade. Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia no biénio 2005-2007. Coordenador do Grupo de Estudos de Risco Cardiovascular. Editor da Revista Factores de Risco. Figura 1 40 Recebido para publicação: Fevereiro de 2010 Aceite para publicação: Fevereiro de 2010 Revista Factores de Risco, Nº18 JUL-SET 2010 Pág. 40-43 com colesterol-LDL elevado com 95% de confiança, se considere apenas as que têm um colesterol total superior a 215 mg/dL, dado que a avaliação directa do colesterol-LDL é controversa. sição da gordura corporal são os melhores predictores independentes de dislipidemia. Alimentos funcionais Os alimentos ditos funcionais, como os iogurtes, leites e margarinas adicionados de fitosteróis (esteróis e estanóis vegetais), têm demonstrado eficácia na redução do colesterol nos indivíduos com HF. Na dose de 2 gramas por dia, os fitosteróis reduzem o colesterol entre 10 e 15 %. Dada a boa aceitação destes alimentos pela crianças e adolescentes, a sua introdução nos hábitos alimentares desta população costuma ser fácil. Deve ressalvar-se que as reduções obtidas no valor do colesterol com estes alimentos são modestas, pelo que na maior parte dos casos será necessário recorrer à terapêutica farmacológica. O que não invalida o interesse complementar destes alimentos. Alterações do estilo de vida Na HF, as alterações do estilo de vida que englobem as medidas alimentares, a promoção da actividade física e o não consumo de tabaco, desempenham um papel fundamental, sendo necessário educar os pais e as crianças para a implementação destas práticas. Alimentação saudável Uma alimentação adequada pode reduzir os valores do colesterol em crianças com HF entre 15 e 25%, estando indicado introduzir ao modificações alimentares a partir dos três anos de idade. Na verdade, a alimentação diária das crianças e adolescentes com HF deve conter um total de gorduras que constitua 30 a 35% das calorias diárias necessárias. Os ácidos gordos saturados não devem atingir os 10% do aporte calórico total. Uma alimentação saudável, nesta situação, deve incluir: - maior quantidade de frutas, hortaliças e vegetais, preferencialmente crus - maior quantidade de cereais e leguminosas ricos em Actividade Física Estimular a actividade física diária é um dos objectivos de qualquer plano terapêutico em crianças e jovens com HF. É necessário, para isso, a colaboração informada de pais e educadores de modo a que a tendência actual para actividades sedentárias (televisão e jogos de computador) possa ser intercalada com períodos regulares de actividade física. A criança/adolescente deve estar informada e “ … para se identificar uma criança com colesterol-LDL elevado com 95% de confiança, se considere apenas as que têm um colesterol total superior a 215 mg/dL …” consciente desta necessidade e criar o hábito de actividade /exercício físico diário. fibra, evitando os cereais refinados, já que lhe reduzem a quantidade de fibras - leite desnatado - carne de aves e peixe - azeite e óleos vegetais - até três ovos por semana - frutos secos Tabaco O consumo de tabaco está fortemente desaconselhado nestes jovens, mas é necessário que sejam esclarecidos e motivados para o problema, explicando-lhes os motivos e consequências desta restrição. Os pais devem assumir aqui um papel de forte vigilância e informação. Devem evitar-se: - bolos e bolachas, especialmente as de fabrico industrial e de pastelaria - batatas fritas - charcutarias (enchidos, fumados, salchichas) - manteiga, queijos curados, natas, gelados - bebidas açucaradas (pelo excesso calórico que promovem) - Não esquecer que o excesso de peso e a compo- Tratamento farmacológico Existem diversas intervenções farmacológicas que se mostraram eficazes na redução do colesterol em doentes com HF. A sua utilização está condicionada há demonstração de que os efeitos acessórios (no crescimento, no desenvolvimento sexual, na carência de vitaminas) são de baixa incidência e aceitáveis. Passaremos aqui em revista os principais. 41 Aspectos terapêuticos na Hipercolesterolemia Familiar “ … a alimentação diária das crianças e adolescentes com HF deve conter um total de gorduras que constitua 30 a 35% das calorias diárias necessárias. Os ácidos gordos saturados não devem atingir os 10% do aporte calórico total.” Estatinas As estatinas são fármacos inibidores da HMG-CoA reductase (Figura 2), com os quais existe maior experiência na redução do colesterol em indivíduos com HF. Existem estudos com a atorvastaina, a simvastatina e a pravastatina que comprovam a sua segurança em crianças e adolescentes (foram estudadas populações entre os 8 e os 17 anos). O seu grau de eficácia é semelhante ao verificado no CURVES (Figura 3). Em crianças com HF, doses de 10 mg de qualquer daqueles fármacos mostrou reduzir o colesterol (em cerca de 20% com a pravastatina, em 25-30% com a simvastatina, em 30-35% com a atorvastatina). Não se recomendam doses mais elevadas por não haver estudos que suportem essa utilização e pelo receio de efeitos indesejáveis no crescimento, no desenvolvimento sexual e no aparecimento de miopatia. É também necessária precaução com a associação a outros fármacos que potenciam os efeitos de miopatia associado às estatinas, sendo os antibióticos macrólidos (eritromicina, claritromicina), os antifúngicos (itroconazol, ketoconazol) e a ciclosporina os mais utilizados nesta faixa etária. As recomendações europeias propõem o uso de estatinas, em indivíduos com HF, a partir dos 14 anos de idade, embora nos Estados Unidos da América esteja aprovado o seu uso a partir dos 10 anos nos rapazes e após a primeira menstruação nas raparigas. Figura 3 Adaptado de Jones PH et al. AM J Cardiol. 1998; 81:582 Inibidores da absorção do colesterol Resinas As resinas, ao ligarem-se aos ácidos biliares no intestino, diminuem a circulação enterohepática do colesterol presente naqueles e em consequência a sua absorção intestinal. Conseguem-se reduções do colesterol entre 15 e 20%, consoante a dose utilizada, mas as doses eficazes são dificilmente toleradas pelas crianças (pouco palatáveis, alterações gastrointestinais, diminuição da absorção das vitaminas liposolúveis, necessidade de três ou quatro tomas diárias). Ezetimibe O ezetimibe, um inibidor da absorção intestinal do colesterol proveniente dos sais biliares ou da alimentação, consegue reduções da ordem dos 20%. Está aprovado em crianças com mais de 10 anos, tem a vantagem da dose única diária, mas existem poucos estudos com este fármaco na HF. Acompanhamento Figura 2 Modo de actuação bioquímica das estatinas (inibidores da HMG-CoA reductase) na cadeia que leva à formação do colesterol. É hoje consensual que as crianças e os jovens com HF devem ter um acompanhamento especializado em centros hospitalares que se dediquem a esta patologia. A necessida- 42 Revista Factores de Risco, Nº18 JUL-SET 2010 Pág. 40-43 “As recomendações europeias propõem o uso de estatinas, em indivíduos com HF, a partir dos 14 anos de idade, embora nos Estados Unidos da América esteja aprovado o seu uso a partir dos 10 anos nos rapazes e após a primeira menstruação nas raparigas.” de de equipas multidisciplinares, de um prolongado acompanhamento no tempo e de uma grande experiência em lidar com esta patologia e com a diversidade de problemas que se colocam na abordagem destes doentes, aconselha o recurso a centros especializados. Dado que não existem estudos que comprovem a eficácia dos fármacos, da dieta ou do exercício físico aplicados na criança/adolescente em reduzir a incidência de dislipidemia no adulto e de atrasar o aparecimento de doença coronária ou reduzir a incidência de eventos cardiovasculares, o critério de iniciar medidas terapêuticas, especialmente farmacológicas, assim como idade em que se deverão iniciar, deve ser bem ponderado e decidido por quem tenha experiência nesta área. Daniels recomenda iniciar tratamento farmacológico em crianças com idade igual ou superior a 10 anos, se o colesterol-LDL for persistentemente superior a 190mg/dL, apesar das medidas dietéticas, se não houver outros factores de risco. Ou se o colesterol-LDL for persistentemente superior a 160mg/dL, apesar da dieta, se houver outros factores de risco como obesidade, hipertensão arterial, tabagismo ou história familiar de doença cardiovascular prematura. Em crianças com diabetes mellitus recomenda iniciar terapêutica farmacológica para valores de colesterol-LDL superiores a 130mg/dL. Conclusão Embora sejam necessários mais estudos que demonstrem a eficácia das terapêuticas de redução do colesterol, em crianças/adolescentes com HF, na prevenção de eventos cardiovasculares na idade adulta, existe um consenso sobre a necessidade de implementar medidas terapêuticas (quer por alterações do estilo de vida quer farmacológicas) nestes doentes. A eficácia destas medidas na redução do colesterol está demonstrada. Carlos Perdigão Bibliografia Recomendada 1. Guerra A. Prevenção da doença cardiovascular aterosclerótica desde a infância. Revista Factores de Risco 2007; nº4 (Jan-Mar): 26-34. 2. Ramos E. Alimentação na adolescência e prevenção cardiovascular. Neste número da Revista Factores de Risco. 3. Ribeiro J.C. A actividade física na adolescência e a prevenção cardiovascular. Neste número da Revista Factores de Risco. 4. Rato Q. Hipercolesterolemia Familiar e Doença Coronária Prematura: A Propósito de um Caso Clinico. Revista Factores de Risco 2007; nº5 (Abr-Jun): 63-68. 5. Smilde T.J., van Wissen S., Wollersheim H., et al. Effect of aggressive vs convencional lipid-lowering on atherosclerosis progression in familial hypercholesterolemia (ASAP): a prospective, randomised, double-blind trial. Lancet 2001; 357: 577-581. 6. Van Wissen S., Trip M.D., Smilde T.J., et al. Differencial CPR reduction in patients with familial hypercholerterolemia treated with aggressive or conventional statin therapy. Atherosclerosis 2002; 165: 361-366. 7. Haney E.M., Huffman L.H., Bougatsos C., et al. Screening and Treatment for Lipid Disorders in Children and Adolescents. Systematic Evidence Review for the US Preventive Services Task Force. Pediatrics, 2007 Figura 4 Níveis de colesterol-LDL recomendados para iniciar o tratamento farmacológico em crianças e adolescentes com idade igual ou superior a 10 anos 8. Daniels S.R. et al. Pediatrics 2008; 122:198-208. 9. National Health and Nutrition Examination Survey III 43