Educar para a Cidadania: Uma experiência de formação de professores dos ensinos básico e secundário com base na concepção de experiência educativa de John Dewey Eduquer à la citoyenneté: une expérience de formation des enseignants basée dans la conception d’expérience éducative de John Dewey Maria Luísa Branco (Universidade da Beira Interior) Resumo Tendo em conta que a questão central no processo de Bolonha é a passagem de um paradigma de ensino, baseado na aquisição de conhecimentos (modelo passivo) para um modelo activo, traduzido na aquisição de competências, quer de natureza transversal, quer de natureza específica, concebeuse no âmbito da UC de História e Teoria da Educação, que integra a formação educacional geral do plano dos mestrados em ensino da UBI, uma organização do ensino-aprendizagem com base no conceito de experiência educativa de John Dewey. Com esta organização procurou-se que a formação de futuros docentes contemplasse uma vertente ética e cívica, que não passa apenas pela tematização expressa destes conteúdos mas também pela iniciação a determinadas práticas. Efectivamente, segundo Dewey, o objectivo da educação é o desenvolvimento e a reconfiguração da experiência possuída pelos sujeitos, devendo estes ser entendidos como o fruto de uma busca cooperativa. A construção conjunta do conhecimento em torno da resolução de problemas é, em si mesma, uma preparação para a intervenção na vida democrática, cumprindo-se, deste modo, o sentido cívico das instituições de ensino. Palavras-chave: ensino centrado no aluno; educação para a cidadania; experiência educativa. Résumé Le processus de Bologne est caractérisé par l’adoption d’un nouveau paradigme d’apprentissage, marqué par le développement de compétences (génériques et spécifiques) au détriment d’un modèle passif, qui privilégie la transmission de connaissances. Dans cette logique, nous avons conçu l’organisation de l’enseignement/apprentissage de la discipline de Historie et Théorie de l’Education, qui fait part de la formation générale en Sciences de l’Education du plan des Masters en Enseignement de l’Université de Beira Interior, basée sur la conception de expérience éducative de John Dewey. L’éducation progressive de Dewey marque un changement dans la conception d´éducation, en privilégiant un enseignement fondé sur l’acquisition de compétences (ce qui se traduit en un développement personnel et social) versus un enseignement centré sur la transmission de connaissances. Récemment, des études ont exploité les potentialités de l’application de cette conception à l’enseignement supérieur. Selon Dewey, l’objectif de l’éducation est le développement et la reconfiguration de l’expérience des sujets. Ce développement doit être entendu comme le résultat d’une recherche coopérative. L’intelligence humaine est sociale et la promotion d’une construction conjointe de la connaissance, autour de la résolution de problèmes est, en soi même, une préparation à une intervention dans la vie démocratique, qui permet d’achever le sens éthique et civique des institutions de 1058 l’enseignement. En prenant en compte que la formation des futurs enseignants inclut nécessairement une composante éthique et civique, qui dépasse une approche de contenus éthiques et civiques, devant se traduire par l’initiation à des pratiques déterminées, nous avons organisé le processus d’enseignement/apprentissage de la discipline d’Histoire et Théorie de l’Education, en privilégiant les aspects suivants : réflexion à partir des questions/problèmes (la question transversale au cours est : qu’est-ce que c’est éduquer ?) ; travail coopératif ; relation entre les questions posées et l’expérience des étudiants ; implications de la réflexion effectuée en termes d’enseignement (dans leur qualité des futurs enseignants). Ceci faisant, on a fait une tentative d’aborder les caractéristiques de continuité/ interaction, de l’expérience éducative selon Dewey. Mots-clés : Enseignement centré sur l’élève ; éducation à la citoyenneté ; expérience éducative. Introdução O objectivo deste texto consiste na apresentação e reflexão sobre uma experiência de ensinoaprendizagem levada a cabo no âmbito da UC de História e Teoria da Educação, que integra a formação educacional geral do plano curricular dos Mestrados em Ensino oferecidos pela Universidade da Beira Interior. Os Mestrados (2.ºs Ciclos) em Ensino da UBI são oferecidos desde o ano lectivo de 2008/2009 e, de acordo com o DL 43/2007, de 22 de Fevereiro compreendem um conjunto de UC de formação educacional geral. É nesta formação geral que se enquadra a UC de História e Teoria da Educação, de frequência obrigatória, no 1º ano do 1º semestre, para o conjunto de mestrados em ensino oferecidos. Tal como o próprio nome indica, esta unidade curricular é um “híbrido”, tendo como objectivo possibilitar um reflexão sobre conceitos essenciais do âmbito da Teoria da Educação fazendo apelo a uma perspectiva histórica, da Antiguidade aos nossos dias, e ao pensamento de autores/pedagogos de referência. O grande princípio orientador da planificação da referida UC consistiu na convicção de que a questão central no processo de Bolonha reside na passagem de um paradigma de ensino, baseado na aquisição de conhecimentos (modelo passivo) para um modelo activo, traduzido na aquisição de competências, quer de natureza genérica, quer de natureza específica. Na Universidade da Beira Interior, esta mudança de paradigma tem sido interpretada como correspondendo à implementação do ensino por objectivos, seguindo o modelo que foi adoptado e experimentado, com êxito, nas Ciências Médicas. Tendo em conta esta referência, ao iniciar a leccionação de unidades curriculares no âmbito de 2.ºs ciclos em Ensino sentimos a necessidade de fazer uma reflexão prévia sobre o significado de organizar um ensino-aprendizagem centrado no aluno. Socorrendo-nos das obras de John Dewey, e particularmente das suas reflexões em torno do conceito de experiência e de experiência educativa, consideramos que esta “aprendizagem centrada no aluno” deve ser preferencialmente entendida como “aprendizagem centrada na experiência do aluno”. Não se trata apenas de elevar o aluno a protagonista principal do seu processo de formação mas trata-se, essencialmente, de criar condições e situações para que este reconfigure e amplie a sua experiência, num processo de construção conjunta do conhecimento. Esta interpretação tem, ainda, a vantagem de deslocar o foco do debate sobre o ensino superior na Europa, do aspecto económico para o aspecto cívico (exigência que tem sido colocada por alguns documentos, entre os quais destacamos a Declaração do Conselho da Europa 1059 sobre Educação superior e cultura democrática: cidadania, direito humanos e responsabilidade cívica, DGIV/EDU/HE (2006) 26) Uma compreensão mais cabal do que foi referido exige uma reflexão, ainda que breve, sobre o conceito de experiência educativa proposto por Dewey. Segundo este autor, a experiência é caracterizada por dois aspectos fundamentais, a continuidade e a interacção, que correspondem, respectivamente, às suas dimensões longitudinal e lateral. A primeira característica refere-se à complexidade temporal inerente a qualquer experiência que, radicando no passado, vai necessariamente ter efeitos e condicionar o futuro (em termos de atitudes mas também em termos de impacto sobre as condições objectivas). A segunda recolhe o aspecto espacial da experiência, ou seja, as interacções que ela implica entre o sujeito e o seu meio envolvente (Dewey, 1997). O que torna uma experiência educativa é, por conseguinte, na perspectiva de Dewey (1997) a qualidade da continuidade e da interacção conseguidas, dado que nem todas as experiências são educativas. Uma experiência educativa é uma experiência que possibilita crescimento, traduzindo-se a característica da continuidade num desenvolvimento da experiência anterior, isto é, na prossecução da construção e aplicação do conhecimento. Por sua vez, a característica da interacção tem de ser entendida numa estreita ligação com o conceito de situação, correspondendo à adequação entre as características subjectivas do indivíduo e as condições que, entrando em interacção com aquelas, têm capacidades para as potenciar. Em última análise, para este autor, o conceito de experiência é indissociável do conceito de aprendizagem, dado que esta consiste na “descoberta das conexões entre as coisas” (Dewey, 1997a, p.139). Para John Dewey, a experiência, que é sempre feita na primeira pessoa, resulta necessariamente de uma combinação entre um elemento activo e um elemento passivo (o fazer a experiência e o sofrer a experiência), querendo com isto realçar-se que apesar da actividade e da mudança estarem implícitas em qualquer experiência elas necessitam de ser reflectidas para se tornarem efectivamente experiências educativas (Dewey, 1997a). Embora seja sempre pessoal, a experiência de cada um de nós intersecta-se com a experiência dos outros. Significa isto que vivemos emersos na experiência, e que esta é uma espécie de uma teia que nos congrega a todos, existindo um contínuo entre a experiência pessoal (entre o ponto de vista psicológico) e a experiência acumulada ao longo das gerações e traduzida na organização lógica dos conhecimentos (Dewey, 2002). A primeira implicação disto em termos de organização do ensino–aprendizagem consiste na prática do ensino indirecto, baseado na estruturação de aulas/actividades nas quais os alunos sejam capazes de identificar problemas e de estabelecer relações significativas com as matérias de estudo. Novos objectos e conhecimentos devem estar intelectualmente relacionados com as experiências precedentes (princípio da continuidade) no sentido de ser proporcionado um progresso na articulação consciente de factos e ideias. Exige-se, assim, que a matéria de estudo se relacione com a experiência actual do indivíduo, deslocando-se o centro da aprendizagem para o processo, entendido como as situações em que o estudante, necessitando do currículo, se torna apto para recorrer a ele e o trabalhar (Fishman e McCarthy, 1998). A organização da aprendizagem em torno da colocação e resolução de problemas suscitado pelas actividades desenvolvidas traduz-se num incentivo à cooperação, engendrando “um espírito de livre comunicação, de troca de ideias, sugestões, resultados de experiências anteriores bem ou mal sucedidas” (Dewey, 2002, p.25) e possibilitando aos estudantes um conjunto de vivências democráticas, traduzidas simultaneamente na libertação das possibilidades individuais e no fortalecimento do grupo e, a longo prazo, da sociedade mais lata. 1060 Planificação da UC de História e Teoria da Educação A UC está organizada em três grandes blocos temáticos (I. Questões introdutórias, onde é feita uma reflexão sobre o conceito de educação e sobre a especificidade da relação educativa e pedagógica; II. História da Educação, onde são abordadas as raízes históricas do pensamento pedagógico actual e a construção do modelo escolar de educação; III. Tendências educativas actuais e teorias pedagógicas contemporâneas), compreendendo cada um deles vários subtemas. A nossa preocupação ao planificar esta UC foi que ela não passasse incólume na formação dos alunos, futuros docentes dos ensinos básico e secundário, mas que potenciasse efectivamente a sua capacidade de reflexão e de intervenção em actuais e futuras situações educativas, contribuindo simultaneamente para a sua formação ética e cívica, levando-os a responsabilizarem-se efectivamente pela sua aprendizagem e a persistir na mesma, responsabilizando-se, simultaneamente, pela qualidade do ambiente criado na sala de aula, que se desejou marcado pelo debate, livre expressão de ideias e abertura às ideias dos outros. Tendo em conta estas preocupações, foram colocados, para além dos objectivos/competências específicas, quatro objectivos/competências transversais, seguindo as recomendações expressas no relatório do projecto Tuning (Tuning Project, 2006): 1.Expressar ideias de forma fundamentada, recorrendo à comunicação oral e escrita; 2. Exercitar o sentido crítico; 3. Desenvolver capacidades de trabalho colaborativo; 4. Assumir a responsabilidade pela sua aprendizagem. Os alunos organizaram-se em grupos fixos de trabalho, de dimensão variável (entre dois e quatro elementos, por uma questão de conveniência). Semanalmente, foram distribuídos para cada tema e subtema, textos de apoio e objectivos específicos para a análise dos mesmos. Nas duas horas de contacto semanal, estes objectivos foram discutidos em pequeno grupo, seguido de discussão em grande grupo, após o que os grupos procediam à elaboração de um texto conjunto (ensaio de duas páginas tendo em conta os objectivos e o debate havido) durante a semana, sendo estes enviados à docente que os lia, entregando-os na semana seguinte com comentários e sugestões. Alguns temas foram desenvolvidos ao longo de várias semanas. Os objectivos específicos variaram consoante os temas mantendo-se, contudo, para todos os temas dois objectivos específicos: o relacionar das ideias dos textos com as concepções do grupo e o retirar das implicações das ideias estudadas para o exercício da profissão docente. Além deste conjunto de ensaios, a integrar num dossiê de grupo, que valia 60 % da avaliação final, foi ainda pedido aos grupos que elaborassem uma apresentação sobre um dos temas do programa (com a ponderação de 40% na avaliação final), pedindo mais uma vez que partissem de um problema com significado para eles. Cada um destes momentos de avaliação foi objecto por parte dos vários estudantes de um momento de auto e de hetero-avaliação. Avaliação Apesar de alguma resistência e dúvidas iniciais, os vários grupos (incluindo os constituídos maioritariamente por alunos estudantes trabalhadores, com dificuldades em assistir às aulas), empenharam-se semanalmente na produção dos textos. Verificou-se, ao longo das várias semanas, um progresso na elaboração dos mesmos, em termos de correcção conceptual, transferência de conhecimentos e capacidade reflexiva. No final do semestre foi pedido aos diversos grupos que elaborassem uma apreciação do funcionamento da UC, sob a forma de um pequeno texto, tendo em conta os seguintes itens: 1. Apreciação e avaliação dos conteúdos (interesse/pertinência/importância); 2. Avaliação das 1061 competências específicas e gerais adquiridas; 3. Apreciação da metodologia aplicada; 4. Apreciação do clima criado (relação intra-grupo; relação inter-grupos; relação alunos; relação alunos-professora); 5. Síntese, numa afirmação, da apreciação da Unidade Curricular. Estes textos foram entregues na última aula em papel e sem a identificação dos elementos do grupo. Dos quinze grupos, sete procederam à sua entrega (tendo os elementos de um dos grupos optado pela elaboração de reflexões individuais). Após leitura dos vários textos produzidos pelos grupos procedeu-se a uma análise de conteúdo dos mesmos. A opção por esta técnica prendeu-se com o facto de ser um instrumento adaptado ao campo vasto das comunicações. Foram definidas três categorias: 1. Pertinência da Unidade Curricular; 2. Competências desenvolvidas/ adquiridas; 3. Organização do ensino aprendizagem (subdividida nas três subcategorias: Metodologia; Avaliação; Limitações), tendo em conta as regras da homogeneidade, exaustividade, exclusividade, objectividade e adequação/pertinência relativamente ao conteúdo/objecto (Bardin, 1995). Procedeu-se de seguida à codificação dos textos, referenciando a cada categoria as unidades de sentido correspondentes (Afonso, 2005). A partir da análise efectuada é possível registar que a maioria dos grupos valoriza a UC, considerando importante a reflexão sobre a educação sustentada numa perspectiva histórica. Apesar de algumas das teorias estudadas serem longínquas no tempo, os grupos reconhecem a sua actualidade em termos de análise da educação actual. Finalmente, consideram que os conhecimentos obtidos não só possibilitaram uma melhor compreensão dos conteúdos leccionados nas restantes UC do mestrado como salientam a sua aplicabilidade em termos de intervenção educativa. Sobre este último aspecto, o sujeito 1 do Grupo 7 comenta: “Esta UC foi muito importante pois em muitos temas abordados visualizei a aplicação de alguns conceitos nas sessões de treino por mim leccionadas, e de que modo posso alterar a minha intervenção” No que se refere às competências desenvolvidas, os vários grupos valorizaram essencialmente a possibilidade que lhes foi dada de expressar ideias e de trocar perspectivas, conhecimentos e experiências. Como refere o Grupo 4: “É também verdade que nem todos têm a mesma visão sobre determinado assunto e que se torna enriquecedor ouvir o que os outros têm a dizer”, o que se traduz num“enriquecimento pessoal e cognitivo”. Um grupo registou ainda o empenho e a aprendizagem de uma forma simultaneamente orientada e autónoma. Sobre a metodologia aplicada, consideraram que foi positiva, implicando um esforço continuado e gradual, realçando a importância da leitura e análise semanal de textos, feita de forma orientada, bem como o debate em pequeno grupo e em grande grupo que se seguiu. Valorizaram o carácter contínuo e formativo da avaliação, realçando a importância de “dar uma aula”enquanto preparação para a futura docência. Alguns grupos referem como principais limitações o facto de ser uma organização do ensino aprendizagem que exige muito trabalho, lamentando (um grupo) que a docente não recorra ao método expositivo. Relacionado com este aspecto, dois grupos salientam a importância de encurtar o programa. Conclusão A partir desta análise consideramos ser possível concluir que os objectivos que presidiram à planificação desta UC foram alcançados no geral. Os alunos integraram os conteúdos adquiridos, compreendendo a sua relação com a actualidade e com os conhecimentos adquiridos no âmbito de outras UC e conseguindo retirar as suas implicações em termos de intervenção educativa actual e futura (aplicação do princípio da continuidade). A metodologia aplicada possibilitou a criação de um 1062 ambiente de aprendizagem aberto e cordial, ao nível dos pequenos grupos e do grande grupo, levando a um esforço contínuo e a uma responsabilização pela aprendizagem própria e dos outros, valorizando-se o debate e a livre expressão de ideias como promotora da construção de conhecimentos (princípio da interacção). Deste modo, a UC parece ter contribuído para a formação dos alunos não só em termos de conhecimentos educacionais mas também em termos de desenvolvimento pessoal e da sua preparação como futuros docentes e cidadãos responsáveis. Bibliografia Bardin, L. (1995). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70 Afonso, N. (2005). Investigação naturalista em educação. Um guia prático e critico. Porto: Edições Asa DGIV/EDU/HE (2006) 26 (Declaração do Conselho da Europa sobre Educação superior e cultura democrática: cidadania, direito humanos e responsabilidade cívica) Dewey, J. (1997). Experience and education. Nova Iorque: Simon & Schuster Dewey, J. (1997a). Democracy and education. Nova Iorque: Simon & Schuster Dewey, J. (2002). A escola e a sociedade. A criança e o currículo. Lisboa: Relógio D’Água Fishman, S. e McCarthy,L (1998). John Dewey and the classroom practice. Nova Iorque. Teachers College Press. Tuning Project (2006). Tuning educational structures in Europe. Bilbao/Espanha: Publicacíones de la Universidad de Deusto. 1063