Relato de Caso Trauma faringo-laríngeo aberto Sindeval José da Silva1 Débora Regina Pena Langoni2 Juliana Rezende2 Letícia Ribeiro Oliveira2 Marcela Ramos Oliveira2 External laryngopharyngeal trauma RESUMO Este trabalho se refere a um caso de trauma perfurante no pescoço devido à chifrada de boi, em que houve fratura da cartilagem tireóide, desinserção das pregas vocais, laceração da parede posterior da hipofaringe e fratura de corpo vertebral (C4) sem lesão do canal medular. No trauma aberto de laringe, o paciente pode apresentar alterações da voz, disfagia, dispnéia, estridor, enfizema subcutâneo, hemoptise ou fratura da cartilagem tireóide, podendo evoluir com estenose, disfonia, aspiração e morte. O relato do caso é importante por ser um trauma perfurante com etiologia pouco freqüente e, apesar da gravidade, o paciente evoluiu sem seqüelas. ABSTRACT This report describes a case of a perforation trauma of neck caused by a bull's horns attack, with fracture of the thyroid cartilage, disinsertion of the vocal folds, laceration of the hypopharynx and fracture of the vertebral body (C4) without lesion of the medullar channel. A patient with laryngeal open trauma can show voice alterations, dysphagia, dyspnea, stridor, subcutaneous emphysema, hemoptysis, fracture of the thyroid cartilage and later with stenosis, dysphonia, aspiration and death. The relevance of this report is due to its low frequent etiology and, in spite of its graveness the patient recovered without sequels. Key words: Larynx. Pharynx. Wounds and Injuries. Descritores: Laringe. Faringe. Ferimentos e Lesões. INTRODUÇÃO O trauma de laringe pode ser interno ou externo, sendo o último relativamente raro e subdividido em penetrante e não penetrante1. O penetrante geralmente resulta de ferimentos com armas de fogo e branca, enquanto o não penetrante ocorre quando o órgão é comprimido entre um objeto e a coluna cervical, podendo ocorrer deslocamento da cartilagem aritenóide e lesão do nervo laríngeo inferior2,3. As manifestações clínicas mais comuns são: rouquidão, dor, disfagia, odinofagia e dispnéia e o exame físico pode mostrar sinais de equimose cervical, orifício de entrada e saída do objeto penetrante e perda de contorno da cartilagem tireóide4,5. O tratamento adotado para essas lesões pode ser de natureza conservadora ou cirúrgica, dependendo da gravidade do caso. Exames complementares como radiografias, tomografia computadorizada de pescoço e tórax e endoscopia são imprescindíveis para avaliar o comprometimento da laringe e estruturas adjacentes4. O diagnóstico precoce e uma terapia adequada têm um impacto significante no prognóstico do paciente, pois minimiza possíveis complicações como disfonia, estenose, fístula ou evolução para óbito1. O presente trabalho tem como objetivo relatar o caso de uma vítima de trauma cervical penetrante por chifrada de boi, causando lesões de laringe e hipofaringe. O caso é de etiologia única na literatura e foi abordado com procedimento cirúrgico. RELATO DO CASO Carmelo, deu entrada no HC-UFU em junho/2005 com história de ferimento cervical por chifrada de boi há 6 horas. À admissão encontrava-se consciente, eupneico, hemodinamicamente estável, sem déficits neurológicos e com colar cervical. A via aérea era mantida pérvia por meio de cânula traqueal inserida pelo orifício da ferida (figura 1). À inspeção do pescoço, observava-se a presença de ferimento pérfuro-contuso de 2cm de extensão no nível da cartilagem tireóide. O exame radiológico evidenciou enfisema subcutâneo, fratura do corpo vertebral C4 com presença de corpo estranho (CE) de densidade metálica (figura 2) no foco da fratura, sem comprometimento do canal medular e pneumomediastino. Figura 1 – Cânula traqueal inserida pelo orifício da ferida. Homem, leucoderma, 25 anos, natural e procedente de Monte 1) Professor Assistente Mestre do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal de Uberlândia. Chefe do Serviço de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de Uberlândia. 2) Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. Instituição: Departamento de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, MG, Brasil. Correspondência: Sindeval José da Silva, Rua Carajás, 701 – 38400-076 Uberlândia, MG, Brasil. E-mail : [email protected] Recebido em: 15/09/2007; aceito para publicação em: 22/12/2007; publicado online em: 12/02/2008. Conflito de interesse: nenhum. Fonte de fomento: nenhuma. 58 Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v. 37, nº 1, p. 58 - 59, janeiro / fevereiro / março Figura 2 – Radiografia simples de coluna cervical com presença de corpo estranho de densidade metálica. Foi submetido à traqueostomia de urgência e cervicotomia exploradora (figura 3). Os achados foram: fratura da cartilagem tireóide, desinserção das pregas vocais na comissura anterior e laceração da parede posterior da hipofaringe de 4cm de extensão. Durante o procedimento cirúrgico, foi retirado CE de C4 e realizado a reconstrução da faringe e laringe, com manutenção de uma prótese endolaríngea. Foi passada sonda naso-enteral (SNE) para alimentação no pós-operatório (P.O.), drenagem cervical e antibioticoterapia profilática com clindamicina. encontrado em 39% dos pacientes1. A radiografia simples do pescoço com penetração para partes moles evidencia a presença de enfisema subcutâneo e a localização de CE. A tomografia computadorizada tem valor limitado no traumatismo penetrante, pois não necessariamente influencia na escolha do tratamento4. O tratamento dos ferimentos perfurantes cervicais continua a ser um assunto controverso, especialmente quando há lesão da hipofaringe que, nesses casos, é incomum3. A determinação do procedimento a ser usado, muitas vezes, é difícil devido à tamanha complexidade da anatomia dessa região5. O tratamento clínico é indicado quando o ferimento acarreta pequenas lesões com laceração da mucosa que não envolvam a comissura anterior, edema leve e pequenos hematomas, sem comprometimento da mobilidade da prega vocal e na ausência de distúrbios respiratórios4. Quando há lesões da comissura anterior, lesões que provoquem exposição da cartilagem, fraturas múltiplas da cartilagem cricóide, fraturas com desvio da cartilagem tireóide ou com paralisia da prega vocal ou que provoquem obstrução respiratória em que seja necessário intubação ou traqueostomia, o paciente deve ser tratado cirurgicamente. O tratamento cirúrgico deve ser feito também quando há lesões do recesso piriforme ou da parte dorsal e caudal às cartilagens aritenóides; lesões maiores que 2cm em qualquer sub-região da hipofaringe ou qualquer lesão envolvendo duas ou mais sub-regiões adjacentes4. Ambos os estudos justificam o tratamento adotado no caso apresentado. O relato que apresentamos no presente trabalho é um dos casos de trauma externo de laringe causado por objetos cortantes, em que a limpeza do ferimento com remoção de CE seguidos de uma cuidadosa reconstrução das estruturas lesadas pôde prevenir complicações como as estenoses3 Os traumas externos de laringe são raros, têm origens diversas e podem provocar desde feridas simples, sem repercussão clínica, até lesões severas potencialmente letais. Apesar de gravidade do caso, o paciente evoluiu bem. REFERÊNCIAS Figura 3 – Cervicotomia exploradora mostrando fratura da cartilagem tireóide. 1. Kleinsasser NH, Priemer FG, Schulze W, Kleinsasser OF. External trauma to the larynx: classification, diagnosis, therapy. Eur Arch Otorhinolaryngol. 2000;257(8):439-44. 2. Kandogan T, Olgun L, Gültekin G, Aydar L, Mercan B, Ozuer ZM. External laryngeal trauma. Swiss Med Wkly. 2003;133(25-26):372. 3. McConnell DB, Trunkey DD. Management of penetrating trauma to the neck. Adv Surg. 1994;27:97-127. 4. Maisel RH. Blunt and penetrating trauma to the neck. In: Cummings CW. Otolaryngology Head and Neck Surgery. 3rd ed. Philadelphia: Library of Congress; 1998. pp.2535-43. 5. Cervantes O, Abrahão M. Diagnóstico e conduta no trauma de laringe. In: Carvalho MB. Tratado de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia. 1ª ed. São Paulo: Atheneu; 2001. pp.1161-73. Recebeu alta hospitalar no 11º P.O. com SNE, traqueostomia e colar cervical. Permaneceu com a sonda por 43 dias. No 50º P.O. foi realizado controle videolaringoscópico, com resultados dentro dos limites das normalidades e retirada cânula de traqueostomia. No 12º mês de evolução, paciente apresenta apenas disfonia leve. DISCUSSÃO O trauma externo da laringe é raro e, por vezes, fatal. A prevalência varia de 1/5000 a 1/42. 528, sendo mais freqüente em jovens4. O diagnóstico de trauma penetrante de laringe é clínico e o único sinal diagnóstico é a presença de ar vazando através do ferimento no pescoço, o que fica mais evidente com a tosse. Em um estudo retrospectivo com 57 pacientes que apresentavam lesões decorrentes de trauma laringotraqueal penetrantes, o enfisema subcutâneo foi o sinal mais comum – 59