INSTITUTO DE PSIQUIATRIA – IPUB Centro de Ciências da Saúde Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ UM ESTUDO SOBRE A PERSONALIDADE DE UM DROGADICTO CÍCERO ANTONIO MONTEIRO DE SOUZA Monografia apresentada ao Instituto de Psiquiatria – IPUB/UFRJ – como requisito parcial para aprovação no Curso de Especialização para a Rede de Centros de Atenção Psicossocial no Atendimento de Dependentes de álcool e outras drogas (CAPS ad) Orientadora: DRA. SALETTE MARIA DE BARROS FERREIRA Doutora em Ciências da Saúde Rio de Janeiro Julho 2003 ii INSTITUTO DE PSIQUIATRIA – IPUB Centro de Ciências da Saúde Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ UM ESTUDO SOBRE A PERSONALIDADE DE UM DROGADICTO CÍCERO ANTONIO MONTEIRO DE SOUZA Aprovada por: ___________________________________________________________ Orientadora: DRA. SALETTE MARIA DE BARROS FERREIRA Doutora em Ciências da Saúde ___________________________________________________________ iii RESUMO O trabalho procura demonstrar a correlação entre a psicobiografia de um drogadicto com a gênese da estrutura psíquica do sujeito e adicionada ao encontro da droga. As idéias do trabalho / estudo são apoiadas na concepção do Édipo segundo Freud, Lacan e Olievenstein. O trabalho / estudo levanta outras questões como o estágio do espelho, o estado do espelho quebrado, segundo Olievenstein, e referindo também a figura do “idiota” da família. A seguir são apresentadas a psicobiografia e a história de vida do paciente; finalmente, o autor conclui com considerações sobre a estrutura psíquica do drogadicto e interroga a respeito do tratamento psicoterápico e psiquiátrico da drogadicção apoiado no referencial teórico dos autores citados. iv SUMÁRIO INTRODUÇAO 1 OBJETIVO 3 JUSTIFICATIVA 3 METODOLOGIA 4 CAPÍTULO I: O ÉDIPO E A PSICOPATOLOGIA DA TOXICOMANIA 5 CAPÍTULO II: A HISTÓRIA DE JOSÉ – ANATOMIA DE UM DRAMA 12 INTRODUÇÃO SUA INFÂNCIA A ADOLESCÊNCIA A UNIVERSIDADE, O VESTIBULAR, O ÁLCOOL E A MACONHA A VIDA ADULTA O CASAMENTO A VIDA DE JOSÉ POR VOLTA DOS 30 ANOS AS RECAÍDAS, OS GRUPOS ANÔNIMOS E NOVAS INTERNAÇÕES SINAIS DE RECUPERAÇÃO 12 12 15 17 19 20 21 23 24 CAPÍTULO III: AVALIAÇÃO DA ESTRUTURA PSÍQUICA DO PACIENTE 26 CONCLUSÕES 40 REFERÊNCIAS 42 INTRODUÇAO Utilizamos a história de um drogadicto, José, para compreender o papel da droga na existência dele como sintoma na tentativa de superar conflitos antagônicos que se traduzem na sensação de impotência em alguns momentos insuportáveis. As três estruturas que são encontradas – perversão, neurose e psicose – não constituem frações diversas de personalidade como pretendem vários autores e ao nosso ver, inexiste uma quarta estrutura. Questionamos essas afirmações, e nos perguntamos se, o surgimento em cada momento da vida de um drogadicto de diferentes estruturas, não seria a revelação de instâncias preexistentes e recalcadas na dependência do encontro com a droga. O encontro com a droga altera o psiquismo inaugurando novas formas de organização dos sistemas em função da influência das características químicas da substância em interação com o sistema nervoso e aparenta como se fosse uma nova estrutura psicopatológica. A estrutura de personalidade básica é alterada em função da soma da droga. O modo de estar no mundo do drogadicto jamais é fixo e imutável: ele nunca é, ele está sempre sendo. O germe de sua condição é a não perfeita resolução do Édipo que conduz necessariamente ao não respeito à Lei, à sua transgressão. Devemos a Jacques Lacan o deciframento da grande importância do mito edípico na obra de Freud. O autor e sua grande contribuição nos trará o conceito de metáfora paterna e o Édipo em três momentos. Em nosso entendimento, Lacan explicita que o conceito essencial reside no momento básico em que a criança internaliza que ela não é o falo de sua mãe, que existe 2 “um outro”, nome do pai, portanto o desejo da criança não pode ser atendido. E é nessa superação da falta, onde a metáfora paterna estrutura o psiquismo da criança, que faz com que ela simbolize a perda, tendo como momento seguinte o Édipo enquanto identificação paterna já que a criança apreende que sendo o pai o falo identificando-se poderá vir a têlo, preenchimento de sua falta. No terceiro momento do Édipo “é o ter ao invés de ser” o menino se identifica com o pai para também poder vir a ser o falo, a menina amará o pai para também ter acesso ao preenchimento de sua falta. O que entendo de primordial na resolução do Édipo é que Lacan explicita Freud mostrando que na resolução do conflito reside a possibilidade do sujeito de desligamento dos pais, da superação das fantasias incestuosas, organização do eu adulto e inserção no mundo e na cultura. Já o que ocorre no drogadicto seja qual for a sua estrutura psicopatológica prévia, fracassa na resolução do conflito edípico, justamente porque não significa, não simboliza a falta, seu Édipo não resolvido está presente o tempo todo. Nesse aprisionamento com o desejo eterno de sua mãe. Irá buscar na fantasia, o ledo engano desse prazer desprazer. Não superando o Édipo será presa fácil se no encontro com a droga. 3 OBJETIVO Correlacionar e analisar a biografia de um drogadicto com um estudo da gênese de sua estrutura psíquica, demonstrando que as novas apresentações psicopatológicas são conseqüências de uma das exigências específicas das drogas na interação com a estrutura preexistente. Esta hipótese nos leva a pensar na importância do tratamento psicanalítico para a estrutura preexistente bem como a utilização de esquema de tratamento psiquiátrico adequado a cada indivíduo e a cada momento do processo em desenvolvimento respeitando cada apresentação. No segmento do tratamento psiquiátrico não pode haver modelos fixos e cristalizados. Há que prevalecer uma visão dialética da situação. JUSTIFICATIVA O nosso propósito é contribuir para a discussão e o esclarecimento da importante questão do drama do drogadicto e através desse entendimento propor um tratamento mais adequado e eficaz. Também acreditamos que ao retratar fidedignamente e concretamente a história e o drama de um drogadicto e através desse entendimento propor um tratamento mais adequado e eficaz. Também acreditamos que ao retratar fidedignamente e concretamente a história e o drama de um drogadicto, estamos também contribuindo para reavaliar conceitos e pressupostos teóricos de autores que vêm exaustivamente há muito estudando a questão. 4 METODOLOGIA Com o nosso proceder qualitativo quisemos articular o caso clínico à concepção abstrata e teórica no encaminhamento da clarificação do tema. A bibliografia utilizada em nosso trabalho para o esclarecimento do tema naturalmente foi condicionada pela metodologia por nós adotada no caso em questão, a psicanálise. A psicobiografia com a história de vida de José apóia-se no referencial psicanalítico de diversos autores com ênfase em Freud, Lacan e Olievenstein. 5 CAPÍTULO I: O TOXICOMANIA ÉDIPO E A PSICOPATOLOGIA DA Para entendimento da estrutura psíquica do drogadicto utilizamos as concepções psicanalíticas como fundamento de nossa argumentação. Assim, acreditamos que o Édipo constitui o centro de gravitação de nossa maneira de compreender a questão da drogadição. Partimos da visão freudiana, que através do mito da tragédia grega, o Édipo, metaforiza a relação triangular pai – mãe – filho. Nessa fase, a criança estabelece grande hostilidade para com o pai e ternura para com a mãe ou o inverso, no caso do Édipo negativo. É bom salientar que Freud entende o complexo nuclear na interioridade da criança (Freud, ESB, v. XI apud Garcia Roza, 1988). Entendemos que o momento do Édipo tanto para Freud quanto para Lacan é demarcado pela entrada do pai simbólico na relação triangular. Para Freud naquele momento acontece uma clivagem da subjetividade em dois grandes sistemas, inconsciente X pré-consciente. Para Lacan, naquele instante constitui-se a passagem do imaginário para o simbólico que inaugura a subjetividade (Garcia Roza, 1988). Lacan denominava esse momento como o Nome do Pai ou metáfora paterna no qual a interdição através da Lei era realizada. Em termos antropológicos, o momento do Édipo é marcado pela passagem do animal natural ao animal humano. Podem-se assim distinguir dois interditos: um do domínio dos costumes, subordinados à antropologia, e o outro do domínio do desejo subordinado à psicanálise. 6 Essa diferença se faz na antropologia pela interdição do incesto sendo esta uma regra das alianças e trocas no interior do grupo social. Na Psicanálise a interdição diz respeito ao desejo (Lévi-Strauss apud Garcia Roza). Freud concebia o Édipo de dois modos distintos. O primeiro como estrutura centrada na criança, expressão de um desejo infantil (Freud, S. Cinco lições de Psicanálise, v. XI, ESB). Ainda o termo complexo de Édipo não é usado. Porém, o essencial é distinguir a concepção inicial de Freud sobre o Édipo, da concepção do Édipo como algo externo ao sujeito que o determina. Na concepção inicial é a estrutura ideativa que sinaliza a conduta da criança na escolha do objeto, tratando-se de um complexo ideativo. Essa diferença é fundamental, pois é o entendimento do Édipo complexo e a outra como Édipo como lei organizadora (Garcia Roza, 1988). Segundo Jacques Lacan, o complexo de Édipo se constitui em três momentos: o primeiro é o da identificação da criança como falo que se constitui no desejo da mãe. Nesse momento toda a problemática da criança é ser ou não ser o falo para que possa ser capaz ou não de satisfazer o desejo da mãe. O segundo momento coincide com a lei da castração; é também a instantaneidade que vem juntar o simbólico ao imaginário, o pai efetuando um corte, interpondo mãe, filho e interdito. Essa fase ou o segundo momento é conhecido como já foi dito anteriormente como o Nome do Pai. Num terceiro momento verifica-se a aproximação do pai durante a qual os meninos buscam a identificação paterna e as meninas se aproximam do pai como objeto do amor. O menino, ao identificar-se com o pai, irá à procura do falo 7 para ter a sensação do poder ter. A menina, através do amor ao pai, irá aprender que sabe não ter (Souza, 1999). “...Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto. Essa privação, o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse ponto é essencial. Vocês o encontrarão em todas as encruzilhadas, a cada vez que sua experiência os levar a um certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo” (LACAN, Jacques. O Seminário, livro V, pág 191). Lacan distingue na evolução do infans, entre os 6 e os 18 meses, o estágio do espelho como formador da função do eu (Garcia Roza, 1988). Inicialmente o fenômeno constitui a formação de uma imagem especular onde e quando o infans, ao ver sua imagem projetada, distingue-se dela e tem a sensação de si. Inaugura a sensação corpórea não enquanto física, porém a sensação corpórea do imaginário. Para Lacan, esse tipo de relação caracteriza o imaginário, que ele denomina de dual. Aqui se dá a demarcação entre o exterior e o interior do sujeito. “O “estádio do espelho” ordena-se essencialmente a partir de uma experiência de identificação fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da imagem de seu próprio corpo. A identificação primordial da criança com esta imagem irá promover a estruturação do “Eu”, terminando com essa vivência psíquica singular que Lacan designa como fantasma do corpo esfacelado. De fato, antes do estádio do espelho, a criança não experimenta inicialmente seu corpo como uma totalidade unificada, mas como alguma coisa dispersa. Esta experiência fantasmática do corpo esfacelado, cujos vestígios nos aparecem tanto na configuração de alguns sonhos, como nos processos de destruição psicótica, é realizada na dialética do espelho, favorecendo a unidade do corpo próprio...” (Dor, 1989, p. 79) 8 Lacan concebe três registros do psiquismo: o imaginário, o real e o simbólico. O imaginário é a percepção primeva, aprensão não simbolizada, simplesmente vivenciada. O real é o impalpável não simbolizado, mas tão-somente entendido através o simbólico. O real corresponde em Freud às pulsões. O simbólico é o registro que torna subordinados os demais, instaurado pela figura do pai como representante da Lei. A aquisição do simbólico significa a passagem do homem como animal natural para o ser humano, em sua posição como ser social e possuidor da linguagem. É a linguagem o entendimento que o faz transpor a condição de ser natural para o de ser humano (Garcia Roza, 1988). Olievenstein utiliza-se das concepções de Lacan quando este descreve a fase do espelho. Fundamenta aí a gênese da estrutura psicopatológica do drogadicto, quando o infans não consegue se distanciar da própria imagem refletida para em seguida tê-la estilhaçada (Olievenstein, 1985). Quando então vive a imagem estilhaçada, despedaçando-se, perde a sensação de unidade, originando a sensação de falta e incompletude. Essas vivências o encaminham para o que Olievenstein denomina o estágio de excesso. Apesar de reconhecermos a imensa relevância da contribuição de Olievenstein na compreensão da drogadição não podemos admitir uma estrutura psicopatológica específica preexistente. Sobre a Psicopatologia dos Toxicômanos, Richard Bucher nos relata duas tendências dos estudiosos do assunto para o tema em questão. Uma delas diz respeito a um modelo único de personalidade, em que haveria um só tipo de toxicômano, uma estrutura preexistente e definida. Na segunda hipótese, ao contrário, esta possui a 9 concepção de diversas estruturas psicopatológicas se opondo ao conceito de uma única representação. A primeira tendência é entendida como reducionista. “Cada sujeito tem sua maneira de reagir em conformidade com o seu caráter, sua história de vida, suas motivações, desejos e dificuldades” (Bucher, 1992, p.211). Olievenstein comenta, segundo suas observações, o sujeito: “Possuidor de uma construção específica de sua personalidade, do seu encontro pessoal com a droga em um determinado momento sócio-cultural” (ibidem, pp. 211-212). Quando menciono estas duas citações, utilizo-me delas: a primeira em reforço à singularidade do sujeito e sua estrutura psicopatológica prévia, aproveitando sinalizo a importância de que isto deve ser bem entendido para a escolha do método terapêutico, para que o tratamento tenha êxito; a segunda citação que corresponde à Olievenstein, escolho porque discordo que haja especificidade de personalidade toxicômano que entendo que este autor sugere. No entanto, sabemos que é grande sua relevância no tratamento com drogadictos por sua renomada experiência, e concordo que a drogadição depende, de que se encontre a droga, de que ela é subordinada ao momento sóciocultural, e que depois deste encontro estrutura prévia mais a droga surge uma nova apresentação psicopatológica subordinada à drogadição. Considerando as duas tendências entendemos que ambas apontam para aspectos que sem dúvida estão presentes de forma marcante no drogadicto. No entanto, entendemos, como já foi afirmado anteriormente, que supomos a segunda tendência mais próxima para nossa forma de entendimento. Bergeret, considerado um dos autores mais estudiosos do assunto através de suas idéias nos fala da importância de não reduzirmos a personalidade do drogadicto a uma categoria única. 10 Bergeret, segundo nossa interpretação, coloca a questão da seguinte maneira aventando três tipos de personalidades: a estrutura neurótica, a psicótica e a depressiva. Com ênfase na última categoria, esta estatisticamente seria mais importante. Descreve essa personalidade como pessoa imatura com permanente fundo depressivo. O autor propõe também três formas: “síntese sobre a reflexão estruturológica” (Bergeret apud Bucher). A primeira forma é que não existiria estrutura psíquica prévia, cristalizada, que daria origem a uma formação psicopatológica específica. “Qualquer estrutura mental pode dar origem a comportamento de dependência, sejam estes manifestos ou latentes” (op. cit., p. 212). Na segunda forma a estrutura prévia jamais desaparece, pode sim ser modificada no seu funcionamento secundário. A terceira forma, a busca do produto, tenta anestesiar, criar formas de organização defensivas contra as vicissitudes, limitações da estrutura prévia existente como marca fundamental na forma do sujeito. Gostaríamos de ressaltar as idéias citadas, entendendo que não devemos ser reducionistas, maniqueístas nos apoiando apenas no diagnóstico dependência química, por tudo que já foi dito antes. Não podemos deixar de entender diante da drogadição que temos dois grandes problemas, se não tratarmos a estrutura prévia, e para mim aí reside de fundamental a compreensão psicanalítica e a psicoterapia, não teremos a solução mais consistente do problema. Ao meu ver um segundo problema se apresenta e ele é essencialmente, em nosso ponto de vista, uma ação específica da psiquiatria em cada momento crítico do drogadicto. Instaurado o uso do tóxico, há de se lidar com a intoxicação, compulsão, overdoses, acting-outs, a todo o momento. Isto é necessário para que o paciente possa ser 11 mantido em psicoterapia. Nessas ocasiões o psicoterapeuta se vê afastado temporariamente do paciente. “Não há toxicômano, mas sim, toxicomania” (Bucher, 1992). 12 CAPÍTULO II: A HISTÓRIA DE JOSÉ – ANATOMIA DE UM DRAMA INTRODUÇÃO Atualmente, José é um homem de 45 anos, e mantém-se em abstinência do uso de drogas. Trata-se de um profissional liberal, economista, contratado por uma grande multinacional. É divorciado, possui dois filhos homens, mora sozinho e é mais um cidadão comum, perdido na grande cidade. Possui poucas relações familiares, tem uma namorada, possui laços ainda que afrouxados com os filhos, os pais e um irmão mais velho. José teve uma história difícil, com abuso de drogas, tendo uma passagem trágica como veremos a seguir. SUA INFÂNCIA José nasceu de uma contingência não muito comum, tendo conhecido primeiramente o primeiro marido de sua mãe como seu pai, até os sete anos de idade. Na realidade, José seria filho do amante de sua mãe, que anos mais tarde viria a assumir efetivamente sua paternidade. Sua mãe foi casada com aquele que desempenhou o papel de seu pai até os seus sete anos de idade. Do primeiro casamento de sua mãe nasceu seu irmão mais velho, hoje com 54 anos de idade. José tinha um “grande amor por sua mãe”. O marido de sua mãe que desempenhou o papel de seu pai não teve para ele grande expressão. José o tinha como pai sem ter conhecimento do pai verdadeiro, o então amante de sua mãe. Seu primeiro pai 13 era um homem instável envolvido com o jogo e com corridas de cavalos. Era um apostador, perdia grandes quantias no jogo. A casa era sustentada por sua mãe, através de seu amante, pai verdadeiro de José, homem abastado e de posses. Na família do marido de sua mãe já havia antecedentes de criminalidade, de jogadores e até de transgressores da lei. O pai de José tinha um irmão que havia sido preso por furto e seu avô paterno havia sido um apostador, tendo perdido tudo no jogo e deixado a família em grandes dificuldades. José tinha bom relacionamento com seu irmão mais velho, que parecia ter conhecimento da verdadeira história da sua mãe. O pai de José, o primeiro, era irresponsável, discutia muito com a esposa, embora fosse carinhoso com José, porém quase sempre estava ausente de casa. Aos cinco anos José conheceu seu verdadeiro pai. Inicialmente foi apresentado a este como se fosse um amigo da família. Ficou impressionado com as posses desse homem, rico e abastado. José, no entanto, não entendia por que a mãe lhe pedia segredo a respeito desse homem, tido como amigo da família. Assim, José, muito apaixonado por sua mãe, aceitou um pacto com esta: “Aquele amigo jamais seria revelado”. Era proibido falar sobre a existência dele. Passaram a sair juntos, a mãe, o amigo e José. Este logo foi tomado de grande afeição por aquela pessoa que estava sempre lhe presenteando. José ficava muito impressionado com o poder que aquele homem tinha e foi desenvolvendo na sua afeição o desejo de que aquele fosse seu verdadeiro pai, embora se sentisse muito culpado por mentir ao primeiro pai sobre a existência daquele amigo de sua mãe. 14 José, no entanto, adorava sua mãe e faria qualquer coisa por ela. Assim, ele foi se acostumando ao amigo, que já tinha como padrinho, aspirando na verdade que fosse aquele seu verdadeiro pai. Seus encontros eram cada vez mais freqüentes. José, às vezes, estranhava o fato de estarem presentes, nestes encontros, só ele, a mãe e o padrinho, e também de seu irmão mais velho estar sempre excluído de tais programas. O tempo foi passando, as brigas de sua mãe com seu pai tornaram-se cada vez mais freqüentes. O pai de José acusava sua mãe de infiel, chegando a agredí-la fisicamente. José pensava sempre que escondia a verdade de seu pai. Sentia-se culpado, pois guardava um segredo; e afinal, preferia o padrinho ao pai. Ao mesmo tempo, o drama dois pais evoluía. As brigas com agressão física tornavam-se cada vez mais freqüentes. Aos sete anos, sua mãe conseguiu separar-se do seu primeiro pai, com o consentimento do segundo, que resolveu assumir toda a família. José assim inaugurou uma nova vida indo morar com a mãe, o irmão mais velho e o verdadeiro pai, até então amante de sua mãe. O choque foi muito grande. O ambiente e as relações interpessoais mudaram muito. José, sempre muito impressionado com o poderio econômico do novo pai, acabaria mais tarde sabendo por sua mãe que o verdadeiro pai era aquele homem que o impressionava tanto. Embora José sentisse felicidade com a novidade, tinha muita vergonha do pai verdadeiro. Em relação ao “falso” pai anterior, ficaria uma cicatriz da qual nunca mais se liberaria, a culpa e a mentira intermediando a relação. O irmão mais velho também sentiu muito a diferença da mudança. Tornou-se muito mais sedutor com o pequeno irmão José, mostrando a este revistas de luxúria e 15 revelando o sexo através das fotografias pornográficas. Estabeleceu-se uma nova relação de intimidade que nunca havia antes com o irmão mais novo. O mais dramático, no entanto, na vida de José, naquele momento, foi a mudança de comportamento de sua mãe para com ele. José sempre lembrava de que tinha um pacto com sua mãe, o pacto do segredo. Agora percebia que o centro das atenções de sua mãe era seu pai. José sentiu-se traído, passou a desenvolver sentimentos de ciúme e ressentimentos contra sua mãe. Novas descobertas, nova casa. Muito rico, o novo pai era carinhoso, porém de personalidade muito forte e muito exigente, embora sempre afetuoso com o filho e atencioso com o irmão de José. A família do novo pai era portentosa e José sentia-se um intruso nela, muito inferiorizado e com a sensação de não fazer parte daquele mundo. Era um sacrifício para José conviver com os novos primos. Tudo passou a seu um sacrifício. Na escola não prestava atenção em nada. Estranhamente para ele próprio, José passou a desejar a professora, tendo fantasias de amarrá-la e possuí-la à força. A desarrumação evoluía na vida de José que deu para comer muito e passou a engordar. Mostrava-se passivo e fugia das brigas no colégio, vivenciando o sentimento de ser covarde. O pai era tido como um Deus para ele e José não tinha coragem de conversar com ele, a quem temia e respeitava com extremo exagero. A ADOLESCÊNCIA A vida de José prossegue. Seu pai compra uma mansão afastada da cidade. José se isola do convívio de outros meninos e meninas, a não ser na escola que freqüentava. Começa a desenvolver um hábito, a masturbação excessiva, e uma baixa auto-estima, e 16 curiosamente uma obsessão sexual pelas mulheres de sua família, suas primas, suas tias etc. Novamente o sentimento de culpa retorna à mente de José: como podia ele sonhar com a própria mãe num desejo incestuoso? José vai parar na psiquiatria pela primeira vez aos 16 anos sentindo-se muito culpado e deprimido pelo sonho que havia tido. José é atendido e passa a tomar tranqüilizantes, tendo este médico o orientado e atendido a seus pais. Um novo inimigo surge na vida de José: a solidão dentro daquela nova vida, a mansão, o pai, a mãe e o irmão. Cada vez mais José estava aprendendo a ser só. Distanciava-se de sua mãe por seu ressentimento e também frente à incompreensão desta, que ignorava o drama que sentia. O irmão, bem mais velho que José, sente-se excluído da família e começa a procurar sua própria vida. Este irmão, segundo José, teria sido mais assistido pela mãe, sem tantas interferências do padrasto. Possui mais liberdade e começa a construir a própria vida. Ao contrário, José estava cada vez mais isolado, inseguro, tímido e introspectivo, cheio de contradições e segredos; não se sente bem em lugar nenhum, a não ser na escola quando se aproxima de outros adolescentes. Distante de seu pai, José vivencia o temor. O pai é um grande empresário e quase não está em casa, voltado para seus negócios. O pai de José é exigente, muito apegado a princípios e regras de comportamento e educação. Durante os pequenos afazeres insinua freqüentemente para José que este jamais seria como ele: organizado, disciplinado, firme. José se sentia então um verdadeiro fracasso perante seu pai. A mãe de José mostra-se muito dependente do marido em suas iniciativas e decisões. É mais atenta ao filho mais velho, talvez por sentimento de culpa, já que o marido não era tão atencioso com o enteado. Omissa com relação a José, a mãe transfere 17 ao pai todas as iniciativas e decisões que pelas contingências, pelo excesso de negócio e por ser um homem extremamente exigente vai construindo uma personalidade perigosa em José: José está sozinho. José vai se transformando cada vez mais em um homem “falsamente onipotente”, “auto-suficiente”. Começa a isolar, a desdenhar dos seres humanos. Nasce em José a hostilidade para com o mundo. Pela segunda vez vai ao psiquiatra, passa a sofrer de depressão. O psiquiatra que lhe assiste estabelece um contrato terapêutico e inicia um processo de psicoterapia. José agora é um mosaico de isolamento, hostilidade para com o mundo e com seus pais. Ao mesmo tempo, sente-se mais culpado por suas fantasias sexuais, voyeuristas e incestuosas. Com as mulheres demonstra grande inibição e com os colegas de escola sentimento de inferioridade. Completa assim o 2 grau com dificuldades. A UNIVERSIDADE, O VESTIBULAR, O ÁLCOOL E A MACONHA O país encontrava-se em plena ditadura, pelos idos de 1970. José passa a freqüentar os cursinhos de vestibular para economia. Conhece primeiro o álcool, o que o desinibia e possibilitava o acesso às mocinhas, ainda que muitas vezes embriagado. José naquele tempo era um pequeno burguês, alienado, inconsciente, fruto de uma época onde o lema era o carnaval e o futebol. Ao mesmo tempo que, lá dentro, nos porões da ditadura, pessoas eram barbaramente torturadas. Aquele era o nosso país, como se dizia na época: “Brasil, o País que vai para frente”. Em sua ida aos cursinhos de pré-vestibular, José começou a se desembaraçar, movido à bebida e às “más companhias”, aos “hippies”, e como seu pai costumava dizer 18 “vagabundos e irresponsáveis que não tinham que fazer”. No entanto, isto de alguma forma forçou José para o mundo. Embora mesmo assim não tivesse conseguido passar no vestibular para Economia. José tinha grande inibição para o sexo, até que um dia... apareceu em sua vida o primeiro “baseado”, a grande descoberta, a maconha. José viu na maconha um “fetiche”. Descobriu que com ela conseguia sentir algum prazer no sexo, na maioria das vezes com prostitutas. Três anos depois da primeira tentativa, José obtém êxito no vestibular. Consegue nesta época comprar duas provas do vestibular. Inteligente, porém completamente desatento e irresponsável, assim mesmo consegue passar no vestibular. Entra para uma Faculdade de Economia, que como não podia deixar de ser, era particular. O tratamento psicoterápico de José evolui, fortalece-o em alguns princípios mas não o faz abandonar a maconha. José tenta controlar o uso, deixando-a para os momentos em que tinha relações sexuais. No entanto, o álcool era usado para desinibi-lo. Estando na Faculdade, José ingressa no teatro amador. Segundo diz, “só entra em palco depois de três vodcas”. A vida vai seguindo regada no álcool e à custa da maconha. A primeira namorada de José foi um verdadeiro achado para ele, pois a menina bebia e adorava “puxar uma maconha”. Nesta época, o pai de José está cada vez mais rico e poderoso. José tem todas as facilidades materiais, porém carece de orientação. Torna-se rebelde com a mãe e mentiroso com o pai. Com o pai tem um pouco mais de afinidade, porém de uma forma contraditória, pois tem admiração, mas também inveja e principalmente muito medo... Transcorre a vida. José muda de namorada, mas perpetua um vício, seus encontros com as prostitutas, sempre com o uso da maconha. No quinto ano de Economia começa 19 seu “desastre”, para passar nas provas descobre os anorexígenos, que usa para ficar estudando até altas horas. A VIDA ADULTA José consegue se formar aos “trancos e barrancos”, com a ajuda da terapia, o poder econômico de seu pai e o apoio da namorada. Ingressa na vida, morre de medo de enfrentá-la, sente-se despreparado para vivê-la. Não sabe como vai arrumar emprego, não está preparado para a profissão na qual se formou, Economia. Sente grande medo e insegurança face à hipótese de separação da família. Sentese muito deprimido como nunca havia se sentido antes. Passa a abusar da maconha e, pior, também dos anorexígenos. Toma grandes quantidades num único dia. Chega a tomar anfetamínicos em quantidade de 500mg em 24 horas. O abuso era repetitivo em períodos de freqüência variada em situações de ansiedade ou tensão. Um ano depois será internado em um hospital psiquiátrico. Pela primeira vez apresenta diminuição do juízo crítico e um quadro de ideação psicótico paranóide. Toda sua família entra em choque, como se nada tivesse acontecido antes, durante a evolução da doença de José. O antigo psiquiatra é dispensado, pois afinal alguém deveria ser responsabilizado por esta situação crítica. José sai melhor de sua primeira internação. Novas esperanças, novas decepções. Novo psiquiatra e mais, uma figura nova: o “psicanalista”. De fato, José, aos 26 anos, melhora, a psicanálise e o psicanalista lhe trazem enorme contribuição. Começa a se aceitar melhor, a ter consciência de que estava dependente das anfetaminas. 20 As relações com seu pai se modificam. O pai não perdoa o uso de drogas, porém mesmo assim o tolera e o apóia nos momentos críticos. O irmão mais velho já está casado, tendo progredido muito na vida pessoal, profissional e financeira. Mostra-se condescendente com José e tenta ajudá-lo “a sair das drogas”. Os pais de José tentam, a todo custo, esconder de todos e da família “seu vício”. A mãe de José torna-se uma mulher deprimida ao constatar os problemas do filho. Sofre com a doença deste, mas sente-se impotente para apoiar o filho de modo eficiente. O pai, ao contrário, embora sofrendo e achando inadmissível a situação, não poupa esforços financeiros “para ajudar o filho”. Por influência do pai e do seu poder econômico, José conhece uma moça, também de recursos e posse e através da grande influência de ambas as famílias, com o apoio financeiro de ambas as partes, contrai casamento. O CASAMENTO Inaugura-se um período de estabilidade na vida de José. Já não fuma mais maconha, bebe menos. Consegue arrumar trabalho, volta a estudar, participa de cursos de aperfeiçoamento profissionais. Sua esposa, mais madura e equilibrada, “põe ordem na casa”. Dois anos depois nasce o primeiro filho do casal. José faz análise, quatro sessões por semana, psicanálise ortodoxa, segundo suas próprias palavras. A esposa, melhor relacionada, o introduz num círculo de amigos. A auto-estima de José sobe, progride, melhora. Consegue alguns anos de abstinência. Recaídas ocorrem com abuso de anorexígenos. José alega insatisfação sexual e necessidade de abuso, o que ocorre ocasionalmente. Porém, a situação e a cena já são outras, com José bem mais estável e controlando melhor o uso de drogas que agora torna-se eventual e esporádico. 21 Os anos se passam. Aparentemente o tratamento psicanalítico de José vai se consolidando, todos passam a admirá-lo e o seu progresso. José, porém, é “muito frágil, muito frágil mesmo”, como veremos a seguir. Na verdade José constrói um mundo de aparências, estruturado não em sua constituição, mas sim constituído no poder econômico de ambas as famílias que o apóiam, a de seu pai e a de sua esposa. José não se mostra um homem amadurecido, sua condição de pai é parcialmente assumida. A maioria dos afazeres fica por conta da esposa, principalmente cuidar dos filhos. Parece cumprir as obrigações matrimoniais, mas não apresenta contentamento com o que faz: “a responsabilidade é demais para ele”. Sua esposa, mulher sábia, atrai os filhos, toma também para si deveres e afazeres, deixando-o o máximo à vontade, em suas “limitações”. A VIDA DE JOSÉ POR VOLTA DOS 30 ANOS Assim, José prossegue trabalhando, cumprindo suas obrigações com um mínimo de exigência. Com o tempo volta a beber nos fins de semana. Gosta muito de teatro amador. Às vezes dá mais importância a esta atividade lúdica, na qual se sai muito bem, sendo querido pelos colegas. Chega tarde em casa. Após os ensaios, por vezes, volta para casa alcoolizado. “A vida de casado é dura demais para o imaturo José”. José sonha em abandonar a Economia. Em suas fantasias imagina seguir a carreira de ator de teatro. Apesar dessa instabilidade e de seus relatos na análise acerca da insatisfação sexual, diz, que só se alivia com o uso eventual de drogas para “desinibição”, de muitos comprimidos de anfetamina, ou ainda, da mistura de aneroxígeno e álcool. A 22 esposa desconfia desse uso, e também o psicanalista que o trata. Ambos o repreendem com veemência, tentando lhe colocar o máximo de limite. Por esforço da mulher e do psicanalista, José vai reprimindo seu uso de drogas até que, em 1980. José começa sua decadência. Sua esposa entra em ascensão econômica, os filhos respeitam muito mais a mãe. Por José, segundo suas palavras, os filhos só demonstram algum carinho e pena. José sofre. É demais para si e isto acaba transbordando e ferindo seu frágil amor-próprio. Com inveja da esposa, sentindo-se diminuído, impotente e insatisfeito sexualmente, volta a se drogar com anfetamina. O problema vai se agravando e, segundo José, seu psicanalista parece começar a desanimar. O preço das consultas são aumentadas o que vai inviabilizando cada vez mais o tratamento. José torna-se agressivo e questionador. Questiona a tudo e a todos, ferido no seu amor-próprio. Diante de sua impotência, e dos limites que não consegue de forma alguma aceitar, droga-se mais outra vez e leva sua esposa ao desespero. Sua mulher já não agüenta mais. Neste momento acaba pedindo o divórcio e o expulsa de casa. José retorna eufórico à mansão de seus pais. Ilude-se, sem consciência do inferno em que estaria mergulhando. Seus pais, aparentemente por pena de José, o recebem de volta. José está derrotado, longe dos filhos, da ex-esposa, com a família já destroçada. Expressa o que sempre esteve internalizado em sua personalidade, seu profundo sentimento de desvalorização acerca de si próprio. Sofre muito, chora, deprime-se, quer voltar para a antiga família, mas não confia em si mesmo. No trabalho começa a se atrasar com freqüência. Depois começam as faltas, até que acaba por ser licenciado. 23 José é internado outra vez, embora agora numa clínica de dependência química. Fica internado nesta instituição por dois meses. Recebe alta e por influência da família e de seu pai volta a trabalhar numa multinacional com sede no Brasil, cujo tio, irmão de seu pai é importante mandatário. AS RECAÍDAS, OS GRUPOS ANÔNIMOS E NOVAS INTERNAÇÕES O irmão mais velho de José tenta ajudá-lo, passando a estreitar a convivência entre ambos. Tenta relacioná-lo com outras pessoas, inclusive do sexo feminino. José, porém, tornou-se um deprimido crônico e nada parece trazê-lo de volta à vida, senão quando usa as suas anfetaminas. Trazem efeitos colaterais nefastos, algumas vezes levando-o a produzir quadros psicóticos, forçando novas internações psiquiátricas. Numa dessas internações, José descreve o horror que toma dos hospitais psiquiátricos, mesmo sendo particulares. Conta que certa feita ficou tão intoxicado que os efeitos dos remédios que administraram obrigaram-no a “andar de gatinho” dentro da clínica. A comida davam-lhe na boca, pois José sequer tinha forças e coordenação para segurar os talheres quando da hora das refeições. Ao ter alta desta clínica e seguindo orientação médica, José conhece os grupos anônimos. Vivia então permanentemente de licença médica, amparado no poderio do tio, mandatário máximo da empresa em que trabalhava. Nos grupos anônimos José não se adapta pois “cai” com muita freqüência. Sentese muito humilhado em ter que confessar suas recaídas nas reuniões. Sente-se julgado, pois acha que seus companheiros, anônimos, no fundo imaginavam que ele não queria se ajudar e superar seu problema. Conta que a depressão era intensa, que só se drogando tornava a vida suportável, ainda que pensasse em se suicidar numa overdose. A depressão 24 que sentia, o ódio que vivenciava por si próprio, não permitia que internalizasse o programa de 12 passos, recuperação proposta pelos grupos anônimos. Achava, entretanto, que aprendeu muito nestes grupos, adquirindo alguma experiência sobre sua doença. Diz ter aprendido a falar mais de si e assumir melhor a sua doença, desinibindo-se e tornandose uma pessoa menos egocêntrica. Quanto aos filhos já não os via mais. Era apenas protegido por seus pais, por seu irmão mais velho e por seu tio paterno. José melhorava, voltava a trabalhar, para depois recair novamente, tendo que ser várias vezes hospitalizado. Agora as intoxicações e psicoses paranóides eram cada vez mais freqüentes. José quase foi preso, enfrentou riscos, quase perdeu a vida e por fim sua família já não podia pagar os hospitais particulares, por esgotamento financeiro. SINAIS DE RECUPERAÇÃO Numa destas internações já em hospitais públicos e conveniados vai parar num sanatório. José descreve como uma experiência terrível, onde é muito maltratado pelos enfermeiros. Segundo ele, talvez achassem que era rico. Conta, porém, que a experiência desta internação provocou uma revolução com um fundamento, uma promessa de modificação em sua vida. E daquela submersão nas trevas, ele pareceu ver a luz no final do túnel pela primeira vez. José teve alta um mês depois e encontrou então novo psicanalista com o qual recomeçou um novo tratamento. Voltou a trabalhar com regularidade, foi amadurecendo, continuando a mudar com o passar dos anos. Ainda aconteceram novas recaídas, porém 25 curtas e de pouca duração. José conseguiu arrumar uma nova vida, uma namorada. Voltou a ver seus filhos. Além do tratamento psicoterápico José também voltou a freqüentar os grupos anônimos. Acha agora que a sua doença não tem cura mas que no momento está sob controle. Como ele diz, é como ele consegue viver. 1 1 Nota do autor. 1 – Esclareço, que este caso clínico me foi oferecido por um colega, sabendo de meu interesse, para o trabalho para a monografia e levando em consideração a riqueza de detalhes dos dados do paciente e anotadas pelo colega. 2 – O colega em questão, psiquiatra e psicanalista, esteve segundo seu depoimento, presente várias vezes no caso ao longo do tratamento. Sendo que nos últimos anos ele conduzia a análise do caso. 26 CAPÍTULO III: AVALIAÇÃO DA ESTRUTURA PSÍQUICA DO PACIENTE A história de José é muito expressiva como modelo paradigmático de construção de um drogadicto. É indiscutível, no entanto, que as determinantes que encaminham o indivíduo para a drogadicção são particularíssimas, singulares e individualizadas. Não existe história de drogadicto que seja exatamente igual à de outro. Na história de José há muito do que genericamente se encontra na grande maioria dos drogadictos. Aspectos tais como a não internalização da figura paterna simbólica e, portanto, o não estabelecimento de limites nos seus sentimentos e conduta. A dificuldade de adotar comportamentos adultos, regredindo ou mantendo uma posição narcísica é a única que lhe permite um alívio, da não resolução do Édipo e da castração. No caso do dependente de drogas, o masoquismo ganha expressão através do uso da droga. Segundo o professor Olievenstein, em sua compreensão e experiência com drogadictos, preconiza o estágio do espelho quebrado, o que entendo por uma compreensão teórica por ele formulada em seu cotidiano no tratamento com a dependência de drogas. Tal teoria tem como subsídio o conceito de Lacan, de “estádio do espelho” de grande relevância. Este conceito, que na obra de Lacan precede o seu conceito de Édipo, nos fala da resolução imaginária da criança em conceber no imaginário a sensação corpórea de unidade. Ao contrário, se não houver resolução, creio que poderia nos levar à aplicação de outro conceito seu, ao da falta de unidade ou corpo despedaçado. Retornando às idéias de Olievenstein, quando na fase do espelho o infans não consegue o distanciamento de sua imagem, mantendo a fusão, seguido do 27 estilhaçamento do espelho. O eu torna-se um mosaico. E a unidade não é conquistada. Seu destino é marcado pela incompletude e indefinição. Não conseguindo constituir sua identidade, a busca do seu objetivo realiza-se através do estágio do excesso (Olievenstein, 1985), quanto maior o esforço menor é o êxito na conquista do seu intento. A autoridade paterna, a Lei, é vivida como exagerada ou ridícula, e portanto necessitando ser transgredida, só lhe restando como conseqüência o sentimento permanente de falta. Também e portanto a necessidade de amor excessivo e reconhecimento de todos, conceito em que Olievenstein denomina de fase do excesso. Ainda seguindo a linha de pensamento de Olievenstein, o dependente de drogas cumpre perfeitamente o papel de idiota da família. O idiota da família (Sartre, 1971-2)2 é o aliviador das tensões intrafamiliares. Ele cumpre um papel inconsciente de bode expiatório. Olievenstein mostra-nos o quanto é dialética a construção da estrutura psíquica do dependente de droga. Afirma que esta construção jamais é retilínea e fixa, ela se realiza sempre em ziguezague. É neste momento que Olievenstein distingue o usuário do toxicômano. Para ele o toxicômano constrói um “espaço de estruturação” mais definido diferentemente do usuário, cuja estrutura é menos solidificada e sem qualquer especificidade. No entanto, é preciso ressaltar que a condição do toxicômano não é irreversível, caso contrário, a terapia não teria sentido. Segundo Elizabeth Palatinik (1993) observamos que a mãe de José não exerce uma função self-protetora. Não consegue aparentemente assumir a sua identidade de mãe. 2 uma biografia escrita por Sartre do autor francês Gustave Flaubert O idiota da família (3 volumes, 19711972). 28 Porque achamos isto? Vimos que ela se divide entre o marido e o amante. Na relação com o filho faz um ato perverso de compromisso onde para a criança ter o seu amor deve guardar segredo. Não verificamos a função materna como algo acolhedor, mas sim como objeto de uma contingência de ter um filho naquele momento tão difícil de sua vida. Tecendo considerações sobre o que diz o autor Joel Birman (2000) em A Estrutura Psíquica nas Toxicomanias, consideramos que José ficou totalmente impossibilitado de internalizar um pai simbólico. Acreditamos que esta criança desenvolveu imperfeitamente o “ideal do eu”, digo isto porque não houve identificação, amor ao pai, porém sim um grande medo da figura paterna. Ou seja, provavelmente o segundo e o terceiro momento do Édipo em Lacan, nesta criança ficou prejudicado. Nem foi resolvida a metáfora paterna, nem o terceiro momento do Édipo (Lacan). Não houve identificação. Esta criança parece estar sustentando seu desejo, em ser o falo da mãe. Não transpõe a metáfora paterna, nem se identifica com o pai para poder “ter”. Estas conjecturas, são meras especulações minhas, na tentativa de enriquecer o texto. Claro, fundamentado nos conceitos de Lacan em seu O Seminário: as formações do inconsciente- livro 5 de 1957-1958. O pai que o criou até os sete anos de idade era uma personalidade fraca, irresponsável, envolvido com jogos, portanto não poderia ser um modelo para José. Já seu pai verdadeiro entra em sua vida de forma traumática através da separação conjugal da mãe, quando José tinha sete anos. Este pai é sentido por José como uma figura bastante idealizada, onipotente, muito pouco alcançável, exigente, o que em nossa opinião não só cria uma baixa auto-estima em José como também não permite a 29 internalização do pai simbólico. Assim, voltando à questão do ideal do ego, achamos que no caso de José, este fica à mercê do narcisismo, não se estabelecendo os limites (Birman, 2000). Seguindo a linha de pensamento de Claude Olievenstein achamos que José cumpre perfeitamente o papel do idiota da família (Sartre, 1971-2). José é o aliviador das tensões deste triângulo e de seu irmão à parte. Observamos que a mãe de José faz com que ele cumpra um pacto aparentemente de amor devendo guardar segredo absoluto de toda aquela situação que estava acontecendo. Existem muitas tensões pairando nesta família, inclusive as de fantasia de morte, já que marido e amante poderiam descobrir a existência um do outro e se matarem. Também achamos que este pacto entre José e sua mãe irá marcar sua personalidade para sempre. Ele será o causador de uma fusão talvez nunca completamente resolvida entre ambos. Trará para sempre a marca do compromisso com a “mentira”. Entendemos isto como um pacto perverso que irá pontuar e reaparecer várias vezes durante toda vida deste indivíduo. Quando Olievenstein nos fala do estágio do excesso (Olievenstein, 1985), faz lembrar como José mudou sua conduta quando sua mãe vai morar com seu pai biológico. Para nós, José não introjeta esta situação. Sua mãe, por ignorância, afaste-se demais dele devido às atenções e cuidados dedicados ao marido e com o filho mais velho. Inicia-se em José uma verdadeira revolta, ciúme, como demonstração de não resolução do Édipo e a castração. Para ele a autoridade paterna, a Lei, é vivida como exagerada e portanto necessitando ser transgredida. Esse desrespeito através o tempo se transforma em um 30 modelo de atuações predominantes. Também a necessidade de amor excessivo e o reconhecimento de todos são aspectos da busca no excesso, tendo como conseqüência o sentimento permanente de falta de completude. Na medida em que José busca uma identidade através do excesso, dificulta-se a evolução da fase infantil para uma fase adulta. A possibilidade de uma ruptura e a superação de um eterno infanto-juvenil (Olievenstein, 1985). Pensamos agora em Bauman (1997) ao citar a História da Sexualidade de Foucault. Acreditamos que José foi vítima de um abuso sexual não explícito, porém implícito, não só quando o irmão o incitava para uma sexualidade precoce através de revistas pornográficas, além de José já dar sinais claros de traços perversos, como quando na escola tem fantasias de possuir de forma agressiva sua professora. Por fim, os pais de José o envolveram numa situação triangular quando o levavam para seus encontros românticos. Acreditamos que possivelmente isto desenvolveu no imaginário de José o elemento perverso voyeurista da curiosidade sexual pelos pais. No início da adolescência de José e no transcurso da mesma ele apresenta o hábito da masturbação excessiva. Possui uma obsessão sexual pelas mulheres de sua família, chegando até a sonhar incestuosamente com a própria mãe. Segundo Olievenstein (1985) é fácil entender que no caso de José essas características acima referidas são desproporcionais no que se refere ao ato e à significação. Porém, neste caso, o prazer é sentido como absoluto, já que se contrapõe a uma personalidade que flutua entre a falta e o excesso. Segundo o autor, a masturbação contém a dimensão da sua unidade, possivelmente anunciando o futuro toxicômano, que passa por uma sensação de autocompletude pelo prazer da auto-suficiência sem necessitar do outro. 31 Na droga observa-se um fenômeno distinto da sensação de completude obtida na masturbação, pois vai em sentido inverso, sensação que diminui com a repetição e preenche cada vez menos a falta. Numa visão freudiana a não internalização do pai simbólico, assistimos ao fracasso do ideal do ego. Como é observado no caso de José a timidez pode ser entendida pela construção de um ideal do ego inatingível, já que José imagina o pai como um superhomem, muito poderoso, o que acarreta em José inacessibilidade e o temor (Freitas, 2001). É interessante chamar a atenção para as idéias de Bucher que afirma que, no tocante ao isolamento como aquele que observamos em José, a sensação de autosuficiência e a onipotência estão presentes (Bucher, 1992). O autor refere que o toxicômano desconhece a não existência do outro; só ele existe, como uma relação que nos lembra a onipotência do estado psicótico. É o que se verifica no ato que antecede a ingestão da droga; o modo megalômano de estar no mundo sem avaliação dos riscos e da depressão conseqüente que o drogadicto vivencia. A crença de que através do tempo seria possível atingir o gozo total é frustrante, pois o desafio ao tempo, a impaciência, demonstra como o tempo não pode ser controlado pelo desejo do homem. Não podemos deixar de fazer referência ao sentimento de culpa do qual José é vítima. Olievenstein (1985) aponta o quanto o idiota da família irá assumir, sem poder compreender, ser o responsável por tudo que acontece de errado nela. E é por sentir-se culpado que vive cercado de temores; e cercado de temores torna-se desconfiado e desejoso de punição. 32 No período de ingresso à Universidade José ainda não tinha conseguido superar a crise da adolescência. Apresenta a insegurança patológica e a timidez. É freqüente nessa fase o drogadicto buscar através do abuso de substâncias estimulantes, que têm maior poder desinibitório, a sensação de poder. O álcool também era usado por José, não tão freqüentemente, mas sempre em situações em que necessitava sentir-se livre e desinibido. Nessa época teve início a sua vida de relações homossexuais, que foi alavancada com o uso da maconha. Só assim sentia-se livre para sentir prazer e dar vazão às suas fantasias perversas. Os anorexígenos derivados de anfetamina começaram a ser usados quando as dificuldades para estudar tornaram-se maiores, pois era desatento, inquieto, e necessitava de um estímulo para poder manter-se em estudo e vencer as horas de sono, já que sempre estudava às vésperas de prova. Reproduzindo o pensamento de Inem (2001), podemos dizer que o aparecimento de substâncias tóxicas como a maconha e os anorexígenos não indica a busca primária da substância. Podemos e devemos, portanto, desmistificar o preconceito de “viciado” ou “toxicômano”, na medida em que entendemos que o produto surge e se qualifica como útil, na tentativa urgente de superar a dor de um conflito que o atinge e o faz sofrer. Gostaríamos de referendar as idéias de Bittencourt (2001), quando a autora nos chama a atenção de que a drogadicção é conseqüência, é secundária e não a determinante primária. Entendemos que ela quer nos dizer que devemos observar e acompanhar a história e a singularidade do sujeito para compreendermos o aparecimento e o desenvolvimento do sintoma, a drogadicção. Isto nos dá muito mais elementos para uma estratégia de tratamento eficaz. 33 No caso de José creio que, seguindo estas idéias, seu estado clínico oscila ora com apresentações neuróticas, psicóticas e perversas (como no desejo pelas mulheres da família e no sonho incestuoso com a própria mãe). O paciente mostra-se uma pessoa profundamente inibida, com imensa falta de iniciativa, timidez exagerada, o que nos lembra uma apresentação neurótica. Voltando ao nosso paciente José, sua história biográfica corrobora a tese de que, possivelmente, o uso do álcool e da maconha vêm em socorro a um sofrimento intolerável em momentos críticos de sua existência. José sente-se sempre isolado, não fazendo parte de qualquer grupo social. Além de em seus confrontos com o sexo oposto sentir-se sempre despreparado. Aliás, é uma marca em José: sua neurose provavelmente tem predominância de traços histéricos depressivos, caracterizando-se sempre por “eu não posso”, “eu não consigo”, “eu não sei”, “eu nunca vou chegar lá”. Pensamos que a droga funcione para José como uma “prótese fálica” (Bittencourt, 1998). Sobre outro ângulo, na relação com seu pai, José está sempre tentando contentá-lo ou se sujeitando ao desejo deste. Por isso frustra-se com freqüência, pois nunca atinge nem de longe alguma identidade definida, autêntica. A falta de autenticidade, além de provocar culpa em José, impede que ele satisfaça o pai e faça com que seja reconhecido pelo mesmo. É possível que a droga também entre por este viés de culpa (Bittencourt, 1993). A fase adulta de José acreditamos que seja um momento especialmente crítico na vida do mesmo, assim como de todo drogadicto. Ele se vê confrontado com o exercício da profissão que marca uma vida adulta, a qual ele não consegue atingir apesar do esforço tenaz. Desse confronto entre uma vida infanto-juvenil e a fase adulta, a drogadicção em 34 José vem pesada, vem sob a forma de surto intenso, com o abuso de anfetamina em altas doses, o que irá provocar várias atuações que desencadearão grande ansiedade em sua família. Este momento lembra tudo que já foi dito, a impossibilidade da resolução do Édipo e da castração. “Vemos, portanto, que a afeição dos pais pelo filho pode despertar prematuramente seu instinto sexual (isto é, antes de estarem presentes as condições somáticas da puberdade) a tal ponto que a excitação mental rompe caminho de maneira inequívoca até o aparelho genital. Se, por outro lado, forem bastante felizes em evitar isto, a sua afeição pode então cumprir a tarefa de orientar o filho em sua escolha de um objeto sexual quando ele atingir a maturidade. Sem dúvida, o meio mais simples para a criança seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas, que desde sua infância, tem amado com o que pode ser descrito como libido atenuada. Mas, com o adiamento da maturação sexual, ganhouse tempo para que a criança construa, entre outras restrições à sexualidade, a barreira contra o incesto e possa assim incorporar em si os preceitos morais que expressamente incluem de sua escolha de objeto, como parentes consangüíneos, as pessoas que amou na infância. O respeito por esta barreira é essencialmente uma exigência cultural feita pela sociedade. A sociedade precisa defender-se contra o perigo de que os interesses de que necessita para o estabelecimento de unidades sociais superiores, possam ser absorvidos pela família e, por este motivo, no caso de todos os indivíduos mas em particular dos moços adolescentes, ela busca por todos os meios possíveis afrouxar os laços deles com a família ...” (Freud, Três ensaios sobre sexualidade, vol. VII, 1901-1905, p. 232, ESB) “Em vista da importância das relações entre uma criança e seus pais na determinação, mais tarde, da escolha de um objeto sexual, pode-se facilmente entender que qualquer distúrbio destas relações produzirá os mais graves efeitos em sua vida sexual adulta. O ciúme de um amante nunca deixa de ter uma raiz infantil ou, pelo menos, um reforço infantil. Se houver brigas entre os pais ou se o casamento for infeliz, está preparada nos filhos a base para a mais grave predisposição a distúrbios de desenvolvimento sexual ou a 35 doenças neuróticas” (Freud, Três ensaios sobre sexualidade, vol. VII, 1901-1905, p. 235, ESB). É notável podermos aprender com Freud a importância do Édipo como complexo ideativo. É gratificante, vermos o sentido da vida em suas descobertas e quando entendemos que tudo se passa ao nível da realidade psíquica, o Édipo mítico e ideacional. A internalização por parte da criança, não sendo o desejo único de sua mãe, superando seu próprio desejo consegue resignificá-lo, adiando-o. Identificando-se com o pai simbólico, se transforma num ser para a vida e para o mundo. Ao significar mentalmente o Édipo, a criança dá o primeiro passo para a libertação da dependência de seus pais. E pensando nesse termo dependência, que me aproveito deste. Quando o complexo ideacional do Édipo não é superado, Freud nos anuncia o prenúncio das perturbações psíquicas. E é pensando nessa frase “dependência de seus pais” que pretensiosamente me aproprio e o correlaciono com o termo dependência química. Todo esse impasse retrata o sofrimento de um ser que no início de sua vida, na incapacidade da ruptura plena e desfusionamento com sua mãe, se vê aprisionado no infantilismo no desejo de eternizar sua infância. Penso também que José, em suas atuações, levado pela sensação de impotência, tem o nítido propósito de fazer sua família sofrer, agredindo-a. Acha que a culpa é dos pais e portanto estes devem sofrer. Sua família sofre muito, fazendo lembrar passagens e situações iguais àquelas como do “Idiota da Família” e do “Narcótico da Família” (Olievenstein, 1985). Com todos os percalços consegue se casar. Neste período podemos considerar que entre o excesso e a falta, fatores tais quais a incompletude, principalmente se entendermos José como uma personalidade com traços histéricos e a droga de sua prótese 36 fálica. Provavelmente, todas as carências de José estão sendo atendidas. Seu “ego” está apoiado no seu excessivo narcisismo, incapaz de lidar com a falta e sempre na busca de reconhecimento. Eis que sua família, seu trabalho e principalmente sua esposa vão atender em parte sua necessidade de reconhecimento. Voltando a José e considerando as idéias de Bittencourt (1993), o drogadicto busca incessantemente o reconhecimento da relação imaginária com o outro e talvez a família e o casamento tranqüilizassem José, lhe trazendo falso reconhecimento e um reforço ao seu narcisismo. No entanto, José é queixoso, sente-se vitimizado, não organiza seu desejo. Sua preocupação em ser olhado, admirado, estará sendo relativamente atendida. Por isto, este período de sua vida está mais tranqüilo, além de José estar também superapoiado num tratamento de orientação psicanalítica. No entanto, José já apresenta o declínio da figura paterna no seio da família, e assim a fragmentação da família, como é freqüente acontecer nos familiares de drogadictos, está a caminho. Aqui cabe uma observação generalizadora, pois não só José que é excessivo em suas buscas e falta, mas também toda uma sociedade da qual faz parte. Quando dizemos isto falamos no excesso das aparências, no excesso do trabalho, e principalmente no excesso das relações com o tempo, e que tentamos velozmente, viver como se fosse possível enganá-lo ou atender a todas as necessidades que a sociedade solicita aos seus cidadãos na situação sociopolítico-econômica dos dias de hoje. No excesso da indiferença das reações afetivas, e com relação ao seu oposto, o exagero da busca de si no exercício 37 do outro, fomento da dependência afetiva. Concluindo este trecho, acreditamos que a responsabilidade é demais para José. Tudo é excessivo, seu narcisismo também. Na fase dos trinta anos de vida, José desestabiliza-se outra vez. Seu narcisismo está ferido novamente. Não consegue exercer a função paterna. “Os pais na maioria dos casos, são homens passivos, que se deixam dominar e mantêm grande distância com relação às esposas. Cedem completamente suas prerrogativas como pais, em troca de que se lhes permita a liberdade de submergirem de todo o seu trabalho. As mães são mulheres exigentes e controladoras, que necessitam e mantêm fortes relações simbióticas com seus filhos. Não fazem objeção ao distanciamento do marido, desde que este lhes permita um controle total sobre os filhos. Este truque, inconsciente em geral, aflora pela primeira vez quando se deve tomar a decisão de enviar o filho para tratamento. O pai deixará a decisão nas mãos da mãe” (Masterson, 1975 apud Freitas, 2002). Com inveja da esposa, sente-se diminuído e novamente, marcado e pontuado pela falta. Tudo o que é seu, inclusive sua sexualidade, estaria aquém. E assim diminuído, virá novamente o uso das anfetaminas. José retorna para a casa de seus pais e isto é sentido como um fracasso. Mais uma vez a não resolução do Édipo e da castração devolve-lhe a fusão com seus pais e observamos a impotência fundamental, a dependência emocional que antecede a dependência química. “...o toxicômano tem como mnemonização privilegiada, esta pré-instantaneidade, este acme da emergência no qual se dá a ruptura; e que a fase seguinte, obrigatória, é o movimento no qual deveria se situar o encontro constrangedor com as leis, e a organização da relação com o outro. Por conseqüência, o toxicômano vai tentar, no 38 mesmo tempo consciente e inconscientemente, reviver, reassumir a posição de criança pequena, anular a ruptura” (Olievenstein, 1985). “... e que as pessoas costumam chamar de egoísmo ou vício – é a extrema dificuldade para constituir um eu adulto. Dificuldade esta que vem marcando a existência do toxicômano desde sua infância” (Olievenstein, 1985). Mesmo sob a proteção do lar paterno, mas dependente, José recai repetidas vezes. Este momento é a marca crítica de uma situação que José já repetiu várias vezes o mesmo ato, a drogadicção. Podemos entender que nesta situação crítica a drogadicção confundese com tentativas de suicídio. “Trata-se mesmo de um paraíso, do paraíso perdido. Porém, como no caso da maçã de Adão e Eva, é preciso pagar o preço: preço da inexorabilidade dos efeitos da droga, que acaba e do tempo que passa. Como Adão e Eva, o indivíduo sabe que deverá pagar com a própria morte, pois ela não se tornou Deus. E podemos dizer agora que a “dimensão” da morte, ou melhor, da consciência da morte, ocupa em sua vida, principalmente na adolescência, um espaço desproporcional. Tanto assim que muitas vezes, passada a angústia da primeira atuação suicida e a primeira transgressão para o outro lado do espelho, por intermédio de uma espécie de jogo-suicida, o indivíduo vai repetir com um verdadeiro luxo de progressão suas tentativas de suicídio, até encontrar a droga. E quando esta não fizer mais efeito, ele vai então com freqüência buscar uma saída na morte” (Olievenstein, 1985). Nesta época, creio que José pelo tempo já decorrido com seu envelhecimento biológico, percebe cada vez mais o tamanho de sua incompletude. Acreditamos que cada vez mais o narcisismo do próprio sujeito não aceita uma insuportável repetição, como diz Olievenstein, procurando uma saída na morte. 39 Outra questão rica e interessante desta época são os relatos de José sobre os Alcoólicos Anônimos. José descreve que pela primeira vez teve que se expor. É neste momento crítico de sua vida que ele sentindo-se acuado enfrenta seu narcisismo, tenta sentir-se igual aos demais companheiros de infortúnio, descreve que tornou-se menos egoísta, passou a querer dividir algo com outro, mesmo sendo a dor. Embora tivesse reticências aos Alcoólicos Anônimos pois não se achasse completamente aceito, visto que sentia enorme dificuldade e humilhação para descrever na cabeceira de mesa do grupo suas repetidas recaídas. Creio que esse movimento acrescentou a José um pouco da sensação de que nem tudo estava perdido, de que nem tudo lhe faltava e que não deveria ser tão importante o reconhecimento e admiração do outro. Porém o esforço de sobrevivência, na tentativa de uma saída para a maturidade, às vezes fracassa. Os grupos anônimos, segundo José, lhe devolveram num momento tão crítico alguma estabilidade. Isto porque provavelmente, tenha saído de estado de fusionamento e de sua tenaz e inconsciente negação da vontade de superar o infantilismo, tornando-se adulto. Na sensação de chegar ao fundo do poço, quase numa continuidade do momento anterior descrito, José é internado num sanatório conveniado. José experimenta então uma experiência terrível. Conta que nunca sentiu-se tão humilhado em sua vida. José diz que aquela experiência provocou-lhe um sentimento de que a dor de não enfrentar a vida seria a mesma que lhe devolveria uma nova chance de viver. Interpretamos seus dizeres como uma séria tentativa de ruptura com a fusão, com a dependência de sua família, da busca sincera de tornar-se um ser mais adulto. No entanto ainda houve pequenas recaídas 40 curtas e pouca duração. Acredito que José está fazendo como ele diz: “é como ele consegue viver”. Entendemos que José vive dramaticamente a condição de Hamlet. Ser ou não ser, eis a questão? Ao nosso ver, José é a história de um neurótico, histérico, depressivo que resvala a psicose3, compreendemos que o conflito situa-se entre as vicissitudes da não resolução do Édipo e as exigências de ser autêntico. Condenado na culpa de não ser, sentindo-se obrigado a espiar suas penas, e não entendendo a limitação da condição humana, José vive a contradição interna que paralisa sua existência, desejando o objeto e com medo do desejo. Reprime o ódio e aparenta bondade, quer viver e tem medo de viver. Teme a morte e dirige-se para ela. Procura a liberdade e se encaminha para a prisão. A terapia dos drogadictos como no caso de José que vivem debaixo de conflitos tão contraditórios só pode ser eficaz na medida em que o dependente da droga aceite e conviva com a limitação e a indefinição. É necessário que o drogadicto, convivendo, aceitando e compreendendo suas impossibilidades possa, na medida do “ser e não ser”, tornar possível algumas realizações em sua condição existencial. CONCLUSÕES Como já havíamos dito anteriormente, analisado o caso de José, partindo da idéia básica de um Édipo não resolvido e acompanhando sua trajetória até o encontro com a 3 A citação em que José resvala a psicose diz respeito aos momentos de intoxicação por abuso de anfetaminas. A psicose anfetamínica, uma das mais tóxicas, capaz de produzir um surto paranóide, a princípio muito semelhante e indistinguível, das psicoses paranóides esquizofrênicas. Faz-se necessário acrescentar que em personalidades com latência, surtos esquizofrênicos são desencadeados. As complicações clínicas podem ser graves, caracterizadas por sintomas como a hipertermia, convulsões, desidratação, e em alguns casos, morte. 41 droga, supomos um diagnóstico histérico depressivo. E a questão tão conflitiva de ser ou não ser ou ainda “de não ser mesmo” ou “ser muito pouco”, a culpa daí resultante é o eterno reinvestir no prazer e alívio da droga. Tragicamente como Fausto, épico poema de um dos maiores poetas da humanidade Goethe4, metaforizando, com a droga tudo irá mudar, nada poderá ser como antes. José é apenas o exemplo. Poderia ter sido um desapercebido ilimitado na sua exacerbada timidez, porém não se suportando, encontra “algo”. Transforma-se num individuo à margem. Ele já não é mais José como era conhecido, mas sim como tantos são qualificados, ele é um “toxicômano”. Encerrando, assim sendo questionamos: que tratamento seria o mais indicado? O tratamento psicoterápico de orientação psicanalítica para a gênese da patologia? O tratamento psiquiátrico específico e adequado a cada momento terapêutico? Como proceder quando este sujeito entra e sai em crises sucessivas que expressam tentativas de suicídio semelhantes a uma “roleta russa”? Quando a familia já não o apóia mais? Quando não existem mais recursos financeiros? Enfim quando pensamos que todos os recursos já estão esgotados, o que fazer? Abrimos estas questões na expectativa que seja discutido um método de tratamento que seja, ao mesmo tempo, específico para a gênese, global para cada momento que o drogadicto está vivendo. E unitário na especificidade do singular de cada sujeito. 4 Em 1808, Goethe entrega ao público sua obra-prima. O poema Fausto, cuja segunda parte só será publicada em 1832, ano da morte do poeta. O Fausto apresenta entre outros temas, o desejo do ser humano de transcender os limites do poder e do conhecimento. Baseia-se na lenda dos séculos XV e XVI sobre um misterioso Dr. Fausto, que, depois de envolver-se em trabalhos de magia negra vendeu a alma ao diabo, a fim de obter os prazeres terrenos e poder ilimitado. 42 REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. BERGERET, J. (1982). Toxicomania e Personalidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. __________. (1984) A Personalidade do Toxicômano. In: BERGERET, J. & LEBLANC, J. Editores. 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