instituto de psiquiatria – ipub - Dr. Cicero A. Monteiro de Souza

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INSTITUTO DE PSIQUIATRIA – IPUB
Centro de Ciências da Saúde
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
UM ESTUDO SOBRE A PERSONALIDADE DE UM DROGADICTO
CÍCERO ANTONIO MONTEIRO DE SOUZA
Monografia apresentada ao Instituto de Psiquiatria – IPUB/UFRJ – como requisito
parcial para aprovação no Curso de Especialização para a Rede de Centros de
Atenção Psicossocial no Atendimento de Dependentes de álcool e outras drogas
(CAPS ad)
Orientadora: DRA. SALETTE MARIA DE BARROS FERREIRA
Doutora em Ciências da Saúde
Rio de Janeiro
Julho 2003
ii
INSTITUTO DE PSIQUIATRIA – IPUB
Centro de Ciências da Saúde
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
UM ESTUDO SOBRE A PERSONALIDADE DE UM DROGADICTO
CÍCERO ANTONIO MONTEIRO DE SOUZA
Aprovada por:
___________________________________________________________
Orientadora: DRA. SALETTE MARIA DE BARROS FERREIRA
Doutora em Ciências da Saúde
___________________________________________________________
iii
RESUMO
O trabalho procura demonstrar a correlação entre a psicobiografia de um
drogadicto com a gênese da estrutura psíquica do sujeito e adicionada ao encontro da
droga. As idéias do trabalho / estudo são apoiadas na concepção do Édipo segundo Freud,
Lacan e Olievenstein.
O trabalho / estudo levanta outras questões como o estágio do espelho, o estado
do espelho quebrado, segundo Olievenstein, e referindo também a figura do “idiota” da
família. A seguir são apresentadas a psicobiografia e a história de vida do paciente;
finalmente, o autor conclui com considerações sobre a estrutura psíquica do drogadicto e
interroga a respeito do tratamento psicoterápico e psiquiátrico da drogadicção apoiado no
referencial teórico dos autores citados.
iv
SUMÁRIO
INTRODUÇAO
1
OBJETIVO
3
JUSTIFICATIVA
3
METODOLOGIA
4
CAPÍTULO I: O ÉDIPO E A PSICOPATOLOGIA DA TOXICOMANIA
5
CAPÍTULO II: A HISTÓRIA DE JOSÉ – ANATOMIA DE UM DRAMA
12
INTRODUÇÃO
SUA INFÂNCIA
A ADOLESCÊNCIA
A UNIVERSIDADE, O VESTIBULAR, O ÁLCOOL E A MACONHA
A VIDA ADULTA
O CASAMENTO
A VIDA DE JOSÉ POR VOLTA DOS 30 ANOS
AS RECAÍDAS, OS GRUPOS ANÔNIMOS E NOVAS INTERNAÇÕES
SINAIS DE RECUPERAÇÃO
12
12
15
17
19
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21
23
24
CAPÍTULO III: AVALIAÇÃO DA ESTRUTURA PSÍQUICA DO PACIENTE
26
CONCLUSÕES
40
REFERÊNCIAS
42
INTRODUÇAO
Utilizamos a história de um drogadicto, José, para compreender o papel da droga
na existência dele como sintoma na tentativa de superar conflitos antagônicos que se
traduzem na sensação de impotência em alguns momentos insuportáveis. As três
estruturas que são encontradas – perversão, neurose e psicose – não constituem frações
diversas de personalidade como pretendem vários autores e ao nosso ver, inexiste uma
quarta estrutura.
Questionamos essas afirmações, e nos perguntamos se, o surgimento em cada
momento da vida de um drogadicto de diferentes estruturas, não seria a revelação de
instâncias preexistentes e recalcadas na dependência do encontro com a droga.
O encontro com a droga altera o psiquismo inaugurando novas formas de
organização dos sistemas em função da influência das características químicas da
substância em interação com o sistema nervoso e aparenta como se fosse uma nova
estrutura psicopatológica. A estrutura de personalidade básica é alterada em função da
soma da droga.
O modo de estar no mundo do drogadicto jamais é fixo e imutável: ele nunca é,
ele está sempre sendo. O germe de sua condição é a não perfeita resolução do Édipo que
conduz necessariamente ao não respeito à Lei, à sua transgressão. Devemos a Jacques
Lacan o deciframento da grande importância do mito edípico na obra de Freud. O autor e
sua grande contribuição nos trará o conceito de metáfora paterna e o Édipo em três
momentos. Em nosso entendimento, Lacan explicita que o conceito essencial reside no
momento básico em que a criança internaliza que ela não é o falo de sua mãe, que existe
2
“um outro”, nome do pai, portanto o desejo da criança não pode ser atendido. E é nessa
superação da falta, onde a metáfora paterna estrutura o psiquismo da criança, que faz com
que ela simbolize a perda, tendo como momento seguinte o Édipo enquanto identificação
paterna já que a criança apreende que sendo o pai o falo identificando-se poderá vir a têlo, preenchimento de sua falta. No terceiro momento do Édipo “é o ter ao invés de ser” o
menino se identifica com o pai para também poder vir a ser o falo, a menina amará o pai
para também ter acesso ao preenchimento de sua falta. O que entendo de primordial na
resolução do Édipo é que Lacan explicita Freud mostrando que na resolução do conflito
reside a possibilidade do sujeito de desligamento dos pais, da superação das fantasias
incestuosas, organização do eu adulto e inserção no mundo e na cultura.
Já o que ocorre no drogadicto seja qual for a sua estrutura psicopatológica prévia,
fracassa na resolução do conflito edípico, justamente porque não significa, não simboliza
a falta, seu Édipo não resolvido está presente o tempo todo. Nesse aprisionamento com o
desejo eterno de sua mãe. Irá buscar na fantasia, o ledo engano desse prazer desprazer.
Não superando o Édipo será presa fácil se no encontro com a droga.
3
OBJETIVO
Correlacionar e analisar a biografia de um drogadicto com um estudo da gênese
de sua estrutura psíquica, demonstrando que as novas apresentações psicopatológicas são
conseqüências de uma das exigências específicas das drogas na interação com a estrutura
preexistente. Esta hipótese nos leva a pensar na importância do tratamento psicanalítico
para a estrutura preexistente bem como a utilização de esquema de tratamento
psiquiátrico adequado a cada indivíduo e a cada momento do processo em
desenvolvimento respeitando cada apresentação. No segmento do tratamento psiquiátrico
não pode haver modelos fixos e cristalizados. Há que prevalecer uma visão dialética da
situação.
JUSTIFICATIVA
O nosso propósito é contribuir para a discussão e o esclarecimento da importante
questão do drama do drogadicto e através desse entendimento propor um tratamento mais
adequado e eficaz.
Também acreditamos que ao retratar fidedignamente e concretamente a história e
o drama de um drogadicto e através desse entendimento propor um tratamento mais
adequado e eficaz.
Também acreditamos que ao retratar fidedignamente e concretamente a história e
o drama de um drogadicto, estamos também contribuindo para reavaliar conceitos e
pressupostos teóricos de autores que vêm exaustivamente há muito estudando a questão.
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METODOLOGIA
Com o nosso proceder qualitativo quisemos articular o caso clínico à concepção
abstrata e teórica no encaminhamento da clarificação do tema.
A bibliografia utilizada em nosso trabalho para o esclarecimento do tema
naturalmente foi condicionada pela metodologia por nós adotada no caso em questão, a
psicanálise. A psicobiografia com a história de vida de José apóia-se no referencial
psicanalítico de diversos autores com ênfase em Freud, Lacan e Olievenstein.
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CAPÍTULO I: O
TOXICOMANIA
ÉDIPO
E
A
PSICOPATOLOGIA
DA
Para entendimento da estrutura psíquica do drogadicto utilizamos as concepções
psicanalíticas como fundamento de nossa argumentação. Assim, acreditamos que o Édipo
constitui o centro de gravitação de nossa maneira de compreender a questão da
drogadição.
Partimos da visão freudiana, que através do mito da tragédia grega, o Édipo,
metaforiza a relação triangular pai – mãe – filho. Nessa fase, a criança estabelece grande
hostilidade para com o pai e ternura para com a mãe ou o inverso, no caso do Édipo
negativo. É bom salientar que Freud entende o complexo nuclear na interioridade da
criança (Freud, ESB, v. XI apud Garcia Roza, 1988).
Entendemos que o momento do Édipo tanto para Freud quanto para Lacan é
demarcado pela entrada do pai simbólico na relação triangular. Para Freud naquele
momento acontece uma clivagem da subjetividade em dois grandes sistemas,
inconsciente X pré-consciente. Para Lacan, naquele instante constitui-se a passagem do
imaginário para o simbólico que inaugura a subjetividade (Garcia Roza, 1988).
Lacan denominava esse momento como o Nome do Pai ou metáfora paterna no
qual a interdição através da Lei era realizada.
Em termos antropológicos, o momento do Édipo é marcado pela passagem do
animal natural ao animal humano. Podem-se assim distinguir dois interditos: um do
domínio dos costumes, subordinados à antropologia, e o outro do domínio do desejo
subordinado à psicanálise.
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Essa diferença se faz na antropologia pela interdição do incesto sendo esta uma
regra das alianças e trocas no interior do grupo social. Na Psicanálise a interdição diz
respeito ao desejo (Lévi-Strauss apud Garcia Roza).
Freud concebia o Édipo de dois modos distintos. O primeiro como estrutura
centrada na criança, expressão de um desejo infantil (Freud, S. Cinco lições de
Psicanálise, v. XI, ESB).
Ainda o termo complexo de Édipo não é usado. Porém, o essencial é distinguir a
concepção inicial de Freud sobre o Édipo, da concepção do Édipo como algo externo ao
sujeito que o determina. Na concepção inicial é a estrutura ideativa que sinaliza a conduta
da criança na escolha do objeto, tratando-se de um complexo ideativo.
Essa diferença é fundamental, pois é o entendimento do Édipo complexo e a outra
como Édipo como lei organizadora (Garcia Roza, 1988).
Segundo Jacques Lacan, o complexo de Édipo se constitui em três momentos: o
primeiro é o da identificação da criança como falo que se constitui no desejo da mãe.
Nesse momento toda a problemática da criança é ser ou não ser o falo para que possa ser
capaz ou não de satisfazer o desejo da mãe.
O segundo momento coincide com a lei da castração; é também a instantaneidade
que vem juntar o simbólico ao imaginário, o pai efetuando um corte, interpondo mãe,
filho e interdito. Essa fase ou o segundo momento é conhecido como já foi dito
anteriormente como o Nome do Pai. Num terceiro momento verifica-se a aproximação do
pai durante a qual os meninos buscam a identificação paterna e as meninas se aproximam
do pai como objeto do amor. O menino, ao identificar-se com o pai, irá à procura do falo
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para ter a sensação do poder ter. A menina, através do amor ao pai, irá aprender que sabe
não ter (Souza, 1999).
“...Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do Édipo,
coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar, ele mesmo, de
dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto. Essa privação,
o sujeito infantil a assume ou não, aceita ou recusa. Esse ponto é essencial. Vocês o
encontrarão em todas as encruzilhadas, a cada vez que sua experiência os levar a um
certo ponto que agora tentamos definir como nodal no Édipo” (LACAN, Jacques. O
Seminário, livro V, pág 191).
Lacan distingue na evolução do infans, entre os 6 e os 18 meses, o estágio do
espelho como formador da função do eu (Garcia Roza, 1988). Inicialmente o fenômeno
constitui a formação de uma imagem especular onde e quando o infans, ao ver sua
imagem projetada, distingue-se dela e tem a sensação de si. Inaugura a sensação corpórea
não enquanto física, porém a sensação corpórea do imaginário. Para Lacan, esse tipo de
relação caracteriza o imaginário, que ele denomina de dual. Aqui se dá a demarcação
entre o exterior e o interior do sujeito.
“O “estádio do espelho” ordena-se essencialmente a partir de uma experiência de
identificação fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da imagem de seu
próprio corpo. A identificação primordial da criança com esta imagem irá promover a
estruturação do “Eu”, terminando com essa vivência psíquica singular que Lacan designa
como fantasma do corpo esfacelado. De fato, antes do estádio do espelho, a criança não
experimenta inicialmente seu corpo como uma totalidade unificada, mas como alguma
coisa dispersa. Esta experiência fantasmática do corpo esfacelado, cujos vestígios nos
aparecem tanto na configuração de alguns sonhos, como nos processos de destruição
psicótica, é realizada na dialética do espelho, favorecendo a unidade do corpo próprio...”
(Dor, 1989, p. 79)
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Lacan concebe três registros do psiquismo: o imaginário, o real e o simbólico. O
imaginário é a percepção primeva, aprensão não simbolizada, simplesmente vivenciada.
O real é o impalpável não simbolizado, mas tão-somente entendido através o simbólico.
O real corresponde em Freud às pulsões.
O simbólico é o registro que torna subordinados os demais, instaurado pela figura
do pai como representante da Lei. A aquisição do simbólico significa a passagem do
homem como animal natural para o ser humano, em sua posição como ser social e
possuidor da linguagem. É a linguagem o entendimento que o faz transpor a condição de
ser natural para o de ser humano (Garcia Roza, 1988).
Olievenstein utiliza-se das concepções de Lacan quando este descreve a fase do
espelho. Fundamenta aí a gênese da estrutura psicopatológica do drogadicto, quando o
infans não consegue se distanciar da própria imagem refletida para em seguida tê-la
estilhaçada (Olievenstein, 1985).
Quando então vive a imagem estilhaçada, despedaçando-se, perde a sensação de
unidade, originando a sensação de falta e incompletude. Essas vivências o encaminham
para o que Olievenstein denomina o estágio de excesso.
Apesar de reconhecermos a imensa relevância da contribuição de Olievenstein na
compreensão da drogadição não podemos admitir uma estrutura psicopatológica
específica preexistente.
Sobre a Psicopatologia dos Toxicômanos, Richard Bucher nos relata duas
tendências dos estudiosos do assunto para o tema em questão. Uma delas diz respeito a
um modelo único de personalidade, em que haveria um só tipo de toxicômano, uma
estrutura preexistente e definida. Na segunda hipótese, ao contrário, esta possui a
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concepção de diversas estruturas psicopatológicas se opondo ao conceito de uma única
representação. A primeira tendência é entendida como reducionista.
“Cada sujeito tem sua maneira de reagir em conformidade com o seu caráter, sua
história de vida, suas motivações, desejos e dificuldades” (Bucher, 1992, p.211).
Olievenstein comenta, segundo suas observações, o sujeito: “Possuidor de uma
construção específica de sua personalidade, do seu encontro pessoal com a droga em um
determinado momento sócio-cultural” (ibidem, pp. 211-212).
Quando menciono estas duas citações, utilizo-me delas: a primeira em reforço à
singularidade do sujeito e sua estrutura psicopatológica prévia, aproveitando sinalizo a
importância de que isto deve ser bem entendido para a escolha do método terapêutico,
para que o tratamento tenha êxito; a segunda citação que corresponde à Olievenstein,
escolho porque discordo que haja especificidade de personalidade toxicômano que
entendo que este autor sugere. No entanto, sabemos que é grande sua relevância no
tratamento com drogadictos por sua renomada experiência, e concordo que a drogadição
depende, de que se encontre a droga, de que ela é subordinada ao momento sóciocultural, e que depois deste encontro estrutura prévia mais a droga surge uma nova
apresentação psicopatológica subordinada à drogadição.
Considerando as duas tendências entendemos que ambas apontam para aspectos
que sem dúvida estão presentes de forma marcante no drogadicto. No entanto,
entendemos, como já foi afirmado anteriormente, que supomos a segunda tendência mais
próxima para nossa forma de entendimento. Bergeret, considerado um dos autores mais
estudiosos do assunto através de suas idéias nos fala da importância de não reduzirmos a
personalidade do drogadicto a uma categoria única.
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Bergeret, segundo nossa interpretação, coloca a questão da seguinte maneira
aventando três tipos de personalidades: a estrutura neurótica, a psicótica e a depressiva.
Com ênfase na última categoria, esta estatisticamente seria mais importante.
Descreve essa personalidade como pessoa imatura com permanente fundo depressivo. O
autor propõe também três formas: “síntese sobre a reflexão estruturológica” (Bergeret
apud Bucher).
A primeira forma é que não existiria estrutura psíquica prévia, cristalizada, que
daria origem a uma formação psicopatológica específica. “Qualquer estrutura mental
pode dar origem a comportamento de dependência, sejam estes manifestos ou latentes”
(op. cit., p. 212). Na segunda forma a estrutura prévia jamais desaparece, pode sim ser
modificada no seu funcionamento secundário. A terceira forma, a busca do produto, tenta
anestesiar, criar formas de organização defensivas contra as vicissitudes, limitações da
estrutura prévia existente como marca fundamental na forma do sujeito.
Gostaríamos de ressaltar as idéias citadas, entendendo que não devemos ser
reducionistas, maniqueístas nos apoiando apenas no diagnóstico dependência química,
por tudo que já foi dito antes. Não podemos deixar de entender diante da drogadição que
temos dois grandes problemas, se não tratarmos a estrutura prévia, e para mim aí reside
de fundamental a compreensão psicanalítica e a psicoterapia, não teremos a solução mais
consistente do problema.
Ao meu ver um segundo problema se apresenta e ele é essencialmente, em nosso
ponto de vista, uma ação específica da psiquiatria em cada momento crítico do
drogadicto. Instaurado o uso do tóxico, há de se lidar com a intoxicação, compulsão,
overdoses, acting-outs, a todo o momento. Isto é necessário para que o paciente possa ser
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mantido em psicoterapia. Nessas ocasiões o psicoterapeuta se vê afastado
temporariamente do paciente.
“Não há toxicômano, mas sim, toxicomania” (Bucher, 1992).
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CAPÍTULO II: A HISTÓRIA DE JOSÉ – ANATOMIA DE UM
DRAMA
INTRODUÇÃO
Atualmente, José é um homem de 45 anos, e mantém-se em abstinência do uso de
drogas. Trata-se de um profissional liberal, economista, contratado por uma grande
multinacional. É divorciado, possui dois filhos homens, mora sozinho e é mais um
cidadão comum, perdido na grande cidade. Possui poucas relações familiares, tem uma
namorada, possui laços ainda que afrouxados com os filhos, os pais e um irmão mais
velho.
José teve uma história difícil, com abuso de drogas, tendo uma passagem trágica
como veremos a seguir.
SUA INFÂNCIA
José nasceu de uma contingência não muito comum, tendo conhecido
primeiramente o primeiro marido de sua mãe como seu pai, até os sete anos de idade. Na
realidade, José seria filho do amante de sua mãe, que anos mais tarde viria a assumir
efetivamente sua paternidade. Sua mãe foi casada com aquele que desempenhou o papel
de seu pai até os seus sete anos de idade. Do primeiro casamento de sua mãe nasceu seu
irmão mais velho, hoje com 54 anos de idade.
José tinha um “grande amor por sua mãe”. O marido de sua mãe que
desempenhou o papel de seu pai não teve para ele grande expressão. José o tinha como
pai sem ter conhecimento do pai verdadeiro, o então amante de sua mãe. Seu primeiro pai
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era um homem instável envolvido com o jogo e com corridas de cavalos. Era um
apostador, perdia grandes quantias no jogo. A casa era sustentada por sua mãe, através de
seu amante, pai verdadeiro de José, homem abastado e de posses. Na família do marido
de sua mãe já havia antecedentes de criminalidade, de jogadores e até de transgressores
da lei. O pai de José tinha um irmão que havia sido preso por furto e seu avô paterno
havia sido um apostador, tendo perdido tudo no jogo e deixado a família em grandes
dificuldades.
José tinha bom relacionamento com seu irmão mais velho, que parecia ter
conhecimento da verdadeira história da sua mãe. O pai de José, o primeiro, era
irresponsável, discutia muito com a esposa, embora fosse carinhoso com José, porém
quase sempre estava ausente de casa.
Aos cinco anos José conheceu seu verdadeiro pai. Inicialmente foi apresentado a
este como se fosse um amigo da família. Ficou impressionado com as posses desse
homem, rico e abastado. José, no entanto, não entendia por que a mãe lhe pedia segredo a
respeito desse homem, tido como amigo da família. Assim, José, muito apaixonado por
sua mãe, aceitou um pacto com esta: “Aquele amigo jamais seria revelado”. Era proibido
falar sobre a existência dele.
Passaram a sair juntos, a mãe, o amigo e José. Este logo foi tomado de grande
afeição por aquela pessoa que estava sempre lhe presenteando. José ficava muito
impressionado com o poder que aquele homem tinha e foi desenvolvendo na sua afeição
o desejo de que aquele fosse seu verdadeiro pai, embora se sentisse muito culpado por
mentir ao primeiro pai sobre a existência daquele amigo de sua mãe.
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José, no entanto, adorava sua mãe e faria qualquer coisa por ela. Assim, ele foi se
acostumando ao amigo, que já tinha como padrinho, aspirando na verdade que fosse
aquele seu verdadeiro pai. Seus encontros eram cada vez mais freqüentes. José, às vezes,
estranhava o fato de estarem presentes, nestes encontros, só ele, a mãe e o padrinho, e
também de seu irmão mais velho estar sempre excluído de tais programas.
O tempo foi passando, as brigas de sua mãe com seu pai tornaram-se cada vez
mais freqüentes. O pai de José acusava sua mãe de infiel, chegando a agredí-la
fisicamente. José pensava sempre que escondia a verdade de seu pai. Sentia-se culpado,
pois guardava um segredo; e afinal, preferia o padrinho ao pai. Ao mesmo tempo, o
drama dois pais evoluía. As brigas com agressão física tornavam-se cada vez mais
freqüentes.
Aos sete anos, sua mãe conseguiu separar-se do seu primeiro pai, com o
consentimento do segundo, que resolveu assumir toda a família. José assim inaugurou
uma nova vida indo morar com a mãe, o irmão mais velho e o verdadeiro pai, até então
amante de sua mãe.
O choque foi muito grande. O ambiente e as relações interpessoais mudaram
muito. José, sempre muito impressionado com o poderio econômico do novo pai,
acabaria mais tarde sabendo por sua mãe que o verdadeiro pai era aquele homem que o
impressionava tanto. Embora José sentisse felicidade com a novidade, tinha muita
vergonha do pai verdadeiro. Em relação ao “falso” pai anterior, ficaria uma cicatriz da
qual nunca mais se liberaria, a culpa e a mentira intermediando a relação.
O irmão mais velho também sentiu muito a diferença da mudança. Tornou-se
muito mais sedutor com o pequeno irmão José, mostrando a este revistas de luxúria e
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revelando o sexo através das fotografias pornográficas. Estabeleceu-se uma nova relação
de intimidade que nunca havia antes com o irmão mais novo. O mais dramático, no
entanto, na vida de José, naquele momento, foi a mudança de comportamento de sua mãe
para com ele. José sempre lembrava de que tinha um pacto com sua mãe, o pacto do
segredo. Agora percebia que o centro das atenções de sua mãe era seu pai. José sentiu-se
traído, passou a desenvolver sentimentos de ciúme e ressentimentos contra sua mãe.
Novas descobertas, nova casa. Muito rico, o novo pai era carinhoso, porém de
personalidade muito forte e muito exigente, embora sempre afetuoso com o filho e
atencioso com o irmão de José.
A família do novo pai era portentosa e José sentia-se um intruso nela, muito
inferiorizado e com a sensação de não fazer parte daquele mundo. Era um sacrifício para
José conviver com os novos primos. Tudo passou a seu um sacrifício. Na escola não
prestava atenção em nada. Estranhamente para ele próprio, José passou a desejar a
professora, tendo fantasias de amarrá-la e possuí-la à força. A desarrumação evoluía na
vida de José que deu para comer muito e passou a engordar. Mostrava-se passivo e fugia
das brigas no colégio, vivenciando o sentimento de ser covarde. O pai era tido como um
Deus para ele e José não tinha coragem de conversar com ele, a quem temia e respeitava
com extremo exagero.
A ADOLESCÊNCIA
A vida de José prossegue. Seu pai compra uma mansão afastada da cidade. José se
isola do convívio de outros meninos e meninas, a não ser na escola que freqüentava.
Começa a desenvolver um hábito, a masturbação excessiva, e uma baixa auto-estima, e
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curiosamente uma obsessão sexual pelas mulheres de sua família, suas primas, suas tias
etc. Novamente o sentimento de culpa retorna à mente de José: como podia ele sonhar
com a própria mãe num desejo incestuoso? José vai parar na psiquiatria pela primeira vez
aos 16 anos sentindo-se muito culpado e deprimido pelo sonho que havia tido. José é
atendido e passa a tomar tranqüilizantes, tendo este médico o orientado e atendido a seus
pais. Um novo inimigo surge na vida de José: a solidão dentro daquela nova vida, a
mansão, o pai, a mãe e o irmão.
Cada vez mais José estava aprendendo a ser só. Distanciava-se de sua mãe por seu
ressentimento e também frente à incompreensão desta, que ignorava o drama que sentia.
O irmão, bem mais velho que José, sente-se excluído da família e começa a procurar sua
própria vida. Este irmão, segundo José, teria sido mais assistido pela mãe, sem tantas
interferências do padrasto. Possui mais liberdade e começa a construir a própria vida. Ao
contrário, José estava cada vez mais isolado, inseguro, tímido e introspectivo, cheio de
contradições e segredos; não se sente bem em lugar nenhum, a não ser na escola quando
se aproxima de outros adolescentes.
Distante de seu pai, José vivencia o temor. O pai é um grande empresário e quase
não está em casa, voltado para seus negócios. O pai de José é exigente, muito apegado a
princípios e regras de comportamento e educação. Durante os pequenos afazeres insinua
freqüentemente para José que este jamais seria como ele: organizado, disciplinado, firme.
José se sentia então um verdadeiro fracasso perante seu pai.
A mãe de José mostra-se muito dependente do marido em suas iniciativas e
decisões. É mais atenta ao filho mais velho, talvez por sentimento de culpa, já que o
marido não era tão atencioso com o enteado. Omissa com relação a José, a mãe transfere
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ao pai todas as iniciativas e decisões que pelas contingências, pelo excesso de negócio e
por ser um homem extremamente exigente vai construindo uma personalidade perigosa
em José: José está sozinho.
José vai se transformando cada vez mais em um homem “falsamente onipotente”,
“auto-suficiente”. Começa a isolar, a desdenhar dos seres humanos. Nasce em José a
hostilidade para com o mundo. Pela segunda vez vai ao psiquiatra, passa a sofrer de
depressão. O psiquiatra que lhe assiste estabelece um contrato terapêutico e inicia um
processo de psicoterapia. José agora é um mosaico de isolamento, hostilidade para com o
mundo e com seus pais. Ao mesmo tempo, sente-se mais culpado por suas fantasias
sexuais, voyeuristas e incestuosas. Com as mulheres demonstra grande inibição e com os
colegas de escola sentimento de inferioridade. Completa assim o 2 grau com
dificuldades.
A UNIVERSIDADE, O VESTIBULAR, O ÁLCOOL E A MACONHA
O país encontrava-se em plena ditadura, pelos idos de 1970. José passa a
freqüentar os cursinhos de vestibular para economia. Conhece primeiro o álcool, o que o
desinibia e possibilitava o acesso às mocinhas, ainda que muitas vezes embriagado. José
naquele tempo era um pequeno burguês, alienado, inconsciente, fruto de uma época onde
o lema era o carnaval e o futebol. Ao mesmo tempo que, lá dentro, nos porões da
ditadura, pessoas eram barbaramente torturadas. Aquele era o nosso país, como se dizia
na época: “Brasil, o País que vai para frente”.
Em sua ida aos cursinhos de pré-vestibular, José começou a se desembaraçar,
movido à bebida e às “más companhias”, aos “hippies”, e como seu pai costumava dizer
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“vagabundos e irresponsáveis que não tinham que fazer”. No entanto, isto de alguma
forma forçou José para o mundo. Embora mesmo assim não tivesse conseguido passar no
vestibular para Economia.
José tinha grande inibição para o sexo, até que um dia... apareceu em sua vida o
primeiro “baseado”, a grande descoberta, a maconha. José viu na maconha um “fetiche”.
Descobriu que com ela conseguia sentir algum prazer no sexo, na maioria das vezes com
prostitutas. Três anos depois da primeira tentativa, José obtém êxito no vestibular.
Consegue nesta época comprar duas provas do vestibular. Inteligente, porém
completamente desatento e irresponsável, assim mesmo consegue passar no vestibular.
Entra para uma Faculdade de Economia, que como não podia deixar de ser, era particular.
O tratamento psicoterápico de José evolui, fortalece-o em alguns princípios mas
não o faz abandonar a maconha. José tenta controlar o uso, deixando-a para os momentos
em que tinha relações sexuais. No entanto, o álcool era usado para desinibi-lo.
Estando na Faculdade, José ingressa no teatro amador. Segundo diz, “só entra em
palco depois de três vodcas”. A vida vai seguindo regada no álcool e à custa da maconha.
A primeira namorada de José foi um verdadeiro achado para ele, pois a menina bebia e
adorava “puxar uma maconha”.
Nesta época, o pai de José está cada vez mais rico e poderoso. José tem todas as
facilidades materiais, porém carece de orientação. Torna-se rebelde com a mãe e
mentiroso com o pai. Com o pai tem um pouco mais de afinidade, porém de uma forma
contraditória, pois tem admiração, mas também inveja e principalmente muito medo...
Transcorre a vida. José muda de namorada, mas perpetua um vício, seus encontros
com as prostitutas, sempre com o uso da maconha. No quinto ano de Economia começa
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seu “desastre”, para passar nas provas descobre os anorexígenos, que usa para ficar
estudando até altas horas.
A VIDA ADULTA
José consegue se formar aos “trancos e barrancos”, com a ajuda da terapia, o
poder econômico de seu pai e o apoio da namorada. Ingressa na vida, morre de medo de
enfrentá-la, sente-se despreparado para vivê-la. Não sabe como vai arrumar emprego, não
está preparado para a profissão na qual se formou, Economia.
Sente grande medo e insegurança face à hipótese de separação da família. Sentese muito deprimido como nunca havia se sentido antes. Passa a abusar da maconha e,
pior, também dos anorexígenos. Toma grandes quantidades num único dia. Chega a
tomar anfetamínicos em quantidade de 500mg em 24 horas. O abuso era repetitivo em
períodos de freqüência variada em situações de ansiedade ou tensão. Um ano depois será
internado em um hospital psiquiátrico. Pela primeira vez apresenta diminuição do juízo
crítico e um quadro de ideação psicótico paranóide.
Toda sua família entra em choque, como se nada tivesse acontecido antes, durante
a evolução da doença de José. O antigo psiquiatra é dispensado, pois afinal alguém
deveria ser responsabilizado por esta situação crítica.
José sai melhor de sua primeira internação. Novas esperanças, novas decepções.
Novo psiquiatra e mais, uma figura nova: o “psicanalista”. De fato, José, aos 26 anos,
melhora, a psicanálise e o psicanalista lhe trazem enorme contribuição. Começa a se
aceitar melhor, a ter consciência de que estava dependente das anfetaminas.
20
As relações com seu pai se modificam. O pai não perdoa o uso de drogas, porém
mesmo assim o tolera e o apóia nos momentos críticos. O irmão mais velho já está
casado, tendo progredido muito na vida pessoal, profissional e financeira. Mostra-se
condescendente com José e tenta ajudá-lo “a sair das drogas”. Os pais de José tentam, a
todo custo, esconder de todos e da família “seu vício”. A mãe de José torna-se uma
mulher deprimida ao constatar os problemas do filho. Sofre com a doença deste, mas
sente-se impotente para apoiar o filho de modo eficiente. O pai, ao contrário, embora
sofrendo e achando inadmissível a situação, não poupa esforços financeiros “para ajudar
o filho”. Por influência do pai e do seu poder econômico, José conhece uma moça,
também de recursos e posse e através da grande influência de ambas as famílias, com o
apoio financeiro de ambas as partes, contrai casamento.
O CASAMENTO
Inaugura-se um período de estabilidade na vida de José. Já não fuma mais
maconha, bebe menos. Consegue arrumar trabalho, volta a estudar, participa de cursos de
aperfeiçoamento profissionais. Sua esposa, mais madura e equilibrada, “põe ordem na
casa”. Dois anos depois nasce o primeiro filho do casal. José faz análise, quatro sessões
por semana, psicanálise ortodoxa, segundo suas próprias palavras.
A esposa, melhor relacionada, o introduz num círculo de amigos. A auto-estima
de José sobe, progride, melhora. Consegue alguns anos de abstinência. Recaídas ocorrem
com abuso de anorexígenos. José alega insatisfação sexual e necessidade de abuso, o que
ocorre ocasionalmente. Porém, a situação e a cena já são outras, com José bem mais
estável e controlando melhor o uso de drogas que agora torna-se eventual e esporádico.
21
Os anos se passam. Aparentemente o tratamento psicanalítico de José vai se
consolidando, todos passam a admirá-lo e o seu progresso.
José, porém, é “muito frágil, muito frágil mesmo”, como veremos a seguir. Na
verdade José constrói um mundo de aparências, estruturado não em sua constituição, mas
sim constituído no poder econômico de ambas as famílias que o apóiam, a de seu pai e a
de sua esposa. José não se mostra um homem amadurecido, sua condição de pai é
parcialmente assumida. A maioria dos afazeres fica por conta da esposa, principalmente
cuidar dos filhos. Parece cumprir as obrigações matrimoniais, mas não apresenta
contentamento com o que faz: “a responsabilidade é demais para ele”. Sua esposa,
mulher sábia, atrai os filhos, toma também para si deveres e afazeres, deixando-o o
máximo à vontade, em suas “limitações”.
A VIDA DE JOSÉ POR VOLTA DOS 30 ANOS
Assim, José prossegue trabalhando, cumprindo suas obrigações com um mínimo
de exigência. Com o tempo volta a beber nos fins de semana. Gosta muito de teatro
amador. Às vezes dá mais importância a esta atividade lúdica, na qual se sai muito bem,
sendo querido pelos colegas. Chega tarde em casa. Após os ensaios, por vezes, volta para
casa alcoolizado. “A vida de casado é dura demais para o imaturo José”.
José sonha em abandonar a Economia. Em suas fantasias imagina seguir a carreira
de ator de teatro. Apesar dessa instabilidade e de seus relatos na análise acerca da
insatisfação sexual, diz, que só se alivia com o uso eventual de drogas para “desinibição”,
de muitos comprimidos de anfetamina, ou ainda, da mistura de aneroxígeno e álcool. A
22
esposa desconfia desse uso, e também o psicanalista que o trata. Ambos o repreendem
com veemência, tentando lhe colocar o máximo de limite.
Por esforço da mulher e do psicanalista, José vai reprimindo seu uso de drogas até
que, em 1980. José começa sua decadência. Sua esposa entra em ascensão econômica, os
filhos respeitam muito mais a mãe. Por José, segundo suas palavras, os filhos só
demonstram algum carinho e pena. José sofre. É demais para si e isto acaba
transbordando e ferindo seu frágil amor-próprio.
Com inveja da esposa, sentindo-se diminuído, impotente e insatisfeito
sexualmente, volta a se drogar com anfetamina. O problema vai se agravando e, segundo
José, seu psicanalista parece começar a desanimar. O preço das consultas são aumentadas
o que vai inviabilizando cada vez mais o tratamento. José torna-se agressivo e
questionador. Questiona a tudo e a todos, ferido no seu amor-próprio. Diante de sua
impotência, e dos limites que não consegue de forma alguma aceitar, droga-se mais outra
vez e leva sua esposa ao desespero. Sua mulher já não agüenta mais. Neste momento
acaba pedindo o divórcio e o expulsa de casa.
José retorna eufórico à mansão de seus pais. Ilude-se, sem consciência do inferno
em que estaria mergulhando. Seus pais, aparentemente por pena de José, o recebem de
volta. José está derrotado, longe dos filhos, da ex-esposa, com a família já destroçada.
Expressa o que sempre esteve internalizado em sua personalidade, seu profundo
sentimento de desvalorização acerca de si próprio. Sofre muito, chora, deprime-se, quer
voltar para a antiga família, mas não confia em si mesmo. No trabalho começa a se
atrasar com freqüência. Depois começam as faltas, até que acaba por ser licenciado.
23
José é internado outra vez, embora agora numa clínica de dependência química.
Fica internado nesta instituição por dois meses. Recebe alta e por influência da família e
de seu pai volta a trabalhar numa multinacional com sede no Brasil, cujo tio, irmão de seu
pai é importante mandatário.
AS RECAÍDAS, OS GRUPOS ANÔNIMOS E NOVAS INTERNAÇÕES
O irmão mais velho de José tenta ajudá-lo, passando a estreitar a convivência
entre ambos. Tenta relacioná-lo com outras pessoas, inclusive do sexo feminino. José,
porém, tornou-se um deprimido crônico e nada parece trazê-lo de volta à vida, senão
quando usa as suas anfetaminas. Trazem efeitos colaterais nefastos, algumas vezes
levando-o a produzir quadros psicóticos, forçando novas internações psiquiátricas. Numa
dessas internações, José descreve o horror que toma dos hospitais psiquiátricos, mesmo
sendo particulares. Conta que certa feita ficou tão intoxicado que os efeitos dos remédios
que administraram obrigaram-no a “andar de gatinho” dentro da clínica. A comida
davam-lhe na boca, pois José sequer tinha forças e coordenação para segurar os talheres
quando da hora das refeições. Ao ter alta desta clínica e seguindo orientação médica, José
conhece os grupos anônimos. Vivia então permanentemente de licença médica, amparado
no poderio do tio, mandatário máximo da empresa em que trabalhava.
Nos grupos anônimos José não se adapta pois “cai” com muita freqüência. Sentese muito humilhado em ter que confessar suas recaídas nas reuniões. Sente-se julgado,
pois acha que seus companheiros, anônimos, no fundo imaginavam que ele não queria se
ajudar e superar seu problema. Conta que a depressão era intensa, que só se drogando
tornava a vida suportável, ainda que pensasse em se suicidar numa overdose. A depressão
24
que sentia, o ódio que vivenciava por si próprio, não permitia que internalizasse o
programa de 12 passos, recuperação proposta pelos grupos anônimos. Achava, entretanto,
que aprendeu muito nestes grupos, adquirindo alguma experiência sobre sua doença. Diz
ter aprendido a falar mais de si e assumir melhor a sua doença, desinibindo-se e tornandose uma pessoa menos egocêntrica.
Quanto aos filhos já não os via mais. Era apenas protegido por seus pais, por seu
irmão mais velho e por seu tio paterno. José melhorava, voltava a trabalhar, para depois
recair novamente, tendo que ser várias vezes hospitalizado. Agora as intoxicações e
psicoses paranóides eram cada vez mais freqüentes. José quase foi preso, enfrentou
riscos, quase perdeu a vida e por fim sua família já não podia pagar os hospitais
particulares, por esgotamento financeiro.
SINAIS DE RECUPERAÇÃO
Numa destas internações já em hospitais públicos e conveniados vai parar num
sanatório. José descreve como uma experiência terrível, onde é muito maltratado pelos
enfermeiros. Segundo ele, talvez achassem que era rico. Conta, porém, que a experiência
desta internação provocou uma revolução com um fundamento, uma promessa de
modificação em sua vida. E daquela submersão nas trevas, ele pareceu ver a luz no final
do túnel pela primeira vez.
José teve alta um mês depois e encontrou então novo psicanalista com o qual
recomeçou um novo tratamento. Voltou a trabalhar com regularidade, foi amadurecendo,
continuando a mudar com o passar dos anos. Ainda aconteceram novas recaídas, porém
25
curtas e de pouca duração. José conseguiu arrumar uma nova vida, uma namorada.
Voltou a ver seus filhos.
Além do tratamento psicoterápico José também voltou a freqüentar os grupos
anônimos. Acha agora que a sua doença não tem cura mas que no momento está sob
controle. Como ele diz, é como ele consegue viver.
1
1
Nota do autor.
1 – Esclareço, que este caso clínico me foi oferecido por um colega, sabendo de meu interesse, para o
trabalho para a monografia e levando em consideração a riqueza de detalhes dos dados do paciente e
anotadas pelo colega.
2 – O colega em questão, psiquiatra e psicanalista, esteve segundo seu depoimento, presente várias vezes
no caso ao longo do tratamento. Sendo que nos últimos anos ele conduzia a análise do caso.
26
CAPÍTULO III: AVALIAÇÃO DA ESTRUTURA PSÍQUICA DO
PACIENTE
A história de José é muito expressiva como modelo paradigmático de construção
de um drogadicto. É indiscutível, no entanto, que as determinantes que encaminham o
indivíduo para a drogadicção são particularíssimas, singulares e individualizadas. Não
existe história de drogadicto que seja exatamente igual à de outro. Na história de José há
muito do que genericamente se encontra na grande maioria dos drogadictos. Aspectos tais
como a não internalização da figura paterna simbólica e, portanto, o não estabelecimento
de limites nos seus sentimentos e conduta. A dificuldade de adotar comportamentos
adultos, regredindo ou mantendo uma posição narcísica é a única que lhe permite um
alívio, da não resolução do Édipo e da castração. No caso do dependente de drogas, o
masoquismo ganha expressão através do uso da droga.
Segundo o professor Olievenstein, em sua compreensão e experiência com
drogadictos, preconiza o estágio do espelho quebrado, o que entendo por uma
compreensão teórica por ele formulada em seu cotidiano no tratamento com a
dependência de drogas. Tal teoria tem como subsídio o conceito de Lacan, de “estádio do
espelho” de grande relevância. Este conceito, que na obra de Lacan precede o seu
conceito de Édipo, nos fala da resolução imaginária da criança em conceber no
imaginário a sensação corpórea de unidade. Ao contrário, se não houver resolução, creio
que poderia nos levar à aplicação de outro conceito seu, ao da falta de unidade ou corpo
despedaçado. Retornando às idéias de Olievenstein, quando na fase do espelho o infans
não consegue o distanciamento de sua imagem, mantendo a fusão, seguido do
27
estilhaçamento do espelho. O eu torna-se um mosaico. E a unidade não é conquistada.
Seu destino é marcado pela incompletude e indefinição.
Não conseguindo constituir sua identidade, a busca do seu objetivo realiza-se
através do estágio do excesso (Olievenstein, 1985), quanto maior o esforço menor é o
êxito na conquista do seu intento. A autoridade paterna, a Lei, é vivida como exagerada
ou ridícula, e portanto necessitando ser transgredida, só lhe restando como conseqüência
o sentimento permanente de falta.
Também e portanto a necessidade de amor excessivo e reconhecimento de todos,
conceito em que Olievenstein denomina de fase do excesso.
Ainda seguindo a linha de pensamento de Olievenstein, o dependente de drogas
cumpre perfeitamente o papel de idiota da família. O idiota da família (Sartre, 1971-2)2 é
o aliviador das tensões intrafamiliares. Ele cumpre um papel inconsciente de bode
expiatório. Olievenstein mostra-nos o quanto é dialética a construção da estrutura
psíquica do dependente de droga. Afirma que esta construção jamais é retilínea e fixa, ela
se realiza sempre em ziguezague. É neste momento que Olievenstein distingue o usuário
do toxicômano. Para ele o toxicômano constrói um “espaço de estruturação” mais
definido diferentemente do usuário, cuja estrutura é menos solidificada e sem qualquer
especificidade.
No entanto, é preciso ressaltar que a condição do toxicômano não é irreversível,
caso contrário, a terapia não teria sentido.
Segundo Elizabeth Palatinik (1993) observamos que a mãe de José não exerce
uma função self-protetora. Não consegue aparentemente assumir a sua identidade de mãe.
2
uma biografia escrita por Sartre do autor francês Gustave Flaubert O idiota da família (3 volumes, 19711972).
28
Porque achamos isto? Vimos que ela se divide entre o marido e o amante. Na relação
com o filho faz um ato perverso de compromisso onde para a criança ter o seu amor deve
guardar segredo.
Não verificamos a função materna como algo acolhedor, mas sim como objeto de
uma contingência de ter um filho naquele momento tão difícil de sua vida.
Tecendo considerações sobre o que diz o autor Joel Birman (2000) em A
Estrutura Psíquica nas Toxicomanias, consideramos que José ficou totalmente
impossibilitado de internalizar um pai simbólico. Acreditamos que esta criança
desenvolveu imperfeitamente o “ideal do eu”, digo isto porque não houve identificação,
amor ao pai, porém sim um grande medo da figura paterna. Ou seja, provavelmente o
segundo e o terceiro momento do Édipo em Lacan, nesta criança ficou prejudicado. Nem
foi resolvida a metáfora paterna, nem o terceiro momento do Édipo (Lacan). Não houve
identificação.
Esta criança parece estar sustentando seu desejo, em ser o falo da mãe. Não
transpõe a metáfora paterna, nem se identifica com o pai para poder “ter”. Estas
conjecturas, são meras especulações minhas, na tentativa de enriquecer o texto. Claro,
fundamentado nos conceitos de Lacan em seu O Seminário: as formações do
inconsciente- livro 5 de 1957-1958. O pai que o criou até os sete anos de idade era uma
personalidade fraca, irresponsável, envolvido com jogos, portanto não poderia ser um
modelo para José. Já seu pai verdadeiro entra em sua vida de forma traumática através da
separação conjugal da mãe, quando José tinha sete anos. Este pai é sentido por José como
uma figura bastante idealizada, onipotente, muito pouco alcançável, exigente, o que em
nossa opinião não só cria uma baixa auto-estima em José como também não permite a
29
internalização do pai simbólico. Assim, voltando à questão do ideal do ego, achamos que
no caso de José, este fica à mercê do narcisismo, não se estabelecendo os limites
(Birman, 2000).
Seguindo a linha de pensamento de Claude Olievenstein achamos que José
cumpre perfeitamente o papel do idiota da família (Sartre, 1971-2). José é o aliviador das
tensões deste triângulo e de seu irmão à parte. Observamos que a mãe de José faz com
que ele cumpra um pacto aparentemente de amor devendo guardar segredo absoluto de
toda aquela situação que estava acontecendo. Existem muitas tensões pairando nesta
família, inclusive as de fantasia de morte, já que marido e amante poderiam descobrir a
existência um do outro e se matarem.
Também achamos que este pacto entre José e sua mãe irá marcar sua
personalidade para sempre. Ele será o causador de uma fusão talvez nunca
completamente resolvida entre ambos. Trará para sempre a marca do compromisso com a
“mentira”. Entendemos isto como um pacto perverso que irá pontuar e reaparecer várias
vezes durante toda vida deste indivíduo.
Quando Olievenstein nos fala do estágio do excesso (Olievenstein, 1985), faz
lembrar como José mudou sua conduta quando sua mãe vai morar com seu pai biológico.
Para nós, José não introjeta esta situação. Sua mãe, por ignorância, afaste-se demais dele
devido às atenções e cuidados dedicados ao marido e com o filho mais velho. Inicia-se
em José uma verdadeira revolta, ciúme, como demonstração de não resolução do Édipo e
a castração.
Para ele a autoridade paterna, a Lei, é vivida como exagerada e portanto
necessitando ser transgredida. Esse desrespeito através o tempo se transforma em um
30
modelo de atuações predominantes. Também a necessidade de amor excessivo e o
reconhecimento de todos são aspectos da busca no excesso, tendo como conseqüência o
sentimento permanente de falta de completude.
Na medida em que José busca uma identidade através do excesso, dificulta-se a
evolução da fase infantil para uma fase adulta. A possibilidade de uma ruptura e a
superação de um eterno infanto-juvenil (Olievenstein, 1985).
Pensamos agora em Bauman (1997) ao citar a História da Sexualidade de
Foucault. Acreditamos que José foi vítima de um abuso sexual não explícito, porém
implícito, não só quando o irmão o incitava para uma sexualidade precoce através de
revistas pornográficas, além de José já dar sinais claros de traços perversos, como quando
na escola tem fantasias de possuir de forma agressiva sua professora. Por fim, os pais de
José o envolveram numa situação triangular quando o levavam para seus encontros
românticos. Acreditamos que possivelmente isto desenvolveu no imaginário de José o
elemento perverso voyeurista da curiosidade sexual pelos pais.
No início da adolescência de José e no transcurso da mesma ele apresenta o hábito
da masturbação excessiva. Possui uma obsessão sexual pelas mulheres de sua família,
chegando até a sonhar incestuosamente com a própria mãe. Segundo Olievenstein (1985)
é fácil entender que no caso de José essas características acima referidas são
desproporcionais no que se refere ao ato e à significação. Porém, neste caso, o prazer é
sentido como absoluto, já que se contrapõe a uma personalidade que flutua entre a falta e
o excesso. Segundo o autor, a masturbação contém a dimensão da sua unidade,
possivelmente anunciando o futuro toxicômano, que passa por uma sensação de
autocompletude pelo prazer da auto-suficiência sem necessitar do outro.
31
Na droga observa-se um fenômeno distinto da sensação de completude obtida na
masturbação, pois vai em sentido inverso, sensação que diminui com a repetição e
preenche cada vez menos a falta.
Numa visão freudiana a não internalização do pai simbólico, assistimos ao
fracasso do ideal do ego. Como é observado no caso de José a timidez pode ser entendida
pela construção de um ideal do ego inatingível, já que José imagina o pai como um superhomem, muito poderoso, o que acarreta em José inacessibilidade e o temor (Freitas,
2001).
É interessante chamar a atenção para as idéias de Bucher que afirma que, no
tocante ao isolamento como aquele que observamos em José, a sensação de autosuficiência e a onipotência estão presentes (Bucher, 1992). O autor refere que o
toxicômano desconhece a não existência do outro; só ele existe, como uma relação que
nos lembra a onipotência do estado psicótico. É o que se verifica no ato que antecede a
ingestão da droga; o modo megalômano de estar no mundo sem avaliação dos riscos e da
depressão conseqüente que o drogadicto vivencia. A crença de que através do tempo seria
possível atingir o gozo total é frustrante, pois o desafio ao tempo, a impaciência,
demonstra como o tempo não pode ser controlado pelo desejo do homem.
Não podemos deixar de fazer referência ao sentimento de culpa do qual José é
vítima. Olievenstein (1985) aponta o quanto o idiota da família irá assumir, sem poder
compreender, ser o responsável por tudo que acontece de errado nela. E é por sentir-se
culpado que vive cercado de temores; e cercado de temores torna-se desconfiado e
desejoso de punição.
32
No período de ingresso à Universidade José ainda não tinha conseguido superar a
crise da adolescência. Apresenta a insegurança patológica e a timidez. É freqüente nessa
fase o drogadicto buscar através do abuso de substâncias estimulantes, que têm maior
poder desinibitório, a sensação de poder. O álcool também era usado por José, não tão
freqüentemente, mas sempre em situações em que necessitava sentir-se livre e desinibido.
Nessa época teve início a sua vida de relações homossexuais, que foi alavancada
com o uso da maconha. Só assim sentia-se livre para sentir prazer e dar vazão às suas
fantasias perversas. Os anorexígenos derivados de anfetamina começaram a ser usados
quando as dificuldades para estudar tornaram-se maiores, pois era desatento, inquieto, e
necessitava de um estímulo para poder manter-se em estudo e vencer as horas de sono, já
que sempre estudava às vésperas de prova.
Reproduzindo o pensamento de Inem (2001), podemos dizer que o aparecimento
de substâncias tóxicas como a maconha e os anorexígenos não indica a busca primária da
substância. Podemos e devemos, portanto, desmistificar o preconceito de “viciado” ou
“toxicômano”, na medida em que entendemos que o produto surge e se qualifica como
útil, na tentativa urgente de superar a dor de um conflito que o atinge e o faz sofrer.
Gostaríamos de referendar as idéias de Bittencourt (2001), quando a autora nos
chama a atenção de que a drogadicção é conseqüência, é secundária e não a determinante
primária. Entendemos que ela quer nos dizer que devemos observar e acompanhar a
história e a singularidade do sujeito para compreendermos o aparecimento e o
desenvolvimento do sintoma, a drogadicção. Isto nos dá muito mais elementos para uma
estratégia de tratamento eficaz.
33
No caso de José creio que, seguindo estas idéias, seu estado clínico oscila ora com
apresentações neuróticas, psicóticas e perversas (como no desejo pelas mulheres da
família e no sonho incestuoso com a própria mãe). O paciente mostra-se uma pessoa
profundamente inibida, com imensa falta de iniciativa, timidez exagerada, o que nos
lembra uma apresentação neurótica.
Voltando ao nosso paciente José, sua história biográfica corrobora a tese de que,
possivelmente, o uso do álcool e da maconha vêm em socorro a um sofrimento
intolerável em momentos críticos de sua existência. José sente-se sempre isolado, não
fazendo parte de qualquer grupo social. Além de em seus confrontos com o sexo oposto
sentir-se sempre despreparado. Aliás, é uma marca em José: sua neurose provavelmente
tem predominância de traços histéricos depressivos, caracterizando-se sempre por “eu
não posso”, “eu não consigo”, “eu não sei”, “eu nunca vou chegar lá”. Pensamos que a
droga funcione para José como uma “prótese fálica” (Bittencourt, 1998).
Sobre outro ângulo, na relação com seu pai, José está sempre tentando contentá-lo
ou se sujeitando ao desejo deste. Por isso frustra-se com freqüência, pois nunca atinge
nem de longe alguma identidade definida, autêntica. A falta de autenticidade, além de
provocar culpa em José, impede que ele satisfaça o pai e faça com que seja reconhecido
pelo mesmo. É possível que a droga também entre por este viés de culpa (Bittencourt,
1993).
A fase adulta de José acreditamos que seja um momento especialmente crítico na
vida do mesmo, assim como de todo drogadicto. Ele se vê confrontado com o exercício
da profissão que marca uma vida adulta, a qual ele não consegue atingir apesar do esforço
tenaz. Desse confronto entre uma vida infanto-juvenil e a fase adulta, a drogadicção em
34
José vem pesada, vem sob a forma de surto intenso, com o abuso de anfetamina em altas
doses, o que irá provocar várias atuações que desencadearão grande ansiedade em sua
família.
Este momento lembra tudo que já foi dito, a impossibilidade da resolução do
Édipo e da castração.
“Vemos, portanto, que a afeição dos pais pelo filho pode despertar prematuramente seu
instinto sexual (isto é, antes de estarem presentes as condições somáticas da puberdade) a
tal ponto que a excitação mental rompe caminho de maneira inequívoca até o aparelho
genital. Se, por outro lado, forem bastante felizes em evitar isto, a sua afeição pode então
cumprir a tarefa de orientar o filho em sua escolha de um objeto sexual quando ele atingir
a maturidade. Sem dúvida, o meio mais simples para a criança seria escolher como
objetos sexuais as mesmas pessoas, que desde sua infância, tem amado com o que pode
ser descrito como libido atenuada. Mas, com o adiamento da maturação sexual, ganhouse tempo para que a criança construa, entre outras restrições à sexualidade, a barreira
contra o incesto e possa assim incorporar em si os preceitos morais que expressamente
incluem de sua escolha de objeto, como parentes consangüíneos, as pessoas que amou na
infância. O respeito por esta barreira é essencialmente uma exigência cultural feita pela
sociedade. A sociedade precisa defender-se contra o perigo de que os interesses de que
necessita para o estabelecimento de unidades sociais superiores, possam ser absorvidos
pela família e, por este motivo, no caso de todos os indivíduos mas em particular dos
moços adolescentes, ela busca por todos os meios possíveis afrouxar os laços deles com a
família ...” (Freud, Três ensaios sobre sexualidade, vol. VII, 1901-1905, p. 232, ESB)
“Em vista da importância das relações entre uma criança e seus pais na determinação,
mais tarde, da escolha de um objeto sexual, pode-se facilmente entender que qualquer
distúrbio destas relações produzirá os mais graves efeitos em sua vida sexual adulta. O
ciúme de um amante nunca deixa de ter uma raiz infantil ou, pelo menos, um reforço
infantil. Se houver brigas entre os pais ou se o casamento for infeliz, está preparada nos
filhos a base para a mais grave predisposição a distúrbios de desenvolvimento sexual ou a
35
doenças neuróticas” (Freud, Três ensaios sobre sexualidade, vol. VII, 1901-1905, p. 235,
ESB).
É notável podermos aprender com Freud a importância do Édipo como complexo
ideativo. É gratificante, vermos o sentido da vida em suas descobertas e quando
entendemos que tudo se passa ao nível da realidade psíquica, o Édipo mítico e
ideacional. A internalização por parte da criança, não sendo o desejo único de sua mãe,
superando seu próprio desejo consegue resignificá-lo, adiando-o. Identificando-se com o
pai simbólico, se transforma num ser para a vida e para o mundo. Ao significar
mentalmente o Édipo, a criança dá o primeiro passo para a libertação da dependência de
seus pais. E pensando nesse termo dependência, que me aproveito deste. Quando o
complexo ideacional do Édipo não é superado, Freud nos anuncia o prenúncio das
perturbações psíquicas. E é pensando nessa frase “dependência de seus pais” que
pretensiosamente me aproprio e o correlaciono com o termo dependência química.
Todo esse impasse retrata o sofrimento de um ser que no início de sua vida, na
incapacidade da ruptura plena e desfusionamento com sua mãe, se vê aprisionado no
infantilismo no desejo de eternizar sua infância. Penso também que José, em suas
atuações, levado pela sensação de impotência, tem o nítido propósito de fazer sua família
sofrer, agredindo-a. Acha que a culpa é dos pais e portanto estes devem sofrer. Sua
família sofre muito, fazendo lembrar passagens e situações iguais àquelas como do
“Idiota da Família” e do “Narcótico da Família” (Olievenstein, 1985).
Com todos os percalços consegue se casar. Neste período podemos considerar que
entre o excesso e a falta, fatores tais quais a incompletude, principalmente se
entendermos José como uma personalidade com traços histéricos e a droga de sua prótese
36
fálica. Provavelmente, todas as carências de José estão sendo atendidas. Seu “ego” está
apoiado no seu excessivo narcisismo, incapaz de lidar com a falta e sempre na busca de
reconhecimento. Eis que sua família, seu trabalho e principalmente sua esposa vão
atender em parte sua necessidade de reconhecimento.
Voltando a José e considerando as idéias de Bittencourt (1993), o drogadicto
busca incessantemente o reconhecimento da relação imaginária com o outro e talvez a
família e o casamento tranqüilizassem José, lhe trazendo falso reconhecimento e um
reforço ao seu narcisismo.
No entanto, José é queixoso, sente-se vitimizado, não organiza seu desejo. Sua
preocupação em ser olhado, admirado, estará sendo relativamente atendida. Por isto, este
período de sua vida está mais tranqüilo, além de José estar também superapoiado num
tratamento de orientação psicanalítica.
No entanto, José já apresenta o declínio da figura paterna no seio da família, e
assim a fragmentação da família, como é freqüente acontecer nos familiares de
drogadictos, está a caminho.
Aqui cabe uma observação generalizadora, pois não só José que é excessivo em
suas buscas e falta, mas também toda uma sociedade da qual faz parte. Quando dizemos
isto falamos no excesso das aparências, no excesso do trabalho, e principalmente no
excesso das relações com o tempo, e que tentamos velozmente, viver como se fosse
possível enganá-lo ou atender a todas as necessidades que a sociedade solicita aos seus
cidadãos na situação sociopolítico-econômica dos dias de hoje. No excesso da indiferença
das reações afetivas, e com relação ao seu oposto, o exagero da busca de si no exercício
37
do outro, fomento da dependência afetiva. Concluindo este trecho, acreditamos que a
responsabilidade é demais para José. Tudo é excessivo, seu narcisismo também.
Na fase dos trinta anos de vida, José desestabiliza-se outra vez. Seu narcisismo
está ferido novamente. Não consegue exercer a função paterna.
“Os pais na maioria dos casos, são homens passivos, que se deixam dominar e mantêm
grande distância com relação às esposas. Cedem completamente suas prerrogativas como
pais, em troca de que se lhes permita a liberdade de submergirem de todo o seu trabalho.
As mães são mulheres exigentes e controladoras, que necessitam e mantêm fortes
relações simbióticas com seus filhos. Não fazem objeção ao distanciamento do marido,
desde que este lhes permita um controle total sobre os filhos. Este truque, inconsciente
em geral, aflora pela primeira vez quando se deve tomar a decisão de enviar o filho para
tratamento. O pai deixará a decisão nas mãos da mãe” (Masterson, 1975 apud Freitas,
2002).
Com inveja da esposa, sente-se diminuído e novamente, marcado e pontuado pela
falta. Tudo o que é seu, inclusive sua sexualidade, estaria aquém. E assim diminuído, virá
novamente o uso das anfetaminas.
José retorna para a casa de seus pais e isto é sentido como um fracasso. Mais uma
vez a não resolução do Édipo e da castração devolve-lhe a fusão com seus pais e
observamos a impotência fundamental, a dependência emocional que antecede a
dependência química.
“...o toxicômano tem como mnemonização privilegiada, esta pré-instantaneidade, este
acme da emergência no qual se dá a ruptura; e que a fase seguinte, obrigatória, é o
movimento no qual deveria se situar o encontro constrangedor com as leis, e a
organização da relação com o outro. Por conseqüência, o toxicômano vai tentar, no
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mesmo tempo consciente e inconscientemente, reviver, reassumir a posição de criança
pequena, anular a ruptura” (Olievenstein, 1985).
“... e que as pessoas costumam chamar de egoísmo ou vício – é a extrema
dificuldade para constituir um eu adulto. Dificuldade esta que vem marcando a existência
do toxicômano desde sua infância” (Olievenstein, 1985).
Mesmo sob a proteção do lar paterno, mas dependente, José recai repetidas vezes.
Este momento é a marca crítica de uma situação que José já repetiu várias vezes o mesmo
ato, a drogadicção. Podemos entender que nesta situação crítica a drogadicção confundese com tentativas de suicídio.
“Trata-se mesmo de um paraíso, do paraíso perdido. Porém, como no caso da maçã de
Adão e Eva, é preciso pagar o preço: preço da inexorabilidade dos efeitos da droga, que
acaba e do tempo que passa. Como Adão e Eva, o indivíduo sabe que deverá pagar com a
própria morte, pois ela não se tornou Deus. E podemos dizer agora que a “dimensão” da
morte, ou melhor, da consciência da morte, ocupa em sua vida, principalmente na
adolescência, um espaço desproporcional. Tanto assim que muitas vezes, passada a
angústia da primeira atuação suicida e a primeira transgressão para o outro lado do
espelho, por intermédio de uma espécie de jogo-suicida, o indivíduo vai repetir com um
verdadeiro luxo de progressão suas tentativas de suicídio, até encontrar a droga. E quando
esta não fizer mais efeito, ele vai então com freqüência buscar uma saída na morte”
(Olievenstein, 1985).
Nesta época, creio que José pelo tempo já decorrido com seu envelhecimento
biológico, percebe cada vez mais o tamanho de sua incompletude. Acreditamos que cada
vez mais o narcisismo do próprio sujeito não aceita uma insuportável repetição, como diz
Olievenstein, procurando uma saída na morte.
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Outra questão rica e interessante desta época são os relatos de José sobre os
Alcoólicos Anônimos. José descreve que pela primeira vez teve que se expor. É neste
momento crítico de sua vida que ele sentindo-se acuado enfrenta seu narcisismo, tenta
sentir-se igual aos demais companheiros de infortúnio, descreve que tornou-se menos
egoísta, passou a querer dividir algo com outro, mesmo sendo a dor. Embora tivesse
reticências aos Alcoólicos Anônimos pois não se achasse completamente aceito, visto que
sentia enorme dificuldade e humilhação para descrever na cabeceira de mesa do grupo
suas repetidas recaídas.
Creio que esse movimento acrescentou a José um pouco da sensação de que nem
tudo estava perdido, de que nem tudo lhe faltava e que não deveria ser tão importante o
reconhecimento e admiração do outro. Porém o esforço de sobrevivência, na tentativa de
uma saída para a maturidade, às vezes fracassa. Os grupos anônimos, segundo José, lhe
devolveram num momento tão crítico alguma estabilidade. Isto porque provavelmente,
tenha saído de estado de fusionamento e de sua tenaz e inconsciente negação da vontade
de superar o infantilismo, tornando-se adulto.
Na sensação de chegar ao fundo do poço, quase numa continuidade do momento
anterior descrito, José é internado num sanatório conveniado. José experimenta então
uma experiência terrível. Conta que nunca sentiu-se tão humilhado em sua vida. José diz
que aquela experiência provocou-lhe um sentimento de que a dor de não enfrentar a vida
seria a mesma que lhe devolveria uma nova chance de viver. Interpretamos seus dizeres
como uma séria tentativa de ruptura com a fusão, com a dependência de sua família, da
busca sincera de tornar-se um ser mais adulto. No entanto ainda houve pequenas recaídas
40
curtas e pouca duração. Acredito que José está fazendo como ele diz: “é como ele
consegue viver”.
Entendemos que José vive dramaticamente a condição de Hamlet.
Ser ou não ser, eis a questão? Ao nosso ver, José é a história de um neurótico,
histérico, depressivo que resvala a psicose3, compreendemos que o conflito situa-se entre
as vicissitudes da não resolução do Édipo e as exigências de ser autêntico. Condenado na
culpa de não ser, sentindo-se obrigado a espiar suas penas, e não entendendo a limitação
da condição humana, José vive a contradição interna que paralisa sua existência,
desejando o objeto e com medo do desejo. Reprime o ódio e aparenta bondade, quer viver
e tem medo de viver. Teme a morte e dirige-se para ela. Procura a liberdade e se
encaminha para a prisão.
A terapia dos drogadictos como no caso de José que vivem debaixo de conflitos
tão contraditórios só pode ser eficaz na medida em que o dependente da droga aceite e
conviva com a limitação e a indefinição. É necessário que o drogadicto, convivendo,
aceitando e compreendendo suas impossibilidades possa, na medida do “ser e não ser”,
tornar possível algumas realizações em sua condição existencial.
CONCLUSÕES
Como já havíamos dito anteriormente, analisado o caso de José, partindo da idéia
básica de um Édipo não resolvido e acompanhando sua trajetória até o encontro com a
3
A citação em que José resvala a psicose diz respeito aos momentos de intoxicação por abuso de
anfetaminas. A psicose anfetamínica, uma das mais tóxicas, capaz de produzir um surto paranóide, a
princípio muito semelhante e indistinguível, das psicoses paranóides esquizofrênicas. Faz-se necessário
acrescentar que em personalidades com latência, surtos esquizofrênicos são desencadeados. As
complicações clínicas podem ser graves, caracterizadas por sintomas como a hipertermia, convulsões,
desidratação, e em alguns casos, morte.
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droga, supomos um diagnóstico histérico depressivo. E a questão tão conflitiva de ser ou
não ser ou ainda “de não ser mesmo” ou “ser muito pouco”, a culpa daí resultante é o
eterno reinvestir no prazer e alívio da droga.
Tragicamente como Fausto, épico poema de um dos maiores poetas da
humanidade Goethe4, metaforizando, com a droga tudo irá mudar, nada poderá ser como
antes. José é apenas o exemplo. Poderia ter sido um desapercebido ilimitado na sua
exacerbada timidez, porém não se suportando, encontra “algo”. Transforma-se num
individuo à margem. Ele já não é mais José como era conhecido, mas sim como tantos
são qualificados, ele é um “toxicômano”.
Encerrando, assim sendo questionamos: que tratamento seria o mais indicado?
O tratamento psicoterápico de orientação psicanalítica para a gênese da patologia?
O tratamento psiquiátrico específico e adequado a cada momento terapêutico?
Como proceder quando este sujeito entra e sai em crises sucessivas que expressam
tentativas de suicídio semelhantes a uma “roleta russa”?
Quando a familia já não o apóia mais?
Quando não existem mais recursos financeiros?
Enfim quando pensamos que todos os recursos já estão esgotados, o que fazer?
Abrimos estas questões na expectativa que seja discutido um método de
tratamento que seja, ao mesmo tempo, específico para a gênese, global para cada
momento que o drogadicto está vivendo. E unitário na especificidade do singular de cada
sujeito.
4
Em 1808, Goethe entrega ao público sua obra-prima. O poema Fausto, cuja segunda parte só será
publicada em 1832, ano da morte do poeta. O Fausto apresenta entre outros temas, o desejo do ser humano
de transcender os limites do poder e do conhecimento. Baseia-se na lenda dos séculos XV e XVI sobre
um misterioso Dr. Fausto, que, depois de envolver-se em trabalhos de magia negra vendeu a alma ao
diabo, a fim de obter os prazeres terrenos e poder ilimitado.
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