LACUNAS E INTERPRETAÇÃO NA LEI PENAL CARLOS AURÉLIO

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LACUNAS E INTERPRETAÇÃO NA LEI PENAL
CARLOS AURÉLIO MOTA DE SOUZA
(A propósito do estudo de ROBERT LEGROS, “Considérations sur les lacunes et
l’interpretation en droit penal”, in LE PROBLÉME DES LACUNES EN DROIT. Travaux
du Centre National de Recherches de Logique. Bruxelas, Etabl. Émile Bruiylant, 1968, p.
363)
I – A Lei penal é lacunosa
1. Para Engisch, lacuna é uma “incompletude insatisfatória no seio do todo jurídico”
(Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa, C. Gulbenkian, 1972, 3ª ed., p. 223). A
incompletude é um todo não acabado, uma falta, uma insuficiência que não deveria ocorrer
ou ter ocorrido, dentro do limite da totalidade jurídica.
Lacuna, assim, é um estado de coisas dado que não pode ser regulado pelo sistema,
não se podendo afirmar se pertence ou se deve pertencer a ele, ou não.
2. O Direito Penal, integrante do ordenamento jurídico, possui lacunas, como os
demais ramos do direito, tanto que a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 4º,
admite, na falha ou omissão da lei, a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios
gerais de direito. Logo, existem lacunas em nosso sistema jurídico.
Igualmente, o art. 126 do Código de Processo Civil expressamente repete o comando
da Lei de Introdução.
3. No Direito Penal a invocação mais imediata para a colmatação das lacunas é a
analogia, consistente em aplicar uma hipótese não prevista na lei a caso semelhante. Não
cria direito novo, mas descobre o existente, como forma de auto-integração da lei.
Na aplicação da lei por analogia não ocorre uma interpretação extensiva, mas sim
uma interpretação analógica. A analogia, como forma de auto-integração da lei para suprir
lacunas, também se denomina integração analógica, suplemento analógico ou aplicação
analógica.
4. Na interpretação extensiva, a lei diz menos e o intérprete diz mais do que a lei
queria dizer (“lex minus dixit quam voluit”); o intérprete reconstrói a vontade da lei.
5. Já na interpretação analógica, ou “intra-legem”, o próprio dispositivo permite se
aplique analogicamente o preceito; trata-se de uma espécie da primeira.
Assim, por exemplo, no estelionato: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita,
em prejuízo alheio, induzindo alguém em erro, mediante artifício, ardil, OU QUALQUER
OUTRO MEIO FRAUDULENTO” (art. 171 C. P.); utilizando o agente de “qualquer meio”
semelhante a “artifício” ou “ardil”, pode ser tipificada a ação como estelionato, por
interpretação analógica, pois o preceito do art. 171 expressamente o permite.
II – Emprego da analogia
6. Veda o art. 1º do Código Penal a aplicação da analogia, por força do princípio da
reserva legal, pois o intérprete não pode criar figuras delitivas.
Assim, v. g., “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (art. 155), não
constituirá crime se ocorrer subtração de coisas móvel como no caso de furto de uso, pois o
delito exige vontade de posse definitiva; não há como aplicar, por analogia, o citado art.
155, ao furto de uso.
Igualmente, “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar
contrato de trabalho” (art. 198), é norma que não pode ser aplicada, analogicamente, a
quem constranger outrem a “NÃO CELEBRAR CONTRATO”.
Outro exemplo: falsificar estampilha constitui delito (art. 293 – I), bem como
falsificar moeda (art. 289) ou “guardar” moeda falsa (§ 1º); no entanto, “guardar estampilha
falsa” não caracteriza uma infração, por não prevista expressamente, não se podendo impor
analogicamente, a esta conduta, as penas do art. 289, § 1º.
III – Analogia “In bonam” e “In malam partem”
7. Dos exemplos acima deduz-se que a aplicação da analogia é defesa quando “in
malam partem”, por falta previsão legal e o intérprete não pode criar figuras delitivas.
Todavia, é perfeitamente cabível a analogia “in bonam partem” (art. 4º, da L.I.C.C.;
Const. Federal, art. 5º, inciso XL), tratando-se de leis penais não incriminadoras.
8. Assim, por exemplo, a regra do art. 108-VIII do C.P. prevê a extinção da
punibilidade “pelo casamento DO AGENTE com a ofendida, nos crimes contra os
costumes”; mas a mulher pode ser sujeito ativo de atentado violento ao pudor ou corrupção
de menores (arts. 214 e 218); então, se A AGENTE se casar como ofendido extingue-se a
punibilidade?
Não há texto expresso, mas o art. 108-VIII contém um preceito análogo (inversão dos
sexos), podendo-se constatar a lacuna porque a mesma razão do legislador alcança o não
regulado, e o intérprete pode então, aplicá-lo ao caso inverso.
9. Também pela regra do art. 128-II não se pune o aborto praticado por médico, se
“resulta de estupro” (art. 213); mas, e se for resultado de atentado violento ao pudor (art.
214)?
Cabe igualmente, a aplicação da analogia, pois embora não haja norma a respeito,
para casos idênticos não poderia haver soluções diversas.
Nos dois casos portanto, a analogia é cabível.
Não cabe, entretanto, a interpretação extensiva, pois por esta se concluiria ser
vontade da lei excluir aquelas hipóteses, ou seja, casamento DO AGENTE COM A
OFENDIDA, e não o contrário; ESTUPRO e não ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR.
Daí inferir-se que a interpretação extensiva reconstrói a vontade legislativa, existente
para a relação jurídica, e que só por inexata formulação parece, à primeira vista, excluída,
enquanto a analogia a supre, estendendo o que é válido para certo caso a outro que lhe seja
similar.
IV – A Interpretação
10. Como se depreende, o problema das Lacunas está ligado ao tema da Analogia e
sua aplicação pelo Intérprete, o qual, em sua atividade através da interpretação extensiva
dificilmente deixará de ser uma função criadora do direito.
ROBERT LEGROS, jogando com a divisão entre juízo civil e juízo penal, não vê
diferenças em suas atividades interpretativas, afirmando que o juiz civil sempre pode criar,
no quadro geral da lei, enquanto o juiz penal tem os mesmos poderes na decisão absolutória
(Nos. 33, 34 e 35).
E conclui que tanto ao juiz civil como ao penal se deve reconhecer um amplo poder
de interpretação, com limites objetivos para evitar o arbítrio puro e pela pesquisa científica.
11. Cremos, de fato, não haver fundamento para o juiz não interpretar criativamente
as normas legais, sob receio de ofender a lei, única que geraria o direito, se lembrarmos que
inúmeras sentenças, confirmadas em superior instância, vêm a consolidar tendências
jurisprudenciais, que exercem função precípua na formação de um direito quase normativo.
Interessantes considerações tece ALBERTO VICENTE FERNANDEZ sobre a
função do juiz, admitido que a sentença é verdadeira criação judicial, constituindo-se em
norma individual, porém “función creadora condicionada por los variados sectores del
ordenamiento jurídico, que contiene valores históricos objetivos y objetivados” (Función
creadora del juez, p. 89/91).
12. SADOK BELAID, em profundo estudo sobre o poder criador do juiz, enfatiza a
necessidade revisional de superadas teorias que negam ao juiz uma atitude criadora,
afirmando que o magistrado é “un agent créateur du droit” (Essai sur le pouvoir créateur et
normatif du juge, p. 6).
13. VICENTE RÁO, em clássica obra, adverte que não é lícito ao juiz "criar novas
normas, bastando socorrer-se da analogia e dos princípios gerais", mas ressalva que a
jurisprudência constitui apreciável força supletiva do direito, pois "haveria paradoxo em se
atribuir aos juízes a função de suprir as lacunas da lei, ou a própria falta de lei e não querer
reconhecer-lhes, em certo sentido, uma função criadora do direito subsidiário, criação que,
até sobrevir lei em contrário, se mantém e se perpetua pela força própria do princípio que
reclama julgado igual para casos iguais" (O direito e a vida dos direitos, V. I, p. 230 e 232).
14. Concluindo, vemos que, no desempenho de suas funções jurisdicionais, deve o
juiz manter-se sintonizado com a realidade social que o envolve, procurando, a cada
demanda que lhe toca, decidir de forma criativa, aplicando a lei abstrata de modo mais
amplo e inteligente e interpretando com larguesa formas estáticas do processo, que, por sua
rigidez, levam à ineficiência das instituições e ao desprestígio da Justiça. (cf. nosso Poderes
Éticos do Juiz, p. 101).
Bibliografia consultada:
1. LEGROS, Robert. Considérations sur les lacunes et I'interprétation en droit penal. In: Le
Probléme des Lacunes en Droit. Bruxelas, Établ. Émile Bruiylant, 1968, p. 363.
2. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa, F. Calouste Gulbenkian,
1972, 3ª ed.
3. PEDROSO, Antônio Carlos de Campos. Integração Normativa. S. Paulo, Edit. Rev.
Tribs, 1985.
4. ATIENZA RODRIGUES, Manuel. Sobre Ia analogia en el Derecho. Madrid, Edit.
Civitas, 1986.
5. FRANÇA, R. Limongi. Elementos de Hermenêutica e Aplicação do Direito. S. Paulo,
Edit. Saraiva, 1984.
6. SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz. P. Alegre, Sérgio Fabris Editor,
1987.
7. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. S. Paulo, 1973 (Cap.
III, item 4, p. 132/145)
8. FERNANDEZ, Alberto Vicente. Función creadora del juez. Bs. Aires, Abeledo-Perrot,
1970.
9. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. S. Paulo, Ed. Resenha Universitária, 1976,
2ª ed.
10. BELAID, Sadok. Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge. Paris, L.G.D.J.,
1974.
11. RODRÍGUEZ PANIAGUA, José Maria. Métodos para el conocimiento del derecho.
Madrid, Universidad Complutense, 1987.
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Lacunas e Interpretação na Lei Penal in Rev. de Julgados
e Doutrina do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo, v. 21 (jan.mar), pp.
25/28.
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