A RECENTE QUESTÃO AGRÁRIA E OS MODELOS DE

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4º ENCONTRO NACIONAL DE GRUPOS DE PESQUISA, São Paulo, pp. 927-951, 2008.
A RECENTE QUESTÃO AGRÁRIA E OS MODELOS DE DESENVOLVIMENTO DO
CAMPO BRASILEIRO.
A RECENT AGRARIAN ISSUE AND THE DEVELOPMENT OF MODELS OF THE
BRAZILIAN FIELD.
Raphael Medina Ribeiro
Programa de Pós-Graduação em Geografia - UFU
Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário – INCRA/Sede.
[email protected]
João Cleps Júnior
Instituto de Geografia e Programa de Pós-Graduação em Geografia - UFU
[email protected]
Resumo:
Os elementos que compõem ou expressam a questão agrária brasileira ao longo da
década
de
2000,
evidenciam
o
embate
existente
entre
dois
modelos
de
desenvolvimento que se reproduzem no campo brasileiro: a agricultura camponesa e o
agronegócio. Este tem se manifestado de forma bastante clara nos últimos anos,
envolvendo uma diversidade de atores sociais, com destaque para as organizações
sociais que representam a agricultura camponesa/familiar e o agronegócio e o poder
público (executivo, legislativo e judiciário) nas esferas local, estadual e federal. No
âmbito do Governo Federal e no Congresso Nacional, se constatam a atuação de duas
representações políticas organizadas: a bancada ruralista (Frente Parlamentar de
Apoio à Agropecuária) e a Frente da Terra.
Palavras-Chave: Questão agrária, atores socais, agronegócio, agricultura camponesa.
Abstract:
928
4º ENGRUP, São Paulo, 2008
RIBEEIRO, R. M. et ALL
The elements that take part or express the Brazilian agrarian issue throughout the
decade of 2000, show the confrontation between two development models that are
reproduced in the Brazilian field: the peasant agriculture and agribusiness. This
confrontation has been shown itself quite clearly lately, involving a variety of social
actors, with an emphasis on the social organizations that represent the peasant
agriculture/familiar and the agribusiness and the public power (executive, legislative and
judicial) in the local, state and federal spheres. Under the Federal Government and the
National Congress, there are two political offices performances organized: the rural
bench (Parliamentary Front of Agricultural Support ) and the Earth Front.
keywords: Agrarian reform, social actors, agribusiness, peasant agriculture.
1. Questão agrária e os modelos de desenvolvimento do campo brasileiro: o
embate entre agronegócio e agricultura camponesa/familiar.
“Os problemas referentes à questão agrária estão relacionados, essencialmente,
à propriedade da terra, consequentemente à concentração da estrutura fundiária; aos
processos de expropriação, expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais: camponeses
e assalariados; à luta pela terra, pela reforma agrária e pela resistência na terra; à
violência extrema contra os trabalhadores, à produção, abastecimento e segurança
alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e seus padrões
tecnológicos, às políticas agrícolas e ao mercado, ao campo e à cidade, à qualidade de
vida e dignidade humana. Por tudo isso, a questão agrária compreende as dimensões
econômica, social e política.” (FERNANDES, 2001, p. 23-24).
Os elementos que compõem ou expressam a questão agrária brasileira ao longo
da década de 2000, evidenciam o embate existente entre dois modelos de
desenvolvimento que se reproduzem no campo brasileiro: a agricultura camponesa ou
familiar e o agronegócio.
Esse embate está presente em vários setores da sociedade brasileira, sobretudo
no cenário social e político, trazendo à tona a defesa, afirmação, sustentação e
desarticulação tanto de um quanto de outro modelo, mediante a atuação de uma
diversidade de atores sociais envolvidos. Desses, podemos destacar:
A recente questão agrária e os modelos de desenvolvimento do campo brasileiro, pp.
927-951.
•
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o Estado brasileiro ou poder público, por meio de suas administrações e
mandatos/gestões, bem como os representantes e dirigentes do poder
executivo, legislativo e judiciário;
•
a classe dos grandes proprietários de terras / latifundiários, os empresários do
setor agrícola, assim como suas organizações representativas (sindicato
patronal, confederações, UDR, CNA, SNA, etc);
•
os camponeses, agricultores familiares, trabalhadores rurais e populações
tradicionais, bem como suas associações, sindicatos, entidades e movimentos
sociais;
•
universidades, centros de pesquisa, instituições públicas municipais, estaduais e
federais de caráter técnico e científico ( Embrapa, Conab, Incra, Emater,
institutos estaduais de terras, agências de desenvolvimento rural, etc.) que
atuam e prestam serviços junto ao setor agropecuário de maneira geral;
•
os meios de comunicação de massa / a mídia, que transmitem à sociedade em
geral informações e opiniões sobre a realidade e o desenvolvimento do modelo
do agronegócio e da agricultura camponesa/familiar no país;
Esse amplo e diversificado conjunto de atores sociais estão envolvidos em maior
ou menor proporção na construção, sustentação e avanço destes dois modelos de
desenvolvimento do campo brasileiro – agricultura camponesa e agronegócio,
mediante diferentes concepções, projetos, posicionamentos político-ideológicos e
formas de atuação e de intervenção social.
Dentre esses, podemos destacar a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a
Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), a Ong Greenpeace e os
movimentos de luta pela terra, como o MST e a Via Campesina. Essas organizações,
dentre outras que se dedicam ao tema, são responsáveis por vários documentos,
estudos, relatórios, campanhas e mobilizações; propiciando o debate e a realização de
experiências concretas (ações, projetos, programas, etc), em direção à construção de
um modelo de desenvolvimento do campo brasileiro, assentado pelas bases sociais,
políticas e econômicas da agricultura camponesa/ familiar.
Ainda dentro desse conjunto de atores sociais, fazem parte organizações sociais
e entidades como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Sociedade
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Nacional da Agricultura (SNA), a Frente Parlamentar de Apoio a Agropecuária (FPAA),
e as representações estaduais e municipais dos grandes produtores agrícolas
(sindicatos patronais), que atuam e intervém no conjunto da sociedade, seja na esfera
civil ou governamental, no intuito de garantir a sustentação e o avanço do agronegócio
como modelo de desenvolvimento predominante ao campo brasileiro.
No
âmbito
da
comunidade
científica,
constatam-se
diversos
estudos
desenvolvidos ou em execução por laboratórios e institutos de pesquisa, grupos de
pesquisadores, assim como por entidades e Ong’s, os quais fomentam o debate e
reflexões acerca da viabilidade e sustentabilidade da agricultura camponesa e do
agronegócio no campo brasileiro. Cabe destacar, a chamada de publicação da revista
científica “Agrária”, divulgada no primeiro semestre de 2008 pelo Laboratório de
Geografia Agrária do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, a
qual trouxe como temática a questão “Agroecologia x Agronegócio” 1.
Outro
registro
refere-se
à
divulgação
do
relatório
“O
Brasil
dos
Agrocombustíveis: os Impactos das Lavouras sobre a Terra, o Meio e a Sociedade –
Soja e Mamona (2008)”, elaborado pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis
da ONG Repórter Brasil. Esse estudo teve por objetivo “avaliar os impactos
socioeconômicos, ambientais, fundiários, trabalhistas e sobre populações indígenas e
tradicionais”, oriundos da expansão de grandes lavouras no país, com enfoque nesse
primeiro volume para as culturas de soja e a mamona.
Em abril de 2008, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou o relatório
“Conflitos no Campo - Brasil 2007” 2, com dados em escala nacional e análises sobre
os “conflitos e violências que atingem as comunidades camponesas e os movimentos e
organizações de trabalhadores do campo”. O processo de expansão econômica,
territorial e também política do agronegócio, bem como seus efeitos socioambientais,
sobretudo às populações que vivem no meio rural, consistiram na tônica desse
relatório, confirmando a centralidade da discussão acerca do embate entre agricultura
camponesa e agronegócio, no contexto da recente questão agrária brasileira.
1
E-mail enviado em 16/05/2008, por Josselito Batista de Jesus, do Laboratório de Geografia Agrária do
Departamento de Geografia da USP, de divulgação da chamada de trabalhos para publicação no sétimo
número da Revista Agrária (http://www.geografia.fflch.usp.br/revistaagraria/index.htm.)
2
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) publica anualmente o Relatório Conflitos no Campo – Brasil.
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Exemplo disso são os efeitos da expansão do setor sucro-alcooleiro em alguns
estados do Brasil (SP, PR, MG, MS) associados particularmente à superexploração de
mão-de-obra, na qual mais da metade das libertações de trabalhadores em condições
degradantes na atividade agropecuária ocorreram em usinas de cana-de-açúcar –
3.131 pessoas do total de 5.974, durante o ano de 2007 (Conflitos no Campo - Brasil
2007).
A frase citada logo na apresentação do relatório: “os agrocombustíveis roubaram
a cena no ano de 2007”, realça a expressiva expansão do agronegócio no país no
período recente, principalmente devido ao aumento das safras e área plantada de
culturas como cana-de-açúcar, soja, milho e das florestas industriais (pinus e
eucalipto).
Entretanto, por detrás dos recordes históricos das safras, de grandes
investimentos financeiros e tecnológicos e do volume de exportações alcançados pelos
grandes empreendimentos agrícolas, se observa em várias regiões do país a
ocorrência de conflitos por terra, conflitos trabalhistas e ações violentas do poder
privado (e por vezes também do poder público), a fim de garantir a sustentação
econômica e política, e o avanço desse modelo.
A respeito da lógica que assegura a reprodução do agronegócio, o pesquisador
Bernardo Mançano Fernandes (2005) afirma que
o processo de construção da imagem do agronegócio oculta seu caráter
concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância
somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção,
da riqueza e das novas tecnologias. Todavia a questão estrutural
permanece. Do trabalho escravo à colheitadeira controlada por satélite,
o processo de exploração e dominação está presente, a concentração
da propriedade da terra se intensifica e a destruição do campesinato
aumenta.
[...] De modo que houve o aperfeiçoamento do processo, mas não a
solução dos problemas socioeconômicos e políticos: o latifúndio efetua
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a exclusão pela improdutividade, o agronegócio promove a exclusão
pela intensa produtividade.
Nesse contexto, a agricultura camponesa e os trabalhadores rurais sentem os
efeitos sociais da expansão do agronegócio. As populações rurais (pequenos
posseiros, populações tradicionais, camponeses, trabalhadores rurais) são ameaçadas
de várias maneiras em seu modo de vida e de reprodução social, mediante a
exploração intensiva da mão-de-obra assalariada no campo, o controle/domínio do
acesso às terras ou outros recursos naturais (águas, florestas); e através de ações de
expulsão e despejo de pequenos posseiros e de ocupantes de terras.
Vale ressaltar que a ocorrência desses conflitos, supostamente atribuída aos
movimentos de luta pela terra e organizações representativas de trabalhadores rurais,
dificilmente são divulgados pela grande mídia de forma contextualizada, pois esta não
problematiza sua essência, as causas e motivações existentes. Essa realidade
contribui sobremaneira para tornar “invisível a conflitualidade do agronegócio”,
conforme destaca Fernandes (2005).
A apologia ao agronegócio, realizada pela mídia, pelas empresas e pelo
Estado, é uma forma de criar uma espécie de blindagem desse modelo,
procurando invisibilizar sua conflitualidade. O agronegócio procura
representar a imagem da produtividade, da geração de riquezas para o
país. Desse modo, aparece como espaço produtivo por excelência, cuja
supremacia não pode ser ameaçada pela ocupação da terra.
Tal situação ocorre, por exemplo, nas ocupações de grandes fazendas que não
cumprem o preceito da função social da propriedade, isto é, que desrespeitam as
legislações trabalhistas, ambientais ou são improdutivas. A motivação que muitas
vezes desencadeia esses conflitos é omitida ou distanciada, principalmente pela
cobertura realizada por grande parte da mídia nacional, cedendo lugar nos noticiários
A recente questão agrária e os modelos de desenvolvimento do campo brasileiro, pp.
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aos saques, depredações e demais transtornos promovidos pelos militantes dos
movimentos sociais, nos momentos de confronto direto.
Da mesma forma, a grande mídia encobre as ações violentas e os dispositivos
de controle social empregados como forma de sustentação e avanço do modelo do
agronegócio, que de modo recorrente descumpre a própria legislação constitucional e
os princípios de direitos humanos. Vemos isso acontecer na apropriação ilegal ou
controle de uso e posse de recursos naturais como as terras, águas e florestas
praticados
por
grandes
empreendimentos
econômicos
-
sobre
territórios
tradicionalmente ocupados por populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos,
extrativistas, em várias regiões do país.
Tampouco, os grandes meios de comunicação de massa não despertam o
debate junto à opinião pública nacional, por exemplo, sobre os elevados índices de
concentração da propriedade da terra no país ou os milhões de hectares de terras
avaliados como propriedades improdutivas, passíveis legalmente de desapropriação
para fins de reforma agrária. Outro dado que não é levado ao conhecimento da
sociedade em geral, é o estoque de terras públicas de propriedade da União e dos
estados, que de acordo com critérios técnicos de viabilidade econômica e produtiva
dessas áreas, poderiam ser destinadas à um programa massivo de reforma agrária.
Consideramos que tais informações e dados, caso fossem apresentados e
debatidos de forma contextualizada pelos grandes veículos de comunicação de massa
do país, poderiam esclarecer e transmitir a realidade e a urgência de avanços quanto à
questão agrária brasileira. Construindo outra percepção dos conflitos por terra ou da
necessidade de um programa efetivo de reforma agrária, que não seja a partir da
criminalização ou do estigma negativo de seus atores sociais, principalmente os
movimentos de luta pela terra.
Em contrapartida, diversos movimentos de luta pela terra, entidades, sindicatos
de trabalhadores rurais e demais atores sociais que apóiam a reforma agrária e a
agricultura camponesa/familiar, tem se manifestado contra o avanço do modelo do
agronegócio, sobretudo nesta década.
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Figura 1 – Ocupação realizada pelo MST na Superintendência Regional do INCRA de Mato
Grosso. Cuiabá, 24-06-2008.
A resistência contra a expansão do agronegócio ganhou centralidade nos
últimos anos, notadamente nos espaços de mobilização política, nas pautas de luta e
nas diversas ações realizadas pelos movimentos de luta pela terra e de reforma
agrária, associações, sindicatos e confederações de agricultores familiares e
trabalhadores rurais, em nível local, regional e nacional.
Uma das diretoras nacionais do MST, Marina dos Santos, destaca alguns
elementos da ofensiva do modelo do agronegócio sobre o campo brasileiro, em sua
fala durante as comemorações do Dia Internacional da Luta Camponesa3 no ano de
2008.
Companheiros (as), certamente esta homenagem feita para nós e com
nós, nessa noite, ela acontece num momento muito importante, porque
nós estamos vivendo uma etapa muito complexa no campo brasileiro. E
ela é complexa porque os governos fazem uma ampla propaganda, um
amplo discurso das ações que estão fazendo em torno da reforma
agrária, mas na pratica o que nós vemos nas ações do governo, é o
apoio, o incentivo aos setores do agronegócio.
3
Na Sessão Solene em comemoração ao Dia Internacional da Luta Camponesa, realizada pela Câmera
Legislativa do Distrito Federal, na cidade de Brasília, em 15-04-2008.
A recente questão agrária e os modelos de desenvolvimento do campo brasileiro, pp.
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E nesse momento em que o mundo todo está preocupado com o que a
intervenção das empresas transnacionais tem feito na apropriação da
terra, da água, dos recursos naturais, da biodiversidade, e se
apropriando de todos esses recursos naturais dos países, com a
prioridade para a produção dos agrocombustiveis, dos monocultivos
para a exportação, como a soja, cana, pinus e eucalipto.
De forma breve, a dirigente do MST expõe aspectos relevantes da questão
agrária recente, acerca da conjuntura nacional e internacional que concorre ao
desenvolvimento e avanço do agronegócio no Brasil e noutros países. Aponta a
questão dos incentivos concedidos pelo Governo Federal aos setores do agronegócio,
assim como a ofensiva mundial empreendida por empresas transnacionais, (e por
organismos financeiros internacionais, como FMI, Banco Mundial), com vistas à
apropriação e o controle de uso e acesso aos recursos naturais em vários países.
Esse modelo tem pautado o desenvolvimento das políticas agrícolas “nacionais”,
principalmente nos países em desenvolvimento, direcionando os recursos naturais (as
terras, recursos hídricos, etc) e os investimentos governamentais, no intuito de
sustentar a produção dos agrocombustíveis e dos monocultivos para exportação.
Dessa forma, são concedidos créditos e financiamentos públicos para grandes
empreendimentos agrícolas, assim como se realizam investimentos em infra-estrutura,
como estradas, portos fluviais e terrestres e usinas de geração de energia.
Ademais, a fala de Marina dos Santos reflete um posicionamento recorrente
entre várias entidades, organizações e movimentos sociais que atuam pela reforma
agrária, externado em eventos, manifestações e mobilizações ou nos espaços onde
seus dirigentes e representantes tem a oportunidade de se pronunciarem. Trata-se do
enfrentamento contra o modelo do agronegócio, enquanto projeto hegemônico de
desenvolvimento do campo brasileiro.
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Tal posição também aparece de forma nítida numa palestra com a representante
da direção nacional da FETRAF-Brasil
4
- Maria da Graça Amorim, apresentada
durante o Seminário “O Futuro da Agricultura Brasileira e o Desenvolvimento Rural
Sustentável” 5.
Eu quero afirmar aqui que nós da Fetraf temos muito claro – o
agronegócio nunca será amigo da agricultura familiar, para nós são
duas coisas totalmente opostas, os interesses do agronegócio não são
os interesses da agricultura familiar e nem da reforma agrária. E nós
estamos presenciando isso agora, recente, inclusive na renegociação
das dívidas, aonde erronicamente o governo brasileiro tenta juntar todos
dentro de um saco, amarrar a boca do saco, dar um nó, e levar e dizer
tá aqui, negociamos, tá prontinho, tá resolvido a vida.
Não é isso, a dívida do agronegócio é dívida grande, é dívida a custo
também, de favorecimento desse Estado brasileiro a eles, porque eles
têm acesso fácil aos bancos, eles têm a terra, porque eles adquirem a
terra fácil [...].
[...] Não existe convergência e nem conivência da agricultura familiar e
da reforma agrária com o agronegócio.
Os pontos ressaltados pela diretora nacional da FETRAF expressam a
divergência entre os projetos, demandas e interesses da agricultura familiar e
movimentos sociais e o setor do agronegócio, assim como a crítica aos
encaminhamentos propostos pelo Governo Federal para resolver os problemas
relacionados à agricultura brasileira.
Um desses embates se refere às negociações sobre o endividamento dos
produtores agrícolas do país, tema que entre 2007 e o primeiro semestre de 2008
ganhou repercussão no cenário político nacional, especialmente através das
4
Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil.
Evento organizando pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), em parceria com o INCRA
(Sede), entre os dias 27 e 28 de março de 2008, na cidade de Brasília-DF.
5
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articulações políticas, rodadas de negociações e manifestações dos setores
diretamente envolvidos - os segmentos dos produtores rurais (pequenos, médios e
grandes) e suas entidades representativas, além do acompanhamento e atuação dos
parlamentares que trabalham junto a essa demanda. Todo esse processo vem sendo
construído a fim de que seja apresentado pelo Poder Executivo, e posteriormente
analisado e votado no Congresso Nacional, um conjunto de medidas para reestruturar
as dívidas contraídas pelos milhares de produtores agrícolas do país, no decorrer dos
últimos anos.
A diretora da FETRAF critica a estratégia levada a diante pelo Governo Federal,
de reestruturar todas as dívidas dos financiamentos e créditos concedidos aos
pequenos, médios e grandes produtores agrícolas, dentro de um mesmo contexto de
negociação, ou como ela afirma, “tentando juntar todos no mesmo saco”. Desse modo,
a FETRAF, assim como a coordenação nacional da CONTAG, se posicionaram
contrárias a esse encaminhamento tomado pelo Governo Federal.
A seguir, temos o relato de Manoel dos Santos, presidente da CONTAG,
também apresentado no referido seminário organizado pela Abra e Incra, em março de
2008, a respeito da renegociação do endividamento dos produtores rurais.
E essa semana nós tivemos uma grande surpresa, que foi - nós tivemos
um processo de discussão da vida da agricultura familiar, a partir do
MDA, buscando fazer uma negociação - a parte só da agricultura
familiar, e de repente o governo apresenta uma proposta, um
diagnóstico de todas as dívidas dos grandes e dos pequenos. As
propostas para renegociação das dívidas, têm algumas delas que é
melhor para os empresários do que para a agricultura familiar.
Por exemplo, o percentual de adesão do grande latifúndio, pra aderir à
negociação da sua dívida, ele só precisa pagar 2% e a sua dívida será
renegociada, dialogada, na proposta do governo, de 15 anos. O
agricultor familiar na proposta que veio, ele tem que pagar pra poder
aderir à negociação, entre 5% e 10% e a prorrogação é só por quatro
anos. Quer dizer, está se invertendo o processo da prioridade - que
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antes era dar prioridade para um tratamento pra melhor, para quem
mais precisa de ajuda, que é a agricultura familiar, e nessa proposta é o
inverso, para dar tratamento melhor aos grandes, e nós sabemos
porque. Sabemos que a pressão do Ministério da Agricultura é muito
grande, e a proposta foi elaborada com o acompanhamento dos
técnicos da bancada ruralista e companhia.
Nesse sentido, os principais pontos que expressam uma posição contrária e
divergente ao modelo do modelo do agronegócio - manifestados principalmente pelas
organizações sociais (entidades, associações, movimentos sociais) que representam a
agricultura camponesa/familiar, se concentram na denúncia de suas relações sociais
estruturantes e de princípios que asseguram a sua sustentação econômica e política.
A crítica ao agronegócio também está centrada no apoio e incentivos dados por
sucessivos governos da esfera federal, estadual e municipal, assim como pelos
parlamentares que atuam no poder legislativo - câmaras municipais, assembléias
legislativas e no Congresso Nacional, em favor dos interesses e do fortalecimento da
política agrícola desse setor. Esse quadro se concretiza através de medidas políticas
encaminhadas tanto pelo poder executivo, por meio da publicação de Decretos,
Portarias, Instruções Normativas, Medidas Provisórias, como no âmbito do poder
legislativo, através da aprovação de projetos de lei, em favor das demandas do setor
do agronegócio.
Os pesquisadores Guilherme Costa Delgado (2008)6 e Ariovaldo Umbelino de
Oliveira (2008)7 tem denunciado algumas medidas políticas levadas a efeito pelo
Governo Federal que vão de encontro aos interesses do agronegócio no país.
Uma delas é a medida provisória MP 422/2008, que permite a legalização de
posses na Amazônia Legal com tamanho de até 15 módulos fiscais (em média 1.500
ha naquela região) sem a necessidade de licitação pública, possibilitando que
6
DELGADO. G. C. O lado obscuro do agronegócio incentivado por novas MP’s. Radioagência Notícias
do Planalto, 24.04.2008.
7
OLIVEIRA, A. U. A MP 422 será a farra da legalização da grilagem das terras na Amazônia.
Radioagência Notícias do Planalto, 1.04.2008.
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“proprietários” que se apropriaram indevidamente de terras da União, através de meios
ilegais como a grilagem, legitimem suas posses. Aliás, em grande parte são os que
contribuem para os altos índices do desmatamento na região amazônica, através da
extração ilegal de madeira e da abertura de áreas de florestas nativas para a formação
de pastos ou a produção de grãos.
No entanto, o que o Governo Lula tem permitido por meio de medidas políticas é
o aumento da área passível de ser regularizada. Conforme destaca Oliveira (2008), de
áreas com até 50 hectares - limite estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o
Governo passou em 20058 a legitimar posses com até 500 hectares. E em 2007,
através da publicação de uma Instrução Normativa, o limite de regularização de posses
na Amazônia Legal foi alterado para até 15 módulos fiscais, que em média na naquela
região, representa 1.500 hectares.
Dessa forma, essas medidas passam por cima do marco legal conquistado na
Constituição Federal de 1988, como também representam “mudanças normativas de
relações sociais, indo na contra-mão dos princípios da igualdade e da justiça social já
positivados no nosso direito social”, conforme assevera Delgado (2008).
Desse modo, através dos órgãos executores da política agrária nacional, Incra e
MDA, o Governo Federal tem deslocado o foco das ações de regularização fundiária na
Amazônia Legal, mais especificamente sobre a destinação de terras públicas da união.
Verifica-se que além de pequenas posses, ocupadas tradicionalmente por grupos
sociais como ribeirinhos, extrativistas, quilombolas, o Governo passa também a
regularizar áreas muito maiores, ocupadas principalmente pela pecuária extensiva e o
cultivo de grãos, que destinam sua produção ao Centro-sul do país ou à exportação.
Outro dado importante registrado por Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2008), é
que a Constituição Federal de 1988 prescreveu a compatibilização da destinação de
terras públicas ao plano nacional de reforma agrária, motivando dessa maneira a
criação de projetos de assentamentos nessas áreas. Mas o que temos visto a partir das
8
Através do artigo 118 da Lei nº 11.196 de 21/11/2005 (a chamada “Medida Provisória do bem”), alterou
a lei de licitações públicas (Lei Nº 8.666, de 21/06/1993) conseguindo a permissão para regularizar
posses de até 500 hectares, conforme registra Oliveira (2008).
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ações do atual Governo Federal, é a destinação dessas terras públicas aos produtores
agrícolas do agronegócio.
Esta é mais uma das evidências concretas de que estamos presenciando a
expansão do modelo do agronegócio no país, que para além das iniciativas e
investimentos dos próprios produtores agrícolas, contam com incentivos dos governos.
Com relação à MP 422, constatamos que a medida tem sido bem recebida por
setores do agronegócio e suas entidades representativas, conforme destaca o trecho
da reportagem abaixo:
O aumento do limite da margem de titulação de terras públicas é antiga
reivindicação da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil
(CNA). Desde 2003, a entidade, através da Comissão de Assuntos
Fundiários, vem debatendo o tema com o Governo. A edição da medida
foi comemorada pelo Assessor técnico da CNA, Anaximandro Almeida.
Segundo ele, a proposta deverá resolver o grave problema fundiário da
região, através da permissão de concessão de título propriedade ou
direito legal de uso do imóvel. “agora nós iremos trabalhar para que a
medida provisória seja aprovada no Congresso”. Frisou.
Para a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato),
a medida traz segurança para o produtor rural com a legitimação da
posse. Segundo Valdir Correa, diretor secretário da Federação, a
regularização fundiária foi uma grande conquista das entidades
representativas dos produtores e significa desenvolvimento para a
região amazônica. “A partir da regulamentação de sua área o produtor
terá segurança para investir em sua propriedade, promovendo a
geração de empregos e aquecimento da economia.” Afirmou Correa9.
9
A MP 422 é bem recebida pelo setor. Midianews, 28.03.2008.
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Pelo exposto, o estabelecimento de um limite maior para a área de legitimação
de posse configura há anos, uma grande reivindicação dos produtores agrícolas e de
suas entidades representativas, como a Confederação Nacional da Agricultura e
Pecuária (CNA) e a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato).
Assim sendo, a aprovação da MP 422/2008 representa uma conquista política
para o setor do agronegócio, fruto do trabalho de articulação política e de defesa dos
interesses do setor, com intensa atuação de seus representantes políticos organizados
na Bancada Ruralista, exercendo grande influência na tomada de decisões no âmbito
do Poder Executivo e do Congresso Nacional.
2. O embate entre agronegócio e agricultura camponesa na esfera política
nacional: Bancada ruralista e Frente Parlamentar da Terra.
O embate entre agricultura camponesa/familiar e agronegócio, tem se
expressado de forma bastante clara nesta década, no âmbito do Poder Executivo e no
Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), onde estão os
representantes políticos escolhidos pela população e são aprovadas decisões e leis
que afetam diretamente todo o conjunto da sociedade brasileira.
Por se constituir como espaço de representação de interesses e demandas, seja
da população de maneira geral ou de segmentos organizados, bem como pelo jogo de
correlação de forças políticas, este embate aparece como um território profícuo para
análises acerca do desenvolvimento da questão agrária no tempo presente.
Cabe ressaltar que não aprofundaremos esse tema, pois a intenção é apenas de
suscitar alguns elementos que contribuam para o entendimento da recente questão
agrária no cenário nacional, principalmente, apontando qual o contexto político e
ideológico em que se desenvolve o embate entre a agricultura camponesa/familiar e o
agronegócio.
Desse modo, identificamos falas, discursos e textos reproduzidos em vários
veículos de comunicação nacional (jornais e internet), proferidos por atores sociais
diretamente envolvidos com a questão agrária nacional – representantes e gestores
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governamentais do Incra e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), diretores
de entidades e movimentos de luta pela terra e reforma agrária (Contag, MST, Fetraf,
etc), deputados federais, senadores, pesquisadores, jornalistas, entre outros: os quais
informam sobre a existência e atuação de duas representações políticas organizadas
dentro do parlamento brasileiro, que representam classes sociais distintas.
Uma mais antiga que começou a se organizar como grupo político no período de
elaboração da Nova Constituinte, durante a legislatura de 1987-1991, a chamada
Bancada Ruralista, representante dos latifundiários, empresários do campo e demais
setores ligados ao agronegócio.
A outra representação política lançada oficialmente no Congresso Nacional em
2007 é a Frente Parlamentar da Terra, que reúne deputados federais e senadores
com o objetivo de defender os interesses dos pequenos agricultores, trabalhadores
rurais e populações tradicionais do país. Esse grupo conta com o apoio de movimentos
sociais de luta pela terra e organizações sociais que representam os pequenos
agricultores, assentados, populações tradicionais.
Uma das características que identifica o perfil político da bancada ruralista se
refere à sua atuação transversal e suprapartidária dentro do Congresso Nacional, a
partir da qual não se segue a lógica governistas/oposição na defesa de seus
interesses10.
Desse modo, alguns espaços de atuação estratégicos são sempre reivindicados
e sofrem pressão por garantia de representatividade, com a finalidade de
encaminharem propostas e decisões que atendam as pautas e projetos defendidos
pela bancada ruralista. Assim ocorre com a presidência da Comissão de Agricultura,
Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados; como
também no poder executivo, ao pressionarem para algum de seus representantes
assumirem a direção do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Ao longo desta década, os projetos defendidos pela bancada ruralista para
aprovação junto ao Congresso Nacional versam, dentre outras medidas, sobre
alterações na legislação ambiental brasileira, particularmente motivando a diminuição
10
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do percentual das áreas de reservas legal na Amazônia Legal11. Também incluem
proposições que dificultam a criação e demarcação de Terras Indígenas e Territórios
Quilombolas em diferentes regiões do país.
Aprovados mediante grande pressão da bancada ruralista no Congresso
Nacional, foram dois projetos de lei contidos no relatório final da CPMI da Terra,
finalizada em 2005, os quais consistiam em “dar conotação jurídica de ato terrorista às
ocupações de terra, e que o esbulho possessório (definido no texto como saque,
invasão, depredação ou incêndio de propriedade alheia) seja enquadrado como crime
hediondo” 12.
A partir de várias proposições e projetos encaminhados nos últimos anos pelos
parlamentares da bancada ruralista, observa-se a conformação de um ambiente
político no Congresso Nacional e no poder executivo, de apoio às condições de
sustentação e crescimento econômico do agronegócio no país.
Em favor da defesa dos interesses e demandas desse setor, alguns projetos
atingem o processo de luta e mobilização dos movimentos de luta pela terra, bem como
a soberania territorial e as formas de reprodução social de populações indígenas e
demais populações tradicionais. Exemplo disso são as medidas políticas que
criminalizam a ação política de movimentos de luta pela terra, como o MST, ou que
retrocedem quanto aos direitos indígenas e/ou em favor de uma agenda ambiental próativa em nível nacional.
Dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC)13 apontam que na
atual gestão do Governo Lula (2008-2011), a bancada ruralista cresceu 58,9%,
perfazendo 116 deputados federais, o equivalente a 22,6 % do total dos 513
parlamentares que compõem a Câmara dos Deputados. No período (2003-2007), a
bancada contava com 73 deputados federais.
11
A este respeito, consultar a proposição PL-1207/2007, de autoria do Deputado Wandenkolk Gonçalves
(PSDB/PA), apresentada ao Plenário da Câmara dos Deputados em 30/05/2007 Disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/integras/465221.pdf.
12
13
Parlamentares lançam Frente da Terra para fortalecer reforma agrária. 11.04.2007.
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Dada tamanha representatividade conquistada, a articulação política construída
pela bancada ruralista no Congresso Nacional e no âmbito do poder executivo, alcança
a adesão e apoio tanto de representantes da oposição quanto da base governista, no
sentido de acumular força política e a garantia de votos para aprovação de seus
projetos.
Obtiveram, nestes últimos 12 anos, vitórias consideráveis, como a
aprovação da Lei de Biossegurança; a liberação dos transgênicos por
meio de Medidas Provisórias; a aprovação do relatório final da CPMI da
Terra. Ainda garantiram que o governo mantivesse intacta a Medida
Provisória que suspende as vistorias nas áreas ocupadas pelos
movimentos sociais e penaliza os agricultores sem-terra que participam
de ocupações; e avançaram nas diversas renegociações das dívidas
dos grandes produtores rurais, entre outras conquistas.14
Ao longo dessa década a bancada ruralista vem se renovando e criando novas
formas de articulação política e de apresentação de seu discurso ideológico, sobretudo
a partir da construção de uma imagem positiva do agronegócio junto à sociedade
brasileira.
A grande participação no crescimento do PIB nacional e na geração de
commodities agrícolas (grãos, carne, celulose, etc), como carro-chefe das pautas de
exportação do país, são os principais argumentos utilizados pelo setor e pelos seus
representantes políticos, para reforçar o apoio do poder executivo e legislativo, além da
sociedade em geral, quanto à viabilidade desse modelo de desenvolvimento ao campo
brasileiro.
Por outro lado, nos últimos anos observa-se também que os representantes
políticos que apóiam e defendem os interesses dos agricultores familiares e
trabalhadores rurais ganharam maior notoriedade e espaço no Governo Federal e no
Congresso Nacional.
14
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Nacional. Brasília, 2007.
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Tal fato vem ocorrendo, sobretudo a partir de debates, mobilizações e
articulações políticas construídas entre os movimentos sociais (Via Campesina, MST,
Contag, Fetraf, entre outros), entidades (CPT, Fórum Nacional de Reforma Agrária,
ABRA, etc.), representantes políticos e dirigentes do poder executivo e legislativo (e em
menor proporção do poder judiciário), no sentido de sensibilizar a classe política para a
importância da construção de um “instrumento de luta” no parlamento brasileiro, que
defenda os interesses e demandas da reforma agrária e da agricultura familiar.
A materialização dessas iniciativas pode ser vista com a organização da “Frente
Parlamentar em Defesa da Terra, Território e Biodiversidade: Agricultura Familiar
Camponesa, Reforma Agrária e Desenvolvimento Sustentável”, mais conhecida como
Frente da Terra.
Lançada em abril de 2007 na Câmara dos Deputados, reunindo naquele momento
175deputados federais e 12 senadores, este grupo político vem trabalhando junto ao
Congresso Nacional e Poder Executivo, no sentido de sensibilizar e mobilizar
parlamentares e dirigentes do Governo Federal, assim como articular tais ações com a
sociedade civil (movimentos sociais, entidades, etc.), em favor da aprovação de
projetos de lei e medidas que avancem no cumprimento das demandas dos
agricultores, trabalhadores rurais, assentados, populações tradicionais e também
iniciativas ligadas à preservação do meio ambiente e de desenvolvimento sustentável.
O objetivo é seguir uma agenda de ações parlamentares que incentivem
e acelerem políticas públicas ligadas ao pequeno agricultor familiar, ao
meio ambiente, aos direitos humanos, ao reconhecimento de território
de povos tradicionais e ao cumprimento da Constituição Federal, no que
se refere à função social da terra.15
15
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Neste sentido, a Frente Parlamentar da Terra, mediante debates e contribuições
dos movimentos sociais e entidades ligados ao tema da reforma agrária e agricultura
familiar, vem construindo as pautas norteadoras de sua atuação política.
Dentre os projetos prioritários para aprovação junto ao Congresso Nacional,
estão algumas reivindicações de organizações sociais que lutam pela reforma agrária e
agricultura familiar (MST, Contag, Fetraf, ABRA, etc) assim como de dirigentes que
estão atualmente no Governo Lula, algumas delas históricas para os atores sociais
envolvidos nesse processo, como é o caso da demanda pela atualização dos índices
de produtividade da agricultura brasileira.
As falas de dois dirigentes que fazem parte da atual gestão do Governo Lula
(2007-2010), o Ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, e o Presidente
do INCRA, Rolf Hackbart, durante a solenidade de lançamento da Frente da Terra,
expressam os anseios e desafios políticos dentro do governo federal, para com as
demandas relativas ao segmento da agricultura camponesa/familiar e da reforma
agrária, conforme destaca os trechos de reportagens abaixo:
Segundo o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, a
iniciativa vem em “momento bastante oportuno”, pois na esteira do
debate sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro é preciso incluir a
discussão acerca do modelo desejado para o meio rural. “Temos que
escolher se queremos para o futuro um campo dominado por grandes
extensões de terra e pelas máquinas, ou com muitos produtores
gerando trabalho e renda”. Segundo Cassel, a Frente Parlamentar
nasce para defender o segundo projeto. Ao adotar este caráter, o bloco
será importante aliado dos defensores da reforma agrária e da
agricultura familiar e camponesa, completou o presidente do Incra, Rolf
Hackbart.16
Para ele [Rolf Hackbart/INCRA], a Frente vai discutir mais amplamente
as formas de utilização da terra. “O Incra trabalha nesse sentido, mas
16
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nós precisamos da Frente para fortalecer a reforma agrária, para
aprovar leis que contribuam para esse processo” [...]17
Pelo exposto, se observa a necessidade da construção de um ambiente político,
tanto no âmbito do poder executivo, como no poder legislativo (e também no judiciário),
que favoreçam as ações e programas orientados à efetivação de um processo de
reforma agrária e de fortalecimento da agricultura camponesa/familiar no país.
Outrossim, Darci Frigo, da ONG Terra de Direitos, ilustra tal situação afirmando que:
“não bastou eleger um presidente, estamos vendo que é preciso ocupar também o
parlamento”18 .
Neste contexto, ganha destaque o papel do poder legislativo na proposição e
aprovação de leis que contribuam com avanços no marco jurídico-institucional que
orientam as ações dos Planos Nacionais de Reforma Agrária, assim como demais
medidas que fortaleçam o segmento da agricultura familiar, nas áreas de crédito rural,
assistência técnica, comercialização, entre outras medidas.
Dentre as proposições (Projetos de Lei, Propostas de Emenda à Constituição,
etc.) que a Frente da Terra tem priorizado junto ao Congresso Nacional (Câmara e
Senado), duas se destacam:
•
A atualização dos índices de produtividade do setor agropecuário brasileiro:
Tais índices não são revisados desde 1980, e foram calculados levando-se em
consideração o Censo Agropecuário do IBGE de 1975. Com as mudanças no padrão
tecnológico e produtivo do campo brasileiro, ao longo das décadas de 80 e 90, os
índices ficaram defasados e não refletem mais a realidade da atividade agropecuária
do país no presente.
17
Governo brasileiro lança a Frente Parlamentar da Terra. [2008?].
Comentário proferido durante a solenidade de lançamento da Frente da Terra, na Câmara dos
Deputados, em Brasília, em abril de 2007. Parlamentares lançam Frente da Terra para fortalecer reforma
agrária. 11.04.2007.
18
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No debate acerca da atualização dos índices de produtividade, está em jogo o
número de propriedades rurais que não cumprirão os novos patamares de produção
propostos. Este fato assinala a situação de imóveis improdutivos, e por conseqüência,
o descumprimento da função social da propriedade da terra, tornando-os passíveis de
desapropriação para fins de reforma agrária pelo INCRA. Tal medida irá contribuir com
o aumento do número de imóveis que poderão ser desapropriados para a reforma
agrária.
A atualização dos índices expressa dessa maneira, um dos pontos importantes
de
embate
entre
as
forças
políticas
do
agronegócio
e
da
agricultura
camponesa/reforma agrária, seja na esfera de representação política - Governo
Federal e Congresso Nacional, seja na sociedade civil, onde atuam as organizações
sociais que representam esses dois segmentos.
•
Aprovação do Projeto de Emenda Constitucional – PEC 438/01:
Estabelece a expropriação de imóveis rurais com comprovada existência de
trabalho escravo. A PEC 438 de 2001 já foi aprovada no Senado, e em primeiro turno
na Câmara dos Deputados (em agosto de 2004), e até o presente momento (julho de
2008) está sendo discutida e aguarda sua aprovação em segundo turno.
Esta proposição tem sido alvo de intensas mobilizações da sociedade civil e de
órgãos governamentais que lidam com os conflitos fundiários (INCRA/MDA) e
trabalhistas (Ministério do Trabalho), a fim de que sejam tomadas medidas efetivas de
combate e punição à prática do trabalho escravo no campo brasileiro.
A medida visa punir de forma rígida os proprietários rurais que se utilizem da
prática de trabalho escravo em suas atividades produtivas, com a pena de
expropriação de suas terras, assim como garantir sua destinação para programas de
reforma agrária e ao assentamento de famílias.
3. Considerações finais.
O processo de construção dos modelos de desenvolvimento da agricultura
brasileira – agricultura camponesa/familiar e agronegócio, assim como o embate que
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existe entre esses dois paradigmas, vêm ocorrendo durante séculos na sociedade
brasileira.
Aliás, desde os tempos coloniais, em diferentes conjunturas históricas, eles coexistiram enquanto formas de organização sociopolítica e produtiva (a agricultura
camponesa e a agricultura capitalista), configurando como forças sociais e políticas que
historicamente demarcaram espaços e territórios.
Sendo que, para a afirmação, fortalecimento e avanço do modelo da agricultura
capitalista, as forças sociais (latifundários, políticos, empresários, etc.) que o
impulsionaram, no passado e no presente, o fizeram sob a égide da exploração e
subordinação da agricultura camponesa e dos trabalhadores rurais assalariados.
Por outro lado, as lutas sociais e a resistência dos camponeses e trabalhadores
rurais no campo, sempre representaram a negação da lógica social da agricultura
capitalista, e a afirmação da agricultura camponesa/familiar e de seus princípios, como
alternativa de desenvolvimento do campo brasileiro.
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4. Referências.
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