A EFICÁCIA DO CONTRATO DE TRABALHO À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL LUIZ MARCELO FIGUEIRAS DE GÓIS 1 I. - Introdução Em 10.01.2003, entrou em vigor a Lei no 10.406, que, ao instituir o que se convencionou denominar de Novo Código Civil, trouxe inúmeras inovações na tutela das relações intersubjetivas modernas. O diploma em questão, que começou a ser discutido ainda no ano de 1975, sofreu grande influência dos sistemas privados alemão e italiano, como por exemplo a própria técnica legislativa, que passava a positivar tipos legais abertos, mais suscetíveis de maleabilidade para adaptação às modificações que as relações sociais sofrem com o tempo. Pode-se perceber no legislador não mais a intenção de procurar tutelar toda e qualquer situação casuisticamente previsível, mas, ao contrário, o intuito de elaborar normas capazes de serem aplicadas simultaneamente a diversas situações. Criam-se, pois, normas que antes de disciplinar os atos do indivíduo propriamente, se preocupam em delinear parâmetros de conduta, dentro dos quais as vontades devem ser manifestadas. Este panorama foi traçado a partir da crise do positivismo kelseniano, que procurava encarar o direito como ciência e rejeitava toda e qualquer solução para dilemas jurídicos que não pudesse ser encontrada dentro do escopo das leis. No entanto, com a modernização das relações sociais e com os avassaladores avanços tecnológicos, se passou a perceber ser impossível, na prática, pensar “o direito pelo direito”, como pregava Kelsen. Assim, o pós-positivismo começou a dar seus primeiros passos, tendo obtido grande projeção na Europa Ocidental e, agora, começando a ganhar relevo também na América do Sul. O Novo Código Civil não fica fora desta tendência, sofrendo grande influência deste movimento jurídico, influência esta que acaba por repercutir também no Direito do Trabalho. 1 Advogado. Mestrando em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -1- II. - O Direito Civil como Fonte do Direito do Trabalho Levando-se em conta que todo o direito privado, e grande parte do público, encontra sustentação no Direito Civil, cumpre ao profissional do direito estudar as inovações trazidas pelo novo código, que certamente balizam as mais diversas áreas do direito. E como não poderia deixar de ser, o Direito do Trabalho é grandemente influenciado por tais novidades, que vão desde a modificação da sistemática da capacidade jurídica, até a modernização dos conceitos de empresa. Neste trabalho, entretanto, nos preocuparemos em enfatizar apenas as influências que o novo ordenamento civil trouxe diretamente ao contrato de trabalho, entendido como manifestação bilateral de vontade. Em doutrina, tem-se que a lei é a principal fonte do Direito do Trabalho. De acordo com uma visão clássica, no topo da pirâmide hierárquica das leis encontra-se a Constituição Federal, que possui normas específicas de Direito Trabalhista, como por exemplo seu art. 7o. Logo abaixo estão a Consolidação das Leis do Trabalho e demais leis ordinárias, que disciplinam e tutelam as relações de emprego. Portarias, Regulamentos e Instruções Normativas, muito embora não obedeçam ao processo legislativo comum, compõem a base da pirâmide. As fontes legais do Direito do Trabalho, por sua vez, dividem-se em fontes diretas e fontes indiretas ou incidentais. As primeiras correspondem a leis que trazem normas específicas da disciplina e buscam tutelar a relação de emprego. É o caso da própria Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei no 605/49, que disciplina o repouso semanal remunerado. Já as fontes indiretas são aquelas que trazem normas genéricas, que, embora não cuidem diretamente de preceitos trabalhistas, a eles se aplicam perifericamente. Assim é que a Lei no 8.666/93, que tem por finalidade disciplinar a celebração de contratos pela Administração Pública, incidentalmente traz preceitos trabalhistas, ao vedar a contratação de empregados pelo Poder Público sem a prestação do competente concurso público. Da mesma forma, o Código Civil é fonte indireta do Direito do Trabalho, uma vez que traz os conceitos de maioridade, capacidade, personalidade, negócio jurídico, nulidade, prescrição e mais tantos outros de que se vale a disciplina trabalhista. III. - O Contrato de Trabalho como Negócio Jurídico C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -2- Dentro deste quadro, apresenta-se o contrato de trabalho. Ora, a fattispecie “contrato” é uma modalidade de negócio jurídico, conceito oriundo do Direito Civil. Classicamente, se entende como sendo a manifestação da vontade humana destinada a produzir determinados efeitos jurídicos, efeitos estes, via de regra, caracterizados por uma ou várias prestações, positivas ou negativas (dar, fazer ou deixar de fazer). O que se tem, portanto, é que o foco principal dos negócios jurídicos sempre foi seu objeto, a obrigação principal criada para cada uma das partes contratantes. O comprador deve pagar enquanto o vendedor deve entregar a coisa. Pouca atenção dava a legislação às condições acessórias que norteavam sua celebração. Da mesma forma, após o adimplemento das partes não se cuidava de estudar eventuais efeitos de prolongamentos obrigacionais ao longo do tempo. No caso do contrato de trabalho, a doutrina enfatiza basicamente três obrigações principais, duas para o empregador e uma para o empregado. Este teria uma obrigação de fazer (disponibilizar sua força de trabalho), enquanto àquele caberia dar trabalho e pagar quantia certa mensalmente (salários) 2 . Todavia, o enfoque objetivista dos negócios jurídicos começa a ser posto à prova com a edição do Novo Código Civil. Este, influenciado por princípios constitucionais como o da boa-fé objetiva e da função social, pela primeira vez ousa positivar normas de caráter subjetivo, passando a tutelar os parâmetros de conduta dentro dos quais os contratantes devem manifestar sua vontade. A autonomia das vontades começa, pois, a dar lugar à “autonomia responsável das vontades”. É o caso, por exemplo, dos arts. 422, 187 e 421, do Código Civil de 2002, os dois primeiros dando ênfase à necessidade de boa-fé na consecução dos negócios jurídicos e os dois últimos positivando a questão da função social do contrato, verbis: Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 2 De Page, por sua vez, talvez já influenciado pelo movimento pós-positivista europeu, faz alusão a outras obrigações oriundas desta espécie contratual, que não se encontram especificamente tuteladas pelo direito positivado, dando relevância à figura da boa-fé contratual, como norte balizador da execução e interpretação do contrato. C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -3- Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. O que se percebe é que a visão do contrato como maneira de atingir uma prestação principal começa a dar lugar à necessidade de uma análise mais genérica, onde se estudem as condições pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais. O contrato deve deixar de ser visto por suas prestações principais e passar a ser encarado como uma totalidade, onde o regime legal cria para as partes, deveres incidentais à prática contratual, que devem ser cumpridos simultaneamente à obrigação principal. Não se quer aqui que se indague os motivos pelos quais este empregado ou aquela empresa está buscando firmar um contrato de labor. Nem seria razoável tamanha invasão do psicológico humano. O que deve ser considerado, isto sim, é se as partes balizaram-se em parâmetros de boa-fé na celebração do contrato de trabalho. Isto até mesmo no sentido de minimizar a condição de hipossuficiência em que presumidamente se encontram os trabalhadores ao contratar. Portanto, o que se pode desde já concluir é que, às obrigações clássicas decorrentes do contrato de trabalho, aliam-se outras, agora não mais previstas apenas em âmbito doutrinário, em razão das modificações trazidas pelo Código Civil de 2002. Ao se analisar um contrato de trabalho, a partir da entrada em vigor do novo diploma privado, é importante verificara conjuntura volitiva que amparou as partes quando de sua assinatura. Da mesma forma, é de se verificar se o empregado dispõe sua força de trabalho dentro de parâmetros de razoabilidade, se este guarda confidencialidade e sigilo para com os segredos do empreendimento, se o empregador trata seus funcionários de maneira humana, se o número de funcionários da empresa condiz com as reais necessidades da demanda de serviços e mais um sem número de situações, dentro das quais se faça necessário aferir se estão presentes elementos de boa-fé e de obediência à função social do emprego na relação de trabalho. IV. - Pré-Eficácia, Eficácia e Pós-Eficácia do Contrato de Trabalho C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -4- O contrato de trabalho, entendido como uma totalidade como acima visto, em determinadas situações pode produzir efeitos antes mesmo de sua celebração. Da mesma forma, pode ele criar obrigações que se prolonguem para além de seu término. São as chamadas pré-eficácia e pós-eficácia do contrato de trabalho, respectivamente. Ora, preliminar ao contrato, aparece no mundo jurídico a figura da proposta, que vincula o proponente quanto a seus termos e condições. A aceitação do oblato implica, em regra, aperfeiçoamento das obrigações estipuladas, sendo certo que alguns contratos, necessitam ainda da celebração de algumas formalidades para que passem a surtir efeitos jurídicos. O contrato de trabalho não difere deste modelo. O empregador propõe o contrato, enquanto o empregado aceita ou não os termos propostos. Em alguns casos tem o trabalhador a possibilidade de negociá-los, entrando assim em um acordo bilateral após ser atingido um denominador comum 3 . Trata-se, pois, da fase negocial ou pré-contratual, onde, como visto, ainda não há um contrato de trabalho propriamente dito. Entretanto, à luz das inovações agora positivadas por nosso ordenamento civil, pode-se dizer com toda a tranqüilidade que subsistem às partes obrigações pré-contratuais, independentemente de o acordo pretendido vir a se efetivar. Isto significa dizer que, mesmo antes de ser celebrado, o contrato de trabalho é (ou deve ser) pré-eficaz. Assim é que, em obediência ao princípio da função social do contrato, o empregador tem a obrigação de contratar tantos empregados quantos forem os necessários à execução razoável dos serviços objeto da empresa. Nesse sentido, terceirizações indesejadas poderiam agora ser impugnadas com fundamento também no texto legal e não somente em entendimentos jurisprudenciais como o Enunciado no 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Da mesma forma, o salário a ser pactuado deve condizer com a qualificação da atividade a ser desempenhada, por força do Novo Código Civil. Seguindo este raciocínio, a “base contratual”, assim entendida como conjunto de expectativas criadas pelas partes quanto às condições de execução do contrato, tampouco pode ser frustrada, evidenciando mais uma modalidade de eficácia pré-contratual. 3 Não ignoramos serem raras as vezes em que a negociação contratual se dá livremente, daí porque entendemos valorosa a posição doutrinária que entende o contrato de trabalho como uma espécie de pacto de adesão, face à hipossuficiência obreira. C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -5- Despiciendo mencionar que durante a execução do contrato de trabalho também existem obrigações paralelas àquelas contratualmente previstas. Decorrem elas da própria CLT, de outros diplomas legais e até mesmo de entendimentos jurisprudenciais. Dentro destas obrigações extracontratuais, que constituem verdadeiro invólucro à execução simples do contrato de trabalho, igualmente se incluem as derivadas da nova ordem civil, notadamente as decorrentes da positivação infraconstitucional do princípio da boa-fé objetiva. Aqui apenas um parêntese para lembrar que não se indaga, no caso concreto, se as partes estão ou não subjetivamente intencionadas a lesar umas às outras. Ao contrário, o princípio da boa-fé objetiva procura analisar se os atos praticados pelas partes no cumprimento de suas prestações estão de acordo com valores humanos objetivamente aceitáveis ao ordenamento. Em outros termos, as obrigações devem ser cumpridas com a diligência do bonus pater familias. Assim é que, por influência do Código Civil de 2002, o tratamento desonroso à figura do empregado confere a este direito de reparação à sua moral. Da mesma maneira, o atraso injustificado e repetido no pagamento dos salários não estaria de acordo com tais parâmetros, dando azo ao pedido de indenização (aqui não por danos morais, mas por ato ilícito), sem prejuízo das demais sanções previstas na CLT e legislação complementar. Ainda seguindo este raciocínio, aquele empregado que repassa informações confidenciais de seu empregador a concorrentes deve indenizá-lo pelos danos materiais que causar, mesmo potencialmente. Em suma, caso na execução do que se convencionou denominar “contrato realidade” se verifique uma violação substancial de obrigações paralelamente eficazes ao contrato de trabalho, tal situação representará afronta ao texto legal positivado pelo Código Civil, sendo, assim, suscetível de reparação. A principal influência deste novo diploma, portanto, foi dar ao profissional do direito os instrumentos necessários à aplicação de princípios constitucionais que parte da jurisprudência já vinha praticando em casos concretos. Finalmente, seguindo o mesmo raciocínio, mesmo após a extinção do contrato de trabalho subsistem às partes obrigações, conferindo-lhe a nova ordem, também, póseficácia. C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -6- Nesse sentido, é razoável que se entenda que o ex-empregado que detinha dados empresariais confidenciais viola o art 422 do Código Civil caso comece a exercer as mesmas funções de confiança em empresa concorrente, imediatamente após o término de seu contrato de trabalho. Da mesma forma, a necessidade de submissão ao juízo arbitral corresponde a outro exemplo da pós-eficácia contratual trabalhista É como se o contrato de trabalho extinto deixasse seu tronco para trás, estendendo alguns tentáculos para frente na linha do tempo. De acordo com o mesmo raciocínio, não basta que o empregador cumpra todos os ditames do art. 477 da CLT no procedimento demissionário. Deve ele primar, por exemplo, pela solubilidade de cheques de pagamento, devolver ao ex-funcionário seus pertences que tenham ficado nas dependências da empresa, entregar-lhe eventuais correspondências que eventualmente lá sejam entregues após a cessação do vínculo etc. V. - Conclusão Em síntese, um número incalculável de obrigações é criado nos momentos pré-contratual, contratual e pós-contratual, em decorrência das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002. Temas como a competência para a apreciação de demandas decorrentes da violação destas obrigações, assim como a natureza das mesmas serão objeto de estudo em trabalho posterior. O que é necessário se ter em mente, entretanto, a partir da edição do Novo Código Civil é que novos institutos, anteriormente relegados a uma análise mais esfumaçante da doutrina e jurisprudência, passaram agora a integrar nosso sistema positivo. Por esta razão, não podem mais ser ignorados. Devem, outrossim, nortear a conduta das partes na execução do contrato de trabalho e servir de fundamento legal para eventuais reparações, caso violados. É importante, portanto, que o profissional do direito tome consciência disto e, dentro do possível, faça valer a inteligência dos novos institutos, os quais sem sombra de dúvidas fundamentam-se em sentimentos nobres como igualdade e justiça e, postos em prática, serão capazes de minimizar as diferenças sociais e, conseqüentemente, em médio prazo, desafogar o próprio Poder Judiciário. C:\ADesigner\_Clientes\Calvo\_material\colaboradores\luiz_marcelo\artigo - pós eficácia contr trab.doc -7-