Evolução do direito contratual - revistas da universidade positivo

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Evolução do direito contratual
Analice Castor de Mattos
Advogada. Mestre em Direito sócio-econômico pela PUCPR. Professora de
Direito Aduaneiro na Faculdade de Direito da Universidade Positivo
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos séculos observa-se uma constante evolução nas relações contratuais em decorrências das transformações históricas que se sucederam, principalmente, a partir da Revolução Francesa, no século XVIII, e da Revolução Industrial, no início do século XIX.
O advento do sistema capitalista e o avanço tecnológico fizeram surgir o
contrato com cláusulas unilateralmente preestabelecidas, de forma geral e abstrata – o contrato padrão – a fim de atender a sociedade de consumo “caracterizada pela produção em série e pela venda massificada.”1
Nesse contexto, o contrato “perde sua ligação estrita com a propriedade
e passa a configurar instrumento geral das atividades econômicas organizadas e
pautadas na obtenção do lucro.”2
Com a transição do Estado Liberal Capitalista para o Estado Social do Bem
Estar (Welfare State), dentro da sociedade industrializada, de consumo, massificada e de informação, o contrato deixa de ser utilizado apenas como instrumento
de circulação de riquezas, para atuar, também, como meio de atender aos interesses sociais coletivos e individuais3, promovendo a justiça social.
1) BELMONTE, 2002, p. 136.
2) Ibid., p. 134.
3) Com alicerce no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, expresso na Constituição Federal/88,
o contrato passa a proteger a parte frágil, vulnerável ou hipossuficiente, da relação contratual. O Princípio da
vulnerabilidade – “Este princípio tem fundamental importância quando se fala nos direitos dos consumidores, já
que é a ratio de toda legislação consumerista. E, por isso, justifica todos os mecanismos de intervenção estatal
que beneficiam o destinatário final dos produtos e serviços. Este princípio está inserto no inciso I do art. 4º do
CDC: “I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;” Conclui-se que todo
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Sob esse prisma, o presente estudo analisará as mudanças de paradigma
do direito contratual no Brasil. Para isso, serão levantados os aspectos mais relevantes da evolução do contrato, desde sua concepção clássica até a moderna.
2 ORIGEM DA CONCEPÇÃO CLÁSSICA DO CONTRATO
O contrato vem sendo utilizado desde os romanos4 como forma de circulação de bens e riquezas de acordo com as práticas, os costumes e a realidade
econômica de cada época e sociedade.
Na Idade Média, o direito contratual sofreu transformações. A formalidade
exigida no direito romano passou a ter menor importância quando os canonistas
passaram a privilegiar a vontade contratual, não somente a protegendo com a
elaboração da teoria dos vícios do consentimento, mas, também, colocando em
evidência o respeito à palavra dada, que obriga independente da sua forma (pactum nudum) e expõe aquele que viola seu compromisso a sanções, de forma que
consumidor é vulnerável, porque estão sujeitos ao poder de controle dos meios e dados de produção dos
fornecedores, isto decorre da própria presunção legal. Pois a partir da Revolução Industrial surge o fenômeno da
concentração industrial, em que os fornecedores são, via de regra, grandes empresários, tornando-se flagrante a
vulnerabilidade do consumidor que geralmente é a parte mais fraca desta relação. A vulnerabilidade é, assim, uma
presunção iure et de iure, ou seja, todos nós que somos consumidores, somos vulneráveis, pois estamos sujeitos
às práticas comerciais dos fornecedores, quais sejam, a oferta, publicidade e fornecimento dos bens de consumo.”
Princípio da hipossuficiência – “Apesar de ser conceito semelhante à vulnerabilidade, ambos não podem ser
confundidos. A vulnerabilidade, como foi dito, é uma presunção iure et de iure, portanto independe de qualquer
atividade jurisdicional, enquanto, a hipossuficiência pressupõe a utilização do critério da razoabilidade, segundo
o qual o juiz, ao analisar o caso concreto, verificará, segundo as regras ordinárias de experiência, se o consumidor
é ou não hipossuficiente. Em sendo afirmativa a análise, o juiz inverterá o ônus da prova em favor do consumidor hipossuficiente. Em suma, pode-se concluir que a hipossuficiência é um plus à vulnerabilidade.” (LIMA,
2003, p. 213 et. seq.)
4 Diferente do direito moderno, naquele sistema imperava o rígido formalismo, que excepcionalmente poderia
ser dispensado em algumas avenças para atender as necessidades mercantis daquela sociedade comerciante.
(PEREIRA, 2002, p.7). Apesar de o Direto Romano já ter como base o acordo de vontades a respeito de um
mesmo ponto, por si só, não tinha o condão de criar obrigações, como esclarece Caio Mário Pereira: “Entendia
o romano não ser possível contrato sem a existência de elemento material, uma exteriorização de forma,
fundamental na gênese da própria obligatio. Primitivamente, eram as categorias de contratos verbis, re ou
litteris, conforme o elemento formal se ostentasse por palavras sacramentais, ou pela efetiva entrega do objeto,
ou pela inscrição no codex. Somente mais tarde, com a atribuição de ação a quatro pactos de utilização freqüente
(venda, locação, mandato e sociedade), surgiu a categoria dos contratos que se celebravam solo consensu, isto é,
pelo acordo de vontades. (..) Somente aqueles quatro contratos consensuais eram reconhecidos como tais. Nos
demais prevalecia sobre a vontade a materialidade de sua declaração, que haveria de obedecer rigidamente ao
ritual consagrado: a inscrição material no livro do credor (contratos litteris) , a traditio efetiva da coisa
(contratos re), a troca de expressão estritamente obrigatórias (contratos verbis) de que o policitatio era o mais
freqüente exemplo”. (Id., Ibid., p. 3); Cumpre abrir um parêntenses para recordar que: “Entre as obrigações
contraídas pelo consentimento (obligationes consensu contractae), surgiu o contrato de compra e venda, no
Direito Romano, com seus três elementos fundamentais: a coisa, o preço e o consentimento (res, pretium et
consensus). Nasceu, assim, a emptio venditio (compra e venda), no sistema contratual do ius gentium (direito
das gentes), em fins da República, das relações entre romanos e os estrangeiros, despida de formalidades,
diferenciando-se da mancipatio do sistema ius civile (direito civil), da Lei das XII Tábuas (450 a. C.), em que o
formalismo era fundamento de sua validade (uti lingua muncupassif). Essa avenca[sic] era sancionada pelas
ações de boa-fé (actiones bonae fidei), tendo o pretor a liberdade de apreciação pelo bom e pelo justo (ex bono
et aequo).” (AZEVEDO, 2005, p.12). Cf. ROPPO, 1988, p. 16 et. seq.; AMARAL, 2006, p. 353 et. seq. e,
sobre, as Instituições do Direito Romano, a obra de ALVES, 1969.
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a violação passa a equivaler a um pecado (pacta sunt servanda). 5
A valorização do consenso remete ao entendimento de que a obrigação
deve nascer de um ato de vontade e que, para criá-lo, é suficiente a sua declaração.6 Ou seja, a obrigação, de caráter moral e jurídico, nasce do ato do homem por meio do simples pacto, livre de formalismo exagerado e da solenidade
característicos da regra romana.7 O acordo de vontades é reconhecido como
fonte de obrigações morais e religiosas.8
A Escola do Direito Natural9, racionalista e individualista, também oferece bases importantes para a construção da concepção tradicional do contrato
ao defender que o fundamento racional do nascimento das obrigações se encontrava na vontade livre das partes contratantes.
São os canonistas e os teólogos da Idade Média, portanto, seguidos pelos
partidários da Escola do Direito Natural nos séculos XVII e XVIII, os primeiros a
contribuir para a construção da teoria clássica do contrato, fundada no princípio da autonomia da vontade.
Acresça-se, ainda, a colaboração da teoria do contrato social de JeanJacques Rousseau, que visualiza o contrato como base da sociedade, sociedade politicamente organizada, isto é, o Estado. A autoridade estatal encontra
seu fundamento no consentimento dos sujeitos de direito, nos cidadãos – o
dogma da vontade livre do homem. Suas vontades se unem (em contrato) para
formar a sociedade.10
O homem é naturalmente livre, contudo, a vida em sociedade não seria
possível se cada um quisesse exercer ao máximo sua liberdade, sendo preciso
renunciar a alguns direitos pelo contrato social11. No entanto, a própria renúncia é expressão do valor da vontade. O contrato é não só a fonte das obrigações
entre indivíduos, mas a base de toda autoridade. O próprio Estado retira sua
autoridade de um contrato, que é, dessa forma, a base da lei estatal. O contrato
não obriga porque assim estabeleceu o direito; é o direito que vale porque deriva de um contrato. A teoria do Contrato social remete, portanto, à idéia de
importância da vontade do homem.12-13
A filosofia de Kant é outra fonte a ser citada por sua contribuição significativa para a formação do princípio da autonomia da vontade ao afirmar, na
5) LARROUMET, 1998, p. 93.
6) GOMES, 2001, p. 5.
7) MARQUES, 2004b, p. 43.
8) AMARAL, 2006, p. 352.
9) Como esclarece Francisco Amaral “Com a escola do direito natural, a idéia da origem divina do direito
substitui-se pela das liberdades naturais, que se consideram fundamento e fim do direito”. (Ibid., p. 353).
10) MARQUES, op. cit., p. 45.
11) AMARAL, 2006, p. 353.
12) MARQUES, 2004b, p. 46.
13) “Existe uma única lei que, pela sua natureza, exige consentimento unânime – é o pacto social, por ser a
associação civil o mais voluntário dos atos deste mundo. Todo homem, tendo nascido livre e senhor de si
mesmo, ninguém pode, a nenhum pretexto imaginável, sujeitá-lo sem o seu consentimento.” (ROUSSEAU,
1999, p. 204).
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Metafísica do Direito14(1796), que “a vontade individual é a única fonte de toda a
obrigação jurídica.”15 Na Alemanha essa idéia serviu de base para a teoria da
vontade, pela qual o intérprete deve atender mais à vontade subjetiva do agente
do que ao aspecto formal de sua declaração.16Na França, com a tradução de sua
obra, ficou consagrada definitivamente a autonomia da vontade, expressão extraída da Crítica da Razão Pura.17 18
No século XIX, auge do liberalismo, do chamado Estado Moderno, consolida-se a concepção tradicional de contrato com base no individualismo econômico da época, em consonância com os imperativos da liberdade e igualdade
individual e, especialmente, o dogma máximo da autonomia da vontade. 19
O vínculo contratual desse período considerava a vontade como elemento
14) “Considere-se mais brilhante dos pensadores da época, Kant, especialmente na Fundamentação Metafísica
dos Costumes onde distingue o que entende por autonomia de heteronomia. A autonomia é o campo da liberdade,
porque os seres humanos podem exercer suas escolhas e estabelecerem regras para si mesmos, coletivamente ou
interindividualmente. A heteronomia, por seu turno, é o campo da natureza cujas regras o homem não pode
modificar e está sujeito a elas. Assim, o mundo ético, em que se encartaria o direito, seria o reino da liberdade dos
indivíduos, enquanto tais, porque a eles se dirige o princípio estruturante do imperativo categórico Kantiano. Na
fundamentação filosófica Kantiana, a autonomia envolve a criação e aplicação de todo o direito. Posteriormente, os juristas deram feição dogmática estrita ao princípio da autonomia, significando o espaço de auto-regulação
dos interesses privados, de onde emerge o contrato.” (LÔBO, 1995, p. 41).
15) KANT, Fundamento da metafísica dos costumes, p. 144, apud em AMARAL, op. cit., p. 353.
16) Ibid., p. 353
17) “Na Crítica da Razão Prática, o método Kantiano é invertido, em relação à Fundamentação da Metafísica
dos Costumes. Nesta, a vida moral aparece como forma através da qual se pode conhecer a liberdade, enquanto
na Crítica da Razão Prática a liberdade é investigada como a razão de ser da vida moral. Na Crítica da Razão
Prática, Kant demonstra que a lei provém da idéia da liberdade e que, portanto, a razão pura é por si mesma
prática, no sentido de que a idéia racional de liberdade determina por si mesma a vida moral e com isso demonstra
sua própria realidade. Em suma, o incondicionado e absoluto (inatingível pela razão no terreno do conhecimento) seria alcançado verdadeiramente na esfera da moralidade; a liberdade seria a coisa-em-si, o noumenon,
almejado pela razão.” (CHAUI, 1999, p.14 et. seq.).
18) AMARAL, op. cit., p. 365.
19) Apesar de a doutrina e a jurisprudência tratarem a expressão “autonomia da vontade”, como sinônimo da
“autonomia privada”, ambas não se confundem. Francisco Amaral esclarece que aquela expressão “tem uma
conotação subjetiva, psicológica”, enquanto esta “marca o poder da vontade de um modo objetivo, concreto e
real”, em suas palavras: “A autonomia da vontade é, assim, o princípio de direito privado pelo qual o agente tem
a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos. Seu campo de
aplicação é, por excelência, o direito obrigacional, aquele em que o agente pode dispor como lhe aprouver, salvo
disposição cogente em contrário. E quando nos referimos especificamente ao poder que o particular tem de
estabelecer as regras jurídicas de seu próprio comportamento, dizemos, em vez de autonomia da vontade,
autonomia privada. Autonomia da vontade, como manifestação de liberdade individual no campo do direito, e
autonomia privada, como poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale dizer, o poder de alguém de dar
a si próprio um ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituído pelo
agente, diversa mas complementarmente ao ordenamento estatal. A autonomia privada constitui-se, portanto,
em uma esfera de atuação do sujeito no âmbito do direito privado, mais propriamente um espaço que lhe é
concedido para exercer a sua atividade jurídica. Os particulares tornam-se, desse modo, e nessas condições,
legisladores sobre seus próprios interesses.” (Ibid, p. 345). Ainda, Enzo Roppo ressalta que a “autonomia
privada” não deve ser vista como sinônimo de “autonomia da vontade individual”, mas sim “como forma
jurídica e legitimação da liberdade económica, da liberdade de prosseguir o lucro ou, então, de actuar segundo
conveniências de mercado - nos modos ou com as técnicas adequadas ao tipo de mercado historicamente
determinado. Por outras palavras, as tendências objectivistas do direito moderno não vão necessariamente
contra o princípio da autonomia privada, porque este – não se identifica com o <<dogma da vontade>>.”
(ROPPO, 1988, p. 310 et. seq.).
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principal, como fonte única e como legitimação para o nascimento de direitos e
obrigações oriundas da relação jurídica contratual.20 Era a vontade que conferia
força obrigatória aos contratos - pacta sunt servanda21- e não a autoridade da
lei, a qual cabia, apenas, colocar à disposição das partes instrumentos para assegurar o cumprimento das promessas, limitando-se a uma posição supletiva.22
Acreditava-se que a justiça da relação contratual residia no fato de o conteúdo do contrato corresponder à livre vontade das partes, que de comum acordo
convencionavam sobre seus interesses “num plano de recíproca igualdade jurídica”. O “justo” (qui dit contractuel dit juste – Fouillé 1896) encontra seu alicerce
na liberdade de contratar e na igualdade formal das partes.23
Até mesmo no âmbito das teorias econômicas24, a liberdade de contratar e a
igualdade formal das partes eram consideradas como meio de se alcançar o bem
estar coletivo social, sem intervenção do Estado, apenas com iniciativa individual
dos particulares, o que seria automaticamente coordenado e orientado pelo mecanismo do mercado e da concorrência, a mão invisível de Adam Smith.25 É o Liberalismo econômico26 “pelo qual o livre jogo das vontades particulares assegura o máximo de produção e os preços mais baixos, como efeito da livre concorrência”.27
Note-se que a formação econômica-social capitalista, em especial após a
Revolução Industrial28 do início do século XIX, era “caracterizada por um alto grau
20) MARQUES, 2004b, p. 39.
21) “Um princípio que, além da indiscutível substância ética, apresenta também um relevante significado
económico: o respeito rigoroso pelos compromissos assumidos é, de facto, condição para que as trocas e as
outras operações de circulação da riqueza se desenvolvam de modo correcto e eficiente segundo a lógica que lhes
é própria, para que se não frustrem as previsões e os cálculos dos operadores (justamente no tornar <<previsíveis>> e << calculáveis>> as operações económicas, de resto, Max Weber individualizava uma das funções
fundamentais atribuídas ao instrumento contratual num sistema capitalista); condição necessária, assim, para a
realização do proveito individual de cada operador e igualmente para o funcionamento do sistema no seu
conjunto.” (ROPPO, op.cit., p. 34 et. seq.).
22) MARQUES, op. cit., p.48.
23) “dado que as revoluções burguesas, e as sociedades liberais nascidas destas, tinham abolido os privilégios e as
discriminações legais que caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do <<antigo regime>>, afirmando a paridade de todos os cidadãos perante a lei): justamente nesta igualdade de posições jurídicoformais entre os contraentes consistia a garantia de que as trocas, não viciadas na origem pela presença de
disparidades nos poderes, nas prerrogativas, nas capacidades legais atribuídas a cada um deles, respeitavam
plenamente os cânones da justiça comutativa.” (ROPPO, 1988, p. 35).
24) Sobre a concepção econômica do liberalismo cf. MARTINS-COSTA, 1999, p. 202 et. seq.
25) ROPPO, op. cit., p. 35 et. seq.
26) (...)”o poder da vontade que se realiza na liberdade de troca e na liberdade de atuação no mercado, corresponde ao que hoje denominamos liberdade de iniciativa econômica. A autonomia da vontade traduz, portanto, um
poder de disposição diretamente ligado ao direito de propriedade, dentro do sistema de mercado da circulação dos
bens por meio de troca, e de que o instrumento jurídico próprio é o negócio jurídico. Essa autonomia significa,
conseqüentemente, que o sujeito é livre para contratar, escolher com quem contratar e estabelecer o conteúdo
do contrato. A autonomia privada teria, assim, como fundamento prático, a propriedade particular e, como
função, a livre circulação dos bens, o que pressupõe, também, a igualdade formal dos sujeitos, isto é, a igualdade
de todos perante a lei.” (AMARAL, 2006, p. 355 et. seq.).
27) Ibid., p. 354.
28) A Revolução Industrial decorre da introdução da máquina a vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos dos
métodos produtivos, representa a indústria do empresário capitalista que passou a controlar máquinas, terras e
ferramentas, convertendo grandes massas humanas em simples trabalhadores “despossuídos”. Não apenas destruiu o artesão, como passou a submetê-lo a novas formas de conduta e de relação de trabalho, resultando na
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de desenvolvimento das forças produtivas e pela extraordinária intensificação da
dinâmica das trocas.”29 O contrato passa a ser difundido como um mecanismo
essencial ao funcionamento de todo o sistema econômico.30
O princípio ideológico do século XIX era: a liberdade de contratar.31
Com base nesta, afirmava-se que a conclusão dos contratos, de qualquer
contrato, devia ser uma operação absolutamente livre para os contraentes
interessados: deviam ser estes, na sua soberania individual de juízo e de
escolha, a decidir se estipular ou não estipular um certo contrato, a estabelecer se concluí-lo com esta ou com aquela contraparte, a determinar
com plena autonomia o seu conteúdo, inserindo-lhe estas ou aquelas cláusulas, convencionando este ou aquele preço. Os limites a uma tal liberdade eram concebidos como exclusivamente negativos, como puras e simples proibições; estas deviam apenas assinalar, por assim dizer, do exterior, as fronteiras, dentro das quais a liberdade contratual dos indivíduos
podia expandir-se sem estorvos e sem controlos: não concluir um certo
contrato, não inserir nele uma certa cláusula. Inversamente, não se admitia, por princípio, que a liberdade contratual fosse submetida a vínculos
positivos, a prescrições tais que impusessem aos sujeitos, contra a sua
vontade, a estipulação de um certo contrato, ou a estipulação com um
sujeito determinado, ou por um certo preço ou em certas condições: os
poderes públicos – legislador e tribunais – deviam abster-se de interferir,
a que título fosse, na livre escolha dos contraentes privados. 32
A liberdade contratual compreende: a liberdade de contratar ou não, de
escolher a pessoa do contratante, de estipular as cláusulas contratuais (seu condesintegração de costumes e instituições até então existentes e a introdução de novas formas de organizar a vida social.
A transformação da atividade artesanal em manufatureira e, em seguida, atividade fabril, desencadeou uma maciça
emigração do campo para a cidade, e engajou mulheres e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos 12 horas, sem
férias, feriados, ganhando um salário de subsistência. Cumpre destacar que um dos fatores de maior importância
relacionados com a Revolução Industrial foi o aparecimento do proletariado e seu papel histórico na sociedade
capitalista – a classe operária, com consciência de seus interesses, organiza-se para enfrentar os proprietários dos
instrumentos de trabalho (formam os sindicatos e associações livres). Neste sentido, leia-se MARTINS, 2004.
29) ROPPO, 1988, p. 25.
30) Ibid., p. 25.
31) Mesmo no auge do liberalismo do século XIX, a liberdade de contratar jamais foi absoluta, sempre esteve
adstrita à ordem pública e aos bons costumes. Na concepção de Caio Mario da Silva: “condizem com a ordem
pública as normas que instituem a organização da família (casamento, filiação legítima, filiação ilegítima, adoção,
alimentos); as que estabelecem a ordem de vocação hereditária e a sucessão testamentária; as que pautam a
organização política e administrativa do Estado, bem como as bases mínimas da organização econômica; os
preceitos fundamentais do Direito do Trabalho; enfim, as regras que o legislador erige em cânones basilares da
estrutura social, política e econômica da Nação. Não admitindo derrogação, compõem leis que proíbem ou ordenam
cerceando nos seus limites a liberdade de todos. Bons costumes são aqueles que se cultivam como condições de
moralidade social, matéria sujeita as variações de época a época, de país a país, e até dentro de um mesmo país e
mesma época. Atentam contra bonos mores aqueles atos que ofendem a opinião corrente no que se refere à moral
sexual, ao respeito à pessoa humana, à liberdade de culto, à liberdade de contrair matrimônio.” (PEREIRA, 2002,
p.11); Francisco Amaral define: “Ordem pública, como conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os
interesses fundamentais da sociedade e do Estado e as que, no direito privado, estabelecem as bases jurídicas
fundamentais da ordem econômica. Bons costumes, como o conjunto de regras morais que formam a mentalidade
de um povo e que se expressam em princípios como o da lealdade contratual, da proibição do lenocínio, dos
contratos matrimoniais, do jogo etc. E boa-fé, como lealdade no comportamento.” (AMARAL, 2006, p. 347).
32) ROPPO, op. cit., p. 32 et. seq.
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teúdo) e de determinar a forma do contrato.33
A vontade pode ser livremente manifestada, sem formalismo34, basta o acordo de
vontades, livre de vício de consentimento (princípio do consensualismo), para obrigar as
partes contratantes (efeito relativo - produz efeitos apenas entre as partes contratantes)
às obrigações estabelecidas no contrato (princípio da obrigatoriedade - o contrato faz
lei entre as partes). Sendo lícito o objeto, a vontade vale por si mesma. 35
Ressalta-se que o dogma da vontade também tem sua origem no direito de
propriedade, como esclarece Francisco Amaral:
[...] o dogma da vontade nasce também do direito de propriedade. Na
Idade Média, a fonte principal da riqueza e produção era a terra, e o
direito principal, a propriedade. A evolução política e econômica torna,
porém, distinta a propriedade da terra da dos demais bens de produção,
estes a base do comércio e da indústria, de que eram titulares os construtores da economia capitalista, os burgueses, interessados no desenvolvimento do intercâmbio comercial. Esse processo leva à jurisdicização das
relações de troca, isto é, a um direito que permite a livre circulação de
bens e dos sujeitos, na dinâmica do próprio sistema. 36
Tanto que a concepção liberal eleva o direito de propriedade privada à categoria de bem maior, reconhecendo-o na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão como um “direito sagrado e inviolável”:
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa
em 1789, proclamou a sacralidade da propriedade privada (“Art. 17. Sendo
a propriedade um direito sagrado e inviolável...”), tida como exteriorização
da pessoa humana ou da cidadania. Emancipada da rigidez estamental da
Idade Média, a propriedade privada dos bens econômicos ingressou em
circulação contínua, mediante a instrumentalização do contrato.37
Essa visão clássica de contrato, individualista, liberal, baseada na idéia de
valor da vontade e da propriedade privada, foi adotada pelo Código de Napoleão
de 1804, primeiro código moderno burguês, elaborado para atender aos interesses da nova classe dominante capitalista.38
33) “liberdade de contratar significava livre possibilidade, para a burguesia empreendedora, de adquirir os bens das
classes antigas, detentoras improdutivas da riqueza, e livre possibilidade de fazê-los frutificar com o comércio e
indústria. Mas o contrato baseado no consenso significava, por outro lado, uma forte garantia para as velhas
classes proprietárias (que a burguesia pretendia não destruir, mas promover, numa relação de aliança subalterna):
a garantia de que para a transferência dos seus bens era sempre necessária a sua vontade.” (Ibid., p. 45 et. seq.).
34) Salvo se expressamente exigido por lei.
35) AMARAL, 2006, p. 357 et. seq.
36) Ibid., p. 355.
37) LÔBO, 1995, p. 41.
38) Judith Martins-Costa comenta: “foram a Revolução, a Declaração de Direitos e a Constituição Francesa de 1791
que os consagrou os fatores que possibilitaram, efetivamente, a codificação projetada e até então não realizada pela
ausência das condições materiais objetivas para tanto, vale dizer: a unitariedade dos sujeitos que serão os destinatários
do direito ali contido, proclamada pelo princípio da igualdade – então já de ordem constitucional, isto é, direito
positivo -, unidade esta que não foi alcançada mediante a supressão das diferenças religiosas (pela instauração de um
direito laico), pelo fim das diferenças de nascimento (em razão da consagração de um direito formalmente igualitário)
e pelo expurgo das diferenças locais e territoriais (através de um direito que se quis nacional).” (1999, p. 174).
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O Código de Napoleão contribuiu para a solidificação da teoria clássica
contratual quando dispôs expressamente no art. 1134 que “os contratos legalmente formados têm força de lei para aqueles que os celebram”, conferindo efetividade máxima ao princípio da autonomia contratual.
A ampla liberdade de contratar baseada no consenso dos contratantes era,
portanto, o fundamento do sistema do Código Civil Francês, no qual “não havia
lugar para a questão da intrínseca igualdade”.39
Outro código burguês inspirado nos princípios do ordenamento capitalista
do direito contratual: liberdade de contratar, fundada na premissa de igualdade
formal dos indivíduos, concluído quase um século depois do Código Francês,
por razões de ordem histórica, política e condições sócio-econômicas40, foi o
Código Civil Alemão (BGB) de 1896.
Diferencia-se do primeiro código de 180441 por construir um sistema fechado lógico-dedutivo42, originado do jusnaturalismo e do jusracionalismo dos
séculos XVII e XVIII.
Observa-se que a dogmática jurídica alemã, inspirada pela doutrina
pandectística,43na segunda metade de século XIX, elimina a reflexão metafísica e
39) ROPPO, 1988, p. 35.
40) Judith Martins-Costa esclarece que há uma complexidade de fatores que justifica o porquê do código civil alemão ter
sido editado quase um século depois do Código de Napoleão: “Em primeiro lugar deve ser referida a ausência de unidade
jurídico política dos Estados alemães (Länder), unidos em uma federação, mas divididos em várias áreas de influência
jurídica diversa, o que impossibilitava a unificação do direito, porquanto cada um deles obedecia a uma dupla soberania, sob
cuja influência se formou um dúplice direito positivo, o direito territorial de cada Estado (dotado de autonomia legislativa
e jurisdicional) e o direito comum. Com peso dominante ainda estava o fato de, no segundo decênio do século XIX, as
relações de força nos Estados alemães, após a queda de Napoleão, estarem estabilizadas com o predomínio do partido da
Restauração, rigidamente anti-revolucionário e ao qual não interessava, por óbvio, conceder qualquer espaço aos
interesses do terceiro Estado. Acrescentava também a circunstância de a burguesia alemã estar atrasada em relação à
burguesia francesa, e muito mais ainda em relação à inglesa, e, como conseqüência, carecia de uma clara consciência
política, não sendo capaz de desenvolver uma ação unitária e organizada. A Alemanha recebera apenas os ecos do
iluminismo e seus libelos revolucionários, mas este fora um movimento basicamente francês e, portanto, é incompatível
a força que tivera num e noutro país. A renovação só poderia ser esperada a partir de reformas liberais, ‘mas esta
pressupunha como disse Feuerbach em 1812, uma mudança nas próprias condições políticas.’ “ (op. cit., p. 226).
41) “A parte introdutória, se posta em um título preliminar sintético, como a do Código Civil francês, assegura
um método próprio de tratamento do conteúdo das demais partes em que estruturado, porque, ao se recusar a
dispor acerca das categorias nucleares do direito privado – como ocorre com os códigos que contém uma Parte
Geral, ao modelo do alemão ou brasileiro -, recusa a noção de sistema enquanto encadeamento lógico-dedutivo,
vale dizer, um sistema estruturado em categorias abstratas centrais, tais como a dos atos jurídicos, a do direito
subjetivo e as das nulidades. O sistema, aí, será identificado apenas ao método de organização das matérias
componente do direito privado.” (Ibid., p. 191)
42) “O BGB, de texto primorosamente sistemático, foi concebido dentro de um padrão lógico-dedutivo, herdado do
jusnaturalismo e do jusracionalismo dos séc. XVII e XVIII, na base do sistema do more geometrico demonstratum
(sistema de enunciados gerais, sobre proposições normativas, suscetível de verificar a falsificação à comparação da
proposição do cálculo e da geometria), que dispensava a investigação ou interferência extra legis.” (NALIN, 2001, p.70).
43) Como explica Paulo Luiz Netto Lôbo “A escola pandectista, especialmente a alemã, desenvolveu a figura abstrata
do negócio jurídico. Reflexo do espírito da época, de ter a liberdade contratual formal como um bem em si mesmo, o
negócio jurídico é a teoria científica da forma e da estrutura, aplicada aos atos negociais, sem qualquer preocupação
com o conteúdo material ou com os figurantes. A teoria do negócio jurídico, enquanto exclusivamente forma e
estrutura, adapta-se residual e limitadamente apenas aos contratos em que há igualdade efetiva de bargain power entre
as partes, mas é completamente imprópria para os contratos de massa ou dirigidos e protegidos pelo legislador, como,
por exemplo, nas relações de consumo, que absorve quase todas as atividades econômicas de relevo.” (1995, p. 43)
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a consideração ética “acerca do que deveria ser o direito para aceitar o que deve
ser, “deve ser” este estabelecido com anterioridade à investigação, porquanto
posto por ato de autoridade.”44
O Código Civil brasileiro de 191645, já revogado, baseou-se nos ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade do Código Civil de Napoleão, e no Código
Civil alemão (BGB), na sua estrutura46.
A partir da segunda metade do século XIX e ainda pouco depois do começo do século XX, o princípio da autonomia privada, fundado na igualdade formal das partes, começou a ser contestado por filósofos e juristas que percebiam
que na realidade prevalecia sempre a vontade do mais forte.
A liberdade de contratar e a igualdade jurídica formal não asseguravam a
“justiça contratual”, mas sim levavam a injustiças profundas dentro de uma sociedade dividida em classes, com diferenças econômicas-sociais acentuadas. De
um lado, o empresário, que detinha a riqueza e o poder, e, de outro, o operário,
que dispunha apenas da sua força de trabalho. Apesar da nítida disparidade existente no estabelecimento de relações contratuais, ambos eram considerados juridicamente iguais e livres, de acordo com a concepção clássica do contrato.47
Em decorrência dessas injustiças, principalmente na relação de trabalho,
começam a aparecer conflitos de interesses48 com reflexos nas relações sociais,
políticas e na própria produção, em razão de constantes paralisações e greves da
classe operária.49
Percebeu-se que o contrato poderia ser injusto não só em razão da desi44) MARTINS-COSTA, 1999, p. 213 et. seq.
45) Consultar para maiores informações sobre o tema FRADERA, 1997.
46) Sobre o tema: MARQUES, 1997, p. 11 et. seq.
47) Ao analisar a questão da “igualdade formal”, Arruda Alvim comenta: “Podemos dizer que as leis de ordem
pública acabaram limitando historicamente, desde o meio do século XIX, crescentemente, a autonomia contratual, exatamente em nome, até mesmo como analisam bem, ao meu ver, os bons analistas, em nome e por causa
da vontade, porque é claro que, daquele que aceita ser empregado em termos de estrita locação de serviço,
recebendo uma contra-prestação apenas para “não morrer”, não se poderá, autenticamente, vislumbrar uma
vontade propriamente livre. Não se justifica que esse seja havido como rigorosamente igual àquele que o
contrata. Por isto é que se verificou, de uma forma ou de outra, a substituição de uma tal situação, por normas
protetivas, ou, por um direito do trabalho, no mundo inteiro, substitutivas, em grande escala, da locação de
serviços. Reconheceu-se, é claro, que esse sujeito não tem rigorosamente vontade, o que ele deseja é não morrer
de fome. Então, na verdade, é uma vontade que não pode, nesta e em hipóteses análogas, realmente, significar
algo digno, como foi aquilo que a Revolução Francesa pregou para a totalidade do direito obrigacional, em
relação à autonomia da vontade.” (2003, p. 23)
48 Marx: Manifesto do Partido Comunista:”Ora, a indústria, desenvolvendo-se, não sómente aumenta o número
dos proletários, mas concentra-os em massas cada vez mais consideráveis; sua fôrça cresce e êles adquirem maior
consciência dela. Os interêsses, as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais, à medida que
a máquina extingue tôda diferença do trabalho e quase por tôda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo.
Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises comerciais que disso resultam, os
salários se tornam cada vez mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas
torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o operário e o burguês
tomam cada vez mais o caráter de choques entre duas classes. Os operários começam a formar uniões contra os
burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações permanentes a fim de se
prepararem, na previsão daqueles choques eventuais. Aqui e ali a luta se transforma em motim.” (cf. o texto
original, MARX; ENGEL, 1961, p.28)
49 BITTAR, 1979, p. 22.
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gualdade material das partes, mas também pelo fato do vínculo obrigacional ser
dinâmico e, portanto, influenciado por eventos supervenientes não previstos pelas partes contratantes, com reflexo no equilíbrio da relação contratual, “que é,
ou deve ser, justa.”50 Aparece a idéia de “crise” do contrato, melhor dizendo, da
concepção tradicional do contrato - o princípio da obrigatoriedade contratual
passa a ser relativizado.
Com a 1ª. Guerra Mundial, verificou-se a impossibilidade de manter o “rigorismo normativo contratual”. Passou-se a admitir, então, em casos excepcionais, a revisão judicial do contrato para se restabelecer a comutatividade e o
equilíbrio contratual, com base na cláusula rebus sic stantibus51, ou teoria da
imprevisão, desde que a alteração das circunstâncias, decorrente de fatos imprevisíveis, gerasse a uma das partes contratantes excessiva onerosidade,52 a fim de
se alcançar equilíbrio contratual. 53
Após as duas Guerras Mundiais, começaram a surgir maiores preocupações, como a segurança do Estado e o fortalecimento da economia. Os movimentos sociais se fortalecem difundindo a ideologia do Socialismo, “em que o Estado
passa a deter os meios de produção (intervenção substitutiva) e a elaborar planos
para a atuação, inserindo-se, assim, a noção de planejamento na economia.” 54
Em seguida, aparece o chamado neoliberalismo, o qual admite “a intervenção do Estado para suprir deficiências da iniciativa privada (intervenção
supletiva), a qual se inicia no campo social, pela instituição de normas e organismos de defesa dos trabalhadores, aceitando-se, em algumas partes, o
planejamento estatal.” 55
O Estado intervencionista, do bem-estar, consolida-se no século XX modificando o paradigma do contrato na concepção tradicional, do consentimento
livre e da igualdade formal das partes, expressado na pacta sunt servanda.56
Ao contrário do Estado Liberal, que assegurava os direitos do homem de
primeira geração (a liberdade, a vida e a propriedade individual), o Estado social
(Welfare State) assegura os direitos do homem de segunda geração (os direitos
sociais) garantindo não apenas a liberdade e a autonomia contratual, mas também intervindo na relação contratual para promover a justiça social.57 Passa a
regular a atividade econômica dentro do sistema capitalista visando coibir abusos e fomentar o desenvolvimento econômico e social.
Como comenta Ronaldo Porto Macedo Júnior:
A idéia clássica de contrato social funda-se num tipo de relação direta que
se estabelece entre indivíduos autônomos e um poder soberano, de onde
50) MARTINS-COSTA, 1991, p. 41.
51) Cf. maiores detalhes, Ibid.
52) Ibid., p. 43.
53) Ibid., p. 46.
54) BITTAR, 1997, p. 22.
55) BITTAR, op. cit., p. 22.
56) LÔBO, 1995, p. 41.
57) Ibid., p. 42.
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emerge a figura do Estado. No novo contrato social, típico do Welfare State,
o todo tem uma existência autônoma, independentemente das partes (indivíduos). Neste tipo de contrato social não é apenas o Estado, mas também a sociedade, que forma a totalização social. A totalização aqui é entendida como obrigação entre indivíduos mediada pela forma social que
passa a ter um papel regulador, mediador e redistributivo. 58
A autonomia contratual deixa de ser absoluta e passa a sofrer maiores
restrições com o dirigismo contratual (“a intervenção do Estado na economia do
contrato”).59 A igualdade contratual formal é afastada, reconhecendo-se a necessidade de uma proteção legal para a parte frágil da relação contratual. Surge,
então, uma nova concepção de contrato.
3 CONCEPÇÃO MODERNA DO CONTRATO
A Constituição Brasileira Dirigente de 88, editada depois de um longo período de ditadura, proclamou como fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e o respeito aos valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa60, tendo como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária61.
A ordem brasileira constitucional econômica62 adota o princípio da justiça
58) MACEDO JÚNIOR, 1998, p. 102.
59) Orlando Gomes faz uma enumeração exemplificativa das leis de ordem pública que vêm limitar a liberdade
de contratar:1") as leis que consagram ou salvaguardam o princípio da liberdade e da igualdade dos cidadãos, e
particularmente, as que estabelecem o princípio da liberdade de trabalho, de comércio e de indústria; 2") as leis
relativas a certos princípios de responsabilidade civil ou a certas responsabilidades determinadas; 3") as leis que
asseguram ao operário proteção especial; 4") as leis sobre o estado e capacidades das pessoas; 5") as leis sobre o
estado civil; 6") certos princípios básicos do direito hereditário como os relativos à legítima e o que proíbe pacto
sobre sucessão futura; 7") as leis relativas à composição do domínio público; 8") os princípios fundamentais dos
direito de propriedade; 9") as leis monetárias; e 10") a proibição do anatocismo. O autor cita como exemplos de
legislação de ordem pública no âmbito do direito contratual brasileiro, a lei do Inquilinato (Lei n 8.245, de
18.10.91) e o Código de defesa do Consumidor (Lei n 8.078, de 11.09.90). E comenta: “Nestes estatutos legais,
como nos demais que têm o propósito de realizar a intervenção estatal no domínio dos contratos, o traço
marcante situa-se na força cogente de seus preceitos, de maneira que se contamina de nulidade qualquer convenção ou cláusula negocial que disponha de maneira contrária à vontade da lei.” (2001, p. 25)
60) Artigo 1º da CF: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania;
II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V –
pluralismo político.”
61) Artigo 3º da CF: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
62) Artigo 170 CF: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I
– a soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V –
defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca
de pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras
e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único – É assegurado a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”
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social como base da atividade econômica, cujas limitações têm reflexos diretos
na autonomia contratual, a qual passa a ser delimitada pela função social.
Oportuno destacar os comentários do doutrinador italiano Pietro Barcellona quando esclarece que a constituição não se ocupa da autonomia privada, mas
da iniciativa econômica:
La Costituzione non si occupa dell’autonomia privata, ma dell’iniziativa economica. Tuttavia il rapporto tra iniziativa econômica e autonomia contrattuale è chiaramente um rapporto di strumentalità. Evidentemente, il concetto
di iniziativa economica è più ampio perché comprende anche attività o atti
che non hanno natura negoziale (per es., gli atti di organizzazione dell’
impresa). È anche vero, però, che tutti gli atti di autonomia privata con
contenuto patrimoniale (ad eccezione degli atti che riguardano i rapporti
familiari) sono manifestazioni del potere di iniziativa economica, giacchè
attraverso l’ autonomia contrattuale vengono, di solito, regolati aspetti dell’
iniziativa economica che riguardano i rapporti com gli altri soggetti. 63
No direito civil clássico, o indivíduo, sujeito de direito, era o detentor da
propriedade, que era o núcleo daquele ordenamento jurídico. No Estado Social
Democrático de Direito, o foco passa a ser o bem comum e o indivíduo é protegido apenas pelo fato de existir. 64
A função social do contrato está diretamente ligada com a função social da
propriedade, de acordo com os ditames dos incisos XXIII do art. 5º 65 e III, do art.
17066 da Constituição Federal de 1988, tendo em vista que “a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos
contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade.”67
Carlos Alberto Bittar comenta que:
Cresce o sentido de coletivização, que eclode a partir da conscientização
da gravidade da problemática social, debilitando-se a noção e a posição
do homem como indivíduo. No plano obrigacional, corolário é a denominada “socialização do contrato”.
Substitui-se, então, a idéia de “indivíduo”, como centro de preocupações,
pela de “homem localizado” na sociedade; acentua-se o predomínio do
social sobre o individual, característica principal do mundo contemporâneo, e que no Estado concentra a condução. 68
63) BARCELLONA, 1996, p. 388. Tradução livre: “A Constituição não se ocupa da autonomia privada, mas da
iniciativa econômica. Todavia há uma relação de instrumentalidade entre a iniciativa econômica e a autonomia
contratual. Evidentemente, o conceito de iniciativa econômica é mais amplo porque compreende também
atividades ou atos que não têm natureza negocial (e.g.: os atos de organização da empresa). Mas é também verdade
que todos os atos de autonomia privada com conteúdo patrimonial ( com exceção dos atos que dizem respeito às
relações familiares) são a manifestação do poder da iniciativa econômica, já que através da autonomia contratual
são somente regulados aspectos da iniciativa econômica que dizem respeito às relações com os outros sujeitos.”
64) BORTOLOZZI, 2005, p. 117.
65) Art. 5 CF, XXIII – “a propriedade atenderá a sua função social.”
66) Art. 170 CF, Um dos princípios da ordem econômica: III – “função social da propriedade.”
67) REALE, 2003.
68) BITTAR, 1997, p.24.
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O contrato, sendo meio de circulação da propriedade, não pode mais ficar
adstrito às partes contratantes, uma vez que seus efeitos surtem conseqüências
sociais. Partindo dessa premissa, os estudiosos do direito já vinham defendendo
que todos os contratos, independentemente de sua natureza, deveriam ter uma
função social e estar alicerçados na boa-fé objetiva:
Nos contratos de consumo abandonam-se ou relativizam-se os princípios
da intangibilidade contratual (pact sunt servanda), da relatividade subjetiva, do consensualismo, da interpretação da intenção comum, que são substituídos pelos de modificação ou revisão contratual, de proteção do contratante débil, da interpretação contra stipulatorum , de boa-fé contratual.69
A função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva são inseridos no
ordenamento jurídico brasileiro como cláusulas gerais, conferindo ao aplicador do
direito maior liberdade para revisar e modificar o contrato no caso concreto:
[...] as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de
conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua
sistematização no ordenamento positivo. É indiscutível a constatação, hoje,
da existência de uma crise na teoria das fontes, que se reflete na metodologia da ciência do direito. Esta crise resulta, segundo Clóvis do Couto e
Silva, justamente “da admissão de princípios tradicionalmente considerados metajurídicos no campo da Ciência do Direito, aluindo-se, assim, o
rigor lógico do sistema com fundamento no puro raciocínio dedutivo.”70
O novo Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2.002) se
distingue do individualismo do Código Civil revogado de 1916, em razão “da
preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao
renitente propósito de um rigorismo jurídico”71, limitando a liberdade de contratar das partes aos princípios da função social do contrato72e da boa-fé objetiva73,
69) LÔBO, 1995, p. 44.
70) MARTINS-COSTA, 1999, p. 274.
71) REALE, 2003.
72) Art. 421 estabelece que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”, sendo que o artigo 1.228 assegura que “o proprietário tem faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”, afirmando no parágrafo 1º que
“o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo
que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Como
explica Miguel Reale: “Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição de 1988, a qual,
nos incisos XXII e XXIII do Art. 5º, salvaguarda o direito de propriedade que “atenderá a sua função social”. Ora,
a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja
conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade.” (Ibid.)
73) Artigo 113, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do
lugar de sua celebração”; Art. 422, que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Art. 765 – “O segurado e o segurador são obrigados
a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto
como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”
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“sempre que se traduz em abuso do direito ou da confiança do outro.”74
Apesar de limitada, a vontade das partes ainda é o elemento principal na
formação do contrato, o qual continua sendo obrigatório entre as partes. Contudo, é possível a modificação do contrato por meio do órgão do Poder Judiciário,
quando extrapolar os limites da liberdade de contratar em detrimento da coletividade, não atendendo a sua função social, nem ao princípio da boa-fé objetiva:
O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar
instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A
principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano, criando o “Direito do caso”. O aspecto capital
para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir um valor autônomo, não
relacionado com a vontade. Por ser independente da vontade, a extensão
do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente
nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se “construir” objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a
admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo do controle das partes.75
A boa-fé objetiva adveio da interpretação do Código Civil alemão (BGB),
que iniciou a grande transformação da relação obrigacional ao reconhecer “a existência de deveres acessórios ou implícitos, instrumentais e independentes, ao
lado da obrigação principal”, admitindo a cláusula geral de boa-fé no §§ 242. 76
Distingue-se da boa-fé subjetiva77por ser uma regra de conduta que impõe às partes o dever de agir com transparência, lealdade e cooperação mútua, de
acordo com a legítima expectativa dos contratantes no cumprimento do contrato. Ou seja, um “modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando
como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’.”78
É definida por Paulo Khouri da seguinte forma:
Pela boa-fé objetiva, tem-se um padrão objetivo de conduta, de lealdade,
transparência e, ao contrário da subjetiva, o estado de ânimo, a intenção
dos contratantes, não tem qualquer relevância. Na verdade em matéria contratual, o princípio da boa-fé objetiva tem um único referencial:o contrato
equilibrado. Não se admite mais o contrato que imponha prestações em
demasia para uma das partes e de menos para a outra. Tal, flagrantemente,
74) MARTINS; MACEDO, 2002, p. 97.
75) FRADERA, 1997, p. 42.
76) Ibid., p.38.
77) “A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar [a parte]
em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direito reais, especialmente em matéria
possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do
sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé,
também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.” (MARTINS-COSTA, 1999, p. 411)
78) Ibid., p. 411.
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viola a boa-fé, que para o novo Código, não é apenas subjetiva, mas objetiva, porque é incompatível com esta o contrato injusto, desequilibrado. 79
Antes mesmo do advento do Código Civil de 2002, o princípio da boa-fé
objetiva já havia sido positivado no ordenamento jurídico brasileiro como princípio informador das relações de consumo.
A defesa do consumidor, a partir da Constituição Federal de 1.988, é inserida na categoria dos direitos fundamentais (artigo 5º, XXXII), tornando-se um
dos princípios da ordem econômica (artigo 170, V), fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, com o fim de assegurar a todos existência
digna, segundo os ditames da justiça social.
Tais preceitos constitucionais têm como alicerce o princípio da dignidade
da pessoa humana calcado nos direitos humanos fundamentais.
Como esclarece Simone Hegele Bolson80, os direitos do consumidor são
direitos humanos de terceira geração que ultrapassam os direitos sociais da segunda geração, típicos do Estado Social, em razão do caráter de solidariedade,
vulnerabilidade incidível no caso concreto.
Interessante, ainda, citar a definição que a autora traz da dignidade da pessoa humana analisando a idéia central de Kant:
para a filosófica Kantiana, todo homem tem dignidade e não tem preço
como as coisas; a pessoa não pode (nem deve) ser “coisificada”, assim
cada ser humano é único em sua individualidade e insubstituível, não podendo ser trocado por coisa alguma. Kant defendia a idéia de que o homem não é uma coisa e, por conseqüência, não tem um preço – em uma
simplificação adstrita aos limites desse artigo – é a afirmação de que a
pessoa humana tem um valor em si mesmo, um valor absoluto que não
pode ser negociado, trocado ou explorado, esse valor é a dignidade da
pessoa humana. A concepção kantiana pode ser descrita como a idéia de
que o ser humano, em razão tão-só de sua condição humana, tem direitos
que obrigam o Estado e aos demais seres humanos a respeitá-los. 81
Extrai-se dessa análise o princípio da dignidade da pessoa humana como
consumidora82, que concebe o homem como ser digno, com valor em si mesmo,
e não uma coisa.
Sob esse prisma, surge, em 1.990, o Código de Defesa do Consumidor com
a lei 9.078, de 11 de setembro, de acordo com a determinação Constitucional art.
49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A Política Nacional das Relações de Consumo visa, dentre outros objetivos,
buscar, de acordo com o inciso III, do artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor:
harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e
compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de de79)
80)
81)
82)
KHOURI, 2001, p. 4.
BOLSON, 2003, p.267.
Ibid., p. 274.
Ibid., p. 278.
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senvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios
nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal),
sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores
e fornecedores;
A vulnerabilidade do consumidor é reconhecida, coibindo-se os abusos,
como, por exemplo, versa o inciso IV, do artigo 51, que estabelece serem nulas
de pleno direito as cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.
Como anota Cláudia Lima Marques:
(...) o princípio clássico de que o contrato não pode ser modificado ou
suprimido senão através de uma nova manifestação volitiva das mesmas
partes contratantes sofrerá limitações (veja neste sentido os incisos IV e V
do art. 6º do CDC). Aos juízes é agora permitido um controle do conteúdo
do contrato, como no próprio Código Brasileiro de Defesa do Consumidor,
devendo ser suprimidas as cláusulas abusivas e substituídas pela norma
legal supletiva (art. 51 do CDC). É o intervencionismo estatal, que ao editar
leis específicas pode, por exemplo, inserir no quadro das relações contratuais novas obrigações com base no Princípio da Boa-fé (dever de informar, obrigação de substituir peça, renovação automática de locação etc.),
mesmo que as partes não as queiram, não as tenham previsto ou as tenham expressamente excluído no instrumento contratual. Relembre-se aqui,
também, o enfraquecimento da força vinculativa dos contratos através da
possível aceitação da teoria da imprevisão (veja neste sentido o interessante e unilateral inciso V do artigo 6º do CDC).83
Assim, as cláusulas abertas que se reportam à função social do contrato e
à boa-fé objetiva serão aplicadas tendo em vista a peculiaridade de cada sistema.
O Código Civil rege as relações privadas de forma ampla, há uma presunção5 de que a relação obrigacional é equilibrada, que as partes são iguais, e que
sua validade requer agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei84. Para os contratos celebrados
sem o pressuposto do equilíbrio entre as partes contratantes, há a previsão da
hipótese de estado de perigo 85 e da lesão86.
Já o Código de Defesa do Consumidor regula as relações de consumo partindo
da premissa de que as partes contratantes são desiguais, com o objetivo de manter
o equilíbrio da relação de consumo, protegendo o consumidor, que é a parte vulnerável do contrato perante o fornecedor, não apenas na questão sócio-econômica
(vulnerabilidade fática), mas também com relação ao acesso e controle das informações, (vulnerabilidade técnica) e negocial (vulnerabilidade jurídica ou científica)87.
83) MARQUES, 2004b, p. 227.
84) Art. 104 Código Civil/2002
85) Art. 156 Código Civil/2002
86) Art. 157 Código Civil/2002
87) MARQUES, op. cit., p. 270.
270
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Tanto no sistema do Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor, a inserção da função social do contrato e do princípio da boa-fé objetiva
não elimina a aplicação dos princípios tradicionais do Estado liberal, quais sejam: a liberdade de contratar, a força obrigatória do contrato e a eficácia relativa
da convenção, que passam a ser aplicados em conjunto com os novos princípios
norteadores das relações contratuais oriundos das idéias de eticidade e solidarismo, impostas pela nova ordem constitucional, que colocam a confiança8889
no núcleo das relações contratuais.
4 CONCLUSÃO
Do que foi analisado, verifica-se que a autonomia contratual deixa de ser
absoluta como era na concepção tradicional do contrato individualista, liberal, baseada na idéia de valor da vontade - pacta sunt servanda- e da propriedade privada.
O novo paradigma do direito contratual brasileiro tem como fundamento a
Constituição Federal de 1988, que adota o princípio da justiça social como base
da atividade econômica. O contrato, como meio de circulação da propriedade,
não pode mais ficar adstrito às partes contratantes, uma vez que seus efeitos
surtem conseqüências sociais.
Assim, a autonomia privada passa a ser delimitada pelos princípios da função
social do contrato e da boa-fé objetiva, consolidados pelo Código de Defesa do
Consumidor e pelo Código Civil Brasileiro de 2002 que, como cláusulas gerais,
buscam promover a justiça social e proteger o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, salvaguardando o equilíbrio do contrato.
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88) Nas palavras de Cláudia Lima Marques: “confiança é aparência, informação, transparência, diligência e ética
no exteriorizar vontades negociais.” (MARQUES, 2004a, p.33)
89) “A confiança, que é proteção e postulado ético para além de construir pressuposto de toda e qualquer ordem
jurídica que se queira como tal, atuando como verdadeiro cimento da convivência coletiva, é também uma
necessidade desta mesma ordem, necessidade que só tende a crescer à medida em que as relações se tornam
distantes e impessoalizadas. Por isso mesmo não é a confiança traduzida meramente em objetos ideais, abstratos
ou absolutos. Como bem cultural que é, dotado de existência necessária à ordem jurídico-social, a confiança é
dotada de caráter de realizabilidade típico dos fenômenos culturais. Isto significa dizer que, em cada Ordenamento, a confiança encontra particular e concreta eficácia jurídica como fundamento de um conjunto de
princípios e regras que permitem, de um lado, a observância do pactuado, conforme as circunstâncias da
pactuação, e, de outro, a coibição da deslealdade (em sentido amplo), nesta hipótese possuindo eficácia limitadora do exercício de direito subjetivos e formativos.
Das variadas formas pelas quais atua a confiança no Ordenamento, a mais fértil é, a nosso juízo, a possibilidade
pela aplicação do princípio da boa-fé como “teor geral” norteador da colaboração intersubjetiva.” (Ibid., p. 29)
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