® BuscaLegis.ccj.ufsc.Br O Direito Constitucional e o Novo Tratado Internacional Zélio Maia da Rocha* Neste artigo procurarei fazer uma análise circunstanciada do impacto promovido no direito brasileiro pelo novo § 3°, do art. 5°, da CF, introduzido pela emenda constitucional n° 45/2004, uma vez que considero, junto com o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, as duas alterações mais importantes decorrentes da reforma. Vejamos os termos do novo parágrafo, verbis: § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Antes de ingressar na análise específica do tema objeto da inovação do novo parágrafo, façamos algumas considerações sobre a estrutura normativa do direito brasileiro. A estrutura normativa do Brasil encontra-se concentrada em três grandes grupos de preceitos de natureza legislativa que são: a) normas constitucionais; b) normas infraconstitucionais; e, c) normas infralegais. a) normas constitucionais: nesse grupo de normas colocam-se: a constituição, as normas constitucionais de natureza transitória, as emendas à constituição e os tratados internacionais sobre direitos humanos referidos no § 3°, do art. 5° acima transcrito. a.1 – constituição - quanto à constituição, nenhuma discussão há sobre a sua natureza obviamente constitucional, sendo ela a fonte geradora de toda a estrutura estatal, inclusive normativa. a.2 – atos das disposições constitucionais transitórias – alguns atos previstos nas disposições constitucionais transitórias são de natureza constitucional, outros não. Os dispositivos transitórios podem ter natureza infraconstitucional federal, estadual, municipal ou distrital, ou até mesmo natureza infralegal, dependendo da matéria versada e seus limites. a.3 – emendas à constituição – tem natureza constitucional, onde tal se deu expressamente pelo disposto no art. 60 da constituição onde o constituinte fundador conferiu aos deputados e senadores funções constituintes de reforma, e no art. 3°, do ADCT, conferiu aos mesmos deputados e senadores a condição de congressistas revisores. Essas atribuições de poder constituinte de segundo grau (denominado de derivado) sofrem diversas limitações, o que não lhe retira o caráter constitucional. a.4 – tratados internacionais sobre direitos humanos – ao abordar esse tema deve se ter uma atenção redobrada. Primeiro porque estamos ingressando no tormentoso campo de definição de sua natureza jurídica e segundo porque uma vez admitido discute-se seu impacto na soberania do Estado. Há várias correntes sobre a colocação dos tratados internacionais sobre os direitos humanos à luz do direito interno brasileiro, devendo ser citadas como principais: I) posição de hierarquia constitucional; II) posição de natureza infraconstitucional. I) tratados internacionais sobre direitos humanos com hierarquia constitucional: para essa corrente os tratados internacionais sobre direitos humanos ganham hierarquia constitucional em razão do disposto no § 2°, do art. 5°, da CF. Essa posição encontra-se solidamente configurada no voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ministro Carlos Veloso proferido nos autos do habeas corpus n° 82.424/RS onde manifesta-se pela posição hierárquica superior de tais tratados, indicando, inclusive uma idéia de supralegalidade dos direitos humanos. II) tratados internacionais sobre direitos humanos com hierarquia infraconstitucional: para essa corrente, majoritária no âmbito do Supremo Tribunal Federal (ver julgamento do HC n° 72.131/RJ), os tratados internacionais, todos eles, e independentemente da matéria versada, têm força de norma infraconstitucional, mais especificamente, de lei ordinária. Sou partidário da corrente que afirma status constitucional aos tratados internacionais por força não só da aplicação do § 2°, do art. 5°, da CF, como também pelo fato de acreditar que os direitos naturais, após um longo período de hibernação frente ao positivismo jurídico, ganham força com o direito contemporâneo onde os direitos da pessoa devem ser colocados até mesmo em patamar de supralegalidade, onde para serem afirmados independem de regulamentação legislativa, seja infraconstitucional, seja constitucional. Não me deterei a uma maior análise ao tema, dado o objeto específico do presente artigo. b) Normas infraconstitucionais: tais normas buscam a realização do direito constitucional, são normas primárias e elas se encarregam de gerar direitos e impor obrigações, sendo: b.1) leis complementares; b.2) leis ordinárias; b.3) medidas provisórias; b.4) leis delegadas; b.5) decretos legislativos; b.6) resoluções legislativas; b.7) tratados internacionais em geral; b.8) decreto presidencial com suporte no art. 84, inc. VI, da CF. c) Normas infralegais: tais normas buscam a realização do direito infraconstitucional, são normas secundárias e não tem o poder de gerar direitos tampouco impor obrigações, sendo elas: c.1) decretos (art. 84, inc. IV, da CF); c.2) resoluções; c.3) portarias; c.4) instruções normativas; etc. Esse o arcabouço normativo nacional onde, nesse momento, interessa apenas a análise da posição do tratados internacioinais. Sempre se discutiu, no âmbito doutrinário, a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos e garantias individuais em razão do § 2º do art. 5º da Constituição Federal. Quanto ao tema, o Supremo Tribunal Federal, como já dito anteriormente, assentou que qualquer tratado internacional, qualquer que seja a matéria nele veiculada, uma vez integrado ao direito interno, tem status apenas de norma infraconstitucional, o que sepultava de vez os argumentos dos defensores do status constitucional desses tratados. O parágrafo em análise veio, na realidade, corroborar a posição do Supremo Tribunal Federal, pois expressamente concede status constitucional aos tratados que versem sobre direitos humanos somente se eles seguirem o trâmite de votação equivalente ao das emendas. Por um lado, a emenda constitucional não alterou ou suprimiu o § 2º do art. 5º: apenas acrescentou o § 3º, pelo qual conferiu aos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos — apenas sobre essa matéria, e não sobre qualquer direito fundamental — status de direito constitucional, desde que aprovado pelo mesmo processo legislativo das emendas. Agora, o resultado é a seguinte situação: qualquer tratado internacional recepcionado pelo direito interno pelas vias legislativas ordinárias tem status de norma infraconstitucional; tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, desde que recepcionados pelo direito interno mediante o procedimento legislativo das emendas à Constituição, têm status de direito constitucional. Veja que esse tratado internacional, que ingressou no direito interno pelo mesmo processo deliberativo das emendas, não é direito constitucional formal, é direito constitucional apenas e exclusivamente sob o aspecto material, compondo o que se pode denominar de bloco de constitucionalidade, que consiste em considerar como constitucional todo e qualquer preceito, positivado ou não, de conteúdo constitucional, como integrante de um grande bloco com força constitucional, mesmo que não seja formalmente constituição. Para aquela corrente, inclusive, que considera que o § 2° do art. 5° da CF confere força constitucional ao tratado que verse sobre direitos fundamentais, a emenda 45/2005 não promoveu qualquer alteração. Eis que, para essa corrente, a força de normatividade constitucional para tais tratados independe de seu reconhecimento especial. O novo parágrafo é inovador apenas para a posição do supremo onde não reconheceu força constitucional aos tratados internacionais. No que se refere ao posicionamento do STF sobre a hierarquia dos tratados, também não foi alterado, uma vez que, ao contrário, restou ratificada a posição dos tratados em geral, ou seja, se não for sobre direitos humanos, não podem ter outra força que não a de norma infraconstitucional. Aboliu-se de vez, à luz da jurisprudência do Supremo, qualquer possibilidade de outra interpretação. Por outro lado a interpretação que se extrai da norma inserida no art. 5° é de que os tratados, mesmo que versem sobre direitos humanos, continuam tendo status de norma infraconstitucional, a não ser, é claro, que sejam inseridos no ordenamento jurídico pelo processo legislativo indicado no novo parágrafo. Isso afronta, a meu sentir, toda a construção do direito constitucional preservacionista dos direitos fundamentais, eis que possibilita a existência de um direito classificado como direitos humanos com ou sem força constitucional de acordo com a política interna da integração de um tratado internacional. O que quero dizer com isso? Que a permanecer a orientação do Supremo, de que os tratados internacionais sobre direitos fundamentais tem estatura infraconstitucional, e ainda, procedendo a essa análise, que considero superficial, de que somente ganha estatura constitucional aquele tratado que verse sobre direitos humanos e ainda que seja submetido ao procedimento especial, teremos duas conseqüências que considero desastrosas: 1ª) estaria a se admitir que somente ganharia estatura constitucional o tratado sobre direitos humanos se, e quando, o Congresso Nacional desejasse conferir-lhe tal condição; e, 2ª) estaria a se admitir que tenhamos direitos humanos com estatura apenas de norma infraconstitucional, convivendo com direitos humanos com estatura constitucional, isso, obviamente, afronta o princípio insuperável da unidade constitucional. Por outro lado, mesmo que venha a se filiar à corrente que vê nos tratados internacionais força apenas infraconstitucional, duvidável a necessidade desse preceito constitucional para que se possa conferir ao tratados sobre direitos humanos natureza constitucional. Ora, se se consegue o procedimento proposto no § 3º, poder-se-ia muito bem elaborar uma emenda à Constituição, não servindo de argumento a via estreita dos legitimados à apresentação da emenda a justificar a votação de um tratado em vez da elaboração, discussão e votação de uma proposta de emenda. Questão interessante que se levanta em razão desse parágrafo é a concernente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a inadmissibilidade de preceito constitucional fora da Constituição. A jurisprudência do Supremo é pacífica no sentido de não admitir preceito constitucional fora do texto formal da Constituição. Entendo que esse posicionamento do Supremo deve agora ser revisto. Ora, se o tratado internacional sobre direitos humanos é equivalente à emenda constitucional, tem-se uma matéria constitucional que não está inserida em preceito normativo formalmente constitucional; ao contrário, surge uma matéria constitucional fora do Texto Constitucional formal. Veja que não estamos aqui, como alguns doutrinadores sustentam, frente a preceito constitucional formal, eis que não ganhou forma constitucional, ganhou apenas estatura constitucional, o preceito com tal estatura não nasceu do poder constituinte reformador, não recebeu a forma de emenda apenas recebeu, por obra, aí sim, do poder constituinte reformador, força constitucional. Para que ocorra a inserção desse novo direito no sistema legislativo brasileiro com força de direito constitucional não há, em nenhum momento, a necessidade de atuação do poder constituído de reforma, apenas do poder legislativo ordinário que, no entanto, deverá manifestar-se pelo procedimento legislativo especial. O tratado aqui estudado é apenas um integrante do bloco de constitucionalidade que tem como fonte principal o direito constitucional formalizado na constituição (isso para os países que adotam a constituição escrita), mas se completa pelo direito natural – reconhecido ou não por normas internas – os tratados internacionais que versem sobre tais direitos, em resumo, o bloco de constitucionalidade deve ser o novo norte para compreensão do direito constitucional em toda sua dimensão eis que a vontade constituinte fundador foi, evidentemente, de construir um Estado onde os direitos humanos fossem a base do estado republicano. Nesse contexto, não há como escapar da lição do Ministro Celso Mello, que em lapidar despacho proferido nos autos da Adin 595-ES, assim pontificou com ímpar clareza: “No que concerne ao primeiro desses elementos (elemento conceitual), cabe ter presente que a construção do significado de Constituição permite, na elaboração desse conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado.” Afora essa pretérita discussão, da existência ou não de constituição além do texto formal, em razão da nova realidade inaugurada pela emenda constitucional n° 45/2004 e qualquer que seja a corrente que se faça opção em seguir, é fato que agora se tem preceito constitucional fora da constituição formal, onde a idéia de bloco de constitucionalidade é realidade inabalável – para mim já era antes da emenda –, não só no campo do direito natural como igualmente em outros parâmetros como, por exemplo, a lei de introdução ao código civil que se apresenta como típica norma de estatura diferenciada pelo conteúdo que veicula. (em minha obra, A Reforma do Judiciário – Uma avaliação jurídica e política, editora Saraiva, isso fica muito bem explicitado na abordagem sobre mutação constitucional). Daí se pode concluir que, a partir do momento em o direito interno brasileiro receber um tratado internacional integrado à ordem interna brasileira pelo procedimento do § 3°, do art. 5°, existirá inquestionavelmente direito constitucional fora da Constituição formal (o que sempre foi rechaçado pela jurisprudência do STF), acarretando, inclusive, a possibilidade de controle de constitucionalidade em face de preceito fora da Constituição formal. Talvez, a partir daí, poderemos pensar em estender o controle de constitucionalidade tendo como base de parametricidade outros integrantes do bloco de constitucionalidade, como regras de direito natural independentemente de sua veiculação por tratados internacionais ou pelo texto da constituição formal. Por outro lado, há de se destacar que teremos agora de discutir a extensão das denominadas cláusulas pétreas. Sabe-se que as cláusulas pétreas relacionadas aos direitos e garantias individuais encontram-se principalmente no art. 5º da Constituição Federal, podendo ainda ser encontradas em toda a extensão do Texto Constitucional. Na nova realidade, com a possibilidade de admitirmos preceito normativo constitucional fora da Constituição por intermédio dos referidos tratados internacionais, e ainda considerando que tais tratados versem sobre direito e/ou garantia individual (direitos humanos), há que ser lembrado que tais preceitos não podem, posteriormente, ser retirados do ordenamento jurídico constitucional, quer por novo tratado, quer por emenda à Constituição ou por denúncia do tratado, por versar cláusula pétrea, nesse caso, fora da Constituição. Ora, essa posição é consentânea com o que restou sustentado acima, onde preceitos de índole constitucional decorrem de uma reserva constitucional, onde são temas obrigatórios e, quando se tratar de direitos naturais da pessoa, fonte inspiradora do Estado, tais direitos devem ser inseridos pelo poder constituinte fundador e se não foram inseridos pela Assembléia Nacional Constituinte poderão sê-los por obra da manifestação reformadora ou, agora, pelo legislador ordinário que venha a aprovar o tratado internacional pelo novo procedimento. De qualquer sorte, são preceitos materialmente constitucionais e que não poderiam ser “esquecidos” ou não podem ser retirados uma vez inseridos pelo poder constituinte fundador ou pelo reformador ou ainda, presentes no bloco de constitucionalidade, não podem ser dele extraídos. *Procurador do Distrito Federal, advogado e Professor de Direito Constitucional, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Distrito Federal, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF, Conselheiro do Conselho Deliberativo CONDEL - do Programa de Proteção às Vítimas, Testemunhas e Familiares PROVITA/DF, autor da obra "A reforma do Poder Judiciário - Uma avaliação jurídica e política" e "Curso de Direito Constitucional em Exercícios", Ed. Fortium. ROCHA, Zélio Maia da. O Direito Constitucional e o Novo Tratado Internacional. Disponível em http://www.vemconcursos.com/opiniao/index.phtml?page_id=1838. Acesso em 20/09/06.